Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/58074
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Fundamentos da inconstitucionalidade do artigo 305 do código de trânsito brasileiro

Fundamentos da inconstitucionalidade do artigo 305 do código de trânsito brasileiro

Publicado em . Elaborado em .

O presente artigo analisa os fundamentos da inconstitucionalidade do crime previsto no artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, consistente na fuga do local do acidente, à luz do artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal.

INTRODUÇÃO

O artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro prevê o crime consistente na fuga do local do acidente, com a seguinte conduta típica:

Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe pode ser atribuída.

 Pena: detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

Desta forma, a legislação de trânsito visa punir a fuga do condutor de veículo automotor do local em que ocorreu o acidente, pois este fato dificulta sua identificação e, consequentemente, sua eventual punição.

Ocorre que segundo o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme julgamento do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4, este crime previsto no artigo 305 do CTB é inconstitucional, ou seja, fere os princípios da nossa Constituição Federal e, portanto, não deve ser aplicado.

O fundamento para a declaração da inconstitucionalidade desse crime está no artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal, que contém o princípio segundo o qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.


A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 305 DO CTB

A Constituição Federal brasileira estabelece diversos princípios que deverão ser respeitados para que tenhamos um processo legítimo e justo, dentre eles destacamos o princípio da ampla defesa e do contraditório, cujo conteúdo reflete o ensinamento que todos os indivíduos processados possuem o direito de defenderem-se utilizando todos os meios de provas em direito admitidas e a todos os atos processuais praticados pela parte adversa (ampla defesa), deverá ser oportunizado o direito da parte se manifestar (contraditório).

Além disso, no bojo do direito à ampla defesa, o artigo 5º, LXIII da CF expressamente prevê que:

Art. 5º ....

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

Ao prever que o preso poderá permanecer calado, conferindo-lhe direito ao silêncio, nossa Magna Carta consagra o princípio do nemo tenetur se detegere, que consiste em que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Criminalizar a conduta do motorista que se afasta do local do acidente visando não ser responsabilizado de forma criminal e civil pela causa do acidente, é o mesmo que retirar toda a eficácia e validade do princípio esculpido no artigo 5º, LXIII da CF, posto que o legislador ordinário está imputando ao agente a produção de prova contra ele mesmo, ou seja, o agente causador do acidente deverá permanecer no local do acidente, mesmo que este fato contribua para comprovação de sua responsabilidade penal e civil.

Sobre o tema, Damásio E. de Jesus, questiona:

[...] a lei pode exigir que, no campo penal, o sujeito faça prova contra ele mesmo, permanecendo no local do acidente? Como diz Ariosvaldo de Campos Pires, ‘a proposição incriminadora é constitucionalmente duvidosa’ (Parecer sobre o Projeto de Lei n. 73/94, que instituiu o CT, oferecido ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, 23-7-1996). Cometido um homicídio doloso, o sujeito não tem obrigação de permanecer no local. Como exigir essa conduta num crime de trânsito? De observar que o art. 8º, II, g, do Pacto de São José: ninguém tem o dever de auto incriminar-se. [2]

Devemos observar que em que pese o julgamento proferido nos autos do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4 existem posicionamentos contrários, defendendo a constitucionalidade do artigo 305 do CTB.

Nesse sentido, os professores Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves sustentam a constitucionalidade do dispositivo legal, sob fundamento que “a conduta incriminada é o afastamento, a fuga do local do acidente, com a intenção de não ser identificado e, assim, não responder penal ou civilmente pelo ato",[3] desta forma, a criminalização não estaria atrelada à produção da prova contra si mesmo, que somente ocorria em momento posterior, com a interposição de processo penal ou civil pela conduta.

Neste trabalho defendemos a correção da fundamentação do  Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4 determinou que:

Incidente de inconstitucionalidade (CF, art. 97;  CPC, arts. 480 a 482). Código de Trânsito Brasileiro, art. 305 - fuga à responsabilidade penal e civil. Tipo penal que viola o princípio do art. 50, LXIII garantia de não autoincriminação. Extensão da garantia a qualquer pessoa, e não exclusivamente ao preso ou acusado, segundo orientação do STF. Imposição do tipo penal que acarreta a autoincriminação, prevendo sanção restritiva da liberdade, inclusive para a responsabilidade civil. Inconstitucionalidade reconhecida. Incidente acolhido.

É Inconstitucional, por violar o art. 5°, LXIII, da Constituição Federal, o tipo penal previsto no art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro. [4]

Conforme consta nos argumentos do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4, o legislador ordinário não poderá suprimir direitos conferidos pela Constituição Federal, dentre eles a vedação da auto incriminação prevista no artigo 5º, LXII.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1.988 traz em seu bojo diversos princípios que visam efetivar direitos e garantias fundamentais, dentre eles se enquadra o artigo 5º, LXII que garante o direito ao silêncio como expressão da vedação da auto incriminação.

Qualquer disposição infraconstitucional que determine o contrário, criminalizando condutas que ensejam a produção de provas contra si mesmo deverá ser considerado inconstitucional, tal como o artigo 305 do CTB.

Pelo exposto, consideramos acertada a decisão exarada nos autos do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4, que julgou inconstitucional o artigo 305 do CTB.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, São Paulo, 1998.

JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. São Paulo: Ed. Saraiva, 7a edição revista e atualizada, 2008.


Notas

[2] JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. São Paulo: Ed. Saraiva, 7a edição revista e atualizada, 2008, pág. 147.

[3] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, São Paulo, 1998, pág.40.

[4] Disponível em: https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=25246. Acesso em 26 mai. 2017.


Autor

  • Camila Maria Rosa

    Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP (2017). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal - Uniderp (2007). Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Araraquara - Uniara (2005). É professora de Direito Penal, Direito Processual Penal, Prática Processual Penal e do Trabalho e Direito Tributário na Faculdade de Araraquara - SP. Foi professora de Direito Penal e Direito Processual Penal no Instituto Matonense de Educação e Ensino Superior - IMEES, em Matão - SP. Foi Assessora Jurídica do Município de Boa Esperança do Sul - SP. É advogada atuante na cidade de Araraquara - SP. É Secretária de Administração e Finanças, no Município de Santa Lúcia - SP. Email: [email protected].

    Textos publicados pela autora

    Fale com a autora


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pela autora. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.