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Dor e dano: dois “D” diferentes.

Um ensaio sobre os sentimentos negativos e o dano moral.

Dor e dano: dois “D” diferentes. Um ensaio sobre os sentimentos negativos e o dano moral.

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A Jurisprudência brasileira segue reluzindo a expressão dor quando se trata de danos morais. Este pensamento matemático que simplifica a possibilidade de indenização por danos morais à existência de sentimentos negativos não encaixa de forma adequada.

Resumo: O dano moral, ainda, é considerado como uma novidade para o ordenamento jurídico brasileiro. Apesar de toda evolução experimentada nos dias atuais, não há como negar que restam resquícios do pensamento patrimonialista no que se refere à responsabilidade civil. Para que fosse necessária a imputação do dever de indenizar, exigia-se a identificação de algum tipo de perda patrimonial. Este pensamento foi transferido diretamente para os danos morais, o que acabou por resultar na exigência de identificação de algum tipo de perda para justificar tal indenização. Por não ser patrimonial, a jurisprudência e alguma parte da doutrina acabaram por imputar a perda da tranquilidade, a existência de sentimento negativo, como sendo a justificativa para os danos morais. Uma mudança no foco justificador do dano moral, retirando-o do aspecto subjetivo do sentimento negativo para a defesa do ser humano pela sua simples condição de ser humano através da mitigação a ofensas aos direitos da personalidade.

Palavras-chave: DANO MORAL. CONCEITO. SENTIMENTO NEGATIVO. DOR. DIREITO DA PERSONALIADE. PESSOA HUMANA

Sumário: 1. INTRODUÇÃO; 2. “HOMEM PRIMATA”: PATRIMONIALISMO SELVAGEM; 3. ESSE DESCONHECIDO CHAMADO DANO MORAL; 4. UMA JURISPRUDÊNCIA ATORDOADA COM TANTA DOR; 5. UM POUCO DE ANALGÉSICO PARA ALIVIAR A DOR?; 6. CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1.INTRODUÇÃO

Maria de Jesus caminhava tranquilamente pelas ruas do seu bairro. Eram mais ou menos dez horas da manhã, o sol escaldante brilhava no céu, mas nem por isso Maria de Jesus abandonava o seu desiderato de chegar até a sua agência bancária. Todo início do mês, entre os dez primeiros dias, “Dona Maria”, como era conhecida na vizinhança, se dirigia à mesma agência bancária para efetuar seus pagamentos mensais de suas contas-consumo.

No auge dos seus 68 anos, “Dona Maria” entra na instituição financeira e posiciona-se no caixa comum. Sua opção tinha razão de ser: apesar de sustentar orgulhosa uma unanimidade de cabelos brancos, a consumidora geralmente preferia permanecer junto aos mais jovens, pois eram eles os detentores de uma saúde mais vigorosa. Ocorre que neste caso específico, “Dona Maria” afirmou que tinha optado por não ir para o caixa exclusivo de idoso, porque viu que a fila de lá estava “insuportavelmente maior”.

Alguns punhados de minutos se passaram – mais ou menos uns vinte e cinco – enquanto a fila se arrastava e aproximava a simpática senhora do atendimento com o caixa.

Enfim, D. Maria consegue chegar até o guichê, onde encontra a atendente conversando amenidades com sua colega de bancada. Uma pausa: a funcionária do banco pega a conta-consumo que D. Maria colocou sobre a bancada e mais cinquenta reais ali, também, deixados. Um pouco mais de conversa entre as funcionárias e o atendimento é, efetivamente, iniciado. A máquina registra a obrigação de pagamento de R$ 68,00 (sessenta e oito reais), quantia esta informada pela atendente que, prontamente recebe R$ 50,00 (cinquenta reais) para complementar o montante anteriormente entregue.

Neste momento, a caixa afirma que cinquenta reais não pagam sessenta e oito. Dona Maria refuta indicando que já houvera entregue uma nota de cinquenta reais quando aportou a conta-consumo sobre o balcão.

Diante da afirmativa da consumidora e da negativa da funcionária, o conflito restou instalado na agência bancária. Não houve qualquer tipo de ofensa física, ou moral, mas nenhuma das partes abriam mão do seu posicionamento. Era necessário chamar alguém que ocupasse um cargo superior para dirimir o problema, missão esta conferida ao sub-gerente que, alegando incompetência para mediar o conflito, convoca a gerente geral para ouvir as partes.

Alguns minutos após a sua convocação a gerente se apresenta no local do conflito e coleta as informações prestadas tanto pela “D. Maria” como pela funcionária. Numa medida salomônica afirma que, para evitar maiores transtornos e por mera deliberalidade, autorizará que haja a devolução do valor de R$ 32,00 (trinta e dois reais).  E assim foi feito.

A simpática idosa, já com seu troco nas mãos sai da instituição bancária e retorna caminhando para a sua residência, pela mesma calçada onde há pouco houvera passado. Uns duzentos metros além da porta giratória, “D. Maria” é abordada por dois policiais que, com arma em punho, sem apontar pra ela, lhe dá voz de prisão e a conduz para a viatura policial. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, a Sra. Maria de Jesus obedece as ordens do policial e volta os duzentos metros há pouco vencidos, agora acompanhada de policiais e sob os olhares de seus vizinhos.

Já dentro da viatura, ela é conduzida para a delegacia de polícia onde recebe a notícia de que estava ali por ser acusada de participar de um grupo especializado em “dar golpes” nas instituições financeiras. Permanece na delegacia de polícia por um período de mais ou menos duas horas a espera da vítima que deveria formalizar a queixa prestada, o que não aconteceu, e, por conta disso, “D. Maria” foi liberada para retornar para sua residência.

Diante de todos esses acontecimentos, a “D. Maria” foi instruída por seu filho a contratar um advogado e ingressar com uma demanda contra o banco pleiteando danos morais em razão da dor, do sofrimento e da humilhação que experimentara ao ser conduzida para a delegacia em carro oficial sob a acusação de prática de crime e diante dos olhos atentos de vários vizinhos que lhe conhecem a alguns anos.

Em atenção às recomendações do seu filho, a simpática senhora contrata um causídico e ingressa com a demanda judicial pleiteando indenização por danos morais sob os fundamentos anteriormente mencionados. Esta ação é distribuída e vai para uma das Varas Cíveis da Comarca de Salvador.

Alguns meses depois, um rapaz está em seu apartamento. Era seu dia de folga do trabalho e ele descansava no seu sofá assistindo um bom filme em sua nova televisão. No meio da exibição a campainha da sua porta da sala toca; era o porteiro!

Prontamente, o jovem de seus vinte e sete anos levanta-se do sofá e vai até a porta atender o funcionário do edifício. Ao abrir a porta, o preposto lhe entrega uma carta registrada e solicita a assinatura no livro de protocolo. Após fechar a porta, ele imediatamente abre a carta e se depara com uma notificação do órgão de proteção ao crédito onde informa que seu nome será inscrito no cadastro de maus pagadores no prazo de 05 (cinco) dias, caso não consiga comprovar que houve o pagamento da dívida apontada pela empresa de telefonia.

Ele entra em contato com a empresa que afirma não haver qualquer indicativo de impontualidade com o pagamento das suas contas-consumo e informa que é para desconsiderar aquela notificação, pois o pedido de inscrição foi equivocado, mas já houvera sido cancelado. Mesmo sem ter seu nome inscrito no cadastro de maus pagadores o jovem rapaz contrata um advogado e ingressa com um processo que é distribuído para uma das Varas Cíveis da Comarca de Salvador.

No primeiro caso, o Juiz que decidirá o caso, certamente, concluirá pela condenação do Banco no pagamento de danos morais, pois restou claro que houve dor e sofrimento por parte da senhora que, no mínimo, foi humilhada em seu local de residência, perante seus vizinhos. Já no que se refere ao segundo exemplo, poderá haver quem defenda, assim como no primeiro caso a ocorrência de danos morais, pois o jovem rapaz pode ter ficado chateado, deprimido, ou nervoso, por ter visto que seu nome seria inserido no cadastro de inadimplentes.

Quem defende a condenação em danos morais no primeiro caso por conta da suposta ocorrência de sentimentos negativos também deverá se comportar da mesma forma quanto a o segundo exemplo, pois, neste caso, também há um complexo de sensações que trazer certo sentimento de diminuição à suposta vítima.

Ocorre que, mesmo observando o sentimento de dor, de sofrimento, em ambos os casos, muitos se apresentarão intolerante quanto a qualquer tipo de condenação no segundo caso. Afirmarão estes juristas que condenar a empresa de telefonia por um erro tão pequeno será incentivar a indústria do dano moral e transformar o Poder Judiciário numa loteria.

Por um lado, estes juristas que apresentam maior resistência à indenização por danos extrapatrimoniais possuem razão quando se preocupam com o grande volume de feitos que “nascem” no Poder Judiciário todos os dias.  Erram, porém, quando afirmam que a suposta indenização não seria cabível em razão do pequeno erro, ou da inexistência de dor.

Falar em dano moral não é falar em dor, ou em qualquer outro sentimento desagradável. A humilhação em nada tem haver com prejuízos extrapatrimoniais. Ninguém deverá ser indenizado somente porque ficou triste com alguma coisa ou com algum comportamento, pois se assim fosse, seria possível um dos namorados que sofreu com o término do relacionamento pleitear indenização para o outro; ou, pior, aceitar-se-ia a possibilidade de um amigo pedir a mesma indenização ao outro por ter esquecido de trazer a camisa do seu time preferido do futebol europeu que houvera prometido, como presente de aniversário.

O dano moral é muito mais do que isso!

Neste pequeno ensaio, buscará apontar algumas peças para que se possa montar esse complicado quebra-cabeça da identificação do desenho abstrato do dano moral, desvinculando-o de um conceito que – de forma bastante perigosa – se instala rapidamente nos mais diversos Tribunais brasileiros, inclusive no âmbito da Corte Especial.

No Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1290051/SP a Relatora Min. Nancy Andrighi afirma na ementa do voto que:

Embora geralmente o mero inadimplemento contratual não seja causa para ocorrência de danos morais, é reconhecido o direito à compensação dos danos morais advindos da injusta recusa de cobertura de seguro saúde, pois tal fato agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do segurado, uma vez que, ao pedir a autorização da seguradora, já se encontra em condição de dor, de abalo psicológico e com a saúde debilitada.

Da mesma forma, o Min Sidnei Beneti, quando da relatoria do Agravo em Recurso Especial nº 1346581/SP,  afirma que “para se presumir o dano moral pela simples comprovação do ato ilícito, esse ato deve ser objetivamente capaz de acarretar a dor, o sofrimento, a lesão aos sentimentos íntimos juridicamente protegidos, o que não ocorreu no caso.”

Estes dois pensamentos são aqui apresentados somente para demonstrar que a questão do sentimento negativo encontra-se inserto nas decisões que envolvem danos morais. Ocorre que, conforme já pontuado acima, este caminho trilhado apresenta graves riscos, sendo, portanto, necessário que se interrompa este trajeto e, rapidamente, volte para o trajeto correto, a fim de que seja possível assegurar um caminhar tranquilo quando se fala em ofensas extrapatrimoniais.


2. “HOMEM PRIMATA”: PATRIMONIALISMO SELVAGEM.

Durante longos anos, o direito brasileiro caminho no trilho de um pensamento exclusivamente patrimonialista. Acompanhando esta linha de pensamento a responsabilidade civil somente conseguia enxergar aquela conduta que representasse dano ao patrimônio de alguém. A ideia de perda era fundamental para a configuração do dever de indenizar.

Somente se falava em indenização quando o quarteto da responsabilidade civil estava totalmente adimplida: Alguém deveria praticar uma conduta contra alguém sem a perícia, a prudência ou a negligência exigida, resultando diretamente num dano a esta vítima, ofensa esta que deve resultar diretamente na diminuição do seu patrimônio. A identificação da conduta, da culpa, do nexo de causalidade e do dano seriam responsáveis pelo desenho da responsabilidade civil.

Em razão do pequeno horizonte exclusivamente patrimonialista que se descortinava diante da sociedade regida pelo Código Civil oitocentista, não se pode deixar de ressaltar que somente se falava em dano quando era possível identificá-lo através de um pensamento matemático objetivo de perda. Em outras palavras, este último elemento da responsabilidade civil somente restaria configurado quando o sistema conseguisse perceber uma diminuição tanto no patrimônio, quanto na expectativa de ganho, o que restou denominado de danos emergentes e lucros cessantes, respectivamente, afinal, “a rega lógica subjacente, e que se fazia valer, era a de que aquilo que não se pode medir, não se pode indenizar: a indenização é, justamente, a “medida” do dano.”[1]

Ocorre que a multiplicidade de acontecimentos ao redor do mundo acabaram por resultar em modificações consideráveis no pensamento jurídico pátrio. Os resultados do pós II Guerra Mundial ecoaram em diversos países, inclusive no Brasil. Aquele pensamento patrimonialista antes inquestionável passou a ter suas bases estruturais minadas. Com o comportamento expansionista incontrolável e do ódio intrínseco contra os Judeus de Adolf Hittler passou-se a se questionar exatamente qual seria a função de uma defesa do patrimônio quando desprovida de uma atenção prévia à pessoa humana. Seria mais importante para a sociedade buscar assegurar proteção e garantias primeiramente à pessoa humana ou ao seu patrimônio?

Esta pergunta ecoou profundamente na forma de raciocinar e de aplicar as normas jurídicas pátrias, alcançando a sua chancela com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que trouxe em seu bojo, como princípio máximo de todo o ordenamento a dignidade da pessoa humana. Antes, porém, o direito Brasileiro palmilhou durante anos um caminho tortuoso de transformações que se alcançaram os mais diversos ramos, inclusive a responsabilidade civil.

As já embaçadas lentes que limitavam a amplitude da proteção jurídica, careciam de serem trocadas. Este clamor foi atendido, ainda que vagarosamente, através do árduo trabalho dos advogados que batiam às portas do Poder Judiciário de forma reiterada apresentando as  - àquela época – novas teorias da responsabilidade civil.

O primeiro grande passo foi dado antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988. O STF – que naquela época respondia com última instância, decidindo questões que atualmente são de competência do STJ – estampou em seu livro de jurisprudência o acórdão do Recurso Extraordinário nº 59940, de relatoria do então Min. Aliomar Baleeiro que, nos idos de 1966, reconheceu, pela primeira vez, a linha de pensamento que se preparava para conseguir espaço definitivo vinte e dois anos mais tarde com a promulgação da Carta Magna vigente atualmente.

O primeiro caso prático a trazer à baila a necessidade de ampliação dos horizontes da responsabilidade civil surgiu de um atropelo de uma criança por um trem. Este ato acabou causando a morte da vítima, o que gerou, segundo o voto do Ministro, na frustração de uma expectativa paterna de um futuro onde seu filho, pelo menos, auxiliaria na suprimento das necessidades patrimoniais da família.

É bem verdade que, analisando o acórdão nos dias de hoje, percebe-se que, na realidade, apesar da indicação da ocorrência do dano moral, o que o Relator assegurou foi uma indenização por uma espécie de dano patrimonial futuro. Apesar desta “distorção”, não se pode negar que a evolução acabara de se posicionar às portas do Poder Judiciário, pois, como menciona Maria Celina Bodin de Moraes,

A radical mudança de perspectiva aqui apenas reflete, e não poderia ser diferente, a metamorfose dos papéis do lesante e do lesado no sistema da responsabilidade civil em geral. Se antes a vítima era obrigada a suportar, corriqueiramente, o dano sofrido – dano cuja causa, na maior parte das vezes, se atribuía não a seu atuor, mas ao seu destino, à fatalidade, ou à vontade de Deus -, já em meados do século XX passaria ela, a vítima, a desempenhar a função de protagonista da relação jurídica instaurada a partir do evento danoso, conseguindo garantir de forma cada vez mais eficaz o seu crétido, isto é, a reparação.[2]

Como já mencionado, as portas do Pode Judiciário foram se abrindo para a tese segundo a qual seria possível se defender as agressões que não resultam necessariamente em dano material, ressarcindo o ofendido por contra desses danos através de uma prestação pecuniária a ser paga pelo ofensor. O pensamento de outrora que rotulava este comportamento como sendo algo imoral rui por completo com a Constituição Federal de 1988 que trouxe em seu art. 5º previsão expressa acerca da indenizabilidade da ofensa a direitos extrapatrimoniais.


3. ESSE DESCONHECIDO CHAMADO DANO MORAL.

Se, até a década de cinquenta, falar em danos morais seria sustentar algo que beirava bem próximo do devaneio jurídico mais absurdo, atualmente não é preciso ser, nem mesmo, acadêmico em direito pra saber que ele existe. A sua inserção no âmbito das decisões jurídicas se apresenta como algo rotineiro, o que demonstra a sua forte presença na sociedade brasileira.

Não é difícil encontrar aquele que não tema mínima noção acerca do dano moral. Independemente da camada social a qual o cidadão faça parte, certamente haverá alguém que busca uma indenização por ofensa extrapatriomonial com a mesma facilidade com que faria com os danos materiais. Nas salas de aula é comum o aluno cogitar a possibilidade de indenizar por danos morais assim que o professor menciona algum dispositivo legal que se refira a lucros cessantes ou a danos emergentes.

O comportamento é quase que automático. Aliás, nos corredores da prática forense facilmente encontram-se processos em que os causídicos sustentam indenização por danos morais como se fosse o “brinde” em razão da ofensa: o plus. Seria a batata frita que se leva quando se compra o sanduiche e o refrigerante em lojas de fast food.

É exatamente neste ponto que se observa um dos grandes problemas do tema em estudo, pois a mesma facilidade com que se é pleiteado o dano moral não se reflete quando se fala na sua identificação. Com isso, regras que buscam limitar o caráter indenizatório são criadas pelos julgadores que, apesar de defenderem uma espécie conduta imoral neste ponto, formam jurisprudência que com o passar dos anos vão se consolidado no sistema jurídico brasileiro.

Tudo aquilo que é desconhecido, certamente, causará temor ou estranheza. A pessoa tomada de assalto por esses dois sentimentos terá comportamento de resguardo quanto as suas atitudes, a fim de tentar controlar o novo e estabelecer seus limites. Apesar das inúmeras normas de conceito indeterminado que hoje floreiam o jardim de artigos das mais diversas áreas do direto pátrio, não se pode negar que o dano moral ainda causa arrepios em alguns juristas.

Apesar de ser maioria, a corrente que não apresenta objeções negativas ao dano moral também não navega em mares tranquilos. Fortes correntes tentam conduzir a embarcação para lados que caminham emparelhados, mas que não se confundem.

A doutrina que se dedicou ao estudo inicial do dano moral - quando se apresentado à necessidade de conceituá-lo – buscou identificá-lo a partir de um comparativo com o dano material. À este era resguardada a necessidade de indenização do ofendido com o seu retorno ao status quo ante à ofensa. Por sua vez, quando a ofensa não apresentava reflexos no âmbito patrimonial, estaria de frente a um dano moral.

Havia quem defendesse a pouca importância quanto a conduta ofensora para a qualificação em danos morais ou materiais. Para estes, o que deveria ganhar relevância era, na realidade, o patrimônio ofendido: sendo ele material, estar-se-ia diante de uma ofensa material; já se fosse extrapatrimonial, esta agressão seria abarcada pelo dano moral. Em outras palavras, o que importava era o tipo de lesão, pois a partir de uma mesma conduta poderia haver ofensa tanto patrimonial como extrapatrimonial, como ocorre, por exemplo, com a ofensa à honra de um comerciante que é injustamente acusado de lesionar seus consumidores com práticas abusivas.

Nesta linha de raciocínio, o mencionado autor determinava que somente seria passível de ser indenizado por danos morais aquela ofensa que não produzia qualquer ofensa patrimonial. Saindo o âmbito exclusivo da extrapatrimonialidade, já haveria subsunção ao dano material, o que demonstra, ainda, o pensamento que valorizava o patrimônio em face da pessoa, apesar de toda a evolução de mentalidade.

Wilson Melo da Silva inaugura sua obra “O Dano Moral e sua Reparação” com o conceito do próprio dano moral. Nesta definição, o autor deixa clara a repartição entre a ofensa patrimonial e a extrapatrimonial, pois, estes últimos “jamais afetam o patrimônio material”[3]. Nesta linha de intelecção, segue o escritor aduzindo que “seu elemento característico é a dor, tomado o termo em seu sentido amplo, abrangendo tanto os sofrimentos meramente físicos, como os morais propriamente ditos”[4]

A simplicidade da identificação do dano moral a partir daquela indenização imputável a ato que, simplesmente, resulta em ofensa a direito sem percepção econômica do ofendido não é adequada diante da complexidade que as relações sociais se revestem nos dias atuais. Isso porque, conforme já suscitado por Orlando Gomes haveria situações em que a prática de um ato só resultaria em ofensa aos dois patrimônios: o material e o extrapatrimonial.

O dano moral ainda continuava preso e subordinado ao dano material. Existindo este, não haveria razão para se falar em indenização por conta daquele, afinal, o foco central da norma jurídica já estava devidamente assegurada. Nesta época, como mencionado alhures, o menoscabo imaterial ainda era visto de maneira disforme, sem os contornos apresentados nos dias atuais.

Silvio Rodrigues[5], em edições mais antigas, também apontava no sentido de que o dano moral seria apenas aquele que ofendesse exclusivamente a esfera extrapatrimonial da vítima. Havendo resquícios de danos que resultasse em diminuição de valores, estaria diante do dano material. Diante destas dificuldades, este autor afirmava que a matéria em estudo era identificada a partir da dor, do sofrimento, da mágoa, da tristeza imposta pelo ofensor ao ofendido.

A partir de então, inicia-se uma segunda vertente doutrinária que traz consigo a necessidade de identificação de algum tipo de perda para que se possa falar em dano moral. Há uma lista de grandes juristas que sustentam a tese segundo a qual somente seria possível falar neste tipo de ofensa quando houvesse reflexo no âmago da pessoa, que seriam exteriorizados a partir da dor, do sofrimento, da humilhação e outros mais que possam compor este leque sentimentos negativos. Neste sentido, cita-se, mais uma vez, os ensinamentos de Maria Celina Bodin de Moraes, para quem:

O dano é ainda considerado moral quando os efeitos da ação, embora não repercutam na órbita de seu patrimônio material, originam angústia, dor, sofrimento, tristeza ou humilhação à vítima, trazendo-lhes sensações e emoções negativas. Neste último caso, diz-se necessário, outrossim, que o constrangimento, a tristeza, a humilhação, seja intensos a ponto de poderem facilmente distinguir dos aborrecimentos e dissabores do dia-a-dia, situações comuns a que todos se sujeitam, como aspectos normais da vida quotidiana.[6]

Estabelecer que o dano moral se configuraria a partir da ocorrência de um sentimento negativo, de alguma mágoa, não é injustificado. Durante décadas, o direito brasileiro conviveu sob égide de uma responsabilidade civil patrimonialista onde somente seria possível se falar em indenização e, por consequência, em dano quando houvesse a identificação de algum tipo de perda. A redução patrimonial era necessária e fundamental para desenhar o dano material.

Ocorre que, quando se fala em dano moral, esta perfeita silhueta não consegue ser vestida com tamanha exatidão. Como assegurar a ideologia da perda sob um direito que refuta redução patrimonial, exatamente, por ser extrapatrimonial? Se há a indenização por algo, o valor a ser pago deve ser para repor alguma diminuição, sob pena de se chancelar a percepção de valores de forma indevida, o que desaguaria no enriquecimento sem causa do ofendido em toda e qualquer hipótese onde fosse possível incidir a matéria em análise.

Se objetivo é demonstrar uma redução, no caso dos danos extrapatrimoniais, esta diminuição se verterá para a tranquilidade espiritual, dai a necessidade de identificação dos sentimentos negativos para a sua configuração. A indenização, então, seria por conta a quebra da paz interna. Apesar de bastante sedutora, esta linha de raciocínio deve ser analisada com bastante reserva. A facilidade e a atração com que lhe oferecem a maçã pode esconder o veneno ali existente e lhe retirar do paraíso.

Sustentar apenas a existência da dor ou do sofrimento como aspecto básico para a configuração do dano moral é reduzir a importância do instituto perante a interação social moderna. Mesmo assim, apesar desta advertência, a jurisprudência pátria ainda perfilha neste sentido, resistindo às advertências quanto a deformidade do tratamento dado à identificação do dano moral, o que, sem sombra de dúvidas, resultará em insegurança jurídica, conforme será demonstrado, o tratamento conferido à situações similares pelo mesmo Tribunal não segue um pensamento uníssono, causando conflitos evidentes, conforme será melhor abordado à seguir.


4. UMA JURISPRUDÊNCIA ATORDOADA COM TANTA DOR.

Ao contrário de “saudade”, a expressão “dor” é conhecida em todos os idiomas, ou pelo menos os mais comuns. Todos são passíveis de sentir dor, humilhação ou tristeza. Aliás, a própria saudade pode resultar diretamente num sentimento negativo, o que não lhe retira a importância.

A Jurisprudência brasileira segue reluzindo a expressão dor – e os demais sentimentos negativos – quando se trata de danos morais. Há uma verdadeira atração entre estes dois elementos. É muito fácil encontrar menções que indicam que a indenização por dano moral é devida em face da tristeza ou da humilhação sofrida pela vítima. Somente à título de exemplo, cita-se jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

DANO MORAL: Hipótese que não é apta a ensejar a pretendida indenização por dano moral. Só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação intensa e duradoura que, fugindo à normalidade, cause aflições, angústia e desequilíbrio ao bem-estar. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (224223320098260590 SP 0022422-33.2009.8.26.0590, Relator: Renato Rangel Desinano, Data de Julgamento: 29/11/2012, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/11/2012)

Prestação de serviços. Telefonia Interrupção do serviço - Ação indenizatória - Danos morais Repetição em dobro da importância paga a título de recarga, determinada na origem Dano moral não configurado - Inexistência de ato que acarrete sofrimento intenso Sentença mantida - Recurso desprovido. Mero descumprimento de contrato, sem desdobramentos graves e sem abalo ou sofrimento, não induz dano moral.  (9118494842008826 SP 9118494-84.2008.8.26.0000, Relator: Reinaldo Caldas, Data de Julgamento: 08/08/2012, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/08/2012)

Este pensamento matemático que simplifica a possibilidade de indenização por danos morais à existência de sentimentos negativos não encaixa de forma adequada diante de casos práticos.

Logo no início desse artigo foi relatado dois casos reais que acabaram por resultar em indenizações por danos morais em favor dos ofendidos. Certamente, ao ler o primeiro dos exemplos – a situação da senhora que foi conduzida à delegacia por conta de imputação falsa de crime provocada pela gerente de uma instituição financeira a qual a idosa era cliente - poucas pessoas se postariam contra a obrigação de indenizar que deve recair sobre a empresa ofensora. Ali resta flagrante a existência dos festejados sentimentos negativos. Não há como negar que a idosa, ao ser conduzida pelo oficial da polícia militar passou por uma humilhação generalizada no seu bairro, o que resulta na expressão de repugnância por boa parte das pessoas que tiveram acesso aos autos.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, no segundo exemplo citado – o caso da carta enviada informando da futura inscrição no SPC/SERASA – também poderia ser identificada a ocorrência de angústia, pois a possibilidade da perda do crédito, atualmente, é motivo de graves preocupações para o cidadão. Estar sem crédito rotativo, para alguns, tem o mesmo peso de uma pena criminal, o que demonstra a ocorrência de sentimentos negativos e, portanto, seguindo a teoria da dor, passíveis de indenização por danos morais.

A fim de dificultar um pouco e instigar ao pensamento aprofundado, o que se dizer do rompimento de um namoro quando um dos enamorados encontra-se profundamente apaixonado pelo outro? Duas pessoas iniciam o relacionamento amoroso e, como em todos os casos, o primeiro meses são regados por um romantismo profundo e comportamentos piegas que somente são justificados em razão da ausência da razão característico do próprio amor.

Passam-se três meses e mesmo diante de uma união que transparece extremamente sólida, um dos namorados resolve terminar o seu envolvimento com o outro, afirmando que, por exemplo, depois de anos de terapia, descobriu que o sentimento por pessoas do sexo oposto era uma imposição social e que, na realidade, ele resolveu assumir a orientação sexual da homossexualidade, por ser esta a que mais lhe agrada.

É evidente que o término de um relacionamento, na maioria das vezes, resulta em sentimentos negativos para aqueles que foram pegos de surpresa com a notícia do rompimento do enlace. Quando se inicia um vínculo amoroso, não há aquele que, pelo menos, não projete algum planos existenciais com a outra parte e que deposite alguma confiança na relação à dois. O fim desta vida em comum joga por terra todos os projetos futuros, por mínimos que seja estes, ocasionando sentimento de tristeza e frustração, para se resumir a apenas estes dois.

Diante disso, pergunta-se: será que haveria o direito, por parte daquele que foi pego de surpresa com a notícia do término do namoro de receber indenização por danos morais?

Antes de respondê-la, solicita-se do leitor que observe a seguinte situação: Uma jovem garota de dezoito anos ganha de seu pai seu primeiro carro. Depois de passar por todas as exigências técnicas necessárias para a sua habilitação, ela consegue o direito de guiar seu veículo pelas ruas da cidade.

Passada uma semana de habilitada, a jovem encontra-se parada numa sinaleira que está em vermelho, observando a travessia de um ciclista pela faixa de pedestre para chegar ao outro lado da pista.  O seu lado direito está vazio, somente havendo carro no seu lado esquerdo. O ciclista, então, começa a travessia e quando está próximo de chegar ao seu ponto final – o passeio direito -, um carro em alta velocidade invade o sinal vermelho e o atropelar. Com a batida, o ciclista é arremessado a alguns metros de altura, permanecendo prostrado no asfalto quente durante  minutos até a chegada do serviço médico de urgência.

Todo esse desastre aconteceu bem ao lado da novata motorista que assistiu tudo sentada no banco do seu veículo. A condição de “espectadora” resultou no acometimento de um forte sentimento de dor ao ver a cena do ciclista sendo atingido pelo veículo e vindo a falecer minutos depois em plena via pública. O trauma se instalou em seu âmago e acabou por bloquear sua antiga vontade de dirigir. Ela, a partir de então, não mais conseguiu assumir o volante de um carro e passou a ter pesadelos constantemente com a cena presenciada. Foi necessária uma rotina de consultas com especialistas para tentar reduzir a resistência à condição de motorista.

Mencionado este exemplo, retorna-se à pergunta anterior: Neste caso, é possível que esta jovem mulher ingresse com ação de dano moral contra o motorista atropelador do ciclista?

Os mais românticos, certamente, responderiam “sim” para a hipótese do rompimento do namoro apaixonado. Já os mais sensíveis confeririam este mesmo opinativo para a hipótese do atropelo. Alguns poderiam achar um absurdo indenizar pelo término do relacionamento, sob a justificativa de que, o que importa não é a tristeza daquele que sofreu com o seu fim, mas com a felicidade daquele outro que se descobriu. Outros afirmarão que é impossível se falar em danos morais em face do atropelo, pois, na realidade a motorista neófita não estava envolvida no acidente, nem possuía qualquer vinculação com a vítima.

Mas, independentemente da resposta - “sim” ou “não” - dada aos caros práticos citados ao longo deste texto, não há como negar que em todos eles resta evidente o sentimento de dor, tristeza, humilhação ou qualquer outro. Portanto, ao defender a simples necessidade de identificação de uma angústia espiritual ao ofendido e, ao mesmo tempo, negar o pleito indenizatório a qualquer dessas hipóteses, é voltar-se contra o seu próprio conceito de dano moral.

Ao manter hígida tal bandeira, acabaria por negar, por exemplo, o direito a dano morais do nascituro em razão do falecimento do seu genitor. No âmbito da jurisprudência já é possível encontrar tribunais que se manifestam no sentido. O Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de se manifestar sobre o tema quando da Relatoria da Ministra Nancy Andirghi no Resp. 931556/RS que tratava da condenação por danos morais a ser percebida pelos filhos em razão do falecimento do seu genitor no local de trabalho.

A peculiaridade deste caso esta, exatamente, na questão do nascituro. Um dos filhos, ao tempo do infortúnio, ainda possuía a condição de nascituro, situação esta que foi utilizada pela Recorrente para tentar diminuir o valor dos danos morais, sob a alegação de que este não teria sofrido tanto quanto os outros pelo falecimento do seu pai. Em seu voto, a Ministra relatora deixou claro que “impossível admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser quantificado com precisão.”[7]

Apesar da singularidade do caso, a questão do nascituro já houvera sido ventilada no âmbito do STJ e, em decisão diametralmente oposta à esta anteriormente citada, o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao Relatar o Resp. 399028/SP[8], nos idos de 2002, afirmou, expressamente que “O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum”.

É evidente que ao realizar um comparativo entre as duas linhas de raciocínio, percebe-se uma evolução sensível na postura adotada pelo Tribunal Superior. O Recurso Especial da Ministra Nancy Andrigh já deu um passo à frente do Acórdão prolatado pelo Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, pois rompeu com a ideia de que o nascituro teria direito a uma indenização menor do que a dos filhos vivos, pois não teve o prazer de vivenciar dias alegres com seu falecido genitor.

Apesar da evolução, o Resp 931556/RS ainda peca quando consta em seu texto que a indenização é decorrente de um sofrimento impossível de ser quantificado com exatidão. O primeiro grande equívoco desta afirmativa está, exatamente, na possibilidade de tornar exato um sofrimento. A busca pela tão sonhada “exatidão” vem, exatamente -  o uso do cacófago é proposital – , da necessidade de demonstração de uma perda. Alguém perde algo, então surge o dever de indenizar, mas como saber o quantum indenizar se a perda não tem contornos salientes?

Quanto valeria uma depressão leve? Ou um sentimento de luto? Pergunta que, pelo menos, neste momento, ficarão sem respostas...

O outro ponto de equívoco que se visualiza neste mencionado recurso especial está, exatamente, na vinculação do sentimento. Seguindo esta linha de raciocínio, muito provavelmente, a indenização devida ao nascituro deveria ser maior do que a dos outros irmãos, pois o sentimento de perda por ele experimentado se prologaria por mais anos do que seus irmãos mais velhos, que poderiam guardar para sí as imagens de dias ensolarados e alegres com o de cujus. Mas, uma coisa ainda não ficou explicada: como seria possível afirmar que uma pessoa que ainda se encontra no ventre materno poderia sentir dor? Aliás, numa pergunta mais profunda, como é que se consegue transparecer nos autos que a angústia daquele nascituro?

A doutrina argentina discute essa questão do casamento entre a dor e o dano moral. A jurista Matilde Zavala de González evidencia que:

El daño presupone “algo” susceptible de menoscabo; y no sólo un interés que, en abstracto, permanece intangile incluso com posteoridad a la afrenta . Por eso, los perjuicios versan sobre una específica realidad havia la que apunta el interés tutelable. En otros téminos: el desmedro resarcible atiente a una minoración del sujeto y no, in genere al interés que tiene en asegurar la propia integridad

Por eso, si se desea un nexo apropriado entre daño resarcible e interés, éste deve ser entendido preferentemente como el valor de un bien para alguien, con eje en el objeto que satisface una necesidad o aporta utilidad, y comprobando se el hecho ha privado o amenguado una u otra. Se averiguan “efectos” generados por la lesión al interés, en la situación puntual de la víctima[9]

Quantificar a dor apresenta a mesma dificuldade inerente a identificar a culpa no âmbito das relações conjugais. Durante muito tempo, para se romper uma relação entre marido e mulher era necessário deixar demonstrado quem era o efetivo culpado por aquela situação degradante do enlace matrimonial. A dificuldade estava exatamente neste ponto: quem seria o culpado: quem deu causa ou quem sofreu com a causa?

Esta pergunta somente era respondida quando derramado nos autos todas as provas da intimidade das pessoas para que um terceiro – o Juiz – pudesse averiguar dentre aqueles dois quem melhor atingiu a meta de imputar ao outro a responsabilidade pelo fim do relacionamento.

No dano moral, seguindo a necessidade de demonstração do aspecto subjetivo, também será necessário apresentar a efetiva dor. A jurisprudência tem tangenciado no sentido de que no dano moral não precisa ser demonstrada a ofensa, mas apenas a conduta ofensiva. Haveria, então, a presunção de sentimento negativo, o que asseguraria o caráter in re ipsa do dano moral. Ou seja, muito pior do que demonstrar a dor é presumir que ela existe.

A condição in re ipsa deve ser mantida no dano moral, mas, ao mesmo tempo, deverá ser alterada a forma como a jurisprudência pensa o dano moral como um todo. Desvincula-se do critério dor. É necessário que se abram as portas para outro parâmetro muito mais seguro e que chancela o significado do próprio dano moral que é a proteção além do mero patrimônio.

Não se resolve a dor com pagamento de indenizações, até mesmo porque este não é o objetivo do instituto em si. A indenização por ofensas extrapatrimoniais está vinculada à necessidade de assegurar proteção ao ser humano como um todo, não havendo que se falar em presunção de sentimentos negativos, mas sim, de ofensa a direitos da personalidade.

Somente com a inclusão desta forma de observar o dano moral propriamente dito é que será possível assegurar a função social do dano moral, refutando-se o temor anteriormente existente a incidência do punitive damage, por exemplo, na quantificação desta ofensa e mantendo-se firme a ideia de proteção à pessoa, mesmo que desvinculada da dor.

Uma guinada de pensamento é necessária para manter a credibilidade social da responsabilidade civil por danos morais. Em razão da deformidade no tratamento dado pela jurisprudência, e por alguns doutrinadores, que vinculam sobremaneira o aspecto subjetivo para a sua configuração seu tratamento acaba por resultar na diminuição da importância dada pela própria sociedade ao instituto que hoje, em alguns casos, é observado como um meio fácil de arrecadar dinheiro. Os Tribunais já começam a apresentar certa intolerância aos pleitos de indenização por danos morais e passam a defender o seu tabelamento, o que, sem sombra de dúvidas, seria trágico e que poderia ser resolvido com uma simples alteração na forma de abordar o instituto.


5. UM POUCO DE ANALGÉSICO PARA ALIVIAR A DOR?

Efetivamente, o dano moral não pode ser resumido à dor.

Este tópico poderia ser iniciado de inúmeras formas diferentes, mas optou-se por uma afirmativa direta, sem maiores contornos, antecipando-se, inclusive, a conclusão perseguida por este ensaio. Sentimentos negativos e o dano moral devem ter o seu enlace rompido, sob pena jogar em completo descrédito jurídico essa forma de proteger direitos tão reluzentes como os extrapatrimoniais.

Buscando fontes na doutrina argentina – que, por sinal, é um dos principais bebedouros de ensinamentos quando se fala em responsabilidade civil – a jurista Martildes Zavala de González ao traçar comentários o sobre o tema proposto, afirma que o dano moral não pode ser resumido apenas à questão da dor, pois:

La ópitica es más amplia que la psíquica, pues el equilibrio alterado no equivale necesariamente a mesura, ecuanimidad o sensatez. El desmedro surge toda vez que se afecta la normalidad en el discurrir habitual, aunque no se revolucionen de modo negativo las emociones del sujeto: vivencia un desequilibrio, pese a que no esté patológicamente “desequilibrado”.[10]

Apesar de apresentar uma postura de resistência aos danos morais, não há como deixar passar em branco uma das linhas de raciocínio do saudoso prof. J.J Calmon de Passos desenvolvida na sua linha de raciocínio. Sobre a questão da dor e os danos morais, afirma o jurista:

Essa minha percepção sempre me levou a não compreender o que seja a famosa reparação pela dor experimentada por alguém, associada ao ato do sujeito a quem se atribui tê-la provocado e que, não fora isso, jamais teria sido experimentado. Nada mais suscetível de subjetivizar-se que a dor. Nem nada mais fácil de ser objeto de mistificação. Assim como já existiram carpideiras que choravam a dor dos que eram incapazes de chorá-la, porque não a experimentavam, também nos tornamos extramente hábeis em nos fazer carpideiras de nós mesmo, chorando, para o espetáculo diante dos outros, a dor que em verdade não experimentamos. A possibilidade, inclusive, de retirarmos proveitos financeiros dessa nossa dor oculta, fez-nos atores excepcionais e meliantes extremamente hábeis, quer como vítimas, quer como advogados ou magistrados.[11]

Uma pergunta que logo surge: se o dano moral não busca ressarcir o sofrimento negativo decorrente de um ato injusto, como justificar os valores imputados nas decisões judiciais contra aqueles sujeitos agressores que resultaram na perda de um membro do ofendido? Não seria esta conduta uma justificativa para a inserção da dor no âmbito dos danos morais?

Efetivamente, a amputação de qualquer membro é considerada como um momento de extrema dor. As necessárias adaptações que deverão ocorrer na vida do amputado não podem ser comensurada por qualquer pessoa que não experimentou – ou, pelo menos, convive com alguém que já passou por uma situação dessa -, mas não é por conta desse sentimento que haverá a indenização por danos morais. Para encontrar a justificativa, é preciso desviar o foco de atenção e direcioná-lo para os direitos da personalidade.

Com a perda de um membro, afeta-se diretamente o direito à integridade física, razão esta que justifica a indenização por danos morais. Pensar ao contrário seria justificar, no extremo exemplo da pessoa que após sofrer um forte acidente e, no hospital, conceder uma entrevista à uma emissora de TV afirmando que estava feliz por não ter morrido, mas apenas amputado um membro, a impossibilidade de condenação do agressor a danos morais, exatamente por ausência da dor.

Antônio voltava para casa numa caótico final de tarde, comum nas grandes metrópoles. Depois de um dia inteiro de trabalho ele observa no painel do seu carro que antes de chegar em casa, terá que parar num posto de gasolina para abastecer o veículo, pois, caso contrário, terá que pegar um táxi ou um transporte público para chegar ao seu labor no dia seguinte. Sendo assim, no primeiro posto que avista, Antônio entra e abastece seu carro. Apesar de ser próximo a sua residência, utilizava pouco dos serviços daquele estabelecimento.

Abastecimento feito e Antônio percebe que esqueceu o seu cartão de crédito na gaveta da mesa de trabalho. Então, para resolver o problema, emite um cheque de R$ 50,00 (cinquenta reais) que logo no dia seguinte é apresentado ao banco e retorna com a informação de que não há provimento de fundos. Muito educadamente, o proprietário do banco entra em contato com Antônio e lhe comunica o ocorrido.

A fim de sanar o problema, Antônio passa no caixa eletrônico para sacar o valor devido e percebe que em sua conta há uma quantia superior à R$ 2.000,00 (dois mil reais) disponíveis. Retira, então o extrato e o dinheiro. Paga ao proprietário do posto de gasolina que agradece pela atenção, e volta para casa no dia seguinte.

Ao ingressar com uma demanda judicial, Antônio certamente será indenizado por danos morais, mesmo que para alguns isso pareça absurdo e abusivo. Efetivamente, não há que se falar em qualquer sofrimento. No máximo poderia sustentar a ocorrência de um contratempo, mas nunca de uma situação dolorosa, humilhante, repugnante que pudesse justificar a indenização pleiteada.

Acontece que, ao contrário desta linha de pensamento, o STJ tem entendimento consolidado no sentido de ser devida a indenização, tanto assim que editou a Súmula 388 com o seguinte texto: “A simples devolução indevida de cheque caracteriza dano moral.” Perceba que o verbete contém uma expressão muito importante para o raciocínio que busca se desenvolver. O Superior Tribunal de Justiça fez constar que a “simples devolução indevida”. Ou seja, a devolução, desde que desprovida de fundamentos justificadores, já é causa para a indenização por danos morais, mesmo que isso não cause qualquer tipo de sentimento negativo.

Aplausos devem ser conferidos à esta Súmula. O raciocínio desenvolvido pelo STJ quando da sua elaboração segue o correto pensamento quanto a configuração do dano moral, pois, muito mais do que dor ou qualquer outro tipo de menoscabo, a ofensa plausível de resultar na indenização ora em comento é aquela que atinge direitos da personalidade[12] que são inerentes ao ser humano. Portanto, desprovido de qualquer sentimento, mas ofensivo a estes direitos, a tal conduta deve ser imputada a indenização por danos morais.

Deve-se lembrar que apesar do Código Civil de 2002 apresentar um rol de direitos que se enquadram no âmbito dos direitos da personalidade, não se pode esquecer que essa limitação é desprovida de fundamentação para a doutrina moderna. A proteção do ser humano deve ser ampla, não se submetendo a qualquer tipo de rol legal, pois, conforme preleciona Anderson Schreiber,

A maior parte dos direitos da personalidade mencionados pelo Código Civil brasileiro (imagem, honra privacidade) encontram previsão expressa no art. 5º do texto constitucional. Mesmo os que não encontram com previsão explicita neste dispositivo são sempre referidos como consectários da dignidade humana, protegida no art. 1º, III da Constituição. Os direitos da personalidade são, portanto, direitos fundamentais.[13]

Efetivamente, há uma maior segurança jurídica quando se afirma que os danos morais são incidentes sobre comportamentos ofensores a direitos da personalidade. A indicação da dor, como já mencionado em diversos momentos, poderá resultar em ampla falibilidade do sistema protetivo da responsabilidade civil, pois, difícil – e, por que não, impossível – será traduzir o sofrimento de determinadas pessoas nas frias palavras de um processo. O Julgador de primeiro grau ainda poderá ser considerado como um privilegiado pois está em contato direto com as partes quando da realização da audiência, mas como manter a evidência desses fatos quando do julgamento do recurso, no qual o Desembargador não tem o contato direito com o ofendido?

Neste sentido, é preciso desmistificar a questão da sentimentalidade do dano moral e coloca-lo no seu local correto: a ofensa a direitos da personalidade que, nos dizeres de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald,

É possível asseverar serem os direitos da personalidade aquelas situações jurídicas reconhecidas à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais. Isto é, são os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura a avançada tutela jurídica.

[...]

Trata-se, sem a menor sombra de dúvida, de noção fluida, em constante e cotidiana evolução, tendo o escopo de assegurar uma categoria jurídica fundamental para a efetivação da dignidade humana.[14]

Observando a partir desse prisma será possível constatar inúmeras decisões contraditórias – para não se falar em aberrações jurídicas propriamente ditas. Seja numa simples sentença, num acórdão ou mesmo em decisões colegiadas de Tribunais Superiores, a partir do viés da ofensa a direitos personalíssimos e não às condutas dolorosas, o tratamento do dano moral é vilipendiado diariamente. Um grande exemplo disso é o enunciado nº 385 do STJ.

Nesta súmula, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento segundo o qual: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento.” A linha de raciocínio desenvolvida é bastante objetiva: se alguém já possui uma inscrição devida, a próxima, ainda que indevida, não lhe trará mais transtornos, não justificando qualquer sentimento negativo.

Efetivamente, não é preciso muito esforço hermenêutico para perceber que tal premissa de mostra equivocada. Apesar de já haver uma relação jurídica que resultou no inadimplemento e, por conseguinte, na inscrição devida do nome do devedor no rol dos maus pagadores, o mesmo comportamento partindo-se de outra relação negocial e que se qualifique como indevida não autoriza a prática do mesmo comportamento de forma desarrazoada.

Não sendo chancelado o comportamento restritivo, ele deve ser considerado danoso. Este é o pensamento que deve ser desenvolvido. O minimalismo que o acomete, não lhe retira a importância, pois, ao inscrever indevidamente o nome de alguém nos rol dos inadimplentes, haverá ofensa direta à sua honra, direito este que é abraçado pelos direitos da personalidade, e, portanto, passíveis de proteção.

É interessante que, se a primeira inserção for indevida, o dano moral já estará configurado, segundo jurisprudência do STJ, mesmo que a pessoa não tenha experimentado nenhum menoscabo. As decisões que são publicadas frequentemente apontam no sentido de que a mera inscrição indevida já resulta no dever de indenizar, conforme se observa:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO (ART. 544, CPC) - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL - INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO AGRAVO. IRRESIGNAÇÃO DA RÉ.

1. Violação aos arts. 165, 458 e 535, do Código de Processo Civil, não configurada. Acórdão estadual que enfrentou todos os aspectos essenciais à resolução da controvérsia.

2. O dano moral decorrente da inscrição irregular em cadastros de inadimplente configura-se in re ipsa, ou seja, é presumido e não carece de prova. Precedentes do STJ.

3. O valor arbitrado (R$ 4.000,00) é condizente com o dano sofrido e razoável, tendo sido, ademais, fixado de acordo com as circunstâncias fáticas do caso em concreto, incidindo, na hipótese, o óbice insculpido na Súmula 07 do STJ.

4. Relativamente à irresignação dos honorários de sucumbência, incide, na espécie, o Enunciado n.º 282, da Súmula do STF, ante a ausência de prequestionamento, constituindo a súplica, no caso, em indevida inovação recursal.

5. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no AREsp 258.371/PE, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 21/03/2013, DJe 04/04/2013) (grifou-se)

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. COMPROVAÇÃO DO DANO MORAL. INAPLICABILIDADE. DANO IN RE IPSA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83/STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1.O entendimento firmado pelo Tribunal de origem, no sentido de que não cabe falar em falta de comprovação do dano moral, uma vez que a inscrição/ manutenção indevida do nome do devedor em cadastros restritivos de crédito geram dano moral in re ipsa, está em sintonia com a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça. Aplicável, portanto, à espécie, o óbice da Súmula 83 desta Corte.

2. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 190.658/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/03/2013, DJe 12/03/2013) (grifou-se)

Sendo a inscrição indevida uma ofensa direta ao direito à honra de tal forma que é configurada com in re ipsa, é, pelo menos, contraditório afirmar que se esta inserção for subsequente a uma devida não haveria dano. Este pensamento conduz à conclusão de que aquele que possui uma inscrição devida não tem a mesma honra daquele outro que ainda não teve seu nome inscrito no rol dos maus pagadores. Seria ele, então, merecedor de uma menor proteção jurídica.

Efetivamente, não! E dois pontos devem ser ressaltados para justificar esta afirmativa.

A primeira delas está no sentido de que se trata de duas relações jurídicas distintas e, portanto, por serem vínculos obrigacionais, resultam numa eficácia de amplitude mais restrita, por ser inter partes. A relação de débito e crédito deve ser resumida às partes – salvo nos casos de garantias reais e obrigações com eficácia real, ou propter rem, por exemplo – o que significa dizer que as formas de coerção utilizadas para exigir o cumprimento da obrigação não podem ser aproveitadas por outra relação de crédito de débito travada entre o devedor da primeira e um terceiro. Postar-se desta maneira seria justificar uma ampliação indevida dos efeitos de uma relação obrigacional.

A segunda justificativa está exatamente na questão da ofensa aos direitos da personalidade. Sendo a eficácia inter partes, aquele que insere indevidamente o nome do nome da pessoa que compõe o outro polo da relação obrigacional não poderá utilizar-se da “excludente” da existência de uma inscrição devida, pois há ali, efetivamente, uma conduta ofensiva à honra do inscrito que merece a mesma proteção atinente à todas as demais pessoas. Pensar o contrário seria entrar em colisão direta com a já mencionada Súmula 388 do STJ, pois, se o titular de determinado cheque já houvesse sofrido uma devolução devida, a indevida, também não poderia ser indenizada, fulminando, assim, o teor de enunciado.

Por fim, manter uma linha de raciocínio desenvolvida a partir da identificação do dano moral como ofensa à direito da personalidade também redundará numa maior segurança jurídica, inclusive, quanto a identificação do mero aborrecimento que, como se sabe, é utilizado para situações em que há excludente do dever de indenizar.

Como se sabe, para a configuração do dano moral não é preciso que seja comprovada a lesão, mas a simples situação na qual esteja envolvida a vítima já é suficiente para configurar a sua existência, o que justifica a sua característica de ser um dano in re ipsa. Em contra partida, na sua análise, também se deve ser observada a distinção entre o dano propriamente dito e o mero aborrecimento. Somente com a reunião destes dois requisitos é que será esculpida diante do julgador a figura da agressão a direitos não-patrimoniais, ensejando, por sua vez o direito à respectiva prestação pecuniária devida

Apesar de não ser o foco central do presente ensaio, não se pode deixar de, pelo menos, mencionar que o tratamento do mero aborrecimento é por demais árduo e importante no desenvolvimento do estudo acerca do dano moral. Isso porque, com a identificação dos seus parâmetros, o primeiro passo para identificar a situação passível de ser indenizada estará adimplida.

Para Sérgio Cavalieri Filho, deveria haver o que ele chama de “lógica do razoável”, segundo o qual, o julgador deve tomar como ponto basilar o “homem comum”, ou seja, nem aquele considerado frio e calculista e nem aquele sentimental por demais. Somente a partir de então é que se fará a análise do resultado decorrente da agressão, defendendo que somente será configurado como dano moral aquele ato que fugir da normalidade interferindo intensamente no âmbito psicológico e emocional do ser.[15]

A defesa pela aplicação efetiva do instituto do dano moral não justifica a proteção a todo e qualquer embaraço. Se assim o fosse, o mais ínfimo movimento que viesse a desagradar o pretenso sujeito passivo, seria a chave para a abertura do baú de dinheiro. Certamente, em muitos momentos, o Poder Judiciário daria sua chancela às lágrimas de carpideiras, o que agregaria forte instabilidade à paz e ao convívio social das pessoas.

propugnar pela mais ampla ressarcibilidade do dano moral não implica no reconhecimento que todo e qualquer melindre, toda suscetibilidade exacerbada, toda exaltação do amor próprio, pretensamente ferido, a mais suave sombra, o mais ligeiro roçar de asas de uma borboleta, mimos, escrúpulos, delicadezas excessivas, ilusões insignificantes desfeitas, possibilitem sejam extraídas da caixa de Pandora do Direito, centenas de milhares de cruzeiros”. [16] 

Portanto, não há como negar que as indenizações por danos morais estão relacionadas a acondutas perpetradas pelo sujeito ativo contra direitos da personalidade do ofendido. Filia-se à corrente na qual o ordenamento jurídico estabeleceu um direito geral de personalidade e que aqueles direitos constantes no seu corpo normativo não passam de meros exemplos.  Nada impede que com o passar dos tempos, venham surgir novas modalidades de direitos da personalidade passíveis de proteção. Se assim não for, pode-se considerar a engrenagem jurídica paralisada diante de uma zona que merece a mais ampla proteção, até mesmo em razão do princípio da dignidade da pessoa humana.


6. CONCLUSÃO

Nessa incessante busca entre o efetivo comportamento hábil a resultar na indenização pode danos morais, os estudos sobre o tema ainda carecem de grande desenvolvimento teórico. O primeiro grande passo a ser dado deve ser no sentido de retirar das canetas dos julgadores a necessidade de identificação da dor ou do sofrimento negativo para justificar a indenização pleiteada em face de ofensa a direitos extrapatrimoniais. Como a própria denominação já deixa evidente, trata-se de “direitos extrapatrimoniais” e não de dor ou sofrimento, sendo, portanto, despicienda esta questão.

Seguindo este trilhar, merece destaque a conclusão trazida por Sérgio Cavalieri quando afirma que “assim como a febre é efeito de uma agressão orgânica, dor, vexame e sofrimento só poderão ser considerados dano moral quando tiverem por causa uma agressão à dignidade de alguém”[17]. O aspecto subjetivo não poderá ser o fim em si mesmo no âmbito da proteção da responsabilidade civil. O seu lugar de destaque merece ser posto, apenas, no âmbito quantificação do dano, matéria esta que, certamente, renderá outro ensaio.

O temor expressado, ainda que de forma velada, na jurisprudência pátria com a limitação do valor determinado à título de indenização por danos morais – posicionamento este, incorreto, efetivamente – poderia ser reduzido, ou quem sabe, até mesmo eliminado, com a mudança de paradigmas no que se refere a identificação do dano moral.

É necessário retirar as embaçadas lentes do pensamento patrimonialismo que agregam consigo o pensamento da perda para justificar a indenização por danos. Quando se fala em ofensa extrapatrimonial não há perda – até mesmo porque, se houvesse, não seria extrapatrimonial – nem mesmo é necessário identificar qualquer tipo de sofrimento – razão esta que justifica a sua condição de ser in re ipsa.

O dano moral é, simplesmente, ofensa à direitos da personalidade que são inerentes ao ser humano pela simples condição de ser humano. Este é o caminho que deve ser perseguido. A manutenção destes contornos, certamente acabará por limitar as hipóteses de sua configuração resolvendo o grande temor da “industrialização do dano moral” e separando situações passíveis de indenização, como a da simpática idosa contada no início deste ensaio de outras como o término do relacionamento amoroso entre dois namorados, ou as intrigas entre ilustres juristas do processo civil de grande escol decidido dias atrás pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no qual o relator afirmou que: “A crítica acadêmica e doutrinária não se confunde com ofensa pessoal, por se tratar de livre exercício do debate de ideias, intrínseca à própria dinâmica do meio acadêmico e fundamental ao aprimoramento de teses e obras doutrinárias.”[18]

Diante dos inúmeros processos que ingressam diariamente no Poder Judiciário com a temática dos danos morais, das incontáveis decisões que abraçam o aspecto subjetivo do dano para sua identificação, e, por fim, do conflito existente dentro de um mesmo Tribunal quando se trata da configuração do dano moral, resta evidente que seu estudo ainda está longe de ser considerado como desenvolvido, pois merecedor de maiores aprofundamentos.

A sugestão para o primeiro passo é seguir a luz da proteção aos direitos da personalidade, tão valorizada com a Constituição Cidadã de 1988 por ser medida fundamental para o desenvolvimento de todo sistema jurídico moderno.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano moral. 4 ed. atual. amp. São Paulo: Juarez de Oliveira. 2001

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Acessado em: www.tjsp.jus.br; disponível em: 28 de abril de 2013


Notas

[1]    MORAES, Maria Celina Bodin. Dano à Pessoa Humana: uma leitura Civil-Constitucional dos danos morais. São Paulo: Renovar, 2003, p. 146.

[2]    MORAES, Maria Celina Bodin. Dano à Pessoa Humana: uma leitura Civil-Constitucional dos danos morais. São Paulo: Renovar, 2003, p. 148.

[3] SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 11.

[4] IbIdem.

[5] RODRIGUES, Silvio. Responsabilidade civil. Vol 4. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1981.

[6] MORAES, Maria Celina Bodin. Dano à Pessoa Humana: uma leitura Civil-Constitucional dos danos morais. São Paulo: Renovar, 2003, p. 157/158

[7]. EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. MORTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. FILHO NASCITURO. FIXAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. DIES A QUO. CORREÇÃO MONETÁRIA. DATA DA FIXAÇÃO PELO JUIZ. JUROS DE MORA. DATA DO EVENTO DANOSO. PROCESSO CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTO NA FASE RECURSAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO CONFIGURADA A MÁ-FÉ DA PARTE E OPORTUNIZADO O CONTRADITÓRIO. ANULAÇÃO DO PROCESSO. INEXISTÊNCIA DE DANO. DESNECESSIDADE.

- Impossível admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser quantificado com precisão.

- Embora sejam muitos os fatores a considerar para a fixação da satisfação compensatória por danos morais, é principalmente com base na gravidade da lesão que o juiz fixa o valor da reparação.

- É devida correção monetária sobre o valor da indenização por dano moral fixado a partir da data do arbitramento. Precedentes.

- Os juros moratórios, em se tratando de acidente de trabalho, estão sujeitos ao regime da responsabilidade extracontratual, aplicando-se, portanto, a Súmula nº 54 da Corte, contabilizando-os a partir da data do evento danoso. Precedentes - É possível a apresentação de provas documentais na apelação, desde que não fique configurada a má-fé da parte e seja observado o contraditório. Precedentes.

- A sistemática do processo civil é regida pelo princípio da instrumentalidade das formas, devendo ser reputados válidos os atos que cumpram a sua finalidade essencial, sem que acarretem prejuízos aos litigantes.

Recurso especial dos autores parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. Recurso especial da ré não conhecido.

(REsp  931556/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/06/2008, DJe 05/08/2008)

[8] EMENTA: DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. MORTE. ATROPELAMENTO. COMPOSIÇÃO FÉRREA. AÇÃO AJUIZADA 23 ANOS APÓS O EVENTO.  PRESCRIÇÃO INEXISTENTE. INFLUÊNCIA NA QUANTIFICAÇÃO DO QUANTUM. PRECEDENTES DA TURMA. NASCITURO. DIREITO AOS DANOS MORAIS. DOUTRINA. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO NESTA INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

I - Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum.

II - O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum.

III -  Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional.

(REsp 399028/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 26/02/2002, DJ 15/04/2002, p. 232)

[9]    GONZÁLEZ, Matilde Zavala de. Tratato de daños a las personas: ressarcimiento del daño moral. Ciudad de Buenos Aires: Astrea, 2009, p. 5

[10]  Idem, p. 2

[11]. PASSOS, J. J. Calmon de. O imoral nas indenizações por dano moral. In: Dano Moral e sua Quantificação. Caxias do Sul: Plenum, 2007. 1 CD-ROM. ISBN 978-85-88512-18-4.

[12] Sobre as expressões direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade, Anderson Schreiber alude que: “a ampla variedade de termos não deve gerar confusões. Todas essas diferentes designações destinam-se a contemplar atributos da personalidade humana merecedores de proteção jurídica. O que muda é tão somente o plano em que a personalidade humana se manifesta. Assim, a expressão direitos humanos é utilizada no plano internacional, independentemente, portanto, de modo, como cada Estado nacional regula a matéria. Direitos fundamentais, por sua vez, é o termo normalmente empregado para designar “direitos positivados numa mesma constituição de um determinado Estado”. E, por isso mesmo, a terminologia que tem sido preferida para tratar da proteção à pessoa humana no campo do direito público, em face da atuação do poder estatal. Já a expressão direitos da personalidade é empregada na alusão aos atributos humanos que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou seja, na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e internacional” (SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 13.)

[13]SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 13.

[14] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Parte Geral e LINDB. Vol 1. 10 ed. Salvador: JusPodium, 2012, p. 173

[15] CAVALIERI FILHO, 2006, p. 148.

[16] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano moral. 4 ed. atual. amp. São Paulo: Juarez de Oliveira. 2001, p. 7

[17] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 6 ed. São Paulo: Atlas. 2006. p.105

[18] EMENTA: Responsabilidade civil. Indenização por danos morais decorrentes do emprego de nomenclatura ofensiva pelo réu, ao mencionar em obra literária de sua autoria que anteprojetos em que a autora participou com fim de atualizar e modernizar a prática processual civil seriam derivados de outro, precedente, de autoria do réu. Ilícito civil não configurado. Mera crítica literária. Ausência do ânimo de ofender. Improcedência. Sentença mantida. Apelação não provida (TJ/SP. ACÓRDÃO Nº 9113728-51.2009.8.26.0000. REL. DES. PEDRO DE ALCÂNTARA. 8ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO. Julg. 10.04.2013)


ABSTRACT: The damage also is regarded as a novelty for the Brazilian legal system. Despite the evolution experienced in the present day, there is no denying that left remnants of thought patrimonialist regarding civil liability. For it was necessary imputation of duty to indemnify, it was required to identify some kind of financial losses. This thought was transferred directly to the moral damage, which eventually resulted in the identification requirement of any kind of loss to justify such compensation. Why not be economic, jurisprudence and doctrine somewhere eventually impute the loss of tranquility, the existence of negative sentiment, as the justification for moral damages. A shift in focus justifier of the damage, removing it from the subjective aspect of negative sentiment for the defense of the human being by their very humanness by mitigating the harm of personality rights.

KEYWORDS: MORAL DAMAGES. CONCEPT. FEELING NEGATIVE. PAIN. RIGHT OF PERSONALITY. HUMAN PERSON.


Autor

  • Salomão Resedá

    Salomão Resedá

    Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia - Ufba. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito - Ufba. Professor da Unifacs (Universidade Salvador). Assessor do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de Livros.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESEDÁ, Salomão. Dor e dano: dois “D” diferentes. Um ensaio sobre os sentimentos negativos e o dano moral.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5114, 2 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58854. Acesso em: 19 abr. 2024.