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Da caracterização do crime de tortura como delito permanente

Da caracterização do crime de tortura como delito permanente

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1- Análise de um caso concreto

Recentemente, na Comarca em que exerço minhas funções de Promotor de Justiça, deparei-me com o seguinte caso:

Através de notícia anônima fornecida ao Conselho Tutelar local, levada em seguida ao conhecimento do Ministério Público, empreendeu-se diligência, juntamente com a Polícia Civil e Militar a uma casa onde estariam sendo praticados maus-tratos contra criança.

Em lá chegando, foi efetivamente constatado que a criança estava sendo vítima de tortura por seus genitores, posto que apresentava visíveis marcas por todo o corpo de agressões sofridas, algumas mais recentes, inclusive uma ferida ainda ativa, no nariz, e outras mais antigas.

Além do que, a criança estava sozinha em casa (trancada por fora, com cadeados) e com pesados serviços domésticos para fazer, mormente uma grande "trouxa" de roupa para lavar.

Assim, imediatamente foi dada voz de prisão ao pai da criança, que naquele momento chegava em casa, ao passo que a mãe, que não se encontrava em casa no momento da diligência, foi presa horas mais tarde.

Após isso, foi levada a criança ao Hospital local onde foi lavrado o exame de corpo de delito, que não deixou margens de dúvidas acerca das violentas e repetidas agressões físicas que estava sendo vítima, com macabro destaque para as deformidades em suas mãos e dedos que apresentavam inclusive, sinais de queimaduras, bem como para as lesões em seu rosto, ao redor dos lábios, que estavam deformados. Segundo o laudo, a criança possuía lesões corporais graves como resultado das agressões.

Em outras palavras, naquele instante em que foi encontrada, mesmo dia da prisão de seus pais, a infante estava sendo vítima de torturas, que já há vários anos aconteciam, as quais não eram apenas físicas, como ficou constatado no exame médico, mas também psicológicas.

As agressões psíquicas que sofreu a vítima - como era de se esperar, ante a gravidade das agressões físicas e ao fato de serem provenientes de sua mãe, com a tolerância do pai, já há mais de 05 anos - foram facilmente constatadas no comportamento da pobre infante, logo no momento em que foi retirada da casa paterna, bem assim após o fato, quando ficou sob os cuidados do Conselho Tutelar local.

Pelas condições em que era cometido o delito contra a vítima, o crime de tortura em tela assumia caráter permanente.Com base nesse entendimento, aliado ao fato de que a criança apresentava ferida ativa, naquele instante, é que foi efetivada a prisão em flagrante da mãe da vítima, uma vez que a situação de flagrância perdurava até o momento em que a vítima foi retirada da casa paterna pelo poder público.

Entretanto, à falta de digressões específicas sobre a possibilidade de que o delito de tortura se caracterize com infração permanente, o que possibilita a caracterização do flagrante enquanto durar a permanência, na forma do art. 303 do Diploma Processual Penal, atrevemo-nos a defender nossa posição.


2- Sobre o crime de tortura

Ao contrário da impressão, principalmente das pessoas leigas, de que a tortura está indissociavelmente ligada a agressões físicas graves e repetidas, é a própria lei que a regulou - Lei 9.455/97 - que assevera que a tortura é sofrimento ou dor provocada por maus-tratos físicos ou mentais. Vejamos o teor da Lei:

Art. 1º. Constitui Crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental; a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa.

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena: reclusão, de dois a oito anos.

Na realidade, a Lei 9.455/97 supriu a lacuna existente na legislação brasileira no que pertine a prática de tortura, posto que antes, o art. 233 do ECA (revogado pela lei) apenas a mencionava, mas não a descrevia, bem assim o Diploma Penal faz referência à tortura e, alguns casos: como agravante, como circunstância qualificadora do homicídio. Noutras palavras, a tortura não era tratada como infração autônoma.

Supracitada lei, em seu art. 1.º (caput e §§ 1.º e 2.º), descreveu as seis condutas típicas (tortura-prova, tortura como crime-meio, tortura racial ou discriminatória, tortura-pena ou castigo, tortura do encarcerado e omissão frente à tortura); no § 3.º cuidou do crime qualificado; no § 4.º previu causas de aumento de pena. Nos parágrafos seguintes (§§ 5.º, 6.º e 7.º) regulou aspectos administrativos com a perda do cargo, e processuais como a proibição de fiança, graça e anistia, assim como a previsão de progressividade de regime.

O crime de tortura exige um resultado que se revela na imposição à vítima de um sofrimento físico ou mental. É um delito material, pois deixa vestígios no corpo da vítima, seja fisicamente ou em sua psique. Dessarte, existe uma condição fundamental para a consumação da tortura, qual seja, a constatação do sofrimento físico ou moral a que foi submetida a vítima.

Ressalte-se que a regra geral é a de que o torturador cuida para que as marcas aparentes não se estampem no corpo do sujeito passivo do delito.

Contudo, nossos Tribunais já estão entendendo que as marcas na alma, aquelas que não se estampam no físico da pessoa agredida e que não podem ser constatadas por um exame de corpo de delito usual, uma vez demonstradas no processo, por qualquer outro meio de prova, são suficientes para caracterizar o crime de tortura. Nesse sentido o julgado do STJ:

Acórdão

HC 16142 / RJ ; HABEAS CORPUS

2001/00024831-4

Fonte

DJ DATA:11/03/2002 PG:00281

Relator

Min. VICENTE LEAL (1103)

Ementa

PROCESSUAL PENAL. HABEAS-CORPUS. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RELATÓRIO SUCINTO. AUSÊNCIA DE NULIDADE. TORTURA (LEI 9.455/97). EMPREGO DE VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA. TIPO ALTERNATIVO. CRIME TRANSEUNTE. EXAME DE CORPO DE DELITO. INEXIGIBILIDADE. EXAME DE PROVAS. INIDONEIDADE

DO WRIT.

Omissis....

- Configura-se o crime de tortura quando o agente, com emprego de violência ou grave ameaça, alternativa ou cumulativamente, constrange alguém, causando-lhe sofrimento físico ou mental.

- A prática de tortura mediante grave ameaça não deixa vestígios, não se exigindo, para a sua constatação, a realização de exame de corpo de delito (art. 158 do CPP) (grifo nosso)

- Omissis...

Data da Decisão

07/02/2002

Apesar da dificuldade maior que se tem em constatar lesões psíquicas do que as lesões de natureza físicas, há métodos para que se possa produzir prova judicialmente apta a caracterizar a tortura mental.

Como por exemplo, as lições do medico e perito Genival Veloso de França, ao discorrer sobre a Síndrome Pós Tortura, em seu artigo "A Perícia em Casos de Tortura":

Essas perturbações psíquicas, conhecidas como síndrome pós-tortura, são caracterizadas por transtornos mentais e de conduta, apresentando desordens psicossomáticas (cefaléia, pesadelos, insônia, tremores, desmaios, sudorese e diarréia), desordens afetivas (depressão, ansiedade, medos e fobias) e desordens comportamentais (isolamento, irritabilidade, impulsividade, disfunções sexuais e tentativas de suicídio). O mais grave desta síndrome é a permanente recordação das torturas, os pesadelos e a recusa fóbica de estímulos que possam trazer a lembrança dos maus tratos praticados.

(www.dhnet.org.br/denunciar/tortura/textos/pericia.htm)


3 – Possibilidade de se caracterizar a tortura com crime permanente

No caso concreto abordado acima, constatou-se que a criança apresentava uma série de sintomas resultantes das agressões e privações sofridas. Noutras palavras, além das agressões físicas, bastante evidentes, dúvidas não houveram de que também psicologicamente a criança foi torturada ininterruptamente durante mais de cinco anos, e ainda se sentiu gravemente ameaçada mesmo após ter sido retirada de sua casa, já que as testemunhas disseram na polícia que a criança era constantemente ameaçada de morte por sua mãe, caso contasse algo.

Em outras palavras, se é fato que muitas vezes a pessoa pode ser vítima de tortura sem que apresente lesões corporais, muito mais é verdade que em todas as vezes em que as agressões físicas são graves e continuadas, invariavelmente a vítima teve grande sofrimento mental e essas agressões ficam marcadas na própria personalidade da vítima.

Nesse compasso, não se pode negar que em situações como esta o crime de tortura assume caráter de delito permanente.

Segundo as lições de E. Magalhães Noronha, em sua já clássica obra Direito Penal: " Delito permanente é aquele cuja consumação se prolonga no tempo, dependente da atividade, ação ou omissão, do sujeito ativo, como sucede no cárcere privado"

Ora, se como dito acima, o delito de tortura tem sua consumação com a imposição de sofrimento físico ou moral à vítima, e se este sofrimento perdura, por continuar a ser imposto, através de atividade comissiva ou omissiva do sujeito ativo, enquanto não cessar a conduta do sujeito ativo, a consumação da tortura fica se protraindo no tempo, mormente no que se refere ao seu aspecto psicológico.


4- Da importância prática, no combate à tortura, de poder-se classificá-la como crime permanente.

Para além de debates de natureza didática que a questão pode ensejar, debates estes cuja importância não se nega aqui, o principal objetivo do presente estudo é o de possibilitar que as ações do poder público no combate à tortura sejam facilitadas pela aplicação da regra contida no art. 303 do Diploma Processual Penal.

De acordo com o dispositivo mencionado:

"Art. 303. Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência"

Em seu Código de Processo Penal Interpretado, 9 ed., Atlas, o já saudoso Julio Fabbrini Mirabete, leciona com maestria, ao tecer considerações sobre o artigo citado:

"Nessas hipóteses o crime está sendo cometido durante o tempo da consumação, havendo pois, caso típico de flagrância...

...Tratando-se de situação de flagrância nessas hipóteses, é evidentemente dispensável, mesmo durante a noite, que o autor da prisão porte mandado judicial para invadir a casa onde o crime está sendo praticado." (p. 754)

Nesse sentido, é farta a jurisprudência pátria que entende pela validade do flagrante, no caso de crime permanente, quando o autor da prisão, mesmo sem mandado judicial, invade a casa onde está sendo praticado o delito e prende em flagrante o seu autor.

Muito útil é aplicação da regra acima mencionada no caso da tortura, mormente quando se trata de violência doméstica, já que nesses casos as agressões são escondidas dentro da própria casa da pessoa agredida, o que dificulta, em muito, a ação das autoridades públicas e da sociedade para impedir tais acontecimentos.

Vale lembrar que segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a proteção destes é de responsabilidade de toda a sociedade organizada e não apenas do Poder Público. Só que constantemente a sociedade falha no seu dever de proteger as crianças e adolescentes das vicissitudes a que estão sujeitos, e este trabalho de proteção é por demais dificultado quando os próprios pais são os primeiros a violar os mais elementares direitos de seus filhos, posto que fazem de suas casas fortalezas para se protegerem de terceiros e calabouços para perpetrarem suas agressões, a salvo e escondidos.

Assim, como a sociedade já tem uma dívida impagável para com todos aqueles que são vítimas de tortura, principalmente crianças e adolescentes, por que são os que menos podem praticar a auto-defesa, sendo que a possibilidade de se considerar o crime de tortura como infração permanente será de grande valia para atuação dos Conselhos Tutelares, Polícia, Ministério Público e todas as demais entidades governamentais e da sociedade civil organizada que se dispõem a combater qualquer tipo de violência, institucionalizada ou não.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Emmanuel José Peres Netto Guterres. Da caracterização do crime de tortura como delito permanente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 485, 4 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5890. Acesso em: 30 abr. 2024.