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Reiniciada a emissão de passaportes, resta apurar as responsabilidades

A sociedade não pode ficar refém da má gestão pública e vulnerável a novas paralisações na emissão de passaportes.

Reiniciada a emissão de passaportes, resta apurar as responsabilidades . A sociedade não pode ficar refém da má gestão pública e vulnerável a novas paralisações na emissão de passaportes.

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Mais uma vez a PF deixa de emitir passaportes, alegando insuficiência de orçamento, mesmo havendo previsibilidade sobre o montante necessário à manutenção do serviço. A sociedade não pode ficar refém da má gestão pública e vulnerável a novas paralisações.

Os passaportes voltaram a ser entregues pela PF em todo País, após um mês de paralisação na confecção das cadernetas por falta de recursos orçamentários. O desafio é entregar os mais de 175 mil passaportes requeridos desde a suspensão do serviço e ainda atender à demanda das novas solicitações.

Por falta de passaportes, milhares de brasileiros que haviam planejado viagem de férias - especialmente no mês de julho -, ou que pretendiam participar de reuniões de negócios, competições esportivas e outras viagens internacionais, tiveram seus planos interrompidos. Muitos ainda contabilizam os prejuízos que tiveram com o cancelamento de passagens aéreas, pacotes turísticos e hotéis, assim como os fornecedores desses serviços. Há também os que vivem a angústia de esperar para que seus passaportes sejam entregues em tempo hábil.

O passaporte é o documento de identificação, pessoal e intransferível, de propriedade da União, exigível nas viagens internacionais, exceto para os países que possuem tratados, acordos e outros atos internacionais. Os passaportes comuns, para estrangeiro e de emergência, são expedidos no território nacional pelo Departamento de Polícia Federal (Decreto nº 1983/1996).

A suspensão do serviço foi anunciada pela PF em nota à imprensa, divulgada em 27 de junho, que informou da insuficiência do orçamento para a confecção das cadernetas. Mas já no dia seguinte, o Governo Federal enviou o Projeto de Lei nº 8/2007 ao Congresso Nacional propondo abertura de crédito suplementar para regularizar a emissão de passaportes, que após seguir o processo legislativo, fez chegar o numerário até os cofres da PF.

O fato é que havia previsibilidade sobre o montante necessário à manutenção do serviço e somente quando este foi paralisado é que foram tomadas providências. O reinício da emissão de passaportes não exime os danos materiais e morais provocados aos consumidores pela interrupção do serviço, nem isenta o administrador público de possíveis responsabilidades.


A taxa de emissão de passaportes 

A emissão de passaportes é um serviço público essencial prestado diretamente pelo poder público, mediante a cobrança de taxa, hoje cobrada no valor de R$ R$ 257,25. Segundo relatório da PF, em 2016, foram expedidos 2.234.406 passaportes comuns, que gerou uma arrecadação de R$ 578,7 milhões, que corresponde a mais que o dobro do valor necessário, apontado pela PF, para a manutenção do serviço.

A Constituição Federal autoriza a cobrança de taxa “em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição” (art.145). Segundo o art. 79 do Código Tributário, a taxa de passaportes se caracteriza como um serviço público efetivo, prestado pela emissão das cadernetas (específico) e individualizado para cada requerente (divisível).

O valor cobrado pela taxa precisa corresponder ao custo do serviço. Mas as taxas arrecadadas pela PF pelo serviço de passaporte e outros são destinados ao Fundo de Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal (Funapol), disciplinado pela Lei Complementar nº 89/1997. Neste, somente 30% das receitas das taxas arrecadas, no máximo, ficam disponíveis para o custeio das despesas com deslocamento e manutenção de policiais em operações oficiais relacionadas à atividade-fim da PF.

Ou seja, há uma gritante violação constitucional pela não aplicação do valor da taxa para o exclusivo custeio do serviço de passaportes, sendo destinado para outros fins e a taxa cobrada representa valor maior do que o necessário para o custeio do serviço.


Direito dos contribuintes

A Constituição Federal brasileira proclamou em seu texto a valoração da figura do consumidor, enquanto titular de direitos e garantias fundamentais. O passaporte é instrumento necessário e indispensável para o exercício do direito constitucional de ir e vir, em viagens internacionais para muitos países, motivo pelo qual sua emissão se caracteriza como um serviço essencial.

O princípio da continuidade na prestação dos serviços públicos essenciais há de ser observado, sendo imposto tanto pelas regras do direito administrativo, quanto pelas normas de proteção do consumidor.

A Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) dispõe que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”(art.22). E que, “nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código” (parágrafo único do art.22).

Quem requereu o passaporte não pode arcar com os danos decorrentes da paralisação do serviço, pois pagou a taxa correspondente e esperava receber a caderneta no prazo definido pela PF. Segundo a jurisprudência uniforme do STJ, o dano moral decorrente da falha na prestação do serviço público essencial é presumido, descabendo a exigência da prova de sua realização.

A jurisprudência vem reconhecendo o dano in re ipsa, que se presume ao consumidor pelo não recebimento do passaporte, em razão do seu extravio pelos correios, reconhecendo o direito à indenização: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos” (CDC, art.14):

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ECT. EXTRAVIO DE SEDEX. DANO E NEXO DE CAUSALIDADE. COMPROVADOS. DANOS MORAIS E MATERIAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Evidencia-se a existência de responsabilidade objetiva do réu em relação aos danos causados pela atuação de seus agentes. Ainda que o remetente não tenha declarado o conteúdo da encomenda, e tenha feito a postagem em data próxima à da viagem, isso em nada altera a constatação de que houve defeito na prestação do serviço público, defeito esse que causou dano à autora. Emerge daí, portanto, o dever da EBCT de indenizar a autora em razão do prejuízo sofrido. O dano moral advém do sofrimento e do mal-estar que a autora teve de suportar na busca de seu passaporte junto à ECT, envio de boletim de ocorrência ao consulado dos EUA e frustação advinda do cancelamento repentino de sua viagem para os EUA. O dano material foi comprovado nos autos, uma vez que levou em conta todos os valores efetivamente desembolsados pela mesma em face do extravio do sedex. Decisão por unanimidade. (TRF-4 - AC: 2975 PR 2007.70.09.002975-3, Relator: SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, Data de Julgamento: 09/12/2009, QUARTA TURMA, Data de Publicação: D.E. 18/12/2009).


Dever e responsabilidade do administrador público

Os princípios constitucionais da supremacia do interesse público e o da eficiência regem a administração pública e são parâmetros para atuação do administrador público, que deve gerir os recursos disponíveis com qualidade, celeridade e economicidade, evitando prejuízos à Administração.

O agente público deve empregar todos os esforços para evitar a paralisação de serviços públicos essenciais. Em função da indisponibilidade do interesse público, essa atuação é obrigatória e irrenunciável, e deve se dar nos limites da lei. Sua omissão pode configurar ato ilegal.

A responsabilidade civil do Estado é objetiva. A Constituição Federal dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (Art. 37, § 6º).

A Lei nº 8.429/1992 define como ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública, qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, notadamente, quando “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” (art. 11, II).

O estado democrático de direito impõe à atividade estatal obediência à ordem jurídica e à finalidade primária de servir ao interesse público. Por isso, é preciso haver equilíbrio nas relações sociais e segurança jurídica, instrumentos necessários à efetivação das garantias dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.

Cabe aos órgãos de fiscalização e controle - Ministério Público, Controladoria Geral da União, Tribunal de Contas e Advocacia Geral da União – apurar, com transparência, os fatos e as responsabilidades. A sociedade não pode ficar refém da má gestão pública e vulnerável a novas paralisações na emissão de passaportes.


Autor

  • Magne Cristine

    Advogada, pós-graduada em Direito Público, especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública, bacharel em Direito e Administração de Empresas. É escrivã da Polícia Federal aposentada, Diretora de Comunicação da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e da Ordem dos Policiais do Brasil (OPB). Tutora em ensino à distância da Academia Nacional de Polícia Federal, com formação em teoria e prática educacional.

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