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A formação do direito trabalhista no Brasil: CLT, LICC e movimentos sociais

A formação do direito trabalhista no Brasil: CLT, LICC e movimentos sociais

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Trata-se de uma série de análises comparativas de textos que abordam o tema do Direito Trabalhista brasileiro, com ênfase nas relações entre os direitos sociais, trabalhistas, as tendências anarquistas e o fluxo imigratório para o Brasil.

Introdução

 

    O trabalhismo é um tema que perpassa pelos três textos de tal forma que conecta os diferentes temas abordados e tece uma gama de relações entre os principais assuntos abordados. O cenário é o período que se estende desde a formação da classe operária e o momento em que ela se compreende como classe, até os dias atuais, quando ainda se faz necessária uma luta para a aquisição de direitos trabalhistas.

    Dentro do leque de subdivisões do trabalhismo, se destaca um tópico de crucial importância e imprescindível discussão: a questão social. A questão social é um assunto completamente ausente nos primeiros anos da Revolução Industrial, traduzindo-se por meio de jornadas de trabalho longas e exaustivas, insalubres condições de trabalho nas fábricas e, tudo isso, ao passo que se dava uma ridícula remuneração aos trabalhadores, podendo ser caracterizado quase como um trabalho escravo. As questões de gênero e idade eram inteiramente desprezadas, de forma que mesmo crianças e idosos eram obrigados a trabalhar, independente da presença ou não de condições para tal. Essa obrigação, contudo, era fruto de uma relação simples e cruel: se eles não trabalhassem e ajudassem no orçamento da casa, eles não teriam os recursos básicos para sobreviver.

    É possível também notar uma semelhança e compatibilidade entre os períodos políticos do Brasil e o processo de formação dessa classe operária, e sua consequente aquisição de direitos sociais e trabalhistas. É claro que o alinhamento político de cada governo traduz uma determinada atitude quanto a essas questões trabalhistas. Quando se tem na situação um governo de alinhamento mais liberal, algumas das vontades e expressões da classe trabalhista vão se ver suprimidos em vista de um “avanço” econômico, onde os capitalistas e donos dos meios de produção irão se beneficiar.

    É no momento de transição de governos que acontece uma mudança de constituição, caracterizando uma nova ordem jurídica, de tal forma que ela reflete, dentro do ordenamento jurídico nacional, os preceitos do governo vigente. Essa mudança, no contexto brasileiro, é muito clara, de tal forma que há nítidas rupturas entre os períodos marcados por eventos simbólicos. Primeiramente, com o fim do regime monárquico em 1891, é instaurada a república como forma de governo e essa mudança faz com que seja essencial a formulação de uma nova constituição compatível com a nova ordem. Em 1930, coloca-se em voga um governo provisório encabeçado por Getúlio Vargas e, por ser um governo de caráter transeunte que rompe com os preceitos anteriores, é que se faz necessária a elaboração de outra constituição. Tal processo é liderado por uma Assembleia Constituinte, de maneira que ela fabrica a próxima constituição, a de 1934. Esse texto constitucional permaneceu vigente até 1937, quando Getúlio, após dar um golpe de Estado, outorga uma constituição que foi formulada tendo como bases as Constituições de Weimar e da Espanha de 1931, além de ter sido influenciada por Carl Schmitt, o que implica no fato de ela defender preceitos fascistas.

Essa constituição vigorou dentro de um contexto ditatorial até 1946, quando esse regime cai por terra e é imprescindível a criação de uma nova Constituição que não defendesse tais preceitos negativos como a sua antecessora fazia. Assim, surge a constituição de 1946, que tem como alicerces os ideais de liberdade que eram suprimidos no regime que a precedia. O período da ditadura militar se assenta sobre a constituição democrática anterior, o que permite ao regime mascarar seu caráter ditatorial, em vista da adoção de uma constituição – que sofre mudanças estruturais por meio dos Atos Institucionais. A próxima e última constituição foi a Constituição de 1988, promulgada após o colapso do regime ditatorial militar e que vigora até os dias atuais.

    Dentro dessa rápida passagem acerca do histórico das constituições, pode-se perceber que a ordem política sempre foi muito atrelada à ordem jurídica de forma que, toda vez que havia uma reviravolta no cenário político não tardava a surgir uma nova constituição ou um novo ato institucional que regularia como a vida pública seria dali em diante.

 


PARTE 1

 

A aquisição de direitos sociais e políticos no surgimento da classe operária

    Em meio ao contexto da Revolução Industrial no Brasil é que se começa a formar uma classe operária desunida, dispersa e submissa. Por volta de 1880, há um grande crescimento industrial no cenário brasileiro que leva à multiplicação de estabelecimentos industriais e um consequente aumento na quantidade de trabalhadores, para que se desse conta de toda a produção em escala que passa a ser feita.

    Nesse momento, ainda não se pode dizer que há uma classe trabalhadora justamente pelo fato de serem desunidos e por não compartilharem interesses baseados na experiência comum entre eles. Aqui ainda não pode ser visto nenhum direito social garantido aos trabalhadores fabris, muito menos direitos trabalhistas, uma vez que a economia se pauta ainda na lógica capitalista liberal, que trata essa relação entre empregador e empregado como se fosse fruto de um contrato forjado por livre e espontânea vontade – o empregado, por livre e espontânea vontade, se submete às condições impostas pelo empregador no ato de realização de suas tarefas fabris – que não só despreza, mas também negligencia o trato dos direitos sociais e trabalhistas, do salário e da jornada de trabalho, que era particularmente grande. A lógica aplicada pelos donos dos meios de produção era a de que, se o cidadão não quisesse, ele não precisava se submeter a tais condições de trabalho, já que ele é o dono da sua força de trabalho e pode empregá-la da maneira que quiser. Contudo, analisando a situação pela ótica dos trabalhadores, percebe-se que, na verdade, não tinha escolha, eles tinham que se submeter a tais condições, pois grande parte fora expulsa do campo – devido à introdução de máquinas no processo produtivo e um consequente desprezo da mão de obra humana assalariada – e se encontrava marginalizada nos centros urbanos, de tal forma que não possuíam a qualificação necessária para conseguir um emprego outro que não os ofertados pelas fábricas. Esses trabalhadores, então, se submetiam a um trabalho quase que escravo, pois não viam outra opção como fonte de renda.

    Esse cenário perpetuou-se durante muitos anos, até que, conscientes de sua situação, os trabalhadores se concebem como classe operária e esse fato se dá quando suas “concepções, ações e instituições coletivas, de classe, tornam-se uma realidade” (BATALHA, 2010).

Muito atrelada aos conceitos de direitos sociais, outra visão aborda a história escravagista e o modo que esses trabalhadores tiveram sua “independência”, sua abolição. É imprescindível que se veja os escravos como trabalhadores, desprovidos de salário sim, mas ainda trabalhadores, pois é um grande contingente desse grupo que vê no emprego fabril a única saída para a situação que agora se encontravam. Nessa visão, a formação da classe operária se dá com a abolição da escravatura, e com a imposição do trabalho assalariado sem a concorrência do trabalho escravo.

    A classe operária se forma devido a uma compatibilização e uma organização, tanto sindical, quanto de pensamento por parte dos trabalhadores, reconhecendo sua situação e com o intuito de buscar melhorias. Contudo, havia uma diferença dentro da classe operária. Os trabalhadores que eram donos de ofício se organizaram mais facilmente, e essa atitude fez com que a participação dos operários fabris nos movimentos coletivos fosse dificultada, o que resulta em uma predominância dos trabalhadores de ofício no movimento sindical em detrimento dos trabalhadores fabris. Essa exclusão fez com que a luta por direitos sociais desse prioridade para aqueles trabalhadores mais organizados, os donos de ofício, destacando uma clivagem dentro mesmo do movimento sindicalista operário.

    É nesse contexto que entra em cena a questão social, de forma que a concessão ou não de direitos sociais ou até mesmo a realização de discussões acerca da questão social – sem nem mesmo tomar uma ação – é negligenciada ou ressaltada em determinados governos, dependendo de suas diretrizes políticas e econômicas. Como ressaltado anteriormente, há uma intrínseca relação entre a ordem política e a ordem jurídica no Brasil, contudo, essa relação não é estrita, uma vez que se pode tecer uma teia ligando os campos jurídico, social e político. Dessa forma, o ordenamento jurídico não deve se manter estático e imutável frente a uma sociedade em constantes modificações de consciência e de organização, que cada vez mais traz à tona a questão social e as condições de trabalho precárias e absurdas, refletidas diretamente na falta de desenvolvimento e amplitude dos direitos sociais. Esse é um ponto levado em conta pelos juristas da época de tal forma que começa a ser elaborado um projeto de modernização do país com um foco para a “legitimação de um novo mecanismo de regulação da economia e das relações entre trabalhadores e empregadores” (GARCIA NETO, 2010, p. 225). Se fazia necessária uma adaptação da ordem jurídica aos moldes das novas relações implementadas pelo capitalismo industrial.

    Antes dessa mudança do pensamento jurídico, se tinha uma ordem liberal e formalista que tinha como princípio a ideia e que as pessoas se sujeitam ao que elas estiverem dispostas e as consequências dessa sujeição são completamente culpa dela, uma vez que ela concordou com os termos. Essa lógica se via como um profundo ampliador das diferenças sociais, cada vez mais beneficiando os mais ricos e marginalizando e legitimando a exploração – quase que escrava – de uma grande parcela da população que não tinha meios para se defender desse abuso. A última expressão do modelo individualista liberal no âmbito jurídico do Brasil foi pelo Código Civil de 1916, que se perpetua até 1942, uma vez que, de 1930 a 1945, a questão social assume papel central no pensamento jurídico culminando no artigo 5° da Lei de Introdução ao Código Civil, “determinando que a finalidade da adjudicação judicial fosse atender aos “fins sociais” da lei” (GARCIA NETO, 2010, p. 226). O Código Civil de 1916 previa projetos liberais tais como a propriedade privada e a liberdade individual, caracterizando uma relação contratual, mas com o avanço do pensamento comunista soviético, esses preceitos defendidos pelo Código Civil de 1916 entram em crise a partir do momento em que os trabalhadores acolhem essa ideologia socialista, transformando-a em principal fundamento de legitimidade das suas manifestações.

Contudo, apesar da luta, as greves eram combatidas pelas classes dominantes por meio de uma resposta repressiva, fazendo com que a medida padrão tomada para reprimir as greves adotasse um cunho de exclusão social, principalmente após as greves de 1917 e 1919 (BATALHA, 2010, p. 185).

    Apesar de toda a agitação nas décadas de 1910 e 1920, é somente no Estado Novo de Vargas que a questão social é legitimada através da regulamentação das relações de trabalho. As atitudes tomadas por Vargas em relação ao movimento trabalhista e sindical fazem com que seu governo seja caracterizado como um governo populista. Contudo, mesmo com garantias concedidas, o governo de Vargas era extremamente autoritário, o que instigou a criação do conceito de “cidadania regulada”, uma cidadania limitada devido a mecanismos de controle midiático e de repressão a “inimigos do Estado” (GARCIA NETO, 2010, p. 233). Entre as medidas implantadas no governo Vargas se encontram a redução da jornada de trabalho – estipulando um máximo de 8 horas por dia –, a organização do sistema de previdência social e a proteção ao trabalho da mulher e do menor. Aqui começa a preocupação com as questões sociais, completamente banalizadas em períodos anteriores.

    Foi com a estipulação de leis que vinham para combater a lógica liberal e formalista que se assentou no ordenamento jurídico brasileiro – e consequentemente refletindo nas relações sociais, políticas, econômicas e trabalhistas – que se percebe um avanço no debate acerca da questão social, principalmente voltada para a relação empregador e empregado. Como por exemplo, tem-se a Constituição de 1934 “legitimava a questão social como prioridade do Estado e da sociedade” (GARCIA NETO, 2010, p. 238).

“O período de 1930 a 1945 foi o grande momento da legislação social. Mas foi uma legislação introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e de precária vigência dos direitos civis” (CARVALHO, 2002, p. 110). Disso, entende-se que em um contexto anterior ao de aquisição de direitos sociais e até mesmo de discussão da questão social em si, não haviam também direitos políticos e civis de efetiva vigência. Assim, pode-se dizer que as lutas operárias foram em busca da inclusão da questão social no debate político, mas também a favor da aquisição de direitos políticos e de representação dentro do círculo elitista que comandava o país, de tal forma que surge o conceito de associativismo. O mundo associativo vai dar espaço para uma participação política, que não dependia das normas legais que regiam a política tradicional, ele vai representar uma sociedade diferente da existente cujos valores são distintos, mas é devido a seu caráter puramente imaginário e ideológico que atribui-se esse conceito de mundo associativo aos partidos políticos, de forma que os partidos políticos seriam uma forma de garantir a defesa dos interesses da classe trabalhadora por meio da ampliação dos direitos políticos com reformas eleitorais (BATALHA, 2010, p. 180).   Complementando a lógica da aquisição de direitos, temos agora um panorama constituído tanto pela defesa dos direitos sociais quanto dos direitos políticos da classe operária.

Os direitos políticos, em vista de toda a movimentação acerca dos direitos sociais no período do governo de Vargas, tomaram um lugar de segundo plano na conjuntura de reivindicações e lutas da época, uma vez que os operários estavam mais interessados em mudar sua realidade imediata e o modo pelo qual eles entendiam que era mais eficiente foi pela aquisição de direitos sociais em detrimento dos direitos políticos. Os direitos políticos, nesse contexto, traduziam uma imagem de medida de longo prazo e essa visão podia ser entendida, pois se fazia necessário o cumprimento de um processo. A Constituição de 1891, a que era vigente na época em que os protestos da classe operária começaram a ocorrer, não previa nenhuma medida que aumentasse a participação popular, ou seja, o controle da vida pública e política, dos processos eleitorais nos estados estava totalmente concentrado nas mãos dos coronéis e dos chefes de oligarquias rurais. Logo, a Constituição de 1891 não foi bem sucedida em criar mecanismos de participação popular que permitisse a participação de setores da população na vida política. “A instalação da República pouco alterou o grau ou o tipo de participação política, ainda que tenha ampliado o sufrágio ligeiramente” (CUNHA, 2009, p. 63).

    Assim, a partir desse contexto de marginalização de grande parte da população do sistema eleitoral e da participação política é que surgem as greves e as insurreições, com fundamentos voltados para a reivindicação de direito políticos, de participar da vida e das decisões políticas do país. Esses movimentos tinham como objetivos expor a demanda que os trabalhadores industriais tinham por reconhecimento e participação, como expressão de formas de se comunicar socialmente e influir politicamente.

 

A expressão anarquista ao longo da formação e organização da classe operária

     O processo de formação da classe operária é marcado por duas principais correntes ideológicas que alternadamente entram em conflito, mas que têm um mesmo objetivo final. A primeira corrente que marca o movimento operário é o socialismo. O que os socialistas propunham era a criação de um partido fundamentado na ideia de um “centro sindical”, que distribuiria os benefícios e as tarefas aos filiados, contudo, os anarquistas viam nesse modelo, como principal defeito, a presença de um partido político.

O anarquismo foi a ideologia mais forte nesse contexto, tendo seu auge no ano de 1912, e ele podia ser visto em duas óticas: a primeira constava o anarquismo como sendo “praticamente a única força organizadora do movimento operário na Primeira República, detendo o monopólio de uma proposta revolucionária de ação coletiva” (GOMES, 2005, p. 82), fazendo com que as demais propostas desaparecessem quase completamente; a segunda visão ressalta as limitações das propostas ideológicas anarquistas, com foco para o âmbito econômico. Segundo os anarquistas essa segunda visão fazia com que o anarquismo tradicional se alinhasse com o anarcocapitalismo, prejudicando a formação de um identidade coletiva a partir da luta política (GOMES, 2005, pp. 82-83).

    No que diz respeito à organização operária, Cláudio Batalha enfatiza o fato de que deve levar em consideração a grande presença de imigrantes no Brasil nessa época devido à conjuntura política e econômica da Europa durante esse período, que se estende desde 1870 até os primeiros anos após a Primeira Guerra Mundial, que força, seja por perseguição religiosa, seja por incapacidade de visão de um futuro próspero, um grande contingente de europeus a se deslocar para o Brasil, vendo aqui uma possibilidade de enriquecimento. Contudo, o que acontece com esses imigrantes é justamente o contrário do que imaginavam, já que eram obrigados a trabalhar em jornadas extensas e desgastantes em ambientes insalubres e sem uma remuneração significativa. O que muitos pensam é que os imigrantes que chegam no Brasil por volta do final do século XIX e início do século XX são os líderes dos movimentos trabalhistas, aqueles que introduzem no país as ideologias defendidas pelo movimento operário, já que, por virem da Europa, tinham um engajamento político acentuado, mas a realidade é que a maioria dos que chegam no Brasil, eram trabalhadores rurais, camponeses com o mínimo de consciência política. Esse é um fator que colabora para a dificuldade de organização dos operários, essa diferença cultural e étnica de perspectiva de ascensão social, uma vez que os imigrantes têm uma visão muito individualista de enriquecimento com o objetivo de voltar a seu país de origem, mas essa visão é corroída ao longo dos anos quando se percebe que a situação deles não sofrerá grandes mudanças (BATALHA, 2010, pp. 165-166).

Da diferença étnica surgem alguns conflitos que dificultam a organização dos trabalhadores, porém não é o principal problema, mas sim o fato de que, independente de como era visto o imigrante – anarquista ferrenho ou simplesmente motivado pelo interesse individual de enriquecimento – não teria um engajamento na participação em movimentos sociais.

Apesar da convergência de objetivos dos socialistas e dos anarquistas, havia uma diferença no modo que cada um dos grupos almejava atingir suas finalidades. Na perspectiva dos anarquistas, os socialistas eram considerados “amarelos” – aqueles que eram alinhados com a ideia do anarcocapitalismo, que segundo os anarquistas minavam a construção de uma identidade coletiva a partir da luta política (GOMES, 2005, pp. 82-83) – todavia, na visão do governo, todas as reivindicações trabalhistas eram obras de anarquistas, independentemente de serem de cunho socialista ou anarquista propriamente dito.

No que tange às divergências entre os modelos socialista e anarquista há uma clara ruptura de pensamento quando se analisa a posição de cada um acerca dos sindicatos. Os socialistas viam na organização sindical um modelo sólido pelo qual atingiriam suas metas, por meio de uma organização partidária que exerceria sua influência nos meios políticos, contudo, os anarquistas tinham uma rejeição aos partidos políticos. Um consenso entre os anarquistas era que os sindicatos promoviam a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, contudo, esse não era um dos objetivos perseguidos por seu movimento. Concomitantemente a essa visão dos sindicatos, havia a preocupação com a possibilidade de que a organização interna do sindicato se desfizesse, dando origem a um autoritarismo. Outra crítica empregada pelos anarquistas quanto à política sindicalista é o afastamento dos reais interesses anarquistas uma vez que o sindicato se torna forte, sendo essa divergência causada pela burocratização (GOMES, 2005, pp. 92-93).

Os anarquistas tinham uma proposta de uma “nova ordem” que era sustentada por dois argumentos:

O primeiro destacava que eram os governos os criadores da desigualdade e da violência e que eram eles – tanto os mais quanto os menos autoritários – que criavam a desordem e o caos. O segundo remetia à ideia de ordem para a sociedade, entendendo-a como um princípio inerente às condições de existência do homem. Nessa ótica, não era o governo que garantia a ordem social. Antes, pelo contrário, ele a ameaçava e destruía, substituindo-a pela injustiça (GOMES, 2005, p. 89)

 

Nesse contexto, formava-se o conceito de socialismo anarquista, que fazia o questionamento: por qual motivo não se podia ter um socialismo anarquista, juntando assim os grupos separados que reivindicam a mesma coisa? Nessa indagação, é considerada a ideia de que “a anarquia é a forma política necessária do socialismo, assim como este é a base econômica indispensável para o funcionamento [...] da anarquia” (VOZ DO POVO, 1920, p. 1). O principal problema encarado pelos anarquistas era a convocação dos operários a se movimentarem, de forma a sair do estado de submissão, uma vez que a intenção do grupo revolucionário era que os próprios trabalhadores se libertassem. Aqui se pode ressaltar o fator que Angela Gomes chama de passividade do trabalhador, esse conceito é mais elaborado pelo economista Albert Hirschman quando este delimita o efeito carona:

uma vez que o resultado da ação coletiva (supondo que seja bem aproveitada) é um bem público que pode ser aproveitado por todos, independentemente de participação anterior, o indivíduo é tentado a abster-se de contribuir, na expectativa de que outros se empenharão em seu benefício (HIRSCHMAN, 1983, p. 85)

 

Partindo dessa ideia de movimentação dos trabalhadores, deve ser ressaltada a Greve Geral de 1917, que teve influências anarquistas e anarco-sindicalistas. Todavia, a partir de 1920, toma lugar uma forte repressão aos movimentos grevistas, podendo ser observada até mesmo a expulsão de estrangeiros cujo comportamento se enquadrava dentro da percepção do Estado como “nociva à segurança nacional ou à ordem pública” (GARCIA NETO, 2010, pp. 232-233). É nesse cenário de revoltas surgindo em diversas cidades do país com o intuito de conquistar uma melhora na condição social dos trabalhadores que a figura de Getúlio Vargas se destaca, pois, a partir de 1930, ele encabeça uma série de concessões populistas como medida diretas do Estado e não como forma de conter revoluções ou cedendo a pressões sociais. É nesse âmbito que as reformas nas leis de regulamentação do trabalho assumem um papel principal. No período da República Velha, podiam ser notadas leis esparsas que garantiam a proteção do trabalhador, mas é só no Estado Novo de Vargas que há uma legitimação da questão social. A questão social – com a mudança política da República Velha para o Estado Novo – passa a ser tratada não como um caso de polícia, mas sim como medidas que devem ser tomadas pela elite, em forma de concessões, caracterizando o governo populista varguista muito mais com o intuito de suprir as exigências de um povo necessitado do que dos cidadãos como deveriam ser vistos.

Diante desse parâmetro, pode-se entender o movimento anarquista – que combateu uma forte propaganda negativa do Estado – como sendo um dos principais motores das inúmeras revoltas, greves e insurreições trabalhistas que se deram durante o final do século XIX e o início do século XX, com um objetivo de tirar os trabalhadores da condição exploratória sob a qual viviam. As outras ideologias que sustentaram esse movimento defendiam, ao lado do anarquismo, alguns preceitos, porém, assim como o socialismo, elas também tinham um viés mais político, de uma ampliação da participação política, por meio da aquisição de direitos políticos e da formação de sindicatos e partidos trabalhistas que tinham como principal objetivo a proteção e ampliação das condições sociais e políticas da classe operária.

 

O nacionalismo e a questão dos imigrantes

Até o começo do século XX, as políticas de imigração para o Brasil eram incentivadas pelo governo como forma de aumentar a mão de obra “confiável”, uma vez que se tinha a crença racista de que um trabalhador branco, vindo da Europa, era mais qualificado e confiável do que um trabalhador negro nativo ou mesmo do que a população mestiça nativa. Mas,

no Brasil e na Argentina, particularmente antes da reforma de 1912, a opção pela naturalização não atraía o imigrante, tanto pelas características do sistema político como pela perda de certa proteção que teriam na condição de cidadãos de países europeus. Além disso, é preciso levar em conta que o imigrante que tivesse como projeto o retorno à terra pátria dificilmente abriria mão de sua cidadania (BATALHA, 2010, p. 184)

 

Contudo, essa política “artificial” de imigração revelava, na verdade, o despreparo brasileiro perante os problemas econômicos (GOMES, 2005, p. 136).

Todavia, apesar da política de incentivo à imigração, começa a tomar forma um movimento nacionalista de caráter violento. Ao contrário do que se pode pensar, esse nacionalismo não é qualificado pela sua ideia de amor à pátria e sim por ser um movimento que prezava por “apontar e combater os males de nosso país” (GOMES, 2005, p. 136). Entretanto, a visão desses nacionalistas quanto aos “males” era bem diversificada e radical, de tal forma que eles passam a tomar os imigrantes como um desses males a ser combatido. É na perspectiva de que os imigrantes dificultavam a organização operária, devido, principalmente, à promoção de conflitos étnicos e culturais é que eles se tornam alvos do movimentos nacionalista, uma vez que esse assume frentes xenofóbicas e combativas (BATALHA, 2010, p. 166).

Ao contrário do que se pode pensar, os nacionalistas não eram aliados do movimento anarquista, mas muito pelo contrário, viam neles um foco de disseminação do caos e da desordem que precisava ser combatido. Levando em conta essa ideia, percebe-se que aos imigrantes é atribuída a feição de operários anarquistas – como fruto das dificuldade organizacionais baseadas nos valores étnicos – contribuindo, assim, para a disseminação da ação xenofóbica.

 

O desenvolvimento da legislação trabalhista em paralelo à construção da cidadania operária

    No período da República Velha, podia-se observar um descarado descaso com a questão social, não só em relação aos trabalhadores, mas em relação à parcela da população que não compunha as elites, em geral. Esse cenário de negligenciamento das condições é reforçado principalmente por uma lógica capitalista que beneficiava as elites, de tal modo que as permitia explorar a mão de obra do trabalhador de forma exaustiva e descontrolada, sem lhes dar nenhuma garantia em retorno. A política de Estado adotada nesse período era a ortodoxa liberal, que – com a introdução do fordismo e do taylorismo – promoveu uma complexificação das relações sociais, ao mesmo tempo que revelou “externalidades negativas do crescimento econômico, em especial, os resultados perversos da exploração da mão de obra pelo capital” (GARCIA NETO, 2010, p. 225). Mas, com a crise do liberalismo, evidenciada em 1929, um modelo político e jurídico que se pautava em princípios liberais não tinha mais espaço e faz-se necessária a formulação de um novo sistema jurídico que atenda às novas relações pós-liberais, que se adequasse ao capitalismo industrial.

Assim se dá forma um projeto de renovação legislativa concomitantemente com a renovação do sistema econômico, que tem como principal objetivo mudar o modo com que os juristas pensam e interpretam a lei, de tal forma a substituir “a ordem liberal pela ordem social e promovendo garantias e direitos para os trabalhadores” (GARCIA NETO, 2010, p. 225)    .

É paralelo a esse contexto de modificação do pensamento jurídico que se inicia o processo de formação da cidadania brasileira. Segundo José Murilo de Carvalho, um cidadão pleno é aquele cidadão que goza de todos os direitos, tanto os civis, quanto os políticos e os sociais, porém, se for analisada a condição dos “cidadãos” brasileiros, é possível observar que não se tem cidadãos plenos no Brasil nas primeiras décadas do século XX. O que se pode constatar é a presença de cidadãos incompletos ou até mesmo não-cidadãos, figuras essas que não desfrutam de nenhum dos direitos citados acima. O processo de construção da cidadania tem como marco inicial – tomando por base a concepção de José Murilo de Carvalho – a aquisição de direitos sociais concedidos pelo Estado Novo varguista. Contudo, a aquisição desses direitos não foi fruto somente da boa vontade de Vargas, ela é resultado de uma série de greves, revoluções, insurreições e revoltas influenciadas por ideologias como o anarquismo e o socialismo, que tiveram como objetivo, a melhoria das condições de trabalho dos operários, assim como uma mudança estrutural nas relações entre empregador e empregado.

A aquisição de direitos sociais não se dá somente pela concessão de benefícios – considerando a situação anterior dos operários –, mas também depende da forma com que as relações trabalhistas são encaradas perante os juízes e o ordenamento jurídico. Dessa ótica que se faz necessária, também, uma mudança nas leis – e na interpretação dada a elas – que regem essa relação entre operário e patrão. E é dessa necessidade que advém o artigo 5° da Lei de Introdução ao Código Civil “determinando que a finalidade da adjudicação judicial fosse atender aos ‘fins sociais’ da lei” (GARCIA NETO, 2010, p. 226). Esse é, porém, somente um dos elementos de uma série de leis que virão como forma de proteção dos direitos trabalhistas, sociais e, indissociavelmente, políticos. Esse artigo 5° vem como forma de preencher as lacunas do Código Civil de 1916, que dá margem a interpretações liberais que vão de encontro ao que se propunha nessa nova fase: ao contrário do que acontecia antes, não uma marginalização da questão social no meio jurídico, mas sim trazer esse fator para a centralidade das discussões. O Código Civil de 1916 consolida certos princípios liberais como “a propriedade privada, a liberdade individual (frente ao poder do Estado) e a autonomia dos estados” (GARCIA NETO, 2010, p. 227) fazendo com que seja forjada uma relação contratual de locação de serviços.

As relações de exclusão social foram um gatilho para que as correntes políticas do movimento operário na Primeira República – principalmente o socialismo – propusessem a ampliação dos direitos sociais e políticos, como a extensão do direito do voto (BATALHA, 2010, pp. 179-180). Para sustentar as reivindicações dessa população, são criados programas políticos de organizações operárias com o objetivo de defender os interesses da classe trabalhadora por meio de medidas como o “Programa mínimo”, proposto pelo PSB, que apresentava uma visão

de cidadania que não apenas garante melhores condições de trabalho, protegendo o trabalhador através de mecanismos legais, propondo a promoção de uma maior justiça social, sobretudo, através de medidas fiscais, como vincula de forma indissociável direitos sociais a direitos políticos (BATALHA, 2010, p. 182)

 

    Também na esfera jurídica houve uma transformação do pensamento, de forma que uma série de decretos de cunho protetor surge, como o Decreto 19.770 (1931) – prevê a sindicalização dos empregados ao mesmo tempo que atribui aos sindicatos o direito de defender os mais diversos interesses da classe trabalhadora –, o Decreto 21.396 (1932) – que institui as Comissões Mistas de Conciliação, que embasaram o projeto corporativista de Estado –, o Decreto 24.694 (1934) – concede o retorno à pluralidade sindical. (GARCIA NETO, 2010, p. 235-237)

    Contudo, essa medidas foram acompanhadas de uma forte repressão ao movimento operário por parte do Governo. Essas repressão é claramente notada com a Lei de Segurança Nacional de 1935, que proibia o direito de greve para os funcionários públicos, mas a situação piora a partir do Estado Novo de Vargas, em 1937, quando há uma proibição de greve em qualquer que seja o âmbito e uma tentativa de repressão dos sindicatos, de tal forma a se ter somente um sindicato – o que negligenciaria e até mesmo desprezaria as pluralidades que se tinham dentro do movimento operário – que, ainda por cima, estaria subordinado ao controle do Estado. Esse cenário repressivo e autoritário se mantém até a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas, em 1943, que vem para definir o direito material das relações entre empregados e empregadores e para regulamentar a Justiça do Trabalho (GARCIA NETO, 2010, p. 240), de maneira que a Justiça do Trabalho seria o órgão aplicador das diretrizes da CLT, ela nasce com o objetivo de resolver os problemas relacionados às relações trabalhistas. O que se percebe é que a CLT é um compilado de leis que foram decretadas durante o estado em que se tinha uma “cidadania regulada”, de tal forma que elas não expressavam a verdadeira questão social, que fora reprimida nesse período.

    Devido a uma necessidade de mudar o pensamento que se usava no momento de interpretação das leis é que surge a Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, que vai delimitar o modo o qual os juízes deviam usar para se interpretar as leis. Segundo Alberto Torres, “os juízes e legisladores precisariam compreender a interpretação judicial de acordo com o fim prático da sociedade” (GARCIA NETO, 2010, p. 242), relacionando-o ao bem comum e levando em conta os elementos da sociedade brasileira. Mas o que acontece é um descaso com a ideia de Torres durante mais de 15 anos, pois somente em 1930, com o começo da elaboração da Lei de Introdução ao Código Civil é que essa perspectiva de consideração dos fins sociais da lei é realmente colocada em pauta nas discussões dentro do meio jurídico. Como fruto da transformação no modo de utilização das leis, deixando de ser uma simples aplicação mecânica e passando a ser parte de um processo, o juiz tinha o poder de decidir qual era o significado da lei de acordo com o bem comum.

    Os movimentos operários, apoiados nas ideologias anarquista e socialista, tinham como principal viés a conquista de melhores condições de trabalho e de garantias sociais. Como resultado de suas ações, da crise do modelo liberal e da necessidade de se criar uma nova forma de pensar o direito de modo que ele se adeque às novas relações construídas pelo capitalismo industrial, surgem três expoentes, sendo eles a Consolidação das Leis Trabalhistas, a Justiça do Trabalho e a Lei de Interpretação do Código Civil. Cada uma dessas três entidades tinha um propósito em um campo específico do contexto em que foram criadas: a CLT agrupava as principais leis que regiam as relações entre empregadores e empregados, em um âmbito mais concreto; a Justiça do Trabalho funcionava como o intuito de fazer com que o que estava previsto na CLT fosse cumprido, resolvendo os conflitos de modo a não deixar com que a parte empoderada – no caso, a elite, os donos dos meios de produção – tomasse vantagem sobre os trabalhadores; e a Lei de Interpretação do Código Civil vinha com a intenção de mudar o modo que os juristas aplicavam, interpretavam e entendiam as leis, de maneira a promover uma revolução no pensamento jurídico em prol dos trabalhadores, considerando a questão social, o bem comum e os fins sociais da lei.

    Todos esses aparatos jurídicos contribuem para uma formação da cidadania operária em vista da promoção de direitos sociais e políticos – atuação dos sindicatos na política em favor da classe trabalhadora – aos operários que antes se viam oprimidos e livremente manipulados pelos grandes proprietários, empresários, donos dos meios de produção, enfim, pela elite econômica que exercia sua influência tratando a vida dos que dependiam de uma proteção estatal e jurídica inexistente da forma que lhes era mais conveniente, sem que se tivesse um mínimo de consideração pela condição desses indivíduos. Apesar da conquista de direitos sociais e políticos, ainda não se formavam cidadãos completos, uma vez que se não se tinha a presença de direitos civis, que, no processo de formação da cidadania inglesa, foi o principal fator que permitiu que população tivesse legitimidade e base para, então, reivindicar os direitos que lhes faltavam (CARVALHO, 2002, p. 220). Dessa reflexão pode-se compreender que a cidadania operária não é caracterizada como sendo uma cidadania completa, uma vez que ela dispõe de somente alguns direitos, de tal forma que se pode considerá-la como uma cidadania em desenvolvimento, que deve ser auxiliada tanto por aparatos de cunho estatal, quanto por medidas jurídicas para que se chegue ao seu patamar mais alto e pleno.

 


PARTE 2- O desenvolvimento da legislação trabalhista em paralelo à construção da cidadania operária

Uma construção histórica do Estado e suas relações sociais: a questão social

Antes de abordar a legislação trabalhista em si, faz-se necessário entender todo o processo que levou à necessidade de se ter uma legislação que regulasse direitos para os trabalhadores, as relações que o Estado mantinha com a sociedade e como essas relações foram o principal motivo para que se houvesse uma reivindicação de direitos trabalhistas.

O Estado Liberal, formado ao longo do período que engloba os séculos XVII a XX, tem como fatores compositores de sua estrutura o processo de surgimento do Estado Nação, de ascensão a burguesia, de surgimento e predominância do mercado como principal instituição política e econômica e de internacionalização da economia e do comércio (MORAES, 2014, p. 271). Duas correntes que podem ser ressaltadas dentro do liberalismo seriam o liberalismo econômico – autorregulação do mercado sem a intervenção estatal – e o liberalismo jurídico – Estado assume como figura que garante os direitos dos indivíduos contra o uso arbitrário do poder pelos governantes. O liberalismo, em um primeiro momento, assume lugar no plano econômico e político de forma a privilegiar somente os empoderados, que restringem os benefício da segurança e da legalidade somente a sua classe, o que configura uma pauperização das massas. É neste momento que ao Direito é atribuído o papel de agente provedor da manutenção dos aparatos jurídico que suportariam a prevalência das elites no poder, como a criação do negócio jurídico e o contrato, com um futuro aumento da liberdade contratual, apoiando-se nas bases de uma igualdade formal que não se refletia no campo material. Aqui se joga luz a um dos problemas da lógica liberal, uma vez que ela considera que todos têm a mesma capacidade, oportunidade e liberdade de escolha, ao passo que, na realidade, não é isso o que se constata. Com essa estratégia, a economia é marginalizada em relação ao direito, o que vai fazer com que, para o direito, essas relações econômicas sejam integrantes do Direito Privado, em que as relações deviam ser mediada entre as partes, sem que haja uma intervenção por parte do Estado.

É com base nessas evidências que Carl Schmitt denomina o Estado Liberal como sendo um “Estado Burguês de Direito cuja Constituição corresponde aos ideais do individualismo da burguesia” (MORAES, 2014, p. 273). O Estado Burguês de Direito é caracterizado por uma resistência a mudanças, com a finalidade primordial de autocontenção.

O individualismo, a abstenção do Estado na esfera econômica frente ao surgimento de um novo modelo socialista e a redução dos direitos fundamentais às liberdades e ao bom governo do Estado – de poderes limitados – são fatores que enunciam uma mudança, uma reviravolta no cenário político, social e econômico do mundo. É nesse momento que, com o questionamento da ideologia liberal, a crítica ao individualismo exacerbado e à exploração do capital sobre o trabalho, se observa o início da crise do liberalismo. As Revoluções Mexicana e Russa – de caráter socialista – e, principalmente, a Crise de 1929 marcaram o declínio da ideia liberal, de forma que assume uma nova política econômica, o keynesianismo, que prezava por uma intervenção estatal na economia com o objetivo de garantir o pleno emprego. É com essa mudança de concepção do Estado, de modo que ele passa a ser um incentivador, que surge o Estado Social, que “combina direitos sociais e democracia, conciliando direitos e liberdades, individuais e políticas, com os direitos sociais, econômicos e culturais que antes eram descartados pelos liberais ortodoxos” (FERREIRA, 2012, p. 10).

Logo, não se pode separar o debate acerca da questão social da lógica social capitalista, pois a “produção da questão social é vinculada às configurações assumidas pelo trabalho e pelo Estado no modo de produção capitalista” (BARISON, 2013, p. 44). À questão social são atribuídos duas situações: a primeira em que ela deve ser tratada como uma questão política, se dá quando uma crise da hegemonia da classe dominante não é visível dentro de um panorama próximo, dessa forma, o modo de pensar e de agir da classe dominante se sobrepõem, de modo a definir a questão social como uma matéria estritamente política, considerando-a assim, uma questão política. A segunda visão acerca da questão social é quando se insere a classe dominante dentro de um cenário de crise de sua hegemonia, pois é nesse momento que ela vai definir a questão social como sendo uma adversidade que deve ser combatida por meio de instrumentos repressivos do Estado, de forma a definir a questão social aqui, como um caso de polícia, um ponto que deve ser resolvido com repressão efetiva e prática (CERQUEIRA FILHO, 1982, p.28).

A questão social condensa múltiplas desigualdades medidas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais, relações com o meio ambiente e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural [...] a questão social atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania (IANNI, 1992)

 

Entende-se dessa citação de Octavio Ianni, que a questão social é fruto de todo o processo de construção da sociedade civil brasileira, assim como resultado de uma mudança no cenário econômico e político, que muitas vezes – se não todas – os agentes compositores da classe dominante tinham o poder de controlar o destino da maioria da população devido a uma política que sustentava essa prática e a um aparato jurídico que legitimava todas esses procedimentos tomando como base os conceitos de contrato e negócio jurídico.

No que se diz respeito à passagem do Estado Liberal para um Estado Social, a  situação brasileira não se deu de forma muito distinta, de modo que a Constituição de 1891, que instaura a República, pregava princípios liberais, permitindo que se tomasse forma uma “política dos governadores” que regia o país com base em acordos feitos entre as elites de Minas Gerais e São Paulo. Contudo, essa conjuntura consegue se manter somente até 1930, quando Getúlio assume um Governo Provisório. Apesar de uma morosidade na promulgação de uma constituição, é decretada a Constituição de 1934, que passa a reconhecer constitucionalmente direitos individuais. “Uma legislação trabalhista garantia a autonomia sindical, a jornada de oito horas, a previdência social e os dissídios coletivos” (ANDRADE, BONAVIDES, 2006, p. 325) e é aqui que se constata um crescimento da influência do Estado em relação à sociedade, quando se tinha um controle quase que restrito das elites sobre a maior parte da sociedade, em vista de uma política – agora decadente – liberal.

Foi nesse contexto do Governo de Vargas, que se é consolidada uma legislação que previa direitos trabalhistas, mas foi

uma legislação introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e de precária vigência dos direitos civis. Este período de origem e a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa (CARVALHO, 2002, p. 110).

 

Há um claro protagonismo do Estado, principalmente na forma do Executivo, que permite José Murilo de Carvalho conceber o termo “estadania”, que classifica uma cultura mais voltada para o Estado do que para a representação política. Esse quadro abrange também uma ação estatal que atendesse aos anseios da classe trabalhadora. No Governo Provisório, a criação do Ministério do Trabalho foi um dos primeiros atos que enunciavam uma série de medidas que iriam romper com as particularidades que contribuíram para a constituição de um Estado marcado por “resquícios de uma ordem escravocrata e patriarcal, por um operariado urbano esparso e desorganizado” (BIAVASCHI, 2016, p. 79).

Como forma de regulação das relações trabalhistas que, até então, eram baseadas no princípio liberal que beneficiava a classe dominante e prejudicava cada vez mais os próprios trabalhadores e operários, há a formação da Consolidação das Leis Trabalhistas, que desde sua preparação foi balizada pela instalação da Justiça o Trabalho cuja vigência é marcada por uma discussão polarizada que engloba tanto argumentos que ressaltam sua rigidez incompatível com as relações modernas, quanto afirmativas que defendem que há um erro em definir a regulamentação do trabalho como o motor da competitividade (BIAVASCHI, 2016, p. 81). Com o advento da Constituição de 1937, a Justiça do Trabalho passa a ser um órgão independente e a ter um papel mediador e solucionador dos conflitos entre empregadores e empregados, de modo a ser regulado pela legislação social, mas que só terá sua instalação oficial garantida em 1941, de modo a ser integrada ao Poder Judiciário. O que se pode notar, apesar de todos os avanços no campo da legislação trabalhista, é que há uma forte oposição tanto à Justiça do Trabalho, quanto à Consolidação das Leis de Trabalho, protagonizada por um setor conservador da sociedade brasileira.

 

O pós Era Vargas e as relações trabalhistas na Constituição de 1988

    A primeira expressão constitucional que se dá após o fim do Estado Novo de Vargas é a Constituição de 1946, que como forma de preconizar e consolidar a redemocratização. O problema que não se foi levado em conta foi o fato de que a Constituição, por si só, não tinha os mecanismos para garantir o que estava escrito em seu texto. Com essa mudança de ordem jurídica que se pode afirmar a presença de um Estado Social que não consegue instaurar uma sociedade de bem-estar, sendo ele tradicional e repressor em boa parte das questões sociais ao mesmo tempo que impotente perante fortes interesses privados e corporativos dos setores mais privilegiados (BERCOVICI, 2012). Já a Constituição de 1967 perpetua uma política de Estado de cunho keynesiana – até mesmo intervencionista – no que tange aos campos econômico e trabalhista principalmente. Contudo, o “Estado Social”, que se caracteriza nessa porção da década de 60 e que se estende até meados da década de 80, é apenas uma fachada que esconde os valores autoritários que sustentam um governo militar e entre eles está a repressão da democracia.

    Com o fim do regime militar, em 1985, há uma reunião de uma Assembleia Constituinte que teve como objetivo formular um conjunto de leis, que mais tarde se transforma na Constituição Federal de 1988. Esse texto vem com adventos no âmbito dos direitos sociais e da proteção da ordem social, resguardando, de certa forma, uma parte de seu corpo para delimitar leis de proteção aos trabalhadores. Essa constituição tem um caráter marcante, pois se ergue em “face à fragilidade das instituições e à pouca confiabilidade no sistema legal” (ASSIS, 2013, p. 8), fatores esses que refletem uma necessidade de constitucionalização de direitos e garantias.

    No que diz respeito ao que se prevê pelo texto constitucional, pode ser observado uma ampliação dos direitos individuais, de modo que eles têm caráter de patamar mínimo, o que faz com que eles só possam ser ampliados dali pra frente, nunca suprimidos mediante legislações infraconstitucionais. É com base na estipulação do princípio da igualdade que se funda a garantia de tratamento igual tanto para trabalhadores rurais quanto urbanos, caracterizando um tratamento isonômico, além disso se faz presente uma regulação que delimita as diferenças entre os gêneros em ambientes de trabalho, de tal forma que proíbe “diferenças salariais, exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil” (ASSIS, 2013, p. 9-10). Adicional a essas garantias, há um combate à discriminação de gênero em ambiente de trabalho. Ademais, consta no artigo sétimo

a proteção a relação de emprego no que se refere à despedida arbitrária; a previsão de seguro-desemprego para as situações em que esse resultar de ato involuntário; a institucionalização do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço como regime único para todos os trabalhadores; a estipulação de salário mínimo; a previsão de piso salarial; a proteção contra a diminuição dos salários, salvo negociação coletiva (SILVA, 2012, p. 287)

 

    No artigo oitavo, há uma legitimação das organizações formadas por meio da associação coletiva dos trabalhadores, assim como uma consagração destas como detentoras de liberdade de agrupamento coletivo, de modo a não sofrer nenhuma interferência estatal. Além disso, o sindicato assume dever de proteger os interesses da categoria que o integra perante as instâncias administrativas e judiciais. Enquanto isso, o artigo nono garante o direito de greves, ao passo que o artigo décimo assegura “aos trabalhadores o direitos de representação e órgãos públicos colegiados, em que sejam discutidos assuntos de interesses profissionais ou previdenciários” (SILVA, 2012, p. 289).

    Com essa sucinta exposição, percebe-se que os direitos dos trabalhadores têm como objetivo melhorar a condição social dessa classe, mas sempre com o cuidado de se observar caso a empregabilidade de tais direitos está na condição de ferir preceitos constitucionais. Os direitos sociais se fazem imprescindíveis no que se diz respeito à seguridade de direitos fundamentais, uma vez que, querendo ou não, se caracterizam como tal dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

 


CONCLUSÃO

 

    O processo de construção da cidadania brasileira se pauta em fatos marcantes que se encaixam em períodos notadamente significativos e claramente delimitados, seja por uma reviravolta na ordem jurídica, seja por uma transformação da ordem política, de tal forma que a aquisição de direitos sociais – e dentre eles o direito trabalhista – é de magnânima importância quando se pauta na discussão acerca da questão social.

    Quando se faz uma análise histórica do desenvolvimento desses direitos de forma atrelada às concessões garantidas pelo histórico constitucional, percebe-se uma evolução no que se diz respeito à aquisição tanto de direitos sociais, tanto de direitos políticos, de tal maneira que essas relações são perceptivelmente pautadas nas letras dos textos constitucionais. Assim, se faz indispensável a observação de aspectos jurídicos no apoio à luta por direitos sociais e uma necessária formação da cidadania operária, uma vez que são por meio destes aparatos jurídicos que se adquire e se consolida os benefícios obtidos ao longo de mais de meio século de combate contra as elites opressoras defensoras da lógica capitalista e liberal.


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