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Da Defensoria Pública

Da Defensoria Pública

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Do contexto histórico da criação da Defensoria Pública, à luz do cotejo das Constituições brasileiras, à mora estatal na concretização do comando constitucional em relação à implementação da instituição em alguns Estados.

1) INTRODUÇÃO HISTÓRICA

A fim de compreender melhor o papel da Defensoria Pública no atual cenário constitucional, é mister analisar como o órgão foi (ou deixou de ser) regulamentado nas diversas realidades constitucionais precedentes. Por mais que as constituições anteriores à de 1998 não fizessem expressa menção à Defensoria Pública, suas análises são imprescindíveis para o presente estudo, porquanto fazem alusão a conceitos correlatos (assistência judiciária, assistência jurídica e gratuidade de justiça).

O termo da assistência jurídica foi introduzido no ordenamento constitucional apenas em 1934. A Constituição promulgada à época, no item 32 do artigo 113, determinava que:

A União e os Estados concederão aos necessitados assistência jurídica, criando, para esse efeito, órgãos especiais, assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.

Denota-se, do dispositivo constitucional acima transcrito, que o constituinte, à época, nitidamente confundiu institutos jurídicos díspares (assistência jurídica e gratuidade de justiça). A assistência jurídica configura, em termos gerais, a própria representação do assistido perante o Judiciário.

A gratuidade de justiça é benefício concedido para aqueles que não podem arcar com as custas e demais despesas inerentes à propositura de uma determinada ação e a consequente continuidade de um processo, sem prejuízo do sustento próprio e/ou de sua família.

Percebe-se, portanto, a par das definições expostas, que é plenamente possível haver gratuidade de justiça sem o serviço publico prestado por um determinado órgão público acerca da assistência jurídica.

Uma determinada parte pode ser representada judicialmente por um amigo advogado que atue pro bono e, ainda assim, ter o beneficio da gratuidade de justiça concedido, em virtude de suas condições financeiro-econômicas, por exemplo.

Além disso, constata-se que o Constituinte de 1934 fez expressa menção à intenção de constituir órgão especial para o exercício da assistência jurídica gratuita. Já havia a premente necessidade de criação de órgão específica. Entretanto, diante da redação lacônica e omissa do dispositivo, o órgão Defensoria Pública não havia sido ainda constitucionalmente mencionado.

A Constituição de 1937 foi omissa quanto à regulação da assistência judiciária. Levando em consideração o contexto histórico em que foi outorgada (nítido período ditatorial de Getúlio Vargas), compreende-se a ausência de motivos para a criação de um órgão que pudesse, em termos concretos, atuar na oposição às barbaridades cometidas à população em geral.

Trata-se de receio existente, em certa medida, em alguns estados da Federação que ainda não possuem uma Defensoria Pública devidamente estruturada. Para a concepção de certos governantes, gastos públicos no aparelhamento de um órgão que é responsável, em certo grau, pela representação judicial em inúmeras ações propostas exatamente em face do Estado, é uma medida contraproducente.

Outro motivo existente para a omissão da Constituição de 1937 ao tema pode ser encontrado na forte concentração dos poderes na mão do Executivo à época.

Entre a outorga da Constituição de 1937 e a promulgação da Constituição de 1946, entrou em vigor, no ordenamento jurídico, o Código de Processo Civil de 1937. Por mais que não figurasse expressamente na Constituição de 1937, o instituto da assistência judiciária encontrava-se regulado em nível infraconstitucional (nos artigos 68 e seguintes do CPC/39).

Embora o Capítulo II do Código de Processo Civil de 1939 fosse denominado pelo legislador como “do beneficio da gratuidade de justiça", a regulamentação de referida parte do Código não se restringia única e exclusivamente ao benefício da gratuidade de justiça.

O artigo 68 estabelecia, em seu caput, que qualquer das partes que não possuísse condições de pagar as custas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, tinha direito ao beneficio da gratuidade. Os cinco incisos do referido dispositivo normativo arrolavam, de forma exemplificativa, quais isenções estariam inseridas no conceito de gratuidade de justiça.

Art. 68. A parte que não estiver em condições de pagar as custas do processo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, gozará do benefício de gratuidade, que compreenderá as seguintes isenções: 

I – das taxas judiciárias e dos selos; 

II – dos emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça;

III – das despesas com as publicações no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais; 

IV – das indenizações devidas a testemunhas; 

V – dos honorários de advogado e perito.

Parágrafo único. O advogado será escolhido pela parte; si esta não o fizer, será indicado pela assistência judiciária e, na falta desta, nomeado pelo juiz.

O parágrafo único do artigo acima transcrito é de supra importância para o estudo da Defensoria Pública. Denota-se que, no caso de omissão da escolha pela parte de um dos advogados, a indicação seria feita pela assistência judiciária.

Alguns doutrinadores afirmam que tal sistemática aproxima-se, em certa medida, aos atuais convênios com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). As partes assistidas seriam representadas por advogado indicado pelos quadros da Seccional da OAB, com base em uma lista de advogados previamente credenciados. A figura da Defensoria Pública, à época, era inexistente.

Diferentemente da Constituição de 1934, o Constituinte de 1946, ao analisar o instituto da assistência jurídica, não fez expressa menção à necessidade de criação de órgãos especiais incumbidos deste mister. O artigo 141, §35, do referido ordenamento constitucional restringiu-se a estabelecer que “o Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados".

Delegando parte considerável da competência para o legislador infraconstitucional, o constituinte de 1946 perdeu grande oportunidade, levando em consideração o processo de redemocratização, de efetivar o direito à assistência jurídica, estabelecendo um órgão previamente definido com a incumbência de ser encarregado por tal dever constitucional.

Preenchendo a competência constitucionalmente delegada, foi publicada a Lei nº 1.060/50 (Lei de Assistência Judiciária), que foi quase integralmente revogada com o advento do Novo Código de Processo Civil, nos moldes do inciso III do artigo 1.072.

O artigo 1º da Lei nº 1.060/50 é enfático, ao estabelecer que:

Os poderes públicos federal e estadual, independentemente da colaboração que possam receber dos municípios e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), concederão assistência judiciária aos necessitados

A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 01/69 não alteraram o quadro já existente, restringindo-se a estabelecer que "será concedida assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei” (artigo 150, §32). Redação deveras lacônica e omissa, conforme o quadro histórico existente até o presente momento.

Tal realidade foi intensamente alterada com o advento da Constituição de 1988. Pela primeira vez, a Defensoria Pública foi expressamente prevista em nível constitucional. Muitos doutrinadores afirmam que o março da criação da Defensoria Pública ocorreu com a própria Constituição-Cidadã.

Por mais que a atividade de assistência judiciária fosse exercida por outros oragos (no Estado de São Paulo, por exemplo, era incumbência da Procuradoria Geral do Estado), a criação da Defensoria Pública foi um passo fundamental para a efetivação do direito ao acesso à justiça e da própria assistência jurídica como concebida atualmente. Conjuntamente com a advocacia, o constituinte traçou o regramento geral da Defensoria Pública na Seção III (mais especificamente no artigo 134, abaixo transcrito, em sua redação originária).

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.)

Parágrafo único. Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.

Com a Emenda Constitucional nº 45/04, o parágrafo único acima transcrito foi retirado do texto constitucional pelo constituinte derivado, sendo introduzidos os §§ 1º e 2º (abaixo transcritos).

§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.

§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 74/13, foi introduzido o §3º, estendendo às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal a autonomia funcional, administrativa e financeira.

Com a Emenda Constitucional nº 80/14, o caput do artigo 134 foi alterada, incluindo-se expressamente a tutela dos direitos coletivos no rol de atribuições da Defensoria Pública. Outrossim, foi acrescentado o §4º, expressamente prevendo, em sede constitucional, os princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional, além de determinar a aplicação, no que couber, do disposto no artigo 93 e no inciso II do artigo 96, ambos da Constituição.

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

§ 4º São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal.

 Ainda na análise da Constituição Federal de 1988, é importante ressaltar que, não mais se restringindo à assistência judiciária como muitas constituições até então, o Constituinte de 1988 foi mais revolucionário, ao estabelecer que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. A assistência jurídica engloba atividades outrora não abarcados pelo conceito de assistência judiciária. Esta é restrita ao âmbito do Poder Judiciário.

Aquela, por sua vez, pode existir no âmbito de um processo administrativo, na defesa de um contribuinte em recurso contra autuação tributária, por exemplo. Outra área de atuação possibilitada pela Constituição Federal de 1988 às Defensorias Públicas é a atividade de autocomposição, em simetria com os objetivos delineados pelo Novo Código de Processo Civil.

A esfera extrajudicial de atribuição da Defensoria Pública é ressaltada pelo constituinte. A Defensoria Pública pode exercer seus misteres também na seara consultiva, prestando pareces acerca de um contrato locatício a ser celebrado entre o locador e o locatário (assistidos pela Defensoria Pública). Com esta alteração de perspectiva, a assistência jurídica passa a ser integral, abarcando áreas de atuação outrora inimagináveis.

Da trajetória histórica traçada acima, constata-se que a criação da Defensoria Pública foi uma conquista social de inegável importância. Efetivando direitos basilares de um Estado Democrático de Direito pleno, a população, através de movimentos sociais atuantes na Assembleia Constituinte, teve um papel ímpar na implementação constitucional da Defensoria Pública.  Entretanto, a mera previsão constitucional não é suficiente para a efetiva integração na realidade fática e fenomênica de grande parte da população brasileira.

Muitos entes federativos ainda eram omissos na criação e no aparelhamento da Defensoria Pública. A mora federativa foi objeto de recente ação direta de inconstitucionalidade nº 3892 e 4270 (acerca da criação da Defensoria Pública em Santa Catarina, ente da Federação que, mesmo após mais de 20 anos da promulgação da Constituição de 1988, ainda não havia implementado em seus quadros estatais a Defensoria Pública).


2) MORA ESTATAL E CRIAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA

Exemplo emblemático da mora estatal em se efetivar plenamente um dispositivo constitucional ocorreu no Estado de Santa Catarina. Mais de vinte anos depois, o referido ente federativo não havia estabelecido a criação da Defensoria Pública em seu território, permanecendo um sistema de convenio com a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil para a assistência judiciária no caso de hipossuficientes econômicos.

Permanecendo omisso quanto ao dever constitucional estabelecido no artigo 134, o Estado de Santa Catarina permanecia estabelecendo um sistema de rodizio entre os advogados previamente inscritos em lista elaborada pela Seccional da OAB.

No caso de hipossuficiência econômica, o assistido era representado judicialmente por um destes advogados, que era pago pelo governo estadual, através do envio de verbas duodecimais à OAB/SC, que as repassava aos advogados de forma proporcional ao trabalho realizado.

A legislação que regulava tal dinâmica, e que fora impugnada na ADIN nº 4.270 (proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP), era a Lei Complementar estadual nº 155/97, cujos principais dispositivos impugnados na referida ação direta de inconstitucionalidade estão abaixo transcritos.

Art.1º Fica instituída, pela presente Lei Complementar, na forma do art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina, a Defensoria Pública, que será́ exercida pela Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita, organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina – OAB/SC.

§ 1º A OAB/SC obriga-se a organizar, em todas as Comarcas do Estado, diretamente ou pelas Subseções, listas de advogados aptos à prestação dos serviços da Defensoria Pública e Assistência Judiciária Gratuita.

§ 2º Cada subsecção da OAB/SC organizará as listas a que se refere o parágrafo anterior, incluindo, mediante requerimento, os advogados que nela tenham sede principal de atividade. Na Comarca da Capital a confecção da lista caberá́ à Diretoria da OAB/SC.

§ 3º As listas serão organizadas de acordo com a especialidade dos advogados, indicada no requerimento a que se refere o parágrafo anterior, podendo o advogado constar em mais de uma área de atuação profissional.

§ 4º Somente poderão ser incluídos nas listas os advogados que assinarem termo de comprometimento e aceitação das condições estabelecidas na presente Lei Complementar, os quais serão designados pela autoridade judiciária competente.

§ 5º Para efeito de designação de Assistente Judiciário ou Defensor Dativo dever-se-á manter, o quanto possível, sistema de rodizio entre os advogados inscritos e militantes em cada Comarca.

Art.3º Institui-se, nesta Lei, o regime de remuneração, pelo Estado de Santa Catarina, em favor dos advogados que, indicados em listas, na forma dos arts. 1o e seus parágrafos, e designados pela autoridade judiciária competente, promovam, no juízo cível, criminal e varas especializadas, á Defensoria Dativa e Assistência Judiciária às pessoas mencionadas no art. 2o.

Inicialmente, o ministro relator Joaquim Barbosa reconheceu a inconstitucionalidade formal da referida lei, com base no artigo 61, §1º, II, “d", da Constituição Federal. Tal dispositivo constitucional estabelece ser de iniciativa reservada do Presidente da República as leis que disponham sobre sobre a organização da Defensoria Pública da União.

Com base no princípio da simetria, o ministro relator entendeu que a iniciativa para legislar, no presente caso, era exclusiva do governador do Estado de Santa Catarina, o que não ocorreu, estando inquinada de vício de constitucionalidade formal a lei ora em análise.

Além disso, de forma ainda mais gritante e patente é a inconstitucionalidade material. A afronta ao comando constitucional referente à criação e ao aparelhamento da Defensoria Pública em cada um dos Estados da Federação é irrefutável. Regulamentando o disposto no artigo 134 da Constituição Federal, a Lei Complementar nº 80/94 estabeleceu normas gerais obrigatórias para a organização da Defensoria Pública pelos Estados.

Dentre tais parâmetros basilares mínimos, um deles é o provimento dos defensores públicos mediante prévio concurso público de provas e títulos. Tal forma de ingresso efetiva o princípio da impessoalidade e da moralidade, mediante um processo seletivo idôneo a selecionar os profissionais mais capacitados para a assistência jurídica dos hipossuficientes, parcela da população que mais carece de tutela por parte do Poder Público.

Constata-se, a par da arquitetura organizacional estabelecida pela Lei Complementar estadual nº 155/97, que o modelo catarinense de defensoria pública era inexistente. A utilização de convenio/parceria com a OAB não visa, como em outros Estados da Federação (São Paulo, por exemplo), a suplementar a atuação da Defensoria Pública. Pelo contrário.

Há uma evidente derrogação de competência constitucionalmente outorgada à Defensoria Pública. É surpreendente que, em 1997, o Estado de Santa Catarina já havia estabelecido uma lei regulando o sistema de convenio com a OAB e ainda não houvesse instituído formalmente a Defensoria Pública. Somente em agosto de 2012, foi publicada a Lei Complementar estadual nº 575, criando a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, dispondo sobre sua organização e funcionamento. Até então, houve manifesta omissão inconstitucional em dar efetividade a um expresso comando do Constituinte originário.

Além disso, é mister salientar que, em virtude da vedação constitucional ao exercício da advocacia, o defensor público possui dedicação integral à função de assistência jurídica aos necessitados. Já os advogados vinculados ao convenio com a OAB/SC, por exemplo, devem gerenciar o tempo existente para as demais causas em que atuam na área privada (em que a remuneração ofertada é nitidamente maior, face aos valores repassados por duodécimos pelo Estado de Santa Catarina, por exemplo).

Outro dado importante refere-se à atuação única e exclusivamente no âmbito da tutela individual. Diversamente dos advogados conveniados para com a Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública possui uma atuação mais integral e global quanto à tutela dos necessitados, inclusive no âmbito do processo coletivo, bem como no plano extrajurídico (através da resolução de conflitos através de mediações realizadas, na maioria das vezes, na própria sede das Defensorias Públicas). O ministro relator Joaquim Barbosa ressaltou tal ponto em seu voto, conforme trecho abaixo transcrito.

Veja-se, a título de de exemplo, o fato de que a defensoria dativa organizada pelo Estado de Santa Catarina com apoio na seção local da OAB não está preparada e tampouco possui competência para atuar na defesa de direitos coletivos, difusos ou individuais homogêneos dos hipossuficientes e dos consumidores, atribuição que hoje se encontra plenamente reconhecida à Defensoria Pública (incisos VII e VIII do artigo 4º da Lei Complementar 80/94, na redação da Lei Complementar nº 132/09).

Note-se, também, que a ênfase do modelo catarinense na assistência jurídica prestada sob o angulo do apoio ao litigio judicial deixa de lado todos os esforços que vem sendo empreendidos por várias organizações no sentido de consolidar a cultura da resolução extrajudicial de disputas. A defensoria pública como instituição do Estado encontra-se apta para atuar nessa frente, linha de ação essencial para reduzir a quantidade de processos e tornar mais ágil o funcionamento da justiça (inciso II do artigo 4º da Lei Complementar 80/94, na redação da Lei Complementar nº 132/09).

É mister salientar o caráter normativo do disposto no artigo 134 da Constituição Federal. Não se trata de uma norma meramente programática, uma mera exortação ao poder político, possuindo, ao contrário, nítido efeito vinculante, uma força normativa, um comando constitucional que merece e deve ser respeitado pelos entes federativos, sob pena de manifesta mácula de inconstitucionalidade.

O Estado de Santa Catarina, a fim de contornar a omissão em conferir efetividade ao direito de acesso à justiça, sustenta que o reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados seria prejudicial à própria população assistida, porquanto a criação da Defensoria Pública não seria possível em um curto espaço de tempo.

Pugnando pela modulação dos efeitos do reconhecimento judicial, em sede de controle concentrando, da inconstitucionalidade da norma, o Estado de Santa Catarina defende a permanência do sistema de rodízio entre advogados dativos, previamente inscritos em lista elaborada pela Seccional da OAB em Santa Catarina.

O Supremo Tribunal Federal, mediante decisão colegiada, fixou marco temporal para a criação da Defensoria Pública, determinando que o Estado de Santa Catarina purgue sua mora em um prazo fixado jurisdicionalmente em 01 ano. De acordo com o dispositivo do acórdão prolatado, após referido prazo, "deverá estar em funcionamento órgão estadual de defensoria pública estruturado de acordo com a Constituição de 1988 e em estrita observância à legislação complementar nacional (Lei Complementar nº 80/94)”.

Num dos diálogos travados entre os ministros, Ayres de Britto levantou a hipótese de se configurar crime de responsabilidade por parte do Governador do Estado de Santa Catarina, ante a omissão em dar concretude ao comando constitucional do artigo 134. O ministro salienta que a negligencia estatal poderia configurar atentado contra o exercício dos direitos individuais, nos moldes do artigo 85, III, da Constituição Federal, ante a magnitude do direito em questão.

E negar esse direito, por forma patente, renitente, omissa, parece-me até, Ministro Celso de Mello, carrear a ação de governante responsável para os crimes de responsabilidade de que trata a Constituição no artigo 85 (...) Portanto, eu também entendo que deixar de aparelhar as defensorias públicas é atentar violentamente contra a Constituição e correr risco até de incidir nesse crime mais alto, o crime de responsabilidade


3) AUTONOMIA ADMINISTRATIVA, FUNCIONAL E FINANCEIRA

O parágrafo único do artigo 3º da Lei Complementar nº 80/94 ("À Defensoria Pública é assegurada autonomia administrativa e funcional”) foi vetado pelo Presidente da República, sob o fundamento de que a Constituição somente teria concedido autonomia a dois órgãos – Poder Judiciário (artigo 99) e Ministério Público (artigo 127, §2º). Nas razões do veto, o presidente afirma que “não se concebe a concessão de autonomia administrativa e funcional a um órgão que deve estar sob o comando do Chefe do Poder Executivo, como é o caso da Defensoria Pública".

Tal realidade, todavia, não mais subsiste. Com a Emenda Constitucional nº 45/04, foram introduzidos os §§ 1º e 2º ao artigo 134.

§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.

De acordo com a autonomia funcional, a Defensoria Pública, no desempenho de seus deveres funcionais, não está subordinada a nenhum órgão ou poder, submetendo-se apenas aos limites jurídicos previamente estabelecidos.

Não há ingerência do Chefe do Poder Executivo como outrora era pugnando. A autonomia administrativa confere maior independência à Defensoria Pública, cujos atos praticados dentro de seus domínios normativos possui ampla eficácia e executoriedade imediata em sua estrutura. Há maior liberdade na própria gestão do órgão, como no provimento dos cargos de carreira, na aquisição de bens e contratação de serviços em geral, elaboração da folha de pagamentos, entre outros (artigo 97-A da Lei Complementar nº 80/94).

Art. 97-A.  À Defensoria Pública do Estado é assegurada autonomia funcional, administrativa e iniciativa para elaboração de sua proposta orçamentária, dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, cabendo-lhe, especialmente:

I – abrir concurso público e prover os cargos de suas Carreiras e dos serviços auxiliares;

II – organizar os serviços auxiliares;

III – praticar atos próprios de gestão;

IV – compor os seus órgãos de administração superior e de atuação;

V – elaborar suas folhas de pagamento e expedir os competentes demonstrativos;

VI – praticar atos e decidir sobre situação funcional e administrativa do pessoal, ativo e inativo da Carreira, e dos serviços auxiliares, organizados em quadros próprios;

VII – exercer outras competências decorrentes de sua autonomia.

Outro dado importante é a própria autonomia financeira, tendo a Defensoria Pública a iniciativa da proposta orçamentária, desde que respeitados os limites estabelecidos nas demais leis orçamentárias (lei de diretrizes orçamentárias e plano plurianual).

Tal autonomia é de supra importância para a própria Defensoria delinear, dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, os recursos financeiros necessários para efetivar o plano de atuação previamente moldado dentro da instituição.


4) PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS – UNIDADE, INDIVISIBILIDADE E INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL

O artigo 3º da Lei Complementar nº 80/94 estabelece os princípios institucionais da Defensoria Pública: unidade, indivisibilidade e independência funcional. O primeiro princípio (unidade) estabelece que todos os Defensores Públicos integram um mesmo órgão. Estão submetidos a uma mesma disciplina, sendo regidos por diretrizes e fins próprios.

Apesar de certa divergência doutrinária, parcela majoritária dos doutrinadores defendem que o princípio institucional aplica-se apenas a cada um dos ramos da Defensoria. Assim, a unidade imperaria em cada um dos ramos, não havendo uma unidade global e integral, que abrangesse todos os ramos da Defensoria em uma unidade (Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios, Defensoria Pública dos Estados).

O princípio institucional da indivisibilidade permite que os membros da Defensoria Pública sejam substituídos uns pelos outros, sem prejuízo à continuidade do serviço público realizado. Pelo próprio princípio da continuidade dos serviços públicos, obstar a substituição de um Defensor Público, em gozo de férias, por exemplo, por outro colega de carreira, previamente indicada para a substituição, seria um ônus excessivo para a parcela da população mais necessitada do serviço público.

Visa-se a estabelecer, com o referido princípio, que não haja descontinuidade no serviço prestado, evitando que o mesmo cesse em razão de ausências temporárias de algum de seus membros.

 Correlacionado com o princípio da indivisibilidade, muitos doutrinadores defendem que não é o defensor público quem representa o assistido, mas sim a própria Defensoria Pública, como instituição. O defensor público presentaria a instituição perante o Poder Judiciário.

Por fim, quanto à independência funcional, é mister transcrever o trecho do doutrinador Sílvio Roberto Mello Moraes, em seu livro “Princípios institucionais da Defensoria Pública – Lei Complementar nº 80 anotada”, referente a tal princípio institucional:

A independência funcional é o princípio dos mais valiosos para a instituição. Para que cumpra seu dever constitucional de manutenção do Estado Democrático de Direito, assegurando a igualdade substancial entre todos os cidadãos, bem como instrumentalizando o exercício de diversos direitos e garantias individuais, representando, junto aos Poderes constituídos, os hipossuficientes, não raras vezes contra o próprio Estado, é necessário que a Defensoria Pública guarde uma posição de independência e autonomia em relação aos demais organismos estatais e ao próprio Estado ao qual se encontra, de certa forma, vinculada. Para tanto, é preciso que a instituição esteja a salvo de eventuais ingerências politicas, para que possa atuar com autonomia e liberdade. Isso porque, como bem observa Diogo de Figueiredo Neto, referindo-se às instituições essenciais à função jurisdicional do Estado, seria um contrassenso que estas funções não gozassem de independência, porque qualquer pressão oriunda de um Poder do Estado poderia cercear a promoção, ou seja, a atuação do órgão de provedoria de justiça. A independência dessas funções é essencial à justiça[1].

Constata-se, portanto, que a independência funcional é um princípio institucional de supra importância para a Defensoria Pública realizar, com efetividade, os misteres constitucionalmente estabelecidos, concretizando com plenitude seus deveres.


Nota

[1] MORAES, Sílvio Roberto Mello. Princípios institucionais da Defensoria Pública – Lei Complementar nº 80 anotada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 22



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALIM, Pedro Losa Loureiro. Da Defensoria Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5214, 10 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60592. Acesso em: 20 abr. 2024.