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O trabalho infantil artístico no Brasil contemporâneo.

As autorizações judiciais para o trabalho frente o princípio da proteção integral

O trabalho infantil artístico no Brasil contemporâneo. As autorizações judiciais para o trabalho frente o princípio da proteção integral

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Resumo: A presente pesquisa busca investigar as consequências do trabalho infantil no Brasil, bem como analisar a legalidade para expedição de autorizações judiciais e suas condições para o trabalho infantil artístico frente ao princípio da proteção integral. Os objetivos específicos foram: refletir sobre o trabalho infantil no Brasil e suas consequências educacionais, psicológicas e físicas; apresentar os princípios voltados ao direito de crianças e adolescentes previstos na legislação brasileira, bem como a Teoria da Proteção Integral; elucidar as principais normativas de proteção nacional e internacional à crianças e adolescentes; e confrontar a possibilidade de autorizações judiciais para o trabalho infantil artístico com o princípio da proteção integral. O método de abordagem é o dedutivo utilizando-se de pesquisa bibliográfica. Verificou-se com a pesquisa que a expedição de alvarás de autorizações judiciais para o trabalho infantil artístico como meio de exploração econômica fere o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como os ditames da Teoria da Proteção Integral, e que se faz necessário reavaliar a aplicação destas concessões para o trabalho infantil, tendo em vista as consequências que dela advêm.

Palavras-chave: Trabalho Infantil Artístico. Criança e adolescente. Proteção Integral. Autorização Judicial.


1. INTRODUÇÃO

Para começar a pesquisa, iniciou-se com as seguintes questões: Qual a definição de criança e adolescente? O que a legislação nacional e internacional compreende a respeito da necessidade de salvaguardar a infância e a juventude? Quais as consequências educacionais, físicas e psicológicas podem advir do trabalho infanto-juvenil? O que é a Teoria da Proteção Integral? O que são as autorizações judiciais para o trabalho infantil e qual a relação existente com o princípio da proteção integral e da dignidade da pessoa humana?

Estas são as indagações que se pretende responder neste trabalho, com base em autores da temática criança e adolescente e erradicação do trabalho infantil, bem como em dados estatísticos reconhecidos e confiáveis, que traduz parte da realidade do trabalho infantil no Brasil, vez que muitas realidades são veladas.

O trabalho infantil no Brasil ultrapassa os três milhões de crianças e adolescentes e este indicador mostra que é necessário expandir as formas de reduzir, quiçá, eliminar este número do cenário nacional, sendo o Estado, a família e a sociedade corresponsáveis por este trabalho, fazendo a sua parte, seja denunciando, coibindo, criando e efetivando políticas públicas voltadas não só à erradicação, mas também à diminuição da pobreza, uma das causas que leva ao trabalho infantil, com a devida distribuição de renda.

As consequências do trabalho infantil são inúmeras, acarretando déficit no desenvolvimento da criança e do adolescente, fazendo com que se perca o sentido lúdico de ser criança, transformando-as em mini adultos, com responsabilidades, pesos e obrigações.

Um dos trabalhos infantis que é discutido é o artístico, o trabalho que muitas vezes é visto como não trabalho, como atividade artística. Está é a visão majoritária da sociedade, contudo este trabalho e exposição é considerado trabalho infantil, com as mesmas consequências de qualquer outro trabalho infantil.

Por fim, se apresenta a impossibilidade de expedição de autorizações judiciais para o trabalho infantil artístico em contraponto com o princípio da proteção integral e da dignidade da pessoa humana. Será que estas autorizações judiciais visam salvaguardar o interesse da criança e do adolescente ou é uma possibilidade inconstitucional que está posta para elevar os números do trabalho infantil e suas consequências, muitas vezes irreparáveis?


2. TRABALHO INFANTIL NO BRASIL

O trabalho infantil é toda atividade de cunho econômico ou não, desenvolvida por crianças ou adolescentes que não possuem a idade mínima para o trabalho aferida pela Constituição Federal de 1988. De acordo com a Constituição Federal, o trabalho é permitido para maiores de 16 anos, desde que não seja perigoso, insalubre ou penoso e aos maiores de 14 anos na condição de aprendiz.

Esta limitação de idade não está posta simples e puramente porque definiu-se assim, mas baseou-se em questões mais profundas advindas da CF/88 que trouxe com ela novos preceitos para a definição de criança e adolescente em formação e desenvolvimento, devendo ter ampla proteção.

O direito da criança e do adolescente é um sistema orientado pelo princípio do interesse superior da criança, princípio que decorre do reconhecimento da condição peculiar da criança como pessoa em processo de desenvolvimento, por isso todos os atos interligados ao atendimento das necessidades da criação e do adolescente devem levar em consideração o critério do melhor interesse a elas (CUSTÓDIO, 2009, p. 33-34).

O referido princípio está diretamente relacionado com o princípio da prioridade absoluta, contido no art. 227 da CF e no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente que atribuem à família, a sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com prioridade, os direitos fundamentais às crianças e adolescentes, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CUSTÓDIO, 2009, p. 35).

As crianças e adolescentes encontram-se em processo especial de desenvolvimento e o trabalho precoce acarreta consequências que afetam diretamente seu desenvolvimento psicológico e físico, quando sujeitas a trabalhos que estão além das suas possibilidades estruturais, anulando a infância e comprometendo a fase adulta (VERONESE; CUSTÓDIO; 2007, p. 105-106).

A não satisfação das necessidades da infância e adolescência provoca o amadurecimento precoce, alterando o equilíbrio psicológico da pessoa quando adulta. As responsabilidades advindas do trabalho ocasionam a perda da característica do lúdico presente na infância, sendo aspecto primordial para o desenvolvimento saudável desta fase, que está diretamente ligada ao brincar (VERONESE; CUSTÓDIO; 2007, p. 110-111). Crianças que bloqueiam seus impulsos naturais passam a se auto reconhecerem como um trabalhador, um ser adulto, confundindo sua identidade, que está abafada pelas regras da atividade laboral (VERONESE; CUSTÓDIO; 2007, p. 111). Neste mesmo viés compreende Reis (2015, p. 94), quando afirma que “brincar é de fundamental importância para o desenvolvimento social e cognitivo”.

Outro aspecto que se deve olhar é a trajetória de trabalho dos pais. Este é um fator que pode determinar a história dos filhos, conforme enfatizam Gomes e Silva (2011, p. 10), compreendendo que a partir da historicidade de vida dos pais, percebem repetição de certas condições, tais como a inserção precoce dos filhos no mercado de trabalho e o nível de escolaridade da criança com a de seus responsáveis. Tal inserção precoce ocorre geralmente em atividades informais e de baixo valor, que serve para a garantia da sobrevivência da família.

O trabalho infantil é outro fator cuja consequência aparece na ausência da educação ou em sua limitação. A criança muitas vezes é privada de ir à escola e mesmo sobrando-lhe tempo para isso, o cansaço ou a fadiga não lhe permitem que se mantenha acordada, o que resulta no não aproveitamento dos conteúdos ministrados, comprometimento das tarefas e exercícios, faltas, atrasos, podendo culminar em repetências e evasão escolar (GOMES; SILVA, 2011, p. 11).

Destaca-se ainda a fase de crescimento e com sua estrutura física não desenvolvida totalmente, a criança está mais exposta a riscos presentes no ambiente de trabalho, podendo sofrer acidentes e atrair problemas de saúde no futuro (GOMES; SILVA, 2011, p. 12).

Desta forma, percebe-se que há uma gama de consequências atreladas ao trabalho infantil e que muitas vezes não são pensadas e analisadas a longo prazo. Passa-nos despercebidos, ao vermos um ator mirim atuar em uma novela ou programa, o que ocorre nos bastidores, nas horas exaustivas de gravações, no tempo escasso destinado a educação e lazer, na responsabilidade de decorar um texto, e apenas pensamos na atuação da criança e na possível sorte que teve em começar a vida artística desde tão pequena. Achamos “fofo” ver uma criança na televisão. Nos é invisível que aquela atuação constitui trabalho e acarreta em consequências para o desenvolvimento normal daquela criança.

O trabalho artístico requer dedicação, treinamento, e seu esforço não é visto por quem vê o produto final e, o trabalho artístico infanto-juvenil requer ainda mais esforço, uma vez que quem o realiza é mais frágil, (MACEDO; ACIOLE, 2017, p. 9).

Para Macedo e Aciole (2017, p. 8), constitui violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes a exploração do trabalho infantil. Por serem detentoras de direitos, por serem humanas, têm dignidade e desta forma são sujeitos de direitos, e por sua condição de criança e adolescente exigem especial proteção e prioridade absoluta.

Albuquerque (2003, p. 30) repudia o trabalho infantil por ser “ofensivo ao desenvolvimento da criança, que nesta fase de vida, necessita de atividades relacionadas à educação, ao lazer, ao desenvolvimento como pessoa portadora de direitos, não como membro da sociedade produtiva do Estado”.

Para Reis (2015, p. 84) em razão do glamour que de certa maneira está associado ao trabalho na indústria do entretenimento, não se verifica ou se reflete sobre as consequências desse trabalho, qual seja, amadurecimento precoce, desgaste físico, déficits educacionais e prejuízos sociais e familiares. A autora enfatiza que “a glamourização desse trabalho, a perspectiva do sucesso e da fama midiáticos e as expectativas dos pais e responsáveis contribuem significativamente para a continuidade dessa prática” (REIS, 2015, p. 86).

De fato, sabe-se que “salta aos olhos” a perspectiva da família pelo trabalho artístico do filho, que pode vir a ser famoso e “ajudar” a família, que por vezes é pobre. É uma expectativa de mudança de vida e os pais se veem nesse universo de possibilidades. Não compreendem que essa perspectiva, pode não vir a ser real, causando-lhes frustação e ainda mais aos filhos, que embarcaram na euforia dos pais.

Reis (2015, p. 86), destaca as falsas premissas que defendem o trabalho infantil artístico, como se vê:

O apelo comercial, com a utilização de crianças e adolescentes protagonizando a venda de inúmeros produtos ou serviços; o deslumbramento dos pais ao verem seus filhos na televisão; a concepção de que a atividade nos meios de comunicação é lúdica; a falsa ideia de que ao trabalhar em novelas, seriados e afins a criança ou adolescente leva ao aprendizado e que, com isso, no futuro, se tornarão artistas consagrados, são algumas das (falsas) premissas que sustentam e defendem o trabalho infantil nos meios de comunicação.

Vê-se a falsa ideia que a atividade nos meios de comunicação é lúdica e assim voltada para crianças e que a leva ao aprendizado. Não se pode negar que a aprendizagem se dá em todos os espaços, contudo a localização em que a criança está inserida não é compatível com as necessidades que são comuns a elas. Crianças devem ocupar seus espaços como crianças, e desta maneira estarão inseridas em atividades lúdicas e de aprendizagem condizentes com a sua idade.

Conforme Reis (2015, p. 94) “na grande maioria das vezes, os referencias de uma criança em situação de trabalho são muito semelhantes ao dos adultos”. Isso significa que as crianças na condição de trabalhadora se assemelha a um adulto, distorcendo a sua auto identidade, vendo-se como adulta. Isso cria uma confusão na criança, que no seu íntimo quer ser criança, contudo tem obrigações de um adulto e se vê nesta condição aquém de sua intenção.

Para as crianças que se encontram famosas, onde já conquistaram o público, também existe uma consequência grave envolvendo todo o assédio dos “fãs”. As crianças são colocadas a uma posição incompatível com suas idades e com seu desenvolvimento psicológico, sendo privadas de aparecer em público, brincar livremente nos parques e conviver com outras crianças, haja vista o alcance da fama, deixando de vivenciar adequadamente a infância, fundamental para sua formação (REIS, 2015, p. 93).

Além disso, a aparência física passa a ser uma preocupação acentuada imposta pelo trabalho artístico, trazendo possíveis consequências relacionadas à alimentação das crianças, segundo Reis (2015, p. 93).

Assim, as consequências são inúmeras, desde a questão envolvendo o próprio desenvolvimento da criança até questões relativas ao assédio de fãs e atrapalho psicológico. Mesmo que se tenha inúmeras condições previstas nas autorizações judiciais para o trabalho infantil artístico, não se dá conta de prevenir todas as possíveis sequelas fruto do trabalho precoce.

O número do trabalho infantil no Brasil embora venha decaindo é preocupante. Mesmo que se fale muito a respeito do assunto e se tenha diversos estudos sobre o tema, o trabalho infantil brasileiro é uma realidade que necessita de atenção por parte da sociedade, família e Estado.

O cenário da infância, de acordo com os dados obtidos no site observatório da criança e do adolescente, é de 2.593.366 crianças e adolescentes, entre 10 e 17 anos, que estão na ocupação de empregados, trabalhadores domésticos, empregadores, conta própria, trabalhadores na construção para o próprio uso, trabalhadores na produção para o próprio consumo, não remunerados e sem declaração em 2015 (FUNDAÇÃO ABRINQ, 2015b).

A pesquisa aponta que crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos estão ocupadas, ou seja, trabalham, totalizando 2.671.893 em 2015. Sendo que o número de crianças que trabalham de 5 a 9 anos é de 78.527 e de 10 a 14 anos é de 560.416 (FUNDAÇÃO ABRINQ, 2015a).

De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015 o trabalho infantil caiu em 20%, levando em consideração a crise econômica que dificultou o acesso de crianças e adolescentes ao trabalho infantil. A pesquisa demonstra que reduziu em 659 mil de crianças e adolescentes trabalhando entre 5 e 17 anos na passagem entre 2014-2015. Sendo que o recuo maior foi na faixa etária entre 10 e 13 anos que passou a ter 333 mil crianças trabalhando. A maior parte do trabalho infantil está associado à situação de fragilidade econômica da família e é por isso que as políticas públicas de transferência de renda são fundamentais na erradicação à exploração do trabalho infantil no Brasil. Ainda, segundo os dados da PNAD, a região sul do Brasil é a que concentra um número maior de crianças e adolescentes trabalhando e muitos dos casos estão centrados no estado do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. (CARNEIRO; ALMEIDA; GULLINO, 2016).

Segundo o censo do IBGE/2010, o número de crianças que trabalhavam e estudavam ou não é significativo. Entre a faixa etária de 10-13 anos, 639.616 frequentavam as aulas e 70.522 não frequentavam. Na faixa etária entre 14-15 anos, 766.563 frequentavam e 121.867 não frequentavam. E na faixa etária entre 16 e 17 anos, 1.281.985 frequentavam e 525.960 não frequentavam a escola. Destes números, tem-se o total de 2.688.164 crianças e adolescentes que trabalham e frequentam a escola e 718.349 crianças e adolescentes que trabalham e não frequentam a escola, com predominância na faixa etária entre 16 e 17 anos. Verifica-se que, quanto a escolaridade, o trabalho infantil é causador da infrequência e evasão escolar (IBGE, 2010 apud SOUZA, 2016, p 167).

Os dados da PNAD/2014 e do Censo Escola 2014 trouxe que 82,6% dos adolescentes com idades entre 15 e 17 anos estavam matriculados em escola nas diversas séries letivas e, destes, apenas 61% dos adolescentes estavam matriculados no ensino médio, havendo, portanto, distorção entre idade/série, concluindo que há considerável número de repetências. Comparando com os dados acima referente a frequência escolar de adolescentes que trabalham, entende-se que há relação entre trabalho infantil e repetência escolar (SOUZA, 2016, p 167).

Em evento promovido por programa da OIT – Organização Internacional do Trabalho e parceiros, em agosto de 2016 na cidade de Porto Alegre, o ministro do Superior Tribunal do Trabalho, Leilo Bentes Corrêa, manifestou que a educação de qualidade e o respeito aos direitos humanos são ferramentas fundamentas para combater o trabalho infantil no Brasil, e que não se combate apenas com medidas imediatista, esclarecendo que “é fundamental que se invista em educação de qualidade, que se assegure a permanência destas crianças e adolescentes na escola e que elas tenham o direito a sua formação profissional, que está prevista na Constituição brasileira.” (NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL, 2016). Esta fala traz a responsabilidade do estado em garantir educação de valor. Mas não para por aí, mais que isso, é necessário eliminar a pobreza, equilibrar a economia e desmitificar a fala de que é “melhor estar trabalhando do que roubando”.


3. O DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O Direito de crianças e adolescentes possuem princípios próprios para salvaguardar seus interesses peculiares de condição de pessoa em desenvolvimento. Para Reis (2015, p. 43-48) princípios indicam a direção a seguir e os que se valem dos Direitos da Criança e do Adolescentes estão divididos em princípios estruturantes e concretizantes. Os princípios estruturantes são os princípios da vinculação à doutrina da proteção integral, da universalização, do caráter garantista e do superior interesse da criança e do adolescente. Já os princípios concretizantes, que tem por finalidade dar efetividade aos princípios estruturantes são os princípios da prioridade absoluta, da participação popular, da descentralização político-administrativa, da desjurisdicialização, da despolitização, da humanização e da ênfase nas políticas sociais básicas.

Tais princípios visam não somente o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, mas o alcance da prioridade no tratamento de questões que promovam seu bem-estar. Para tanto, a recepção da legislação pátria da Teoria da Proteção Integral obrigou o desenvolvimento de política públicas voltadas para esta área, em ação conjunta com a sociedade, família e Estado (VERONESE, 2006, p.10).

De acordo com a autora, a Teoria da Proteção Integral implica a admissão da infância e adolescência como prioridade imediata e absoluta, resguardando seus direitos fundamentais, traz o princípio do melhor interesse da criança, cabendo à família garantir-lhe proteção, ressaltando ainda o papel importante da comunidade, que tem o dever de intervir e ser responsável para com as crianças e adolescentes, decorrendo a criação de Conselhos Tutelares. O Ministério Público, conjuntamente, constitui instrumento que assegure tais direitos (VERONESE, 2006, p. 10).

Conforme Reis (2015, p. 23), “o substrato teórico inicial da proteção integral começa a se desenvolver a partir da compreensão da infância enquanto construção social”. Faz-se necessário reconhecer a infância e as crianças como sujeitos concretos, inseridos em determinados contextos políticos, sociais e econômicos, e não a partir da identificação da criança como, simplesmente, uma “miniatura de adulto”, em que a criança só está sendo preparada para a vida adulta.

Desta forma, “a proteção integral tem como suporte os direitos fundamentais, fundados na dignidade humana e na perspectiva da cidadania”. A construção desta teoria é resultado de um processo histórico que reconheceu a própria infância e a criança como detentora de direitos específicos (REIS, 2015, p. 22). Para Custódio (2009, p. 48), “a dignidade humana exige a negação da violência ou da banalização do mal, reconhecendo princípios inerentes à própria condição humana”, sendo que esta construção ocorre por meio da relação com as pessoas, na ação e solidariedade. O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 15 expressa o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade conferidas às crianças e adolescentes como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais plenamente garantidos na Constituição Federal e nas leis.

Anterior a teoria da proteção integral, vigia a doutrina da situação irregular a qual se limitava a tratar de crianças que se enquadrava num modelo pré-estabelecido de situação irregular, conforme disposto pelo Código de Menores de 1979, onde sua atuação era segregatória, que consistia em levar as crianças em “situação irregular” para internatos ou para institutos de detenção mantidos pela FEBEM - Função Estadual Do Bem-Estar do Menor. Não havia preocupação com a manutenção de vínculos familiares (AMIN, 2009 apud REIS, 2015, p. 54).

Conforme Veronese e Vieira (2006, p. 37), “desde a Doutrina do Direito Penal do Menor até a Doutrina da Situação Irregular vigorou no Brasil um modelo parcial de normatividade, isso é, regulava-se apenas uma parte da população infanto-juvenil: os menores abandonados, carentes e infratores”.

Deste modo, a legislação esquecia-se da grande parcela de crianças e adolescentes do país. Não se pensava que crianças e adolescentes necessitavam do aparato legal para garantir-lhes dignidade, proteção e prioridade no atendimento às suas necessidades e por isso minimizava-se a relevância desses indivíduos no contexto social. A ruptura com a situação irregular, é o elemento essencial para incorporação da Teoria da Proteção Integral que foi um marco no reconhecimento sociojurídico dirigido à infância e à juventude (VERONESE; VIEIRA, 2006, p. 37).

Assim, os princípios e normas existem para efetivar a garantia dos direitos de crianças e adolescentes frente as arbitrariedades existentes na sociedade e por parte do Estado. Com o advento da proteção integral, de acordo com Reis (2015, p. 74) “toda criança ou adolescente com idade inferior ao limite etário permitido pela Constituição Federal, que realiza atividade econômica ou não, estarão protegidos pelas disposições legais protetivas, incluindo-se o trabalho infantil nos meios de comunicação”. O que revela ainda compreender as normativas nacionais e internacionais existentes para resguardar direitos inerentes a esses indivíduos.


4. A PROTEÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E NACIONAL CONTRA A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL

A proteção contra o trabalho infantil está presente em normativas nacionais e internacionais, uma vez que o assunto requer o cuidado necessário a fim de preservar direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Sob esta perspectiva Pereira (2017, p. 6) afirma a importância da educação e da escola na formação e desenvolvimento de crianças e adolescentes:

Além da família, a escola é também uma instituição que exerce forte influência no desenvolvimento das crianças e adolescentes. Além de ser o local da comunidade onde se encontra uma grande parcela de crianças e adolescentes em “relação” durante a maior parte do tempo de suas vidas, ela é também a grande responsável pela mediação entre eles e a sociedade. A escola, junto com a família, permite a humanização e a educação; permite a construção da autonomia e o sentimento de pertença ao grupo social. E, à medida que as crianças e adolescentes apropriam-se dos modelos e valores transmitidos por ela, deixam de imitar e ter como referência somente os pais. É papel da escola não apenas transmitir informações, como também formar cidadãos. Em outras palavras, além de avaliar se os alunos estão aprendendo ou não, é função da escola compreender qual é o conhecimento que está sendo adquirido, qual a aplicabilidade desse conhecimento, quais os subsídios que o ensino oferece ao indivíduo para enfrentar melhor a vida e quais as contribuições na formação da sua autoimagem.

Para a autora, a educação e o convívio na escola permite às crianças e adolescentes a construção da autonomia, a humanização e a educação, proporcionando a formação adequada de sua autoimagem. A educação e a oportunidade de convívio com seus pares, traz o sentimento de pertença a um grupo e de percepção do eu e do nós.

Quando a criança se volta para o mundo do trabalho, muitas vezes abandonando a escola, ou não a usufruindo de maneira intensa, tendo em vista o desgaste e cansaço fruto do trabalho, essa identidade de ser criança vai se perdendo, causando confusões sobre os espaços que ocupa. A educação no espaço escolar possui o papel de formar cidadãos, por isso é tão importante sua vivência neste local de aprendizado e trocas.

Com o intuito de resguardar a infância e a adolescência, permitindo seu pleno desenvolvimento, existem várias normativas legais, entre elas está a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, a Consolidação das Leis do Trabalho e as Convenções números 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

No âmbito constitucional a proteção à criança e ao adolescente encontra respaldo no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que trata do dispositivo que remete à teoria da proteção integral, onde dispõe:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).

A Constituição Federal de 1988 incorporou a doutrina da Proteção Integral, pela qual a criança passa a ser vista como cidadão e sujeitos de direitos, com proteção específica e prioritária. No que se refere especificamente ao trabalho infantil a Constituição Federal em seu artigo 7º, inciso XXXIII estabelece a vedação de “qualquer trabalho a pessoas com idade inferior a 16 anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos” (BRASIL, 1988).

A idade mínima de 16 anos foi determinada a partir de 1998 com a emenda nº 20 à Constituição Federal, de 15 de dezembro de 1998, que elevou a idade mínima de 14 anos para 16 anos. Em 15 de fevereiro de 2002 o Brasil ratificou a Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho – OIT por meio do decreto Presidencial nº 4.134, cuja Convenção estabelece a idade mínima de 15 anos para o trabalho e introduziu a possibilidade do trabalho infantil artístico (ALBUQUERQUE, 2003, p. 61).

A Organização Internacional do Trabalho - OIT, que estabelece normativas no âmbito internacional possui os seguintes objetivos principais de acordo com Albuquerque (2003, p. 34):

Promover e materializar as normas laborais, assim como os princípios e direitos fundamentais no trabalho; criar maiores oportunidades para as mulheres e homens que assegurem um emprego digno; aumentar a cobertura e eficácia da proteção social para todos e fortalecer a representação tripartite e o diálogo social.

Considerando os objetivos da OIT apontados, bem como o ideal de proteção social, o trabalho infantil permitido antes da idade mínima é, de certa forma, uma afronta a Constituição Federal do Brasil, cuja norma é a que se sobrepõe as demais, e ao princípio da proteção integral. Por isso que o trabalho infantil é bastante criticado e há estudos que apontam a sua inadequação e consequências negativas para o desenvolvimento da criança e do adolescente, conforme exposto neste trabalho.

Quanto a proteção vislumbrada no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 sobre o trabalho infantil temos a idade mínima para o trabalho aos 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos de idade. O trabalho noturno, perigoso e insalubre é vedado a todos os menores de 18 anos de idade, conforme artigo 60 do ECA (VERONESE, 2006, p. 49).

Destaca-se as palavras de Veronese (1999, p. 100), onde afirma que a Lei n. 8.069/90 significou para o Direito infanto-juvenil uma verdadeira revolução ao adotar a doutrina da proteção integral, trazendo a convicção de que crianças e adolescentes são merecedores de direitos inerentes e especiais, tendo em vista sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, passando da posição de “menores” para a de cidadãos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece os direitos fundamentais da pessoa humana disposto em seu art. 4º que evoca que as crianças e adolescentes têm como direitos fundamentais: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, bem como assegura oportunidades e facilidades para permitir seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, 1990).

O Estatuto ainda traz em seu capítulo “Do direito à profissionalização e à Proteção no Trabalho”, outras normas protetivas referentes a crianças e adolescentes, as quais enfatizam a necessidade do cuidado, do olhar diferenciado a esses sujeitos de direitos.

O artigo 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente traz a proibição do trabalho para menores de dezesseis anos. A redação do artigo 62 considera como aprendiz aquele com idade entre quatorze e dezesseis anos que querem adquirir conhecimentos profissionais e o dispositivo 63 vem normatizar a formação técnico profissional que deve obedecer aos princípios: da garantia de acesso e frequência obrigatória ao ensino regular, atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente e horário especial para o exercício das atividades (BRASIL, 1990).

O ECA ainda enfatizou a proteção aos adolescentes para o trabalho, estabelecendo condições de respeito a peculiaridade de pessoa em desenvolvimento, bem como sua adequada capacitação profissional ao mercado de trabalho (BRASIL, 1990).

A partir dessa gama de dispositivos garantistas e protetivos, entende-se que o ECA é um instrumento importante para se valer desses direitos, onde o Estado, família e sociedade conjuntamente é quem pode ensejar a eficácia das normas e a criação e efetividade das políticas públicas voltadas para a defesa de crianças e adolescentes, visando gradativamente diminuir o número de trabalho infantil no Brasil.

A Consolidação das Leis do Trabalho com a finalidade de proteger as relações de trabalho e os envolvidos nesta relação, garante a proibição do trabalho infantil em seu artigo 403. Impõe ainda, que o trabalho não poderá ser prejudicial ao adolescente, não extrapolando os horários de aula e nem o colocando em exposição (BRASIL, 1943).

O artigo 404 da CLT proíbe o trabalho noturno aos menores de 18 anos, compreendidos entre às vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte. O artigo 405 veda o trabalho em lugares perigosos, insalubres ou nocivos à moral da criança e adolescente, sendo o trabalho infantil artístico um trabalho considerado prejudicial (BRASIL, 1943).

O artigo 407 do mesmo diploma legal demonstra a preocupação do legislador com a saúde do adolescente e seu desenvolvimento físico e moral, podendo desta forma ser forçado a deixar o trabalho ou obrigado o empregador a lhe transferir de setor, caso a atividade laborativa comprometa a sua saúde (BRASIL, 1943).

Outa proteção normativa elencada na CLT, artigo 412, é o intervalo intrajornada não inferior a 11 horas. No que tange as horas extraordinárias de adolescentes, traz-se algumas ressalvas:

I - Até mais 2 (duas) horas, independentemente de acréscimo salarial, mediante convenção ou acordo coletivo nos termos do Título VI desta Consolidação, desde que o excesso de horas em um dia seja compensado pela diminuição em outro, de modo a ser observado o limite máximo de 48 (quarenta e oito) horas semanais ou outra inferior legalmente fixada;

II - Excepcionalmente, por motivo de força maior, até o máximo de 12 (doze) horas, com acréscimo salarial de, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) sobre a hora normal e desde que o trabalho do menor seja imprescindível ao funcionamento do estabelecimento (BRASIL, 1943).

Os referidos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho, diploma legal que protege as relações trabalhistas, conforme verificado, busca salvaguardar o ingresso ao trabalho, limitando a idade para sua ocorrência, bem como preservar a infância e a educação, tutelando e regendo sobre as diferenças para o trabalho àqueles que são maiores de 16 anos, ou maiores de 14 anos na condição de aprendiz e menores de 18 anos.

No aspecto da proteção internacional ao trabalho infantil, tem-se a OIT – Organização Internacional do Trabalho, que foi criada em 28 de abril de 1919 com o objetivo de controlar as normas referentes ao trabalho no mundo. A OIT possui duas Convenções importantes para a erradicação do trabalho infantil, são elas as Convenções nº 138 e nº 182. A primeira regula a idade mínima de admissão ao emprego e a segunda estabelece a vedação das piores formas de trabalho infantil.

A Convenção nº 138 da OIT foi editada em 1973 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 4.134/2002 e traz no seu art. 1º o comprometimento dos países-membros de trabalharem para garantir a abolição do trabalho infantil e elevarem progressivamente a idade mínima para o trabalho (BRASIL, 2002).

O art. 2º da supracitada normativa infere que “a idade mínima fixada nos termos do § 1º deste artigo não será inferior à idade de conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer hipótese, não inferior a 15 anos”. Neste mesmo viés, o artigo seguinte demonstra a preocupação com a saúde de adolescentes impondo limite de 18 anos se o trabalho a ser desenvolvido for prejudicial a sua saúde (BRASIL, 2002).

Segundo Custódio (2006, p. 166) o núcleo da Convenção nº 138 fundamenta-se em três pontos fundamentais: “a) política nacional de abolição ao trabalho infantil; b) elevação (fixação) progressiva da idade mínima; c) garantia ao pleno desenvolvimento físico e moral”.

A Recomendação n 146 da OIT editada conjuntamente com a Convenção nº 138 diz que além da idade mínima estipulada é preciso haver também políticas públicas para efetivar os direitos de crianças e adolescentes. Segundo Silveira (2009, p. 58) “garantir a escolarização é zelar pelos direitos da criança e do adolescente”, sendo portanto a educação uma das medidas que gera efetividade na erradicação do trabalho infantil, por isso a orientação de que a frequência à escola de tempo integral ou a participação em programas de orientação profissional ou de formação deveria ser obrigatória e efetivamente garantida, no mínimo, até a idade mínima de admissão ao emprego, de acordo com a Recomendação nº 146, item 4 da OIT (BRASIL, 2002).

A referida recomendação preconiza em seu item 12 que é necessário tomar medidas para que as condições de emprego ou de trabalho das crianças e dos adolescentes menores de 18 anos alcancem um nível satisfatório, com necessária vigilância estrita nessas condições. O item 13 avança para informar a especial atenção:

a) à fixação de uma remuneração justa e sua proteção, segundo o princípio de salário igual para trabalho igual; b) à rigorosa limitação das horas diárias e semanais do trabalho e à proibição de horas extras, de modo a permitir tempo suficiente para o ensino ou a formação profissional (inclusive o tempo necessário para as tarefas escolares de casa), para o descanso durante o dia e para atividades de lazer; c) à garantia, sem possibilidade de exceções, salvo em caso de urgência, de um descanso noturno de, pelo menos, doze horas consecutivas, além dos dias habituais de descanso semanal; d) à concessão de férias anuais remuneradas de, pelo menos, quatro semanas e, em qualquer hipótese, jamais de duração inferior à dos adultos; e) à cobertura de planos de seguridade social, que inclua acidentes de trabalho, planos de assistência médica e de benefícios por doenças, não importando as condições do emprego ou trabalho; f) à manutenção de padrões satisfatórios de segurança e de higiene, e instrução e vigilância apropriadas (BRASIL, 2002).

Tais garantias de proteção abrangem a necessidade da condição de criança e de adolescentes em processo de desenvolvimento.

A Convenção nº 182 da OIT, editada em 1999 pelo Decreto nº 3.597/2000, é um conjunto de normas com a finalidade de eliminar as piores formas de trabalho. O seu art. 3º informa o que abrange as piores formas de trabalho, conforme segue:

a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados;

b) a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas;

c) a utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização para a realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais com definidos nos tratados internacionais pertinentes; e,

d) o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças (BRASIL, 2000).

Atentando-se para a letra ‘d’ do dispositivo, se verifica que trata justamente da proteção ao trabalho infantil artístico, o qual traz consequências para a saúde e moralidade das crianças principalmente, podendo afetar-lhe a saúde a longo prazo (BRASIL, 2000).

No mesmo norte, a Recomendação nº 190 da Organização das Leis do Trabalho informa em seu inciso II, item 1, a respeito do trabalho perigoso que é importante levar em consideração e ter especial atenção para os trabalhos em que as crianças ficam expostas a abusos de ordem física, psicológica e moral; trabalho subterrâneos, submersos, em altura ou locais confinados; trabalho com máquinas, equipamentos e ferramentas perigosas ou que impliquem a manipulação ou transporte manual de cargas pesadas; realizados em meio insalubre, expostos a processos perigosos ou a temperaturas, níveis de ruídos prejudicais a saúde; trabalho realizado em condições difíceis, com horários prolongados ou noturnos, ou trabalhos que retenham injustificadamente a criança no trabalho (BRASIL, 2000).

Tais convenções e recomendações, como se vê visam preservar a infância e a adolescência no âmbito internacional no que diz respeito ao trabalho, limitando a idade para o trabalho e prevendo condições para a sua realização a partir da idade mínima em condições adequadas, que garantam o pleno desenvolvimento físico, moral, educacional e em termos de saúde.

Todas as normativas abrangidas neste trabalho estão postas para que se preserve os direitos das crianças e dos adolescentes e seu descumprimento implica em responsabilização aos infringentes.


5. AS AUTORIZAÇÕES PARA O TRABALHO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES FRENTE O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Em nosso ordenamento jurídico pátrio há normativa que autoriza o trabalho infantil com o atendimento a algumas prerrogativas. A Consolidação das Leis do Trabalho prevê a possibilidade do trabalho infantil com autorização judicial. Esta previsão traz grandes indagações no que diz respeito a efetiva proteção à criança e ao adolescente, tendo em vista o princípio da proteção integral.

A CLT prevê em seu artigo 406 que o juiz poderá autorizar a criança ou adolescente o trabalho em teatros de revista, cinema, ou ambientes análogos, bem como em empresas circenses, desde que, a representação tenha fim educativo ou a peça de que participe não possa ser prejudicial à sua formação moral e que se certifique ser a ocupação indispensável à própria subsistência ou à de seus pais, avós ou irmãos e não advir nenhum prejuízo à sua formação moral (BRASIL, 1943).

O Estatuto da Criança e Adolescente também dispõe acerca da possibilidade de alvarás judiciais para a participação de crianças em espetáculos públicos e seus ensaios, em seu artigo 149, levando-se em consideração os princípios contidos no Estatuto, as peculiaridades do local, a existência de instalações adequadas, o tipo de frequência habitual ao local, a adequação do ambiente a eventual participação ou frequência de crianças e adolescentes, bem como a natureza do espetáculo (BRASIL, 1990).

Traz ainda o ECA no § 2º do art. 149 que, as medidas adotadas deverão ser fundamentadas, caso a caso, sendo proibidas as autorizações de carácter geral, ou seja, cada contrato, espetáculo ou peça deverá ter a sua autorização individual (BRASIL, 1990).

A Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, em seu artigo 8º permite a participação infanto-juvenil em representações artísticas, por meio de permissões individuais da autoridade competente, sendo que referidas permissões deverão limitar o número de horas do emprego ou trabalho autorizadas e prescrever as condições em que este será realizado (BRASIL, 2002).

O questionamento que se faz diante da permissão do trabalho infantil artístico firmada nas legislações apontadas é: De fato, as permissões imbuídas de condições que “não firam o desenvolvimento físico e intelectual de crianças e adolescentes” por si só impedem que os direitos inerentes a esses sujeitos sejam garantidos?

Custódio e Reis (2014, p. 15) trazem que o artigo 406 da CLT não pode servir de fundamento para a concessão de autorizações judiciais, uma vez que não há amparo neste dispositivo, o qual enfatiza o cunho educativo, que não se vislumbra em atividade inteiramente econômica, que se trata do trabalho infantil artístico. A referência de que a ocupação seja indispensável à própria subsistência da criança ou da família rompe com a teoria da proteção integral, visto que é inaceitável transferir às crianças ou adolescentes a responsabilidade da família, sociedade e Estado.

O posicionamento dos autores é pela violação à Constituição Federal e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, como se observa:

A autorização para o trabalho de crianças que não estão na condição de aprendizes, tampouco possuem a idade mínima de dezesseis anos, para realizarem atividades profissionais em uma empresa privada, que explora a atividade econômica artística, na condição de empregados subordinados, nos moldes da legislação trabalhista, nada mais é que a violação da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (CUSTÒDIO; REIS, 2014, p. 15).

Reis (2015, p. 72) no mesmo sentido, compreende que atividade econômica se configura como trabalho, e este trabalho desenvolvido por crianças e adolescentes nos meios de comunicação é uma atividade econômica não confundindo a existência de caráter educativo ou pedagógico nesta atividade, por que não há.

Enfatiza a autora que a interpretação dada ao dispositivo 406 da CLT é um equívoco que acaba permitindo a exploração do trabalho de crianças e adolescentes pelo poder judiciário, com o aval da família. Considerando ainda, que é preciso estabelecer um conceito jurídico que defina o trabalho infantil nos meios de comunicação, para que ações possam advir para o seu combate (REIS, 2015, p. 103-104).

Para Santos (2008, p. 6) “o trabalho artístico faz parte do mercado de trabalho. Quem o desenvolve, compra ou vende trabalho”. São os adultos quem faz da arte um meio de despertar a emoção estética, a crítica social, a reflexão, ou a diversão das pessoas. A criança não, sua manifestação é espontânea e não visa despertar qualquer emoção ou a comunicação, mas quer reparar seus sofrimentos e confortá-los. Desta maneira, as razões da criança não se confundem com as de um adulto.

As condições para a expedição de alvará judicial são muito subjetivas, requerendo um olhar apurado do julgador ao estabelecer o grau de adequação para cada um dos itens julgados e, mais ainda, para acompanhar a permanência da adequação no período em que a criança ou o adolescente estará prestando serviços, o que parece um desafio ao Poder Público.

Neste diapasão, discorre Santos (2013, p. 14), que a após a concessão das autorizações chegou ao fim a função do judiciário, sem que haja efetiva fiscalização, acompanhamento das atividades a que são submetidas crianças e adolescentes, bem como averiguação do recebimento de direitos trabalhistas, já que nesta condição excepcionalmente. A falta de vigilância abre as portas para exploradores de mão de obra infantil, que extrapolam limites. Faltando a efetiva fiscalização e controle, por parte do Estado e ainda da sociedade, a afronta ao princípio da proteção à criança e ao adolescente é ainda maior e mais grave.

Por fim, não se pode reconhecer os caminhos percorridos pelo judiciário ao interpretar equivocadamente as normas, ademais a regra contida no 406 da CLT deve-se considerar revogada pelo efeito do disposto no art. 7º, XXXIII da Constituição Federal de 1988 que traz a vedação de qualquer trabalho antes dos limites legais vigentes.


6. CONCLUSÃO

Ao fim deste trabalho, ratifica-se a importância de se debater assuntos relacionados ao trabalho infantil no Brasil, com destaque ao trabalho infantil artístico, pois não é reconhecido por grande parte da sociedade como trabalho infantil, imbuído de consequências negativas.

Os números de trabalho infantil trazidos na introdução nos rodeiam e nos oprimem. Embora esteja decaindo, é um número muito elevado se comparado com as várias normativas existentes de proteção à criança e ao adolescente, que tem por finalidade resguardar a infância e permitir o pleno desenvolvimento desses cidadãos de direitos. Assim, tem-se a necessidade de se expandir as formas de fiscalização, bem como as políticas públicas voltadas à erradicação do trabalho infantil. E mais que isso, verificou-se que é necessária melhor distribuição de renda e investimento de qualidade na educação do país.

A gama de consequências ao trabalho infantil demonstradas neste artigo causa grande impacto, pois nos remete a responsabilidade que não se está tendo com nossas crianças e adolescentes brasileiras, visto o grande número de crianças e adolescentes que estão realizando trabalho antes da idade mínima aferida pela Constituição Federal e, muitas vezes, em condições degradantes e negligentes. Não se pode fechar os olhos para isso.

O trabalho infantil artístico, embora não pareça ser um trabalho que cause qualquer prejuízo, constitui trabalho e levam as mesmas consequências que outro trabalho infantil e, até mesmo, em pior grau, dependendo das condições que a criança é exposta.

Desta maneira, conclui-se que qualquer alvará judicial que autorize o trabalho infantil, seja artístico ou não, está em desacordo com os ditames da Constituição Federal de 1988, que traz o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes, dispondo que devem ser tratadas com especial proteção e prioridade absoluta.

Compreende-se que a família, a sociedade e o Estado devem trabalhar juntos para que, de fato, não se coloque crianças e adolescentes em posições que não são inerentes às suas condições peculiares de pessoas em desenvolvimento, que ao contrário do que é feito, devem ser protegidas, acalentadas e terem o direito de viver sua infância. Protegendo a infância estamos protegendo o futuro do pais, com adultos melhores psicologicamente, fisicamente e intelectualmente.


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