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A dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos.

Hipótese de excludente ou atenuante de responsabilidade civil e de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do direito

A dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos. Hipótese de excludente ou atenuante de responsabilidade civil e de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do direito

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O estudo aborda a dúvida jurídica razoável e a sua importância para impedir a caracterização de ilicitude ou para atenuar-lhe a intensidade, do que decorrem a exclusão ou a redução das sanções jurídicas.

Resumo: O estudo aborda a dúvida jurídica razoável e desenvolve conceitos ora batizados de “cindibilidade dos efeitos da ilegalidade” e de “ilegalidades legítima e ilegítima”, com o objetivo de demonstrar que a adoção de uma interpretação possível da norma não pode ser reprimida apenas por conta de, posteriormente, o órgão oficialmente competente ter escolhido outra interpretação. Com base nisso, o estudo demonstra que, nesse ambiente de dúvida jurídica razoável, deve ser considerada indevida a produção de efeitos jurídicos desproporcionais, como a condenação ao pagamento de indenizações por danos (responsabilidade civil), a aplicação de sanções administrativas a agentes públicos (como as feitas por órgãos de controle em matéria de licitações e de contratos) etc. O estudo trata de vários casos concretos, como o relativo ao cabimento ou não da condenação de um shopping a pagar indenização por dano moral a um transexual que foi impedido de acessar o banheiro feminino. Esse tema está atualmente pendente de julgamento no STF. Trata, também, da discussão candente que houve acerca do cabimento ou não da redução interpretativa feita pelo Senado Federal no sentido de infligir a sanção de impeachment a um Presidente da República no ano de 2016, sem impor-lhe concomitantemente a pena de cassação de direitos políticos por oito anos. O estudo demonstra que a cindibilidade dos efeitos jurídicos de uma ilegalidade diante de um cenário de dúvida jurídica razoável deve ser aplicada em todos os ramos do Direito. O estudo lembra que, no processo civil, ao lado da fungibilidade recursal, há a modulação dos efeitos da jurisprudência, do que dá exemplo o fato de o STJ ter admitido como tempestivo recurso interposto com base em interpretação que, posteriormente à data da interposição, foi superada. O estudo também critica alguns julgados do STJ que, apoiando-se em princípios, considerou ilícitas condutas de particulares baseadas na interpretação literal do texto de lei e de contratos. A crítica não se deveu ao fato de o STJ ter feito interpretações com base em princípios. Isso é plenamente viável, pois direito é fato, valor e norma. A crítica decorreu da falta de empatia do STJ em ignorar o cenário de dúvida jurídica razoável e de, por meio da cindibilidade dos efeitos jurídicos, afastar sanções desproporcionais, como a indenização por dano moral. Esse foi o caso de um condômino que se baseou na convenção de condomínio para instalar uma padaria e o caso da instituição financeira que se valeu da ação de busca e apreensão diante do inadimplemento de uma prestação de um financiamento feito para a aquisição de um veículo. O estudo elogia, por outro lado, julgados do STJ que se valeu da dúvida jurídica razoável para afastar a responsabilidade civil, a exemplo do caso de negativas de coberturas de tratamento médico-assistencial feitos por planos de saúde com base em um cenário de dúvida jurídica razoável. Ao final, o estudo aponta que, embora as conclusões ora desenvolvidas possuam forte suporte teórico, há espaços a serem aprimorados na legislação para evitar interpretações diversas entre os operadores do Direito, de modo que convém a edição de projetos de lei que promovam ajustes no art. 186 do Código Civil e no art. 38 da Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016.

Palavras-chave: dúvida jurídica razoável, dúvida objetiva, cindibilidade dos efeitos jurídicos, Miguel Reale, teoria tridimensional do direito, culturalismo jurídico, hermenêutica, interpretação, boa-fé, segurança jurídica, legalidade, Estado de Direito, processo administrativo disciplinar, controle externo e interno na Administração Pública, impeachment, responsabilidade civil, indenização.

Sumário:1.  INTRODUÇÃO.2.  A DÚVIDA JURÍDICA RAZOÁVEL NO  CENÁRIO INCERTO DA NATUEZA JURÍDICA . 2.1.   Da natureza incerta do Direito.2.2.   Da ilegalidade legítima e a ilegalidade ilegítima: o dilema entre boa-fé e legalidade diante da dúvida jurídica razoável .2.3.   da cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima: o juízo de correlação de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade legítima e a intensidade dos efeitos jurídicos.2.4.   Da instância competente para escolher a interpretação vitoriosa: necessidade de uniformização. 3.  A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos nos vários Ramos do Direito. 3.1. Direito penal: a configuração do crime e o caso do impeachment da presidente da república em 2016 .3.2. Direito Administrativo: sanções administrativas, controle externo, caso da advocacia privada por membro da agu, improbidade administrativa, repetição de indébito de valores pagos e convalidação de nomeação sem concurso público.3.3. Processo Civil: fungibilidade recursal e modulação dos efeitos de mudança de jurisprudência.  4.  A Dúvida Jurídica Razoável como Excludente ou Atenuante de Responsabilidade Civil. 4.1. A violação de direito como requisito para a responsabilidade civil.4.2. a dúvida jurídica razoável como excludente total ou parcial (atenuante) de responsabilidade civil. 4.3. Casos concretos..4.3.1. Acesso a banheiro feminino por transexual..4.3.2. Dano moral a condômino perturbado pelo funcionamento de uma padaria na loja do vizinho com fundamento na supressio (Crítica a julgado do STJ). 4.3.3. Dano moral por negativa de cobertura médico-assistencial por plano de saúde com base em dúvida jurídica razoável (STJ). 4.3.3. Equívoco na condenação de credor fiduciária a servir-se da ação de busca e apreensão (crítica a julgado do STJ) . 5.  CONCLUSÃO.


1. INTRODUÇÃO

É justo um Shopping ser condenado a pagar indenização por dano moral em favor de um pessoa transexual que foi obstruída de ingressar no banheiro feminino pelo fato de seu gênero registral ser masculino, considerando que o fato ocorreu em um momento de falta de clareza das normas acerca das normas de uso de banheiro por transexuais?

É correto que um agente público, sem dolo ou fraude, seja punido administrativamente por ter praticado um ato administrativo com base em uma interpretação jurídica razoável da norma que, posteriormente, veio a ser rejeitada pelo órgão de controle?

Foi juridicamente válida a decisão do Senado Federal de, em 2016, diante de um crime de responsabilidade, segregar a pena de impeachment da cassação de direitos públicos após ter entendido estar configurado um crime de responsabilidade por parte do Presidente da República?

Há várias outras questões igualmente controversas que, a nosso sentir, estão carentes de análises jurídicas mais adequadas. Buscaremos, ainda que seja com uma modesta centelha de ideias, contribuir para preencher essa lacuna.

Desde a minha graduação, inquieta-me o tema objeto deste estudo. Inicialmente, eu não conseguia nominar essa preocupação; ainda estava começando os estudos jurídicos. Cuidava-se de um sentimento de que havia uma grande injustiça em punir indivíduos que, em meio a um rosário de sentidos possíveis de uma norma, escolhia uma que veio a ser, no futuro, derrotada no Poder Judiciário ou em algum órgão administrativo competente.

A certeza jurídica prévia deveria ser uma meta de todo jurista. É fundamental que as regras do jogo sejam claras de antemão. Isso é um pressuposto do Estado de Direito. Percebi, porém, que o Direito, por sua própria natureza incerta, jamais poderá fornecer essa previsibilidade perfeita. A atividade do intérprete sempre pode surpreender.

Com ciência disso, passei a investigar se o Direito disporia de alguma ferramenta para, ao menos, atenuar consequências punitivas desproporcionais ao indivíduo que adotou uma interpretação que foi, posteriormente, vencida pela instância competente para dar a palavra final. Essa investigação tem me acompanhado ao longo da minha trajetória profissional e acadêmica, com experiência nos Três Poderes da República e nas advocacias pública e privada.

O presente estudo reúne reflexões que foram resultantes de todo esse percurso. A abordagem, porém, é feita de modo mais direto e objetivo e, em determinados pontos, com certa superficialidade, porque a sua complexidade reivindicaria tranquilamente um trabalho de centenas de páginas.

Em suma, o presente estudo trata da dúvida jurídica razoável como um elemento que deve ser levado em conta pelo jurista no momento de julgar a situação daquele indivíduo que, sem ter uma clareza da norma jurídica diante da existência de múltiplas interpretações possíveis, tem o dever de arriscar na escolha de uma delas.

O tema é pouco explorado nos estudos contemporâneos de Direito, mas, neste estudo, busca-se demonstrar a extrema utilidade e atualidade do tema.

Demonstra-se que a dúvida jurídica razoável deve ser tida como uma hipótese de exclusão (ou, no mínimo, de atenuação) da responsabilidade civil e também de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do Direito.


2. A DÚVIDA JURÍDICA RAZOÁVEL NO  CENÁRIO INCERTO DA NATUEZA JURÍDICA

2.1.     Da natureza incerta do Direito

Norma é texto e contexto.

Recásens Siches – que apregoava não ser a lógica do Direito a do racional, e sim a da razoável – fornece notável exemplo disso ao tratar do caso clássico da norma que proíbe a entrada de animais em um ambiente. Por esse exemplo, Siches evidencia que mesmo uma norma bem redigida admite interpretações que vão além da sua letra fria. Para o célebre jurista, se uma norma textualmente estabelece que “é proibida a entrada de animais”, haveria diversas possibilidades de interpretação. Caso um jovem quisesse adentrar o ambiente com o seu cachorro de estimação, a interpretação mais adequada daquela norma seria no sentido de barrar-lhe o ingresso. Caso, porém, uma pessoa com deficiência visual pretenda entrar no ambiente com o seu cão-guia, a mesma norma deveria ser interpretada de modo diverso, para admitir o ingresso do animal, levando em conta o espírito da norma, que respeita valores jurídicos relevantes como o do acessibilidade em favor das pessoas com deficiência. Na lição de Recásens Siches, o Direito é circunstancial, como toda obra humana[2].

A clareza do comando de uma norma não é obtida com a mera leitura do seu texto, pois todo texto permite mais de um sentido possível, conforme lições comezinhas de hermenêutica. Há constantes disputas entre os hermeneutas para fazer prevalecer a sua interpretação e, nesses embates, a vitória de um sentido sempre estará vulnerável diante de alterações na pessoa incumbida de interpretar e nas próprias condições fáticas que circunda o hermeneuta[3]. Isso justifica o fato de os órgãos colegiados dos tribunais testemunharem inúmeros julgamentos obtidos sem unanimidade dos julgadores. Isso também explica as não invulgares mutações jurisprudenciais nos Tribunais após a alteração da composição do quadro de julgadores ou após o advento de um novo contexto fático da sociedade. Mudam-se os julgadores, transformam-se os valores, altera-se o quadro social e, também, frequentemente, modifica-se a interpretação de uma mesma norma.

A natureza do Direito é incerta. A previsibilidade cartesiana e inequívoca não lhe é uma fiel irmã. A sua previsibilidade sempre é enevoada pela instabilidade da condição humana dos hermeneutas e pela feição amorfa da própria matéria-prima do Direito.

Não há como pretender extrair interpretações apodíticas e unívocas da matéria-prima do Direito, pois uma interpretação triunfante em um determinado contexto histórico poderá ser condenada, com veemência, em uma nova realidade.

A teoria do conhecimento jurídico (ontognoseologia jurídica) de Miguel Reale sublinha essa natureza. Como sintetiza o notável civilista Flávio Tartuce[4], a ontognoseologia jurídica do pai do Código Civil de 2002 enxerga o Direito sob dois aspectos: um objetivo e um subjetivo.

Sob o aspecto subjetivo (que diz respeito a quem interpreta a norma), Reale desenvolve o culturalismo jurídico, para afirmar que o operador do Direito, ao oferecer a sua interpretação da norma, é inevitavelmente influenciado por sua cultura, história e experiência. Nas palavras de Tartuce, “não restam dúvidas de que o julgador leva para o caso prático a sua história de vida, a sua cultura – formadora do seu caráter –, e, principalmente, as suas experiências pessoais, nas atribuições de magistrado ou fora delas. Os acontecimentos que repercutiram na sociedade também irão influir nos futuros posicionamentos jurisprudenciais, havendo nesse ponto uma valoração ideológica”[5].

Sob o aspecto objetivo (que se refere ao objeto de trabalho do jurista), o saudoso civilista costurou a teoria tridimensional do direito, segundo a qual a matéria-prima do Direito é fato, valor e norma, e não apenas a letra fria do texto da norma.

Em outras palavras, o jurista, ao se deparar com o desafio de aplicar uma norma a um caso concreto, terá de fazer escolhas entre as múltiplas opções possíveis. A depender do operador do Direito (ou seja, a depender de sua história, cultura e experiência), ele dará uma interpretação. E mais. O jurista não se restringirá ao texto da lei na sua tarefa, mas também haverá de consultar os fatos e os valores vigentes no seu momento para dar uma solução jurídica.

Essa natureza inexata da ciência jurídica justifica a inquietante constatação de um mesmo caso concreto ser solucionado de modo diverso (e até mesmo antagônico) por diferentes julgadores.

Isso também justifica as mudanças de orientações jurisprudenciais que assustam os juristas: a Corte Maior de um País pode mudar sua interpretação jurídica em razão da alteração de sua composição de julgadores (culturalismo jurídico) e do contexto (teoria tridimensional do Direito).

Já está superado, de há muito, a noção formalista vigente à época do Código Civil napoleônico, no sentido de que o juiz (rectius, o jurista) é meramente a boca da lei. O crime de exegese já não encontra o mínimo conforto no cenário jurídico atual: não se pode punir o jurista por divergências de interpretações.

Em suma, o Direito não se resume à lei escrita e, a depender da história, cultura e experiência pessoais do jurista que o opera, poderá oferecer soluções diversas a um mesmo caso concreto.

É nesse contexto que se compreende a crítica do jurista Eros Roberto Grau ao reducionismo do Direito à lei. Disso deu notícia o notável Ministro Gilmar Mendes em sua homenagem a Eros Roberto Grau[6], in verbis:

À força das palavras, Eros Grau somou o poder da luta efetiva com as armas da lei e do Direito para alcançar a sonhada Justiça – sem dúvida, o melhor de todos os argumentos. Por quatro décadas fez da Advocacia a trincheira de onde torpedeou desde a ilegalidade ao normativismo vazio. Volto a citá-lo, de maneira a melhor fruir da pureza só obtida na própria fonte:

Que me perdoem os estudiosos que tomam a norma escrita, positiva, como objeto único de suas indagações. Isso é pouco e demasiado pobre para mim. Prefiro os desafios mais amplos, ainda que irresolúveis, a ocultar-me na cidadela do normativismo.

Uma teoria crítica supõe a concepção do direito não apenas como norma, mas como conjunto de preceitos enraizados nas condições de vida material, preceitos que as representam de maneira deformada, ideologicamente. Uma teoria crítica é uma teoria voltada à transformação do mundo. Eis o que me motiva e me conduziu até aqui. Viemos ao mundo para marcar os nossos próprios pés na areia inexplorada.

Pensar e refletir criticamente não apenas sobre o direito, mas sobre o mundo. Mundo em transformação, mundo que necessita, para que se possa transformar, do dinamismo de um direito também em transformação.

Esse, o direito instrumento de mudança social, o direito que me cumpre ensinar, porém, mais do que isso, que me proponho estudar. Direito que há de ser resolvido em suas bases, mediante o profundo questionamento das teorias que o sustentam. Dele pouco sei. Menos, porém, por certo, do que dele saberei amanhã. O compromisso, que assumo, de perseverar a pesquisar e a refletir sobre o direito, assumo-o comigo mesmo.

Uma teoria crítica supõe a concepção do direito não apenas como norma, mas como conjunto de preceitos enraizados nas condições de vida material, preceitos que as representam de maneira deformada, ideologicamente. Uma teoria crítica é uma teoria voltada à transformação do mundo. Eis o que me motiva e me conduziu até aqui. Viemos ao mundo para marcar os nossos próprios pés na areia inexplorada.

Pensar e refletir criticamente não apenas sobre o direito, mas sobre o mundo. Mundo em transformação, mundo que necessita, para que se possa transformar, do dinamismo de um direito também em transformação.

Esse, o direito instrumento de mudança social, o direito que me cumpre ensinar, porém, mais do que isso, que me proponho estudar. Direito que há de ser resolvido em suas bases, mediante o profundo questionamento das teorias que o sustentam. Dele pouco sei. Menos, porém, por certo, do que dele saberei amanhã. O compromisso, que assumo, de perseverar a pesquisar e a refletir sobre o direito, assumo-o comigo mesmo.”[7]

A perplexidade com essa fluidez da norma jurídica é tamanha que o juiz federal George Marmelstein Lima ironiza os julgamentos de vários órgãos superiores, ao identificar que, neles, costuma vigorar “a teoria da Katchanga, já que ninguém sabe ao certo quais são as regras do jogo. Quem dá as cartas é quem define quem vai ganhar, sem precisar explicar os motivos”[8].

2.2.     Da ilegalidade legítima e a ilegalidade ilegítima: o dilema entre boa-fé e legalidade diante da dúvida jurídica razoável

Diante da imprecisão própria da ciência jurídica, cabe ao operador do Direito ter posição cautelosa no julgamento de condutas, pois eventual violação de uma interpretação jurídica não é sinônima de má-fé.

Quando o destinatário da norma jurídica opta por uma interpretação jurídica viável, não se lhe pode impingir a nódoa da má-fé em razão de, futuramente, a sua alternativa hermenêutica não ter prevalecido no âmbito de instâncias julgadoras oficiais.

Mera discordância de uma interpretação jurídica futuramente vitoriosa não é uma sinonímia da má-fé ou do desvio de caráter.

De fato, a interpretação jurídica que prevalecer definirá o que é ou não legal. A legalidade é definida pela interpretação vitoriosa. As interpretações vencidas serão reunidas sob o manto da ilegalidade. Quem se amparou nessa interpretação vencida será rotulado como ilegal. E é aí que o jurista precisa ter a sensibilidade de, reconhecendo a natureza incerta do Direito, admitir que a ilegalidade não necessariamente corresponderá à má-fé, especialmente quando houver um cenário de dúvida jurídica razoável.

Se a interpretação vencida contava com razoabilidade à luz da comunidade jurídica, da história do direito e da tradição da sociedade, ela caracterizará uma situação de dúvida jurídica razoável (ou de dúvida objetiva), a qual afasta a existência de má-fé. De fato, a boa-fé objetiva exige o respeito à legítima expectativa dos indivíduos e condena a traição dessa confiança com surpresas. A dúvida jurídica razoável cria um cenário de legítima expectativa nos indivíduos, que, confiando na legitimidade de uma interpretação razoável, não pode ser estigmatizado com a pecha da má-fé.

O indivíduo não pode ser punido se se estribou em uma interpretação razoável que veio a ser vencida posteriormente. É absurdo puni-lo por falta de dons de vidência. Não lhe comete fazer exercício de futurologia para vaticinar qual será a interpretação que futuramente o órgão competente irá adotar. O indivíduo que se ampara em uma interpretação razoável nessa hipótese não incorre em má-fé e, se for possível dizer que ele cometeu algum erro de interpretação, esse erro, no mínimo, deve ser considerado um erro plenamente escusável, pois não lhe socorria o dom da vidência para adivinhar qual interpretação viria a, no futuro, sagrar-se vencedora.

Ao nosso sentir, para efeito de nomenclatura, designamos de ilegalidade qualquer contrariedade à interpretação vitoriosa. A ilegalidade, porém, pode ser classificada em legítima e ilegítima. Será legítima, quando a contrariedade à interpretação vitoriosa estiver amparada em uma outra intepretação que, apesar de vencida, era razoável (dúvida jurídica razoável). A ilegalidade será ilegítima, porém, se inexistir dúvida jurídica razoável a favor.

A ilegalidade legítima, porque está ancorada em dúvida jurídica razoável, afasta a má-fé, pois a vitória de uma entre várias interpretações razoáveis deve ocorrer com respeito ao princípio da confiança, que protege a legítima expectativa dos indivíduos.

2.3.     da cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima: o juízo de correlação de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade legítima e a intensidade dos efeitos jurídicos

Como já dito, se há dúvida jurídica razoável, a ilegalidade é aqui designada de legítima e, nessa condição, não insinua má-fé, pois apenas corresponde a uma intepretação razoável que foi derrotada perante o órgão competente para dar a palavra final.

A dúvida jurídica razoável não é um conceito absoluto; pode ser escalonada em graus de intensidade. Embora não haja um termômetro cirúrgico para essa medição, a prudência do jurista poderá aquilatar esse grau de intensidade da dúvida jurídica razoável com olhos no nível de amparo que as interpretações encontram na comunidade jurídica, na história do direito e na tradição da sociedade.

O grau de dúvida jurídica razoável dirá também o grau de ilegalidade que terá as interpretações que vierem a ser vencidas.

Se, por exemplo, a interpretação vencida era escorada em jurisprudência pacificada dos Tribunais Superiores, o grau de dúvida jurídica razoável era altíssimo. A mudança de entendimento dos Tribunais Superiores, derrotando uma interpretação anteriormente pacífica, entregará essa interpretação vencida a uma situação de ilegalidade legítima. Essa ilegalidade, diante do elevado grau da dúvida jurídica razoável, é de intensidade baixíssima.

Quanto menor o grau da ilegalidade legítima menores devem ser as sanções jurídicas daí decorrentes. É nesse contexto que o jurista, em um juízo de proporcionalidade, deve analisar quais os efeitos jurídicos da ilegalidade legítima podem ser irradiados.

 Se a ilegalidade era de intensidade baixíssima diante um cenário de dúvida jurídica razoável, seria desproporcional admitir a produção de efeitos jurídicos punitivos drásticos, mas seria proporcional acatar os efeitos jurídicos de baixa repercussão contra quem confiou em um interpretação razoável que foi vencida. De fato, em uma situação de grau baixíssimo de ilegalidade legítima, temos que praticamente nenhum efeito sancionador deverá ser produzido, pois, nessa situação, a dúvida jurídica era tão grande que a própria existência de uma norma jurídica pode ser questionada. Afinal de contas, norma é texto e contexto: se o contexto é extremamente turvo, a norma é incompleta.

Em um exemplo extremo, seria desproporcional punir, com prisão, quem, no século XVIII, impedia um negro de entrar em um ambiente, embora possa ser proporcional impor-lhe um dever de abster-se a reiterar essa prática doravante. Isso, porque, naqueles tempos sombrios de escravidão, a comunidade jurídica brasileira era majoritária no sentido de negar direitos aos negros. Embora esse fato (obstrução do negro a adentrar um estabelecimento) possa ser considerado ilegal atualmente – e repugnante! –, os efeitos jurídicos desse fato devem ser cindidos e, em seguida, devem ser submetidos a um juízo de proporcionalidade próprio com olhos no grau de dúvida jurídica razoável que imperava sobre o tema no século XVIII.

Com base nesse juízo de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade e a intensidade dos efeitos jurídicos, o jurista precisa individualizar a análise de cada um desses efeitos e negar a produção daqueles efeitos que se afigurem desproporcionais. Os efeitos jurídicos da ilegalidade podem ser cindidos; trata-se do que designamos de “cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima”.

Por essa razão, o jurista, ao enfrentar a árdua tarefa de interpretar o Direito, deve ter a prudência de, após eleger a sua alternativa hermenêutica, investigar quais são as soluções efetivas que poderão ser aplicadas ao caso concreto, com a postura humilde e empática de reconhecer que, em um cenário de razoável dúvida hermenêutica, será injusto infligir duras punições a quem adotou, em momento anterior, uma opção hermenêutica diferente.

2.4.     Da instância competente para escolher a interpretação vitoriosa: necessidade de uniformização

Reconhecendo a Babel em que mergulharia a sociedade com a coexistência de interpretações diversas de uma mesma norma, o Estado de Direito elege órgãos com competência para definir a intepretação que deve prevalecer.

No âmbito da Administração Pública, há vários agentes públicos com competência para decidir a interpretação jurídica dentro do seu âmbito de atribuições. Havendo conflito entre eles, a uniformização é feita pela prevalência da interpretação do agente público hierarquicamente superior. Há, ainda, a participação de órgãos administrativos de controle interno e externo que ingressam nessa disputa hermenêutica no seio da Administração Pública, impondo a sua interpretação com a ameaça de punições disciplinares. O Ministério Público também ocupa papel relevante nesse ambiente de concorrência multitudinária de interpretações possíveis, valendo-se de ferramentas coercitivas extrajudiciais (como as famosas “Recomendações”) e judiciais (como as ações civis públicas, as ações de improbidade administrativa e as ações penais)[9].

Nessa profusão de interpretações devidas, o Estado de Direito elege o Poder Judiciário como a última instância competente para dar a interpretação final, que prevalecerá sobre aquela dada por outro Poder. E, dentro do Poder Judiciário, o colorido mosaico hermenêutico também estará presente diante da possibilidade de haver divergências entre os diversos magistrados, de maneira que, por meio do sistema recursal e de outros mecanismos processuais, caberá essencialmente aos Tribunais superiores uniformizar a interpretação.

Como se vê, na tentativa de obter um monodiscurso normativo – que é essencial para garantir previsibilidade para os indivíduos –, o Estado de Direito necessita criar um arranjo complexo e vasto de instâncias destinadas à interpretação em uma estrutura que canalize para uma uniformização de interpretação por um único órgão competente.

3. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos nos vários Ramos do Direito.

Diante da natureza inexata do Direito, entendemos que a ilegalidade legítima – assim entendida aquela contrariedade à interpretação normativa vitoriosa que esteja amparada em uma dúvida jurídica razoável – afasta a má-fé e, em consequência, impõe ao jurista o dever de proceder à cindibilidade dos efeitos jurídicos a serem produzidos. Nesse procedimento de “cindibilidade dos efeitos jurídicos”, o jurista deverá realizar um juízo de proporcionalidade entre o grau da ilegalidade legítima e a intensidade dos efeitos jurídicos para somente admitir a produção daqueles efeitos que sejam considerados proporcionais.

Há inúmeros exemplos desse princípio geral de direito.

3.1. Direito penal: a configuração do crime e o caso do impeachment da presidente da república em 2016

No Direito Penal, por exemplo, afasta-se o crime se a regra não era clara, ainda que sob o rótulo do instituto do erro de direito. A consequência penal é muito grave para ser irradiado nesse caso.

Ainda no Direito Penal, o Brasil conheceu um curioso caso envolvendo o impeachment da Presidente da República Dilma Rousseff por crime de responsabilidade. O Senado Federal, no exercício da sua competência constitucional de interpretar o parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal,  entendeu que a melhor interpretação a ser adotada é a de que a perda do cargo de Presidente da República (impeachment) pode ser aplicada sem necessariamente infligir a pena pessoal de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. O Senado Federal cindiu esses dois efeitos jurídicos punitivos em relação ao crime de responsabilidade imputado à Presidente Dilma.  

Na nossa leitura dos fatos, temos que o Senado Federal, após reconhecer que as chamadas “pedaladas fiscais” tipificariam um crime de responsabilidade, acabou reconhecendo que a má-fé da Presidente nessa prática não era tão robusta assim, pois essa prática era costumeiramente praticada por governantes anteriores. É como se houvesse um cenário de dúvida jurídica razoável em torno da configuração do crime.

Nesse sentido, o Senado Federal promoveu uma cisão dos efeitos da conduta ilícita sob um critério de razoabilidade: admitiu o impeachment por entender que a Presidente Dilma não tinha condições de continuar governando o país, mas não acatou a aplicação de uma punição estritamente pessoal, que era a pena de inabilitação para o exercício público, pois a má-fé dela foi tida por atenuada diante do contexto de relativa dúvida jurídica razoável que rondava em torno da ilicitude das pedaladas fiscais.

O impeachment é uma sanção que envolve interesse institucional, ao passo que a perda de direitos políticos é uma punição que envolve interesse meramente individual da pessoa da Presidente Dilma e que a privaria de exercer atividades profissionais de interesse privado por oito anos. Toda norma é sujeita a interpretações. E a gravidade ou a existência de dúvida razoável na tipificação da conduta autorizam o intérprete a fazer reduções interpretativas, quando necessário, mediante um juízo de proporcionalidade.

O Senado escolheu uma entre outras possíveis do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal para aceitar a cindibilidade dos efeitos jurídicos do crime de responsabilidade pelo Presidente da República em situações como a ora relatada. Essa manobra é - a nosso sentir - plenamente admissível no âmbito da Ciência Jurídica, que se guia pela lógica do razoável, e não pela do racional, na lembrança de Recaséns Siches.

Por fim, alerte-se: em nenhum momento, este texto está a afirmar que a solução adotada foi a melhor ou a pior! Não estamos a externar nossa opinião acerca da legitimidade ou não do impeachment no caso concreto. Esse não é o mérito do presente texto. Aqui, está-se a tratar de uma etapa prévia a essa discussão de mérito; está-se a cuidar da dúvida jurídica razoável, da ferramenta hermenêutica que designamos de “cindibilidade dos efeitos da ilicitude” e da lembrança de que o Direito não se reduz à subserviência à frieza do texto da lei, pois Direito é “texto e contexto”.

3.2. Direito Administrativo: sanções administrativas, controle externo, caso da advocacia privada por membro da agu, improbidade administrativa, repetição de indébito de valores pagos e convalidação de nomeação sem concurso público

No Direito Administrativo, sanções administrativas são afastadas quando o enquadramento típico vacila nas asas da dúvida razoável.

Assim, o Tribunal de Contas da União (TCU) não pode aplicar multa ao gestor que praticou ato com base em uma interpretação obtida em um cenário de dúvida jurídica razoável. O TCU já admitiu isso, alegando que a dúvida jurídica razoável configuraria uma hipótese de erro escusável do gestor, que, inclusive, havia se amparado em parecer jurídico favorável da procuradoria. Confira-se este excerto de um julgado dessa corte administrativa:

“7.11. Se não se pode acolher como regular o procedimento adotado pelo órgão para manter a proposta mais vantajosa à Administração, pode-se, no mínimo, acolhê-lo como erro escusável, ao menos em relação à própria Administração e ao erário, diante de uma dúvida jurídica razoável, que ensejou inclusive parecer favorável da procuradoria, afastando-se, com isso, a culpabilidade dos responsáveis.” (TCU, Acórdão 320/2009 – Plenário, Processo nº 002.014/2006-4, Rel. Min. José Jorge, Data da Sessão 04/03/2009)

Aliás, é por essa razão que as normas só autorizam responsabilização do advogado público, do magistrado, defensores públicos e do membro do Ministério Público nos casos de dolo ou fraude, pois não se lhes pode punir por uma interpretação razoável adotada, especialmente em uma situação de dúvida jurídica razoável (art. 38, § 2º, da Lei nº 13.327/2016; art. 143, I, 181, 184 e 187 do CPC; e art. 40, Lei nº 13.140/2015). O velho crime de exegese não pode ser ressuscitado.

A propósito, a Advocacia-Geral da União (AGU), com base na dúvida jurídica razoável, deixou de punir um procurador da fazenda nacional que exerceu a advocacia privada durante o gozo de licença para trato de assuntos particulares. É que a Lei Orgânica da AGU proíbe a advocacia privada, mas não especifica se essa vedação se estende a quem está em licença sem vencimento (ou seja, a quem não está no exercício do cargo). Nessa ocasião, a AGU absolveu o procurador diante da dúvida jurídica razoável e, no mesmo ato, dissipou essa dúvida, entendendo que a vedação alcança quem está em gozo de licença (Despacho do Advogado-Geral da União que aprovou parcialmente o Parecer nº 06/2009/MP/CGU/AGU). A partir dessa decisão, quem fosse advogar em licença não poderia mais alegar dúvida jurídica razoável. Seja como for, a questão é tão controversa que, anos depois, assumiu um novo chefe da AGU e mudou o entendimento, de modo a passar a autorizar essa advocacia privada durante a licença para trato de assuntos particulares (Despacho do Advogado-Geral da União em 15 de abril de 2010, processo nº 00400.0232223/2009-89).

Outrossim, a advocacia em causa própria por membros da Advocacia-Geral da União foi admitida apesar de a Lei Orgânica da AGU vedar o exercício da advocacia. Isso, porque, em uma análise da lei escrita em conjunto com os fatos e os valores (teoria tridimensional do Direito), não se encontra qualquer razão de justiça para vedar a advocacia em causa própria nessa hipótese.

Ainda no Direito Administrativo, agredirá o senso básico de Justiça ceifar a vida funcional de um indivíduo, impondo-lhe as pesadas sanções decorrentes da Lei de Improbidade Administrativa por uma conduta que não se enquadrou na interpretação jurídica adotada a posteriori por um Tribunal. É nesse contexto que se entende a interpretação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de que ilegalidade não é sinônimo de improbidade[10].

É ainda nessa esteira que pacificou o entendimento de que não cabe repetição de indébito de remunerações indevidamente percebidas por servidores com base em divergência de interpretações normativas, se havia boa-fé. A propósito, o STJ é bem esclarecedor neste julgado:

“1. A discussão dos autos visa definir a possibilidade de devolução ao erário dos valores recebidos de boa-fé pelo servidor público, quando pagos indevidamente pela Administração Pública, em função de interpretação equivocada de lei.

2. O art. 46, caput, da Lei n. 8.112/90 deve ser interpretado com alguns temperamentos, mormente em decorrência de princípios gerais do direito, como a boa-fé.

3. Com base nisso, quando a Administração Pública interpreta erroneamente uma lei, resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de que os valores recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra desconto dos mesmos, ante a boa-fé do servidor público.” (STJ, REsp 1244182/PB, 1ª Seção, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 19/10/2012)

Por fim, o STF já admitiu até mesmo a convalidação de nomeação de empregados públicos sem concurso público diante da existência de dúvida jurídica razoável acerca da exigibilidade do certame público[11]. O caso concreto envolvia contratações de pessoal sem concurso público no âmbito de uma empresa pública, a Infraero. A exigibilidade de concurso público para empresas públicas era objeto de dúvida jurídica razoável até o advento de acórdão do STF no Mandado de Segurança nº 21.322, publicado em 23/04/1993. Antes desse julgamento, a controvérsia doutrinária era séria e razoável diante do aparente conflito entre o art. 37, II, e o art. 173, § 1º, da Constituição Federal. Em suma, o STF entendeu que as contratações feitas pela Infraero sem concurso público antes do julgamento do referido mandado de segurança deveriam ser convalidadas em respeito ao cenário de dúvida jurídica razoável que existia. É isso que se infere da leitura dos votos, os quais, embora não façam alusão direta ao conceito de dúvida jurídica razoável, evocam-no indiretamente ao tratar do princípio da segurança jurídica. Ressalva-se também que, nesse caso concreto, havia outros fatores além da dúvida jurídica razoável, como a existência de um processo seletivo rigoroso feito pela Infraero (não era concurso, porém) e o fato de o Tribunal de Contas, em um primeiro momento, ter consentido indiretamente com essas contratações. Segue a ementa do referido julgado do STF:

“Mandado de Segurança.

2. Acórdão do Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária - INFRAERO. Emprego Público. Regularização de admissões.

3. Contratações realizadas em conformidade com a legislação vigente à época. Admissões realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão anterior do TCU.

4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança.

5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente.

6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público.

7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista.

8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações dos impetrantes.

9. Mandado de Segurança deferido.”

(STF, MS 22357, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 05-11-2004)

3.3. Processo Civil: fungibilidade recursal e modulação dos efeitos de mudança de jurisprudência

No Direito Processual Civil, a dúvida jurídica razoável preserva recursos de cabimento duvidoso em nome da princípio da fungibilidade recursal e autoriza a modulação dos efeitos da jurisprudência no tempo (art. 942, § 3º, do CPC). Aliás, essa possibilidade de modulação dos efeitos da jurisprudência já é admitida há algum tempo na jurisprudência. O STJ, por exemplo, ao seguir o STF para mudar o seu entendimento quanto ao termo inicial do prazo recursal para o Ministério Público (MP) – data do recebimento do feito na repartição, e não mais do “ciente” do membro do MP –, protegeu quem, antes dessa mudança jurisprudencial, havia recorrido com base no entendimento antigo. Isso, porque havia dúvida jurídica razoável na parte recorrente, que dificilmente imaginaria que o STJ mudaria a sua interpretação da legislação (STJ, HC 28.598/MG, 5ª T., Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 01/08/2005).


4. A Dúvida Jurídica Razoável como Excludente ou Atenuante de Responsabilidade Civil

4.1. A violação de direito como requisito para a responsabilidade civil

A responsabilidade civil, em regra, decorre da violação de um direito. É a interpretação conjunta dos arts. 186 e 927 do CC.

O art. 186 do CC reputa ilícito o ato que, violando um direito, cause dano a outrem com culpa – culpa em sentido amplo, a qual abrange também o dolo. Para esse ilícito, exigem-se três requisitos: dano, culpa e violação de direito. Quem derruba uma casa (dano) propositalmente (culpa em sentido amplo) não comete ato ilícito se foi contratado para tanto pelo proprietário da casa (não há violação de direito). Essa regra do art. 186 do CC decorre do princípio do neminem laedere – também batizado de princípio do alterum non laedere ou de princípio da incolumidade das esferas jurídicas –, que estabelece que ninguém deve lesar outrem e que foi extraído desta milenar definição de Ulpiano no antigo Direito Romano: “Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere” (os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu).

O art. 927 do CC, apontando um dos efeitos do art. 186 do CC, aponta que o ato ilícito gerará o dever de indenizar, porque houve dano.

Há exceções a essa regra. Um ato lícito pode gerar dever de indenizar. Mas isso é excepcional e depende de lei expressa, a exemplo dos casos dos arts. 929, 930 e 1.285 do CC. Essa situação excepcional não é o foco deste estudo.

4.2. a dúvida jurídica razoável como excludente total ou parcial (atenuante) de responsabilidade civil

Como a violação de direito é essencial para a caracterização do ato ilícito no Direito Civil (art. 186 do CC), é fundamental que a regra jurídica seja clara de antemão. Isso decorre do princípio da legalidade, que só vincula as pessoas a leis prévias, e do princípio da segurança jurídica, que prestigia a nitidez das normas. Isso é um pressuposto do Estado de Direito. Se a norma textual é de duvidosa interpretação (dúvida razoável), o jurista deverá averiguar o grau de dúvida jurídica que ronda a definição da norma diante dos casos concretos, de modo a, por um juízo de razoabilidade, afastar consequências jurídicas que sejam desarrazoadas.

No Direito Civil, a dúvida jurídica razoável também pode afastar ou, a depender do seu grau, atenuar a responsabilidade civil, por ser injusto punir o particular em um cenário causado pelo próprio Estado, que não deixou as regras claras. Se a dúvida jurídica razoável for de intensidade elevada, entendemos que a responsabilidade civil deve ser totalmente excluída. Se, porém, a intensidade de dúvida não for tão elevada, seria cabível admitir parcialmente a responsabilidade civil, pois o requisito da “violação de direito” (art. 186, CC) estaria presente apenas em parte. A consequência desse acolhimento parcial da responsabilidade civil é a redução proporcional do valor da indenização.

A falta de clareza normativa é um problema do Estado e do sistema democrático, de modo que o particular não pode ser punido por, diante dessa névoa normativa, ter adotado uma interpretação que posteriormente foi rechaçada pelos tribunais. Enquanto a dúvida jurídica razoável não for dissolvida, não se pode punir os particulares com sanções jurídicas desproporcionais. É claro que, depois que os tribunais se manifestarem sobre um determinado caso, a dúvida jurídica razoável estará dissolvida ou atenuada. O problema, porém, é como tratar os particulares envolvidos nos casos paradigmáticos que geraram a jurisprudência. Não se os pode punir por terem adotado uma via hermenêutica razoável que, posteriormente, foi recusada pelos tribunais.

Os particulares não podem ser sacrificados em prol dos demais, que se beneficiarão com o fim da dúvida jurídica razoável. Isso acontece quando os tribunais, diante de uma situação de dúvida jurídica razoável, escolhem uma interpretação e pune o indivíduo que, antes da pacificação hermenêutica, teve o azar de abraçar uma interpretação vencida. Em situações como essas, o particular envolvido no leading case é entregue em holocausto vicário em favor dos demais indivíduos, que, cientes da interpretação vencedora, saberão qual interpretação a adotar. Isso é injusto. O particular envolvido no leading case não pode ser punido com sanções desproporcionais. Temos que a responsabilidade civil não pode ser usada para transformar particulares em “bois de piranha hermenêuticos”, em um “mártir hermenêutico” ou em “bocas de canhão hermenêuticas”.

Quanto aos que sofreram danos, eles não podem exigir indenização de quem agiu sob dúvida jurídica razoável, pois aí falta o requisito da violação de direito exigida para a caracterização do ato ilícito. Se alguém deveria pagar a indenização, seria o legislador – que não deixou as regras do jogo claras –, mas, como vige o regime da sua irresponsabilidade e como isso decorre de falhas no sistema democrático, nada há a fazer. Em última instância, a situação de lacuna normativa é culpa de todos os indivíduos, que não exerceram adequadamente o seu poder democrático diretamente ou por meio de seus representantes. Omissão normativa do Estado não pode recair sobre os ombros do homem comum, do “the man on the Clapham bus”[12], que, sem formação jurídica, tem de enfrentar um anuviado ambiente de dúvida jurídica razoável e arriscar escolher uma interpretação razoável.

Apesar de poder afastar ou atenuar a responsabilidade civil, a dúvida jurídica razoável poderá não afastar consequências civis menos gravosas, como a de originar uma obrigação de não fazer daqui para frente. O intérprete pode e deve modular os efeitos da interpretação da norma mesmo no Direito Civil, avaliando, sob a ótica da razoabilidade, que consequências civis são razoáveis. O art. 942, § 2º, do CPC, que prevê essa modulação dos efeitos de interpretações jurisprudenciais, não deve ser aplicado apenas no caso de mudanças de jurisprudências pacificadas, mas também no caso de pacificação de questões inéditas ao redor do qual pairavam dúvidas jurídicas razoáveis.

Em reforço ao exposto, a própria previsão de anulabilidade do negócio jurídico por erro de direito (art. 138, III, do CC) é o reconhecimento de que o ordenamento jurídico protege o particular atarantado por um clima de dúvida jurídica razoável. O que propomos aqui é a extensão disso para outras consequências jurídicas, como a responsabilidade civil, a depender de um juízo de proporcionalidade entre o grau da dúvida jurídica e a gravosidade da consequência jurídica civil disponível.

Portanto, a depender de grau de intensidade da dúvida jurídica razoável, o requisito “violação do direito” previsto no art. 186 do CC deve ser tido por total ou parcialmente descaracterizado, e, em consequência, a responsabilidade civil deve ser excluída total ou parcialmente (atenuada, com redução proporcional do valor da indenização).

4.3. Casos concretos

4.3.1. Acesso a banheiro feminino por transexual

Como exemplo, temos que, enquanto não for pacificada a discussão jurídica pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário nº 845.779 (atualmente com pedido de vista), parece-nos indevido condenar estabelecimentos comerciais a pagar dano moral a transexual que foi impedido de usar o banheiro feminino, quando o gênero constante de seus documentos de identificação apontava para o sexo masculino. No caso concreto, o STF está a analisar se um Shopping deve ou não pagar dano moral a transexual que, por meio de um segurança, foi impedido de adentrar o banheiro feminino pelo fato de seu documento de identidade indicar o sexo masculino. Por enquanto, dois ministros estão tendentes a reformar o acórdão do tribunal local para condenar o Shopping a pagar indenização no valor de R$ 15.000,00.

O tema acerca do uso do banheiro por transexuais ainda é controverso. A tradição jurídica até o presente momento é no sentido de vedar uso de banheiros por quem não tenha, formalmente, o gênero pertinente, levando em conta os dados constantes dos registros públicos. A própria formatação arquitetônica do banheiro é feita levando em conta o gênero biológico das pessoas. Como se vê, há dúvida jurídica razoável sobre esse tema.

No próprio Judiciário, o tema está controverso, pois, no caso concreto supracitado, o Tribunal local negou a existência de ilicitude da conduta, o que demonstra que a própria comunidade jurídica está seriamente dividida quanto à ilicitude da obstrução do transexual. Parece desproporcional que, em um cenário como esse, em que os próprios juristas estão divididos, considerar que o particular violou o direito (art. 186, CC) e, por isso, deve pagar indenização.

Temos que o cenário de dúvida jurídica razoável acerca do tema deve livrar os estabelecimentos da sanção grave da responsabilização civil (obrigação de indenizar), embora não os deva isentar do dever de, doravante, passar a agir em consonância com o eventual entendimento do STF que venha a prestigiar o gênero psíquico em detrimento do registral (obrigação de fazer ou de não fazer). Em outras palavras, seria até possível entender que, enquanto houver dúvida jurídica razoável, a conduta de barrar o transexual a adentrar o banheiro feminino é ilícita[13], mas daí não se poderão extrair efeitos jurídicos desproporcionais, como o da condenação ao pagamento de indenização por dano moral. No caso concreto, é desproporcional tomar o Shopping como “mártir hermenêutico” ou como “boca de canhão hermenêutico”, punindo-o com indenização por dano moral, com o objetivo de orientar os demais particulares acerca da interpretação jurídica que deve prevalecer.

Em resumo, no caso presente, em razão da dúvida jurídica razoável, convém promover a cindibilidade dos efeitos jurídicos, de modo a, sob um juízo de proporcionalidade, afastar a condenação ao pagamento de indenização, mas admitir a imposição de uma obrigação de não fazer doravante, após a pacificação da jurisprudência (ou seja, após o fim do cenário de dúvida jurídica razoável). A recusa de banheiro para transexual pode ser considerada ilícita (ilicitude legítima), mas, diante da dúvida jurídica razoável, daí não se poderiam extrair efeitos graves (como uma condenação a indenizar danos morais ou uma sanção penal), embora se possa admitir efeitos menos severos (como uma obrigação de não fazer).

Futuramente, após a superveniência de entendimento do STF, a dúvida jurídica será razoável.

4.3.2. Dano moral a condômino perturbado pelo funcionamento de uma padaria na loja do vizinho com fundamento na supressio (Crítica a julgado do STJ)

O STJ, ao nosso sentir, se equivocou quando condenou o dono de uma padaria a pagar R$ 15.000,00 a título de indenização de dano moral em favor de um vizinho que morava em um apartamento do mesmo condomínio e que sofria com os ruídos provocados de madrugada pelas máquinas da padaria (REsp 1096639/DF, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 12/02/2009).

Nesse caso, havia uma convenção condominial que era textual em prever a destinação exclusivamente comercial pelos condôminos. Acontece que, por muitos anos, o vizinho dava destinação residencial, violando o texto da convenção. Com base nisso, o STJ proibiu a padaria de ligar as máquinas de madrugada (obrigação de não fazer) e a pagar indenização por dano moral no valor de R$ 15.000,00 ao morador, pois, em nome da supressio, era direito do vizinho morar no imóvel e exigir dos demais condôminos o respeito às regras próprias de condomínios de destinação mista (residencial e comercial), como o silêncio na madrugada. A nosso sentir, o dono da padaria estava diante de uma dúvida jurídica razoável: o texto da convenção de condomínio era nítido em protegê-lo. É desproporcional impor-lhe o pesado ônus de arcar com indenização por ter seguido um caminho hermenêutico razoável. A decisão do STF se baseou em princípios (o da boa-fé objetiva, do qual decorre a supressio), que, por sua natureza, são de subjetividade e volatilidade inegáveis. Ao nosso aviso, o STJ deveria ter afastado a condenação por dano moral por força da dúvida jurídica razoável (que afasta a ilicitude do art. 186 do CC para esse efeito), embora pudesse condenar a padaria a uma obrigação de não fazer (abster de ligar as máquinas de madrugada doravante). O STJ deveria ter impresso efeito ex nunc ao seu entendimento que debelou a dúvida jurídica razoável: doravante a destinação mista do condomínio deve ser observada.

4.3.3. Dano moral por negativa de cobertura médico-assistencial por plano de saúde com base em dúvida jurídica razoável (STJ)

O STJ entende que, embora a negativa indevida de cobertura médico-assistencial por plano de saúde possa caracterizar dano moral como regra geral, há exceção na hipótese de existir um cenário de dúvida jurídica razoável. Assim, se houver dúvida jurídica razoável acerca da interpretação das normas legais e das cláusulas contratuais, a conduta da operadora de eleger ume interpretação razoável para negar a cobertura ao consumidor não caracteriza o requisito da “violação de direito” de que trata o art. 186 do CC e, por isso, não credencia a responsabilização civil por danos sofridos pelo consumidor. Convém a transcrição do seguinte excerto deste julgado:

“11. Em regra, a recusa indevida pela operadora de plano de saúde de cobertura médico-assistencial gera dano moral, porquanto agrava o sofrimento psíquico do usuário, já combalido pelas condições precárias de saúde, não constituindo, portanto, mero dissabor, ínsito às hipóteses correntes de inadimplemento contratual.

12. Há situações em que existe dúvida jurídica razoável na interpretação de cláusula contratual, não podendo ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, a conduta de operadora que optar pela restrição de cobertura sem ofender, em contrapartida, os deveres anexos do contrato, tal qual a boa-fé, o que afasta a pretensão de compensação por danos morais.

13. Não há falar em dano moral indenizável quando a operadora de plano de saúde se pautar conforme as normas do setor. No caso, não havia consenso acerca da exegese a ser dada ao art. 10, incisos I e V, da Lei nº 9.656/1998.

14. Recurso especial parcialmente provido.”

(STJ, REsp 1632752/PR, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, DJe 29/08/2017)

Um outro caso curioso procede do STJ também. Atualmente, a jurisprudência do STJ é pacificada no sentido de que é nula a cláusula de contrato de plano de saúde que exclui a cobertura de stent. Não há dúvida jurídica razoável sobre isso atualmente. Se algum plano de saúde negar essa cobertura com base em cláusula contratual nula, cometerá ato ilícito, pois o tema já é pacificado. Todavia, em um caso concreto analisado pelo STJ, estava-se a analisar o cabimento ou não da condenação de um plano de saúde a pagar dano moral por ter, em época anterior à pacificação da jurisprudência, negado a cobertura de stent com base em uma cláusula contratual. Nesse caso concreto, o STJ entendeu que não cabia a condenação, porque, à época da negativa, havia dúvida jurídica razoável sobre a validade ou não de cláusulas que excluíssem as stents do âmbito de cobertura dos planos de saúde. A dúvida jurídica razoável aí decorre de uma cláusula contratual controvertida. Confira-se a ementa esclarecedora do julgado:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE COBERTURA. DEVER DE INDENIZAR. CLÁUSULA CONTRATUAL CONTROVERTIDA.

1. O mero descumprimento de cláusula contratual controvertida não enseja a condenação por dano moral.

2. Embora a jurisprudência tenha posteriormente se consolidado no sentido da invalidade de cláusula que exclua a cobertura de stent, no caso em exame, a circunstância de o contrato não ter sido adaptado à Lei 9.656/98 emprestava, na época em que ocorridos os fatos, relevância à discussão travada pelo réu, tese acolhida pelo relator originário da apelação 3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no REsp 1457475/MG, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 16/09/2014, DJe 24/09/2014)

Como se vê, o STJ já tem admitido que a dúvida jurídica razoável exclua a responsabilidade civil diante da falta do requisito “violação de direito”, previsto no art. 186 do CC.

4.3.3. Equívoco na condenação de credor fiduciária a servir-se da ação de busca e apreensão (crítica a julgado do STJ)

O STJ condenou uma instituição financeira (que era credora fiduciária) a pagar indenização por dano moral em razão de ter conseguido a busca e apreensão de um veículo alienado fiduciariamente em razão do inadimplemento de apenas uma das vinte e quatro prestações do financiamento. O STJ, à época, entendia que era aplicável a teoria do adimplemento substancial para impedir a busca e apreensão de veículos alienados fiduciariamente quando o devedor fiduciante tivesse incorrido em inadimplência após ter pago uma quantidade expressiva de prestações. O STJ mudou o entendimento e atualmente rejeita essa teoria em casos de busca e apreensão para não tornar inúteis as garantias reais (STJ, REsp 1622555/MG, 2ª Seção, Rel. Ministro Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 16/03/2017).

Temos por atécnica a decisão supracitada do STJ que condenou o banco a pagar indenização por dano moral. Ainda que se pudesse considerar que a teoria do adimplemento substancial fosse aplicável para impedir a busca e apreensão de veículos diante do inadimplemento de apenas a última das 24 prestações de um financiamento, o fato é que o credor fiduciário se amparou, no mínimo, em uma situação de dúvida jurídica razoável. A definição do que era adimplemento substancial era controverso. E mais: a própria teoria do adimplemento substancial não tem assento expresso no texto da lei, mas decorre de princípios, de formulação doutrinária e, sobretudo, da análise de cada caso concreto. Temos, assim, que, ainda que se pudesse impedir a busca e apreensão mediante a aplicação da teoria do adimplemento substancial, consideramos desproporcional punir o credor fiduciário ao pagamento de indenização por dano moral.

Temos que aí era o caso de aplicar a cindibilidade dos efeitos da ilegalidade diante da dúvida jurídica razoável e do juízo de proporcionalidade. Embora a conduta do banco de ajuizar a ação de busca e apreensão possa ser considerada ilícita à luz do entendimento que vigorava na época, somente deveria ter sido admitida, como efeito dessa ilegalidade[14], a improcedência do pedido, de modo que o efeito drástico da condenação a pagar dano moral deveria ter ser afastado diante do fato de que a dúvida jurídica razoável afastaria um dos requisitos da responsabilidade civil: a violação de direito (art. 186, CC).

Decisões judiciais baseadas em princípios devem ter a humildade e a empatia de reconhecer que os indivíduos não possuem clareza em identificar as regras procedentes da massa subjetiva e amorfa dos princípios, razão por que, em situações como essa, a dúvida jurídica razoável tem grandes chances de estar presente com aptidão para, por meio da “cindibilidade dos efeitos jurídicos da ilegalidade”, afastar repercussões desproporcionais.


5. CONCLUSÃO

O estudo desagua na conclusão de que, havendo um cenário de dúvida jurídica razoável, o jurista deverá servir-se da “cindibilidade dos efeitos jurídicos da ilegalidade” para, sob um juízo de proporcionalidade, afastar consequências drásticas e desproporcionais.

O fundamento jurídico dessa ilação são os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé (que é mãe do princípio da confiança) e da democracia (que estabelece que é dever do Estado deixar claras as regras do jogo para os indivíduos por meio de mecanismos democráticos).

Sob essa premissa, o presente estudo conclui que:

a) a responsabilidade civil deve ser excluída ou atenuada a depender do grau de dúvida jurídica razoável, tendo em vista que esta afasta total ou parcialmente um dos requisitos da responsabilidade civil, a “violação de direito” (art. 186 do CC);

b) enquanto não sobrevier decisão do STF acerca do direito de transexual adentrar o banheiro feminino, há dúvida jurídica razoável a excluir a responsabilidade por um juízo de proporcionalidade, mas se admitindo a produção de efeitos menos drásticos, como a imposição de uma obrigação de não fazer em nome da cindibilidade dos efeitos jurídicos;

c) o desmembramento do impeachment em relação à pena de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos é uma entre outras interpretações possíveis do art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal, de maneira que, havendo dúvida jurídica razoável a favor do Presidente da República na conduta tipificada como crime de responsabilidade, a proporcionalidade autorizaria segregar a sanção do impeachment – que é de interesse institucional na manutenção da governabilidade do País – da punição pessoal de cassação de direitos políticos – que é estritamente pessoal, a exemplo do que sucedeu no ano de 2016;

d) é indevida a aplicação de sanção administrativa contra agente público que tenha praticado ato amparado em dúvida jurídica razoável;

e) mera irregularidade não é improbidade administrativa, especialmente quando há dúvida jurídica razoável;

f) a dúvida jurídica razoável é acolhida em todos os ramos do Direito, com inclusão do Processo Civil, do que dão exemplos a fungibilidade recursal e a modulação dos efeitos da jurisprudência;

g) A modulação dos efeitos de interpretações jurisprudenciais prevista no art. 942, § 2º, do CPC não deve ser aplicada apenas no caso de mudanças de jurisprudências pacificadas, mas também no caso de pacificação de questões inéditas nos Tribunais ao redor do qual pairavam dúvidas jurídicas razoáveis;

h) O jurista deve ter cuidado quando, com base em princípios, for considerar ilícitas condutas de particulares baseadas na interpretação literal do texto de lei e de contratos. Nesses casos, o jurista deve averiguar a existência de eventual cenário de dúvida jurídica razoável para, por meio da cindibilidade dos efeitos jurídicos, afastar sanções desproporcionais, como a indenização por dano moral. Com base nisso, consideramos inadequadas as decisões do STJ que condenou ao pagamento de indenização por danos morais um condômino que se baseou na convenção de condomínio para instalar em uma padaria (STJ invocou a supressio) e uma instituição financeira que se valeu da ação de busca e apreensão diante do inadimplemento de uma prestação de um financiamento feito para a aquisição de um veículo (STJ se valeu da teoria do inadimplemento mínimo).

Em princípio, as conclusões acima dispensariam mudanças legislativas, porque já estariam implícitas no ordenamento. Todavia, considerando que a falta de previsão textual da importância da dúvida jurídica razoável acaba deixando esse exame relevantíssimo de lado em muitos julgamentos feitos por órgãos administrativos e judiciais, convém a realização de duas modificações legislativas envolvendo situações demasiadamente sensíveis.

A primeira é no sentido de deixar claro que o gestor público jamais pode ser responsabilizado administrativamente quando praticar um ato escorado em dúvida jurídica razoável, a qual é presumida quando ele tiver se amparado parecer jurídico emitido por membro da Advocacia Pública. Essa previsão é relevantíssima, pois inúmeros agentes públicos receiam assumir cargos de gestão pelo temor de virem a ser responsabilizados pessoalmente por terem adotado uma interpretação da norma em sentido diverso daquele que, posteriormente, virá a ser adotado por órgãos de controle. Parece-nos que o art. 38 da Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016, é o lugar mais adequado para recepcionar uma previsão legislativa similar.

A segunda alteração legislativa é deixar mencionado no art. 186 do CC que a dúvida jurídica razoável pode excluir ou atenuar a responsabilidade civil.


[2] A lembrança é de Cristiano Carrilho S. de Mereiros (apud OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Competência para fiscalizar atividade jurídica de membros da advocacia pública federal: TCU ou órgão correcional próprio? Disponível em: http://jus.com.br/artigos/24056/competencia-para-fiscalizar-atividade-juridica-de-membros-da-advocacia-publica-federal-tcu-ou-orgao-correcional-proprio#ixzz3ZU2XJbu5. Publicado em abril de 2013).

[3] Para evitar aprofundamentos inconvenientes ao objetivo deste texto, limitamo-nos a recordar que há inúmeros discursos envolvendo Direito, Estado, Sociedade e Economia para definir as soluções jurídicas mais adequadas e há diversos debates sobre o comportamento a ser adotado pelo jurista. Para detalhamentos, recomendamos nossa dissertação de mestrado, disponível neste sítio eletrônico: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/23903/1/2016_CarlosEduardoEliasdeOliveira.pdf.

[4] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, 1: Lei de Introdução e Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Método, 2014, pp. 112-117.

[5] TARTUCE, Flávio. Direito civil, 1: Lei de introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

[6] Discurso do Ministro Gilmar Mendes em homenagem ao Ministro Eros Roberto Grau. Em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/homenagemErosGrau.pdf.

[7] Disponível em http://jus.com.br/artigos/24056/competencia-para-fiscalizar-atividade-juridica-de-membros-da-advocacia-publica-federal-tcu-ou-orgao-correcional-proprio#ixzz3ZUCTWdSl

[8] Ressalva-se que o autor estava a criticar a ausência de critérios objetivos no julgamento de conflitos constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, por conta da adoção do pensamento de Alexy. Todavia – talvez em função da própria natureza fluida do Direito, na esteira da teoria do conhecimento do Miguel Reale –, o aludido autor não oferece uma solução efetivamente objetiva em substituição. Concordamos que a teoria de Alexy não é mais adequada e que há outras melhores, embora estas também conspurcam-se com os inevitáveis vestígios da subjetividade. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/21646/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga

[9] Temos que, no âmbito da Administração Pública, a Advocacia Pública foi constitucionalmente eleita para dar a palavra final na interpretação da norma jurídica, de modo que nenhum órgão administrativo de controle interno ou externo teria competência para superar essa orientação. Só o Poder Judiciário poderia derrubar a interpretação dada pela Advocacia Pública no seio da Administração.

[10] Confira-se este julgado:

“A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Assim, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 é indispensável, para a caracterização de improbidade, que o agente tenha agido dolosamente e, ao menos, culposamente, nas hipóteses do artigo 10.” (STJ, AgRg no REsp 1355136/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJe 23/04/2015)

[11] A lembrança foi de José Vicente Santos de Mendonça (MENDONÇA, José Vicente Santos de. Estatais com poder de policia; por que não?. In: Revista de Dreito Administrativo. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/7958/6823.

[12] Essa expressão inglesa se reporta ao homem comum, como lembra Ronald Coase (2016, p. 4). Clapham é um bairro muito popular de Londres, de modo que a referência a um homem em um ônibus nesse local reporta-se a uma situação comum.

[13] Seria o que, mais acima, designamos de ilicitude legítima, assim entendida aquela que, no ambiente de dúvida juridical razoável, se ampara em uma interpretação que veio a ser vencida.

[14] Aí seria o que chamamos de “ilegalidade legítima”, porque escorada em dúvida jurídica razoável.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. A dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos. Hipótese de excludente ou atenuante de responsabilidade civil e de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6193, 15 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61896. Acesso em: 24 abr. 2024.