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A comunicação não violenta como instrumento de pacificação social

A comunicação não violenta como instrumento de pacificação social

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Pretendemos demonstrar que a comunicação não violenta pode contribuir para o empoderamento dos agentes envolvidos no conflito e desenvolvimento da autorresponsabilidade para a solução satisfatória da questão na qual estão envolvidos.

1) Contextualização

Antes de adentrarmos no objeto de discussão, coloco em voga o seguinte questionamento: o que nos vem à cabeça ao pensar em comunicação?

Ao longo de nossa trajetória, antes mesmo de pensarmos o modelo atual de sociedade que vivemos, nós desenvolvemos técnicas de linguagem para permitir a comunicação entre nossa espécie, seja por meio da fala, ou mesmo de símbolos. São os símbolos que permitem que você do outro lado leia o que eu escrevo nesse momento.

Assim, toda a simbologia e demais mecanismos por nós desenvolvidos tem por escopo viabilizar o processo de comunicação, permitindo que um compreenda o que o outro quer expressar.

O que noto, contudo, é que, talvez, a comunicação tenha perdido o seu propósito ao longo do tempo ou, quem sabe, nunca tenhamos compreendido seu real significado. Digo isso, pois, ao que parece, o interlocutor recebe a mensagem comunicada pensando tão logo em respondê-la, mas não em compreendê-la e, em alguns casos, quem transmite a mensagem não quer se fazer compreender, tão somente apresentar uma justificativa ou lançar sobre o outro o conteúdo do seu sentimento.

Veja-se, desta forma, que a postura dos agentes pode fazer com que a comunicação acabe se tornando mecanismo de agravamento de um conflito e não de solução.

Trazendo essa ótica para o direito, podemos perceber que o engessamento dos nossos métodos arcaicos de enfrentamento de conflitos, por vezes, dificulta a sua solução, fazendo com que eles se propaguem, somente.

Apesar disso, quando olhamos para a história nos sentimos orgulhosos do modelo construído, pois em tempos mais longínquos o homem resolvia suas mazelas utilizando a força bruta, por meio de duelos, por exemplo. Agora, seres civilizados que somos, criamos leis que baniram do convívio social tais práticas tão “destrutivas”.

Mas o que mudou de lá para cá se considerarmos a forma como a lei é aplicada?

Bom, hoje sentamos com nossos clientes na frente de um juiz, falamos termos bonitos e aguardamos que um terceiro, investido da função jurisdicional do Estado, diga como deve ser solucionada a questão.

Ao que parece, a única diferença é que a solução não prescinde da morte ou de um olho roxo de uma das partes, tão somente da aplicação fria do conteúdo da lei por alguém completamente alheio ao conflito, o que, evidentemente, não gera satisfação a nenhum dos envolvidos, que simplesmente relegaram ao juiz o que era de sua responsabilidade.

Ao que me parece, nossa capacidade de solucionar os próprios conflitos por meio da comunicação foi negada no momento em que simplesmente nos eximimos de nossa responsabilidade de olhar para eles como seus próprios causadores, preferindo transferir para o Estado o domínio das situações mais cotidianas, como a decisão sobre as visitas de um dos genitores ao filho ou sobre o pagamento de horas extras a um empregado que sabidamente trabalhou além de seu horário.

Esquecemos nossa sensibilidade de compreensão por meio da comunicação, porque conferimos ao Estado a solução de conflitos básicos.

No presente texto, pretendemos, de maneira ligeira, demonstrar que a comunicação não violenta, se aplicada no nosso cotidiano ou mesmo como técnica de mediação quando a disputa já se instalou, pode contribuir de maneira significativa para o empoderamento dos agentes envolvidos no conflito e desenvolvimento da autorresponsabilidade para a solução satisfatória da questão na qual estão envolvidos.


2) Breve discussão

Como vimos, o conflito é a mola propulsora da criação do Estado, através do medo do homem de se ver privado de seus bens.

Essa ideia de conflito, num primeiro momento, remete a maioria de nós a uma sensação negativa, o que é perfeitamente natural. Mas essa visão não deve ser mantida, tendo em vista que é somente através dos conflitos que nós podemos nos modificar.

Logo, a cultura de paz que tanto falamos em implantar não visa evitar o conflito, mas trazer mecanismos para que a sociedade possa solucioná-los de maneira não agressiva.

E como fazer isso? Dentre outras formas, trazendo para cada uma das partes envolvidas no processo a consciência de que a comunicação deve expressar seu desejo e não refletir o sentimento que o conflito está lhe causando.

Isso porque a relação conflitiva se desenvolve como um espiral, composto por ação e reação, e a reação é sempre mais desastrosa do que a ação inicial. Esse processo de espiral, criado por reações cada vez mais pesadas, acabam fazendo com que as partes envolvidas no conflito esqueçam o que o ensejou, focando somente nas feridas causadas pela reação, o que dificulta deveras a solução pacífica.

Vamos aqui trazer um exemplo do direito.

Imaginemos um processo, conflituoso por natureza, em que o juiz deu uma sentença decidindo qual das partes tem razão quanto ao conflito inicial. Por meio da mesma sentença, o juiz fixa o pagamento de multa pela parte vencida caso não cumpra a obrigação em determinado prazo.

Ao que me parece temos agora um novo conflito que envolve o pagamento da multa.

Se a parte vencida foi acionada, por exemplo, porque por não tinha condição de cumprir uma obrigação no prazo ajustado, por alguma razão fática não amparada pela Lei, parece-nos que com a criação de outra obrigação a situação caminha mais para o lado do agravamento do que da solução.

E isso não acontece só na relação processual, mas no nosso dia-a-dia.

Quantas vezes já não travamos discussões com quem amamos cujo objeto real não era a efetiva solução do problema?

Quantas vezes ao tratar com quem amamos sobre algo que nos incomoda jogamos sobre o outro toda a carga emocional que a interiorização do problema causou?

Ou seja, falamos simplesmente com o intuito de transferir para o outro a dor que o conflito nos causa, afinal atribuímos ao interlocutor a responsabilidade por ele. Esquecemos, assim, de usar a comunicação para resolver, o que, consequentemente, faz com que a pessoa que ouve não queira compreender, mas simplesmente responder, rebater.

Nesse aspecto, acredito fortemente que a comunicação não violenta, se empregada em todas as áreas de nossa vida, tem o poder de nos lembrar na nossa natureza humana, real e equilibrada, aquela que Hobbes acredita preceder o contrato social,. Para dar mais força a essa ideia trago as palavras de quem entende do assunto, porque o pesquisou profundamente, o psicólogo Marshall Bertram Rosenberg (2006, p. 21)[1],:

A comunicação não violenta se baseia em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a capacidade de continuarmos humanos, mesmo em condições adversas. (...) O objetivo é nos lembrar do que já sabemos – de como nós, humanos, deveríamos nos relacionar uns com os outros – e nos ajudar a viver de modo que se manifeste concretamente esse conhecimento.

Assim, para nos lembrarmos do que já sabemos, o mesmo autor descreve quatro componentes essenciais da comunicação que a torna pacífica e não violenta, quais sejam, observação, sem julgamento, do impacto da ação do outro na nossa vida, elencando, novamente sem julgamento, o que me agrada ou não nela; identificação do sentimento em relação à ação do outro observada; identificação da necessidade ligada ao sentimento decorrente da ação do outro.

Quando diante de um conflito observamos esses três componentes, conseguimos chegar de forma clara e consciente ao que realmente queremos e então podemos expressar como nos sentimos sem gerar uma reação devastadora que somente amplia o espiral do conflito.

Ao fazermos isso, podemos chegar ao que Marshall Bertram Rosenberg[2] denomina quarto componente do conflito, qual seja, o pedido, o que fica claro a partir do seguinte trecho escrito por ele:

Uma mãe poderia expressar essas três coisas ao filho adolescente dizendo, por exemplo: Roberto, quando vejo bolas de meia sujas debaixo da mesinha e mais três perto da TV, fico irritada, porque preciso de mais ordem no espaço que usamos em comum.

Ela imediatamente continuaria com o quarto componente – um pedido específico: Você poderia colocar suas meias no seu quarto ou na lavadora? Esse componente enfoca o que estamos querendo da outra pessoa para enriquecer nossa vida ou torna-la mais valiosa.

É lindo, mas é claro que empregar essa técnica no nosso dia-a-dia não é nada fácil, porque importa em romper com nossa velha postura de vítimas, com a qual já estamos acostumados.

Parece-me que essa postura causa um desarranjo no modelo de comunicação compassiva tratado por Marshall, porque quando nos colocamos na posição de vítimas não conseguimos observar sem julgamento o que nos incomoda e nem separar, de maneira consciente, a natureza do que sentimos.

Assim, se torna demasiadamente difícil observar que o sentimento tem na ação do outro estímulo, mas não causa, porque, afinal, a forma como recebemos a ação do outro decorre de uma escolha nossa.

Não é fácil encarar assim nossas relações no dia-a-dia, mas acredito ser o primeiro passo para nos lembrarmos da nossa natureza humana e contribuirmos para a arquitetura de uma sociedade pacífica e livre!


Notas

[1] ROSENBERG, Marshall Bertram. Comunicação não violenta. Técnicas para aprimorar relacionamentos profissionais e pessoais. São Paulo: Editora Agora, 2006.

[2] Idem.

 


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Nayara Ferreira Marques da. A comunicação não violenta como instrumento de pacificação social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5435, 19 maio 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63158. Acesso em: 29 mar. 2024.