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A intervenção americana e britânica no Iraque

uma análise sobre a sua legalidade e efeitos nas relações internacionais

A intervenção americana e britânica no Iraque: uma análise sobre a sua legalidade e efeitos nas relações internacionais

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1.INTRODUÇÃO

A definição do estado de guerra sempre foi bastante conturbada no estudo do Direito Internacional. Até a primeira metade do século XX a doutrina se dividia em duas posições. De um lado a corrente subjetivista destacava a intenção do Estado de se colocar em determinada situação por ele considerado belicosa. O animus beligerandi seria o elemento essencial, o qual manifestar-se-ia através de uma declaração formal, ou a partir de uma série de fatos que o evidenciassem. Em posição diametralmente oposta, a corrente objetivista acrescentava como circunstância caracterizadora da guerra uma situação de fato que não deixasse dúvida sobre as hostilidades.

Roberto Luiz Silva elucida o conceito como a luta armada entre Estados desejada ao menos por um deles e empreendida tendo em vista um interesse nacional. Esclarece o autor o caráter híbrido da guerra, sendo necessário a presença de um elemento objetivo, que seria a prática de atos que criam o estado de beligerância, associado a um elemento subjetivo, qual seja, o animus beligerandi, ou intenção de fazer a guerra. [1] À primeira vista, tal definição parece esgotar a profundeza do tema no âmbito do Direito Internacional Público, entretanto, trata-se de questão das mais complexas e temerosas deste ramo jurídico. O objetivo geral deste trabalho é aprofundar o estudo jurídico do uso da força pelos Estados, a partir de um conflito em específico: a intervenção anglo-americana no Iraque, conhecido como a segunda guerra do Golfo.

Este fenômeno histórico ainda em curso é paradigmático no sentido de inaugurar uma nova ordem internacional com a redefinição do papel do Conselho de Segurança e das Nações Unidas como um todo. Nesta esfera, o objetivo específico será analisar o aspecto legal da intervenção anglo-americana a partir das disposições consagradas na Carta das Nações Unidas, das Resoluções do Conselho de Segurança referentes à questão, à doutrina e ao costume internacional referentes à guerra de intervenção.

A primeira parte do trabalho consiste em uma abordagem genérica da evolução teórica no estudo da guerra desde a antigüidade até o sistema atual. Alguns aspectos históricos relevantes serão apontados na busca de conciliar a evolução conceitual com a evolução da própria dinâmica das relações internacionais e do Direito Internacional. O tratamento teórico da guerra sempre acompanhou a prática da guerra e, na medida que os avanços tecnológicos a tornava mais atroz, novas teorias surgiam para inibir o seu recurso.

A segunda parte versa sobre a possibilidade do recurso à legítima defesa e os limites impostos pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas ao seu emprego. As diferentes interpretações a este artigo serão abordadas, bem como a posição da doutrina e as normas advindas do costume internacional. Atenção especial será dada à questão da admissibilidade da legítima defesa preventiva no sistema de segurança coletiva inaugurada pela Carta de São Francisco.

Na terceira parte serão extraídas as posições do Conselho de Segurança em relação à situação do conflito no Iraque, a partir de suas Resoluções proferidas desde a primeira guerra do golfo. Serão apresentadas as posições anglo-americanas e as possíveis interpretações das referidas Resoluções de tal forma que possa ser estabelecido um critério de conformidade ou não da intervenção no Iraque com a posição do Conselho.

Na quarta parte do trabalho será finalmente tratada a questão da legalidade ou ilegalidade da intervenção. O trabalho, por ser, desenvolvido a partir de um método dedutivo, ou seja, apontam-se primeiro os aspectos gerais pertinentes à guerra para posteriormente analisar-se a guerra no Iraque em específico, muitas das respostas a questões conceituais já estarão previamente assentadas. De tal maneira, esta parte do trabalho será uma espécie de desfecho silogístico sobre as questões suscitadas e explanadas anteriormente diante do caso concreto: a segunda guerra do golfo.

A título de considerações finais, serão apresentadas as duas posições contrastantes sobre a natureza da nova ordem global. A partir desta explicação, algumas assertivas serão feitas sobre os efeitos da intervenção americana nas relações internacionais e em especial na possível redefinição do papel do Conselho de Segurança e de todo sistema ONU.


2.EVOLUÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL E DA GUERRA

No decorrer da história, um dos temas mais recorrentes do Direito Internacional Público [2] tem sido, certamente, o conflito entre os povos. Não por acaso, a primeira figura embrionária, análoga ao que conhecemos hoje por tratado internacional, versava sobre questões bélicas e fronteiriças entre as cidades de Lagash e Umma na antiga Mesopotâmia, no ano de 3.100 A.C. [3] A temática da guerra seria o cerne do direito da relação entre os povos durante toda a antigüidade clássica, dadas as contribuições de Grécia e Roma, e o medievos com a influência da Igreja Católica.

Os gregos legaram para o estudo histórico da guerra conceitos importantes como os de direito de asilo, imunidade de agentes diplomáticos, respeito e proteção aos lugares sagrados, bem como várias regras de comportamento dos beligerantes no campo de batalha, regras essas que vieram a servir de base ao ius in bello, desenvolvido séculos mais tarde. Por outro lado, o tratamento discriminatório dado aos estrangeiros na Grécia inibiu o surgimento entre os filósofos helenos de uma proibição jurídica à guerra contra os bárbaros. Aristóteles, em sua Política, defende ser o estrangeiro um inimigo natural, destinado a se transformar em escravo. A guerra e a escravização dos estrangeiros era não só natural como necessária para a manutenção econômica da polis. A doutrina da guerra justa, portanto, inexiste na civilização grega, sendo verdadeira herança do Direito Romano e Canônico. [4]

O tratamento inicial da guerra em Roma vincula-se ao misticismo e ao ritualismo típicos do chamado Direito Romano Quiritário (754 a 150 a.C.). A guerra, a paz, os tratados com outros povos eram temas sujeitos ao ius sacrum, conjunto de regras e práticas adotadas pelo colégio de sacerdotes denominado festiales. A beligerância, mesmo nos períodos Clássico e Pós-Clássico, é marcada pela sua constante conciliação com o respeito aos rituais de saudação aos deuses. Com a expansão do império romano, as relações jurídicas com outros povos e o tratamento do estrangeiro face ao direito romano foram objeto de uma série de normas mais complexas que atuavam sob diferentes rótulos: ius gentium, ius belli ac paci e o ius festiales. Este último eram formalidades religiosas, praticadas antes, durante e após a batalha que deveriam ser integralmente cumpridas, pois eram elas que legitimavam o uso da força. Somente eram justas as guerras que observavam os ditames do ius festiales.

O pensamento da Igreja incorporou o conceito de guerra justa com profundas alterações à idéia inicial perpetrada em Roma. Os primeiros teóricos conduzidos por passagens do Evangelho defendiam terem os ensinamentos de Cristo proibido de forma absoluta a guerra. Mas logo esta posição passa a ser contestada por doutrinadores que buscavam legitimar o uso da força em nome de Deus e da Igreja. Essa inserção, que vem a render um imenso cortejo de teóricos e séculos de análises e conclusões, abre uma fresta na doutrina cristã, sob a crítica de muitos, como São Basílio, que expressavam sua desaprovação à participação ou condescendência da Igreja com qualquer tipo de guerra.

Coube a Santo Agostinho (354-430), como primeiro compilador da filosofia católica, mediante a revisão das idéias de Cícero e Platão, lançar em suas enciclopédias a concepção do que seria uma guerra justa. Para o bispo de Hipona, justa seria a guerra declarada exclusivamente pelo príncipe, cujo fundamento era a própria justiça, ou seja, o resguardo de um direito violado. [5] Tomando emprestado as idéias de Cícero, Agostinho defende que o recurso extremo à guerra deveria buscar, em última instância, a restauração da paz.

São Tomás de Aquino (1228-74), consolida no século XIII o bellum justum agostiniano como a doutrina oficial da Igreja Católica, enquanto a instituição mediadora natural dos conflitos europeus até meados da Idade Moderna. A guerra justa pode ser resumida em três linhas para o mais consagrado dos escolásticos: a) a guerra baseada numa justa causa, definida em termos éticos; b) a guerra levada a cabo com uma reta e humana intenção no curso das hostilidades; c) a guerra formalmente declarada pela autoridade competente. [6] O ponto fundamental da doutrina escolástica jaz na aferição do sentido da justiça do bellum justum através do recurso a uma série de conceitos outros, como o teológico e o legal que, conjuntamente com o moral, se entrelaçam na evolução do pensamento católico. Não se deve perder de vista que a doutrina da guerra justa católica não se estendia à luta contra os infiéis e hereges, esta desprovida de qualquer restrição moral ou legal. O próprio papado, primeiramente com Urbano VI, estimulara os senhores feudais a empreenderem cruzadas contra os invasores da terra santa. Naquele momento, portanto, o bellum justum só se estendia às relações internacionais entre os príncipes cristãos. Necessário ainda frisar a tentativa do papado em conter as inúmeras guerras privadas entre os nobres e senhores feudais, bastante comuns à época.

A idéia de guerra como um ato privado de comércio, realizado por militares, foi se apagando aos poucos, transformada numa atividade soberana, conduzida a partir de uma decisão do príncipe. A sua deflagração e condução, aliada à múltipla presença dos demais requisitos formais, muitas vezes levava à situação de uma guerra ser considerada justa de ambos os lados. (7)

A formalização da teoria da guerra ganha maiores contornos com o teólogo espanhol Francisco de Vitória (1486-1546). O bellum justum passa a conter um caráter essencialmente público, tendo como atores os novos Estados soberanos. Algumas décadas mais tarde, Francisco Suarez acrescentaria à teoria de seu conterrâneo,

(...) o elemento de que a violação de um direito deveria ser seguida da constatação de que não teria havido qualquer modo de reparação, além da guerra, que passou a ser considerada a última ratio. (8)

Apesar das contribuições no estudo do direito das gentes trazidas por Vitória e Suarez, expoentes máximos da chamada escola espanhola, suas doutrinas são, em certa medida, uma revisão do tomismo, ainda influenciadas pela tradição da Igreja. A Alberico Gentilli, protestante e, portanto, livre da influência do pensamento tradicional católico, lograria retirar do plano religioso a discussão sobre a guerra trazendo-a definitivamente para o plano jurídico-político em sua obra De jure belli.

A laicização da teoria da guerra se completa com o holandês Hugo Grótius (1583-1645), considerado o fundador do Direito Internacional moderno. Este foi o primeiro pensador a identificar racionalmente através dos elementos do direito natural a divisão entre os conceitos de guerra justa e proibida. Com Grótius lança-se a explicação racional do bellum justum em detrimento da explicação calcada na exigência divina. Influenciado pelo racionalismo do Direito Romano, em particular pela teoria geral dos atos voluntários, escreve o autor a clássica obra De Jure Belli ac Paci, cujo título já denota uma dualidade de valores contrapostos, mas que se encontram reciprocamente implicados, numa lógica do contrato social que, ao ver das teorias dominantes a seu tempo, fundamentaria as sociedades, tanto na guerra quanto na paz. A idéia fulcral desta obra está no tratamento contratual e voluntarioso da guerra. A paz e a guerra são tratados com uma naturalidade única, sendo, justa, aquela assim considerada e contratada pelos príncipes. O Direito internacional é visto como uma criação voluntária de entidades todo poderosas sem qualquer vinculação a valores que pudessem transcender ao seu próprio poder.

A doutrina católica da guerra justa, imbuída de uma concepção dependente da moral e da teologia entra em plena decadência com a Paz de Westfália em 1648 e o definhamento do Sacro Império Romano-Germânico como última tentativa da Igreja em restaurar a universalidade do império romano sobre a égide papal. O Estado emerge como unidade política soberana e titular do ius ad bellum, em substituição às guerras privadas entre os feudos. O direito de fazer a guerra, passa a confundir-se com o próprio poder soberano dos Estados, portanto, um direito subjetivo incondicionado de quebrar a paz desde que seguidos os requisitos formais não muito distintos dos requisitos de um contrato.

Obviamente, neste período, a idéia ainda prematura de soberania como poder absoluto, indivisível, eterno, sem limitação humana e centrada na figura do rei, tal qual descreve Jean Bodin, é a que vigora entre os pensadores do século XVII. Contudo, à medida que o Estado absolutista cede espaço para as limitações constitucionais ao poder absoluto dos reis, sobretudo com as revoluções liberais, a definição da guerra justa é permeada de novos elementos distintos do contratualismo entre príncipes. A própria concepção de soberania sofre as devidas alterações com Jean Jaques Rousseu em seu Contrato Social, a partir do qual o poder soberano tem como titular a vontade geral e não a vontade do soberano. Coube aos pensadores iluministas do século XVIII revisar o estudo clássico do Direito Internacional e estabelecer um critério racional de justiça no tratamento da temática da guerra e das relações internacionais como um todo. O constante preconceito iluminista ao pensamento e às doutrinas medievais suscitou o abandono à teoria da guerra justa, que passa a ser considerada como uma visão católica ultrapassada; um esforço dos teólogos medievais e da escolástica tardia da escola espanhola para criarem-se restrições às guerras, em tudo, incompatível com a concepção do Estado, então tipificado como uma instituição leiga e acima de cuja vontade não poderia haver normas impositivas.

Os pensadores do período das luzes lançam os embriões do idealismo nas relações internacionais, orientados pelo estabelecimento de normas de condutas para os atores com o fito de se estabelecer a ordem. Imanuel Kant, em sua obra A Paz Perpétua, dá um importante passo no estudo das condições ideais para se alcançar a paz entre os Estados. Assim como Hobbes, Kant admite que o estado de natureza é a guerra, viabilizando uma constante ameaça de hostilidade entre os homens, mas contrariamente àquele, insiste em que o estado de paz deve ser uma criação possível pelo esforço humano. Surgem no período das luzes as primeiras idéias de uma sociedade global, com o resgate da máxima estóica de Zenon de que na verdade há uma única cidade que é o próprio universo, no qual todos são cidadãos.

Mas, se no campo teórico dá-se a busca idealista pela superação da beligerância por meio de um critério de justiça explicitados nos tratados e em normas internacionais, a praxis política que orientava as ações dos governantes no século posterior ao período das luzes eram dosados pelo realismo na busca da ordem. Esclarece Amado Cervo:

O senso realista das concepções e práticas de política internacional do Concerto Europeu do século XIX pretendeu corrigir o sistema de igualdade jurídica dos Estados implantados no século XVII, por que este último revelou-se incapaz de evitar a dominação dos impérios. (9)

Neste sentido, o equilíbrio na balança de poder seria o efetivo mecanismo de manutenção da paz na Europa até a segunda metade o século XIX. Neste sistema, os Estados descuram-se em elencar tratados internacionais que tratassem diretamente da proibição ao recurso à guerra, limitando-se à garantir a paz através do equilíbrio de forças. O Congresso de Viena de 1815 ao sinalizar por esta lógica, regia-se pela busca do equilíbrio de poder entre as potências da época - Áustria, Inglaterra, Rússia, Prússia e França. O tratamento da guerra enquanto um arbítrio do Estado soberano (nos moldes de Grótius) não adquire maiores mudanças na política externa européia no século XIX e o direito de ir à guerra, ou o jus ad bellum, persiste sendo um verdadeiro direito subjetivo do Estado.

No século XIX, a ordem internacional do equilíbrio europeu, apesar de ter garantido um extenso período sem grandes conflitos [10], teve seus fundamentos sacudidos com o definhamento do poderio austríaco e o surgimento do império alemão como nova potência no velho continente em 1871.

Na verdade, as únicas restrições ao direito de fazer a guerra restringiram-se a formalidades de declaração da guerra e de seu término, segundo as normas dos usos e dos costumes. As teorias que se formaram no século XIX, elaboraram algumas categorias a que os Estados recorriam sempre que necessitavam legitimar uma declaração unilateral de guerra: a auto-assistência, a legítima defesa, a autoproteção, as necessidades sociais, o direito ao bloqueio naval e às represálias militares... (11)

Não se deve perder de vista o papel desempenhado pela Grã-Bretanha na manutenção da ordem européia pós-1815, enquanto usufruía da sua condição de locomotiva da economia mundial e potência imperial onde o sol nunca se põe. A preocupação maior da coroa britânica era, através da restauração das dinastias monárquicas nos respectivos países invadidos por Napoleão e do equilíbrio de forças na Europa, evitar o surgimento de conflitos de maiores profundidades, já que a experiência havia mostrado que as grandes guerras e as revoluções andavam juntas. [12] A Inglaterra que já havia logrado sua revolução liberal em 1688, temia que novas experiências como a francesa alterasse seu status quo hegemônico.

De 1871 à 1914 o tradicional sistema adotado após o Congresso de Viena sofre corrosões cada vez mais perigosas para a paz européia. A política externa agressiva de Bismarck (weltpolitik) tumultuou o sistema de alianças sempre transitórias e o esgotamento da dinâmica imperialista da economia capitalista em dividir os mercados coloniais entre os grandes da Europa prenuncia, já em 1890, a formação de dois blocos antagônicos – a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente. No mês de julho de 1914 tem início a Primeira Guerra Mundial, implicando uma significativa alteração na forma dos teóricos e chefes de Estados encararem a guerra.

2.1 O DIREITO INTERNACIONAL E O TRATAMENTO DA GUERRA PÓS-1919

O historiador Eric Hobsbawm, em seu livro A Era dos Extremos, denomina o período compreendido entre 1914 e 1945 como a era da catástrofe, cujos efeitos das seguidas guerras mundiais mexeram definitivamente nos alicerces morais da sociedade. A novidade das guerras a partir de 1914, esclarece o autor, é a mobilização inteira dos nacionais na ofensiva. Toda produção industrial e agrícola dos Estados participantes da Primeira e Segunda Grande Guerra voltam-se para o fornecimento de suprimentos para os exércitos nacionais. Os civis sofrem os efeitos da guerra não só na reorganização da dinâmica econômica do Estado, mas, outrossim, no sofrimento e morte que cada vez mais ultrapassam o campo de batalha e se estendem às suas casas.

Temos como certo que a guerra moderna envolve todos os cidadãos e mobiliza a maioria; é travada com armamentos que exigem um desvio de toda a economia para a sua produção, e são usados em quantias inimagináveis; produz indizível destruição e domina e transforma absolutamente a vida dos países nela envolvidos. Contudo, esses fenômenos pertencem apenas às guerras do século XX. (13)

Os efeitos da Primeira Guerra Mundial como a primeira guerra total não mais poderiam permitir que as discussões sobre um direito indiscriminado à guerra fossem tratados como uma liberalidade do Estado. Surgem propostas de estabelecer, através de tratados, um critério jurídico, e não mais político, para a manutenção da paz. O idealismo dos pensadores iluministas do século XVIII é resgatado e colocado em pauta na agenda internacional, sobretudo pela disposição do então presidente americano Woodrow Wilson em tratar a guerra de 1914 como a última das guerras. No plano teórico do estudo das relações internacionais este período enseja infindáveis entraves entre as correntes idealistas e realistas no estudo do equilíbrio e da ordem do sistema internacional. Surge entre os estadistas da época a concepção de que os problemas de segurança coletiva deveriam ser postos sobre a atribuição de uma Organização Internacional de caráter universal. A Conferência de Paz reunida em Versalhes entre janeiro e junho de 1919 resgata um dos 14 pontos de Wilson, e cria a Sociedade das Nações, primeira Organização entre Estados com uma proposta cosmopolita [14], pensada com o objetivo central de manter a paz e a segurança coletiva.

O Pacto da Sociedade das Nações não proibia a guerra propriamente dita e a ela faz referência expressa em vários artigos. Destes, destaca-se a declaração do artigo 11, de que toda guerra, ou ameaça de guerra que atingisse direta ou indiretamente algum dos membros da Liga interessaria à toda Liga, tendo esta o dever de "adotar as medidas necessárias para salvaguardar eficazmente a paz das nações". Os artigos 12, 13 e 15 instituem um sistema próprio de arbitragem, destinado a conhecer e solucionar as pendências entre as nações, evitando um confronto direto. Destarte, uma guerra declarada sem prévia tentativa de solução pacífica era considerada ilegal ab initio. Os Estados submetidos à arbitragem se comprometiam a cumprir o laudo e, em havendo descumprimento da decisão por qualquer das partes, não podiam recorrer à força antes de três meses da publicação da decisão. Ilustrativo, outrossim, é o artigo 15.7, ao dispor que os Estados membros permaneciam com o direito de proceder como julgarem necessário para a manutenção do direito e da justiça, se o Conselho da Sociedade não conseguisse fazer aprovar um relatório unânime sobre determinada situação conflituosa. [15] Tal disposição é demasiado permissiva para com o emprego da força, na medida que o processo decisório do Conselho da Sociedade das Nações praticamente inviabilizava alcançar a unanimidade nas decisões. Enfim, uma interpretação lógica dos dispositivos do Pacto da Sociedade das Nações leva à conclusão da legalidade no uso da força pelo Estado em cinco hipóteses: legítima defesa individual ou coletiva, descumprimento do laudo arbitral, sentença ou decisão unânime do Conselho, ou quando não houvesse uma decisão unânime por tal órgão.

Quanto à utilização de força militar contra um Estado violador do Pacto, competia ao Conselho recomendar aos diversos governos interessados os efetivos militares pelos quais os membros da Sociedade contribuiriam, respectivamente, para as Forças Armadas, destinadas a atuar sobre o comando daquele, respeitados os compromissos do Pacto. Cabia também ao Conselho providenciar e autorizar sanções econômicas aos Estados infratores de suas resoluções. Na prática, porém, a SDN aplicou sanções econômicas uma só vez entre 1935 e 1936 no conflito ítalo-etíope, mas foi imponente em evitar a invasão militar italiana na Eritréia, as investidas alemãs na Checoslováquia e na Áustria, a invasão russa na Finlândia e a invasão japonesa na Manchúria. Apesar de ter sido incapaz de evitar inúmeros conflitos no período entre-guerras, o resultado positivo do Pacto foi a consagração, pela primeira vez e, sobre os auspícios de uma Organização Internacional (pretensamente cosmopolita), do conceito de que a força deveria ser utilizada apenas como um último recurso para solucionar as profundas controvérsias entre os Estados. Este espírito, impulsionado pelo temor de uma nova guerra total, inspirou a assinatura de vários tratados de abstenção ao recurso à força pelos seus signatários como forma de solução de litígios. São firmados o Protocolo de Genebra para a Solução Pacífica de Controvérsias, em 1924, e os Tratados de Locarno, em 1925; são adotadas as resoluções da Assembléia Geral da Sociedade das Nações em 1925 e 1927, as resoluções da Sexta Conferência Internacional dos Estados Americanos em 1928, todos reafirmando a ilegalidade da guerra.

Mais do que os dispositivos do Pacto da Sociedade das Nações, a grande contribuição que se verifica no entre-guerras para o desenvolvimento do ius ad bellum, na sua versão moderna, é a adoção em Paris, a 27 de agosto de 1928 do Tratado Geral de Renúncia à Guerra, conhecido como Pacto Briand-Kellog. Sobre a iniciativa dos EUA e da França, tal acordo é recebido com grande entusiasmo, com a adesão às suas disposições pela maioria dos Estados independentes daquele período, inclusive o Brasil. O Pacto Briand-Kellog estatui em seu art. 1º: as Altas Partes Contratantes declaram, em nome de seus respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a resolução dos litígios internacionais e a ela renunciam, enquanto instrumento de política nacional nas suas relações mútuas. De certa forma este tratado é ainda mais progressista que o Pacto da Sociedade das Nações, cujos dispositivos não chegaram a banir por derradeiro a guerra. Entretanto, mesmo com a experiência catastrófica da Primeira Guerra, o estabelecimento da Liga das Nações e a euforia do Pacto Briand-Kellog, o recurso à violência na solução dos conflitos de interesses entre os Estados prevaleceu, levando a humanidade à mais atroz e vergonhosa de todas as guerras no dia 1 de setembro de 1939. Mas, lições foram tiradas do terror da guerra total, tal qual esclarece Guido Soares:

O que mais importa observar, com a experiência histórica do Pacto da Sociedade das Nações e do Pacto Briand-Kellog, foi que a guerra total, ao ter exigido uma regulamentação igualmente total da paz, veio colocar uma pá de cal nas teorias vigentes dos séculos anteriores, que tinham repudiado a discussão sobre a guerra justa, iniciada com os teólogos espanhóis. (...) o direito de ir à guerra não mais poderia ser deixado ao livre talante dos Estados, tidos como entidades soberanas e que somente admitiriam limitações auto-impostas. (16)

As catástrofes de 1914, repetidas com maior dosagem em 1939 sinalizaram pela impossibilidade de se qualificar qualquer guerra como justa. A paz universal seria o princípio por excelência para enterrar o flagelo da guerra. É este o espírito no qual se engaja a comunidade internacional quando, no dia 26 de junho de 1945, é assinada na cidade de São Francisco a Carta das Nações Unidas.

2.2.O DIREITO INTERNAICONAL E O TRATAMENTO DA GUERRA PÓS-1945

Está inaugurado um novo quadro no tratamento jurídico da guerra, onde além da busca pela sua regulamentação, dá-se a busca pela responsabilização dos seus causadores, tanto Estados quanto indivíduos, com o afloramento do Direito Penal Internacional nos Tribunais de Nuremberg e Tóquio. [17] O aperfeiçoamento teórico no tratamento jurídico da guerra dá um passo fundamental na sua abolição enquanto um direito subjetivo do Estado no exercício de sua soberania. Certo é que em todas as guerras as partes beligerantes continuariam a justificar seus atos através do velho critério moral do bellum justum, ou político do ius ad bellum. Mas, a partir da condenação da guerra por tratados internacionais, nem o critério moral nem o político convalidaria a legalidade do uso da força. O argumento da justiça na empreitada militar passa a ser mero recurso paliativo no convencimento da opinião pública nacional e internacional, mas sem qualquer efeito quanto à legalidade do ato.

A Carta das Nações Unidas enquanto um Direito Internacional novo põe abaixo toda a construção tradicional sobre a guerra, proibindo qualquer espécie de uso da força, ressalvadas excepcionalíssimas hipóteses. Há um claro desprezo pelas teorias dos séculos anteriores, por perdurar nestas um direito incontestado de os Estados fazerem a guerra, significando que, em matéria de ius ad bellum, os usos e costumes internacionais, fontes normativas essenciais do Direito Internacional Público, não tiveram muita relevância na regulamentação das situações de conflitos, então regulados unicamente pelas normas da Carta de São Francisco. Podemos citar os seguintes dispositivos que endossam esta afirmação:

Art. 1º Os propósitos das Nações Unidas serão:

1.Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: adotar coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os usos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz.

Art. 2º A organização e seus membros, para a realização dos propósitos mencionados no art. 1º, agirão com os seguintes princípios:

3. Todos os membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais.

4. Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra nação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.

5. Todos os membros darão às Nações unidas toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com a presente Carta e se absterão de dar auxílio a qualquer Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo preventivo ou coercitivo.

Art. 24

1. A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações Unidas, seus membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais, e concordam em que, no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade, o Conselho de Segurança aja em nome deles.

Art. 25 Os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança, de acordo com a presente Carta.

Art. 33

1. As partes em uma controvérsia que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha.

Ressalvadas as hipóteses de legítima defesa do Estado abordadas no Art. 51, que serão posteriormente analisadas, e demais disposições sobre as organizações regionais de promoção da segurança coletiva (cap. VIII da Carta), a entidade detentora por excelência de legitimidade para promover a paz mundial é o Conselho de Segurança. Os Estados signatários da Carta de São Francisco delegaram a competência para que aquele exercesse a prerrogativa do uso da força no âmbito internacional, tal como dispõe o art. 24.1. Ademais, em nenhuma hipótese há a possibilidade do uso legal da força internacional, seja pelos Estados, seja pelas Organizações Regionais, sem que o Conselho de Segurança atue como interveniente imediato ou mediato.

Tudo que se havia elaborado para admitir a justiça no uso da força foi abandonado pela Carta, em prol do estabelecimento de um novo projeto para as relações internacionais, onde, mais do que abandonado, o uso da força era considerado injusto. Mesmo a força utilizada em legítima defesa estava condicionada a um comportamento prévio do Conselho de Segurança, dotado de prioridade para agir ante qualquer ameaça à ordem e paz internacionais. (18)

Nas palavras de Guido Silva Soares, a Carta da ONU prevê apenas quatro exceções ao uso da força pelos Estados, sempre com a intervenção do Conselho de Segurança:

a) no exercício da legítima defesa individual ou coletiva; b) nas ações coletivas para a manutenção da paz; c) na luta dos povos no quadro do exercício de seu direito à autodeterminação e d) nas intervenções coletivas por motivos humanitários ou de humanidade. (19)

Apesar de a Carta das Nações Unidas ter categoricamente tornado ilegal o recurso à força como mecanismo de solução pacífica de controvérsias, esta, contraditoriamente, não define em termos precisos o que vem a ser "estado de guerra e agressão", o que levou a situações em que as hostilidades eram evidentes, mas as partes alegavam inexistir a guerra. A própria Carta menciona este termo uma única vez em seu preâmbulo, sem preocupar em estabelecer seus limites conceituais e de outros termos fundamentais como o de "ato de agressão". Como não havia uma definição precisa de agressão externa, a maior parte das guerras e intervenções militares na segunda metade do século XX foram justificadas como legítima defesa contra um ato inicial de agressão. Caso ilustrativo ocorreu em 1962 com a crise dos mísseis entre Havana e Washington, quando John Kennedy deu início a uma série de hostilidades contra Cuba, como o bloqueio naval da ilha, sobre a alegação de agressão de Fidel Castro ao instalar ogivas nucleares em seu território. Surge a seguinte questão: será que os EUA adotariam a mesma media caso ogivas houvessem sido instaladas pelo Canadá? O critério qualificador de um ato estrangeiro como agressão era, portanto, meramente subjetivo, ou seja, encontrava-se no talante de cada Estado mas, obviamente, apenas as grandes potências da guerra fria tinham condições de promoverem ataques sob o manto da legítima defesa. Insana e suicida seria a situação em que Cuba efetuasse o cerco naval da Flórida sob a alegação de legítima defesa contra as ogivas nucleares situadas em Miami.

Cientes deste impasse, várias foram as iniciativas de embaixadores da Assembléia Geral em adotar uma resolução definitiva sobre o assunto. Mas apenas em 14 de dezembro de 1974 a Resolução nº 3.314 aprovada por unanimidade na Assembléia dispôs sobre o conceito de agressão. Seu texto adota um sistema misto, no qual o artigo primeiro define agressão como: o "emprego da força armada por um Estado, contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado ou de qualquer forma incompatível com a Carta das Nações Unidas". Já o artigo terceiro abre um rol de atos ilegais que configuram agressão, os quais são meramente exemplificativos. Desta explanação conclui-se que décadas de discussão na Assembléia Geral não foram suficientes para produzir um texto tecnicamente preciso.

A Resolução resultou de um paciente trabalho em busca do consenso, e que se procurou conciliar as diversas correntes que propunham soluções aparentemente incompatíveis. O resultado foi um documento longo, muito maior do que qualquer texto análogo precedente, e, que, desde então, vem sofrendo críticas por sua prolixidade. [20]

Na verdade, mesmo com todo o aparato legal e o avanço teórico no tratamento da guerra trazido pelas Nações Unidas, a irracionalidade humana novamente prevaleceu e vários foram os conflitos na segunda metade do século XX. O período da guerra fria presenciou intervenções militares, em que, muitas vezes, as duas grandes potências buscavam legitimar os seus atos ou através da legítima defesa ou através de argumentos em defesa de princípios humanitários e restauração democrática por parte dos EUA [21] e a contenção da reação burguesa anti-socialista por parte da URSS [22]. Desnecessário, entretanto, afirmar que tais atos são desprovidos de qualquer respaldo legal face à Carta das Nações Unidas.


3. LEGITIMA DEFESA DO ESTADO NA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS

Tanto o direito internacional costumeiro quanto o positivo consagram há muito o emprego da legítima defesa por parte do Estado. A doutrina chega a conferir à legitima defesa status de direito subjetivo natural do Estado enquanto recurso necessário a garantir outro direito maior, qual seja o da sua preservação.

Interpretações extensivas da legitima defesa consagradas pelo direito internacional costumeiro e pelo artigo 51 da Carta da ONU foram e são constantemente utilizados como justificativa para invasões e intervenções. Assim dispõe o artigo:

Art. 51 Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legitima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.

Inovando o antigo tratamento dada à legítima defesa pelos usos e costumes, a Carta estabelece condições prévias para o seu exercício, além de não deixar dúvidas sobre sua provisoriedade, até que o Conselho de Segurança adote as medidas que lhe competem.

Da mesma forma que ocorre nos ordenamentos internos dos Estados, a legítima defesa é uma delegação da autoridade que legitimamente poderia empregar o uso da força, mas, que em determinada situação, não pode se fazer presente, havendo um perigo atual de dano a um determinado bem jurídico. Neste sentido, esclarece o penalista Damásio de Jesus que a concepção jurídica moderna do instituto da legítima defesa surge apenas quando, na linha de Max Webber, o Estado reclama para si a exclusividade do uso da força como meio de castigar a ofensa pública ou privada. [23] No âmbito internacional, a autoridade competente para empregar ou autorizar o uso da força é o Conselho de Segurança, que, em não podendo atuar prontamente em determinada situação, permite-se ao Estado utilizar a força em caráter provisório, devendo informar, imediatamente ao Conselho para que proceda na restauração da paz.

Não obstante a disposição do artigo 51 ser inquestionavelmente restritiva, qualquer interpretação das normas sobre este tema, por mais extensivas, devem ter por base dois elementos: a proporcionalidade e a iminência perigo de dano ou agressão a um bem jurídico. A proporcionalidade no Direito Internacional foi consagrada no clássico episódio do navio Caroline. Esta embarcação era utilizada por rebelados canadenses para o transporte de armamentos e combatentes voluntários a lutar pela independência. Ao ancorar em território americano, no Estado de Nova York, tropas britânicas, sob a alegação de legitima defesa contra atos de pirataria, incendiou e atirou o navio Caroline à deriva sobre as Cataratas do Niágara, vindo a falecer diversos tripulantes americanos. A coroa britânica defendia-se com base na legítima defesa preventiva contra atos de pirataria, ao passo que a argumentação americana ressaltava ser ilegal o excesso no exercício da legítima defesa, sendo inaceitável a desproporcionalidade entre o bem jurídico violado e o bem jurídico protegido. O caso Caroline deu subsídios para a corrente doutrinária que admitia a defesa preventiva como forma juridicamente aceitável. Westlake bem apresenta essa forma de pensamento clássico, ao afirmar que um Estado pode antecipar sua defesa contra um possível ataque de outro Estado. [24]

Com o advento da Carta da ONU contudo, em especial por força do artigo 51, não mais seria justificável a legitima defesa preventiva, posto que o artigo é expresso ao exigir um prévio ato de agressão. Quanto à agressão não cabia mais considerá-los meros atos políticos ou declarações hostis de chefes de Estado, posto que a Resolução 3.314 logrou defini-la. Mas a prática de alguns Estados e os usos e costumes, mesmo após a Conferência de São Francisco, tendem a flexibilizar o rigor do artigo, considerando legal não só a legitima defesa preventiva mas também sua irmã gêmea - a autoproteção.

Autoproteção, (self help ou self preservation), ao contrário da legítima defesa, não está sujeita a qualquer condição ou requisito, senão ao risco à segurança que o próprio Estado avalia estar sujeito. Seu exercício não requer que o adversário tenha cometido um prévio ato ilegal, injusto ou de agressão. [25]

Estados acusados de agressão não raras vezes buscavam mesclar os conceitos de legitima defesa preventiva e autoproteção. O caso do Canal de Corfu em 1956, é ilustrativo, onde a Inglaterra invadiu o Egito de Mustafá Kemal, alegando a necessidade de defender seus nacionais em território estrangeiro. Em sua argumentação, o governo britânico insistiu na legalidade de seu ato, alegando que o artigo 51 não havia revogado a interpretação do direito costumeiro sobre a ampla legítima defesa, consagrada no caso Caroline. Naquela mesma ocasião, a jurisprudência internacional fraquejou ao retroagir décadas de avanço no tratamento da matéria. A decisão adotada pela CIJ denotava a possibilidade do recurso à legítima defesa preventiva em nome de "direitos ofendidos", sem que tenha ocorrido uma agressão inicial. Contudo não há dúvida de que a decisão foi influenciada pela falta de conceituação deste termo, que só seria dada em 1974 pela Resolução 3.314 da Assembléia Geral. Mesmo com a dubiedade sobre a definição de agressão, canhestra foi a decisão, posto que o artigo 51 é bastante claro ao referir-se à necessidade de um prévio "ataque armado", o que não fora levado a feito pelo Egito. Ademais, tal decisão, não revoga ou sequer enfraquece o rigor do art. 51, pois, nos termos do artigo 59 da Corte Internacional de Justiça, a decisão da Corte não tem força vinculativa senão para as partes em litígio e em relação a esse caso concreto.

A ilegalidade da legítima defesa preventiva é evidente, com fulcro nos artigos 2.3, 2.4, 24, 33.1 e 51 da Carta das Nações Unidas e na Resolução 3.314. Outrossim, em 1981, o Conselho de Segurança e a Assembléia Geral, na discussão sobre a destruição do reator nuclear iraquiano por mísseis de Israel, consideraram ilegal o uso preventivo da força.

Enfim, somente é considerado legal a legítima defesa fundada em prévio ataque armado. Esta máxima, a princípio, cria o inconveniente estratégico e a injustiça de permitir ao agressor as vantagens do primeiro ataque, onde os exemplos da bitz krieg na Polônia e o bombardeio de Pearl Harbour são salutares. Contudo, o espírito das Nações Unidas é justamente consagrar a paz como princípio elementar, preferido, inclusive, ao princípio da justiça. A busca pela justiça a qualquer preço foi amenizada com a condenação de suas crias - o justum bellum e o ius ad bellum - incapazes de evitar as catástrofes da guerra em gerações passadas. A paz seria a justiça em si mesma, pois pouparia as gerações futuras do flagelo da guerra.


4. AS RESOLUÇÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA SOBRE A QUESTÃO IRAQUIANA E A INTERVENÇÃO AMERICANA

Ao todo, 65 Resoluções do Conselho de Segurança referem-se à questão iraquiana desde a primeira guerra do golfo em 1990, tratando tanto de questões militares quanto humanitárias. Obviamente, a proposta deste trabalho não viabiliza o debate sobre cada Resolução em separado, mesmo porque a maior parte possui conteúdo apenas programático e procedimental como prorrogação dos mandatos da operação de peace keeping criada (UNIKOM), entre outras. De tal forma, apenas as consideradas mais relevantes serão esmiuçadas.

A Resolução 687 de 3 de abril de 1991 detalhou os termos do cessar-fogo da primeira guerra do golfo, através da demarcação da fronteira entre Iraque e Kwait. Tal Resolução impôs a Saddam Hussein a renúncia incondicional à qualquer espécie de programa ou armamentos de destruição em massa (biológicos, químicos ou nucleares), inclusive a exigência da destruição de mísseis balísticos com alcance superior a 150 km e os respectivos silos de armazenamento.

Um sistema de inspeção através de uma Comissão especializada das Nações Unidas se encarregou de verificar o desarmamento iraquiano, o qual deveria se completar até agosto de 1991. Anos mais tarde, várias Manifestações do Conselho censuraram o governo iraquiano pelo descumprimento e violações à Resolução 687, sendo, as principais, a de número 707 de augusto de 1991, e a 1.205 de novembro de 1998. Um embargo econômico com o rompimento das relações comerciais foi imposto ao Iraque como represália aos atos de ilegalidade e como uma maneira de forçá-lo a cumprir as referidas Resoluções.

Em 1995, França, China e Rússia obtiveram do Conselho um levantamento do embargo contra o Iraque, por meio de um programa administrado pelo mesmo, "Alimentos para a Paz", com a retomada das exportações de petróleo para aqueles países, por razões de interesse humanitário (Resolução 986 de 1995). Tal proposta seria boicotada pelos americanos e ingleses que, apoiados em uma interpretação extensiva das Resoluções anteriores deram continuidade aos raids aéreos a partir de 1998, sem sequer informar o Conselho de Segurança.

Em reunião das casas legislativas do Congresso americano em outubro de 1998, foi passada a autorização para uma intervenção no Iraque com o fito de remover Saddam Hussein do poder e promover a emergência de um governo democrático. As causas principais de tal autorização foram apontadas como sendo os crimes de guerra cometidos no confronto com o Irã, a ocupação do Kwait, a malograda tentativa de abater o avião em que se encontrava o presidente George H. Bush em 1993 por mísseis iraquianos, a repressão ao povo curdo ao norte e aos chiitas ao sul do Iraque, a violação à exigência do desarmamento e a inexistência de democracia. Dias mais tarde e, sem os auspícios do Conselho de Segurança, EUA e Grã-Bretanha bombardearam parte do território iraquiano na chamada Operação Raposa do Deserto. Naquela ocasião, a operação foi contestada no Conselho pela Rússia, sob a alegação de que os dois países não tinham o direito de agir de maneira autônoma em nome da ONU ou assumir a função de polícia do mundo. Para o Kremlin, as Resoluções que autorizaram o uso da força em 1990 não se estendiam no tempo, sendo mister uma nova Resolução autorizando tal feito.

Os limitados bombardeios de 1998 deram lugar a um projeto audacioso e mais amplo do presidente George W. Bush de restabelecer a "ordem" no Oriente Médio. Os ataques terroristas de 11 de setembro ungiram a agressiva política externa dos novos falcões da América, anunciando uma nova era nas relações internacionais.

Nos momentos prévios à intervenção anglo-americana, estava claro que o Conselho de Segurança, induzido pela posição de três de seus membros permanentes (França, Rússia e China) e a maior parte dos não permanentes, não havia se disposto a autorizar uma empreitada militar americana contra o Iraque. As Resoluções dos últimos meses de 2002, principalmente a 1.441, não só desautorizavam o uso da força como instituía a United Nations Monitoring Verification and Inspection Comission (UNIMOVIC), sob a direção de Hans Blix, para inspecionar e buscar provas sobre a existência de armas de destruição em massa. Em 3 de dezembro de 2002, o Conselho passa a Resolução 1.454, pela qual são aprovados os relatórios parciais da UNIMOVIC, na verdade, sem terem eles concluído por uma afirmação de posse ou presença no Iraque, dos armamentos químicos e biológicos alegados pela coalizão anglo-americana. Insatisfeitos, os EUA exigem do Conselho uma segunda manifestação autorizando a intervenção, o qual não ocorre. Na mesma Resolução 1.454, os membros da UNIMOVIC apresentariam, por insistência dos EUA, novos procedimentos de verificação e a conseqüente solicitação de maior prazo para a conclusão de sua tarefa. Entretanto, os trabalhos da Comissão continuaram apenas por um breve período, tendo a Casa Branca anunciado a guerra.

Em março de 2003, quando os EUA e a Inglaterra finalmente lançaram armas contra o Iraque, os dois governos alegaram o não cumprimento por Saddam Hussein a certas Resoluções do Conselho na primeira guerra do golfo e a continuidade da autoridade concedida por tais Resoluções para utilizar a força para o restabelecimento da ordem no Golfo Pérsico. John Negroponte, embaixador americano na ONU, assentou a posição americana nos seguintes termos:

As ações levadas a cabo são autorizadas nos termos das vigentes Resoluções do Conselho, incluindo suas Resoluções 678 (1990) e 687 (1991). A Resolução 687 impôs uma série de obrigações que foram condições para o cessar fogo. Tem-se longamente reconhecido e entendido que uma brecha material destas obrigações remove a base do cessar fogo e restabelece a autoridade para se utilizar a força nos termos da Resolução 678. Esta tem sido a base do uso da força pela coalizão no passado e tem sido aceita pelo Conselho, como evidência, por exemplo, pelo anúncio público do Secretário Geral em Janeiro de 1993, atestando que a brecha material iraquiana em relação à Resolução 687 permite a partipação da coalizão como um mandato do Conselho para o uso da força de acordo com a Resolução 678. (26)- (27)

O argumento de que antigas Resoluções do Conselho de Segurança conferem uma contínua autoridade para o uso da força em diferentes situações e doze anos após suas aprovações é, no mínimo, inconsistente. A Resolução 678 de 29 de Novembro de 1990 autoriza os Estados colaboradores com o governo do Kwait a utilizarem os meios necessários para restabelecer a paz e a ordem na região, mas, ao contrário do que se verificou com a intervenção, não autoriza a retomada da guerra e da desordem no Oriente Médio.

A Resolução 1.441 aprovada por unanimidade em 8 de novembro de 2002 tem sido objeto de divergentes interpretações. Seu texto contém crassas ambigüidades e imprecisões, especialmente sua referência às sérias conseqüências caso o Iraque falhar em colaborar. Apesar de tal Resolução ter condenado a situação de incumprimento iraquiano às exigências da Resolução 687 (como inúmeras outras já haviam feito), não há qualquer autorização expressa ou tácita para o uso da força como conseqüência.

A grande questão a ser discutida para esclarecer a incompatibilidade da intervenção com as manifestações do Conselho de Segurança é a natureza da autorização ao uso da força contra o Iraque pela Resolução 678 de 1990. Trata-se de uma delegação limitada a um determinado contexto de invasão o Iraque a um país vizinho ou uma delegação contínua? E, ainda que se considere uma delegação contínua do direito ao uso da força para "restabelecer a ordem", outras questões devem ser esclarecidas:

Se houve uma contituidade de autoridade de 1991 a 2003, quem se investiu desta autoridade? (…) Se o Conselho de Segurança autoriza certos Estados-membros a executar uma tarefa, mas, posteriormente estes são incapazes de concordar com a ação, a autorização original subsiste? As presentes posições do Conselho, as quais em Março de 2003 foi, na maior parte, contra o uso da força, revoga suas autorizações anteriores? [28]- [29]

Outro ponto essencial está em que a resolução 678 referia-se aos Estados membros em cooperação com o governo do Kwait em 1991, que na época eram em número de trinta. Em 2003, os Estados participantes da nova intervenção são distintos, apesar de os dois principais participantes (EUA e Inglaterra) terem permanecido. No final das contas, apesar de posições, nem sempre imparciais, de alguns teóricos a favor da interpretação extensiva da Resolução 678, a parte majoritária estabelece limites evidentes à autorização concedida às tropas que libertaram o Kwait em 1990. Não se trata apenas de uma incompatibilidade temporal de doze anos separando a primeira da segunda guerra do golfo. Talvez o ponto fundamental está em que o Conselho de Segurança manifestou-se através de várias outras Resoluções mais recentes como a 1441, no sentido de buscar solucionar pacificamente as controvérsias na região. Mas, para os Estados Unidos, a ação militar foi convertida como primeiro instrumento da política exterior em lugar de ser seu último recurso, como consagra a norma e a lógica das relações internacionais.


5. A LEGALIDADE DA INTERVENÇÃO NO IRAQUE

Toda a argumentação exaustivamente desenvolvida neste trabalho leva à conclusão pela inquestionável ilegalidade da empreitada militar anglo-americana. Para tal conclusão não se faz necessário um árduo esforço argumentativo, na medida que os próprios falcões americanos e pretensos senhores da nova ordem internacional, empossados em 2002, sempre manifestaram a idéia de que a lei e a vontade da comunidade internacional não impediria o uso da força. Donald Rumsfeld, secretário de defesa americano bem sentenciou a última palavra de seu governo – "os EUA irão ao Iraque com a ONU ou sem a ONU". Se a operação da OTAN na Yugoslávia em 1995 já padecia de ilegalidade por ter atuado sem a autorização do Conselho de Segurança, nos termos do capítulo VIII da Carta da ONU, a intervenção no Iraque foi ainda mais obtusa, tendo sequer sido lograda por alguma organização regional de segurança coletiva como a OTAN. Esta aliás, manteve-se, juntamente com o Conselho de Segurança, contra a intervenção nas condições propostas (ou impostas) pelos Estados Unidos.

A derrubada do governo de Saddam Hussein passou a ser uma obsessão do governo George W. Bush. Os motivos confessados ou não confessados são variados e de pouca relevância para este estudo. Importa, antes, examinar os mecanismos diplomáticos que foram escolhidos pelo governo americana, os quais, em hipótese alguma e em nenhuma circunstância, corresponderam a sequer uma busca de legitimação, mesmo que a posteriori. Ante a uma decisão baseada numa política de poder e na dissuasão militar efetiva com argumentos ultrapassados, as conseqüências da intervenção no Iraque passam pela erosão do sistema de segurança coletiva regulada pela ONU, pelo reflexo no sistema tradicional de alianças existentes na OTAN e pela alteração na ordem existente a partir da OCDE.

Em termos doutrinários, esclarece Celso de Albuquerque - Intervenção é a interferência, por um ou mais Estados nos assuntos internos ou externos de outro Estado soberano sem seu consentimento, tendo como fim alterar certo estado de coisas. [30] Apesar de alguns autores mencionarem os fatos ocorridos no Iraque a partir de março de 2003 sob o título de intervenção, o nomen iuris mais apropriado seria guerra (dado o conceito já esclarecido na introdução e ao longo do trabalho) [31] e a guerra, no sistema acordado na Carta de São Francisco, sem a interveniência do Conselho de Segurança é, ab initio, ilegal.

Não cabe rebater os poucos e falhos argumentos do governo americano e britânico pela existência de armas de destruição em massa no Iraque, pela viabilidade de uma intervenção humanitária naquele país ou resgatar o ultrapassado discurso sobre a possibilidade da legítima defesa preventiva. Sequer os governos destes países levaram a sério tais argumentos na busca de alguma legitimidade, sendo aqueles meros paliativos ao convencimento da opinião pública interna. Não só a intervenção propriamente dita, mas o tratamento aos presos civis e militares iraquianos com total desprezo à Convenção de Genebra e demais tratados de proteção dos direitos humanos, demonstram que, recentemente, não há maiores dificuldades em identificar atos ilegais do governo Bush e sua política externa frente às normas internacionais.

O certo é que o sistema de segurança coletivo evoluído ao longo de séculos e coroado em 1945 em São Francisco foi cortado pela raiz e, mesmo as opiniões mais idealistas reconhecem a redefinição ainda incerta do papel do Conselho de Segurança como legítimo guardião da atribuição de manter a paz e a ordem internacional.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fim da União Soviética e da bipolaridade global inauguraram, no início da década de 90, um período de indefinição entre os teóricos das relações internacionais sobre a natureza da nova ordem. Para uma corrente internacionalista, a ênfase é dada à perda de importância das questões de segurança na agenda internacional com o fim da guerra fria. Nesta grandeza, a interdependência entre os Estados e os novos atores como ONG’s, Organizações Internacionais, empresas multinacionais e transnacionais denota uma multipolaridade de blocos econômicos, onde Japão, Estados Unidos e União Européia emergem como os atores dominantes no campo econômico. Questões de âmbito global como terrorismo, tráfico de drogas e pessoas, meio ambiente, comércio internacional, saúde, desigualdade e mesmo a segurança passam a ser tratadas por organizações multilaterais. No mundo globalizado e interdependente, os Estados deixam de ser inimigos que se ameaçam com guerras, transformando-se em democracias e passando a competir comercialmente por meio de suas empresas privadas.

Uma posição tradicional de cunho neo-realista, por sua vez, reza pela permanência do dilema da segurança mesmo no mundo interdependente. Autores desta corrente consideram ter o fim da guerra-fria inaugurado um período de sólida hegemonia americana pela inexistência de uma nova União Soviética que pudesse ameaçá-la. A questão da segurança é ainda tratada com prioridade, sob a manta de high politic, ao passo que as demais questões teriam uma importância subsidiária.

A política externa americana, a partir do governo George W. Bush, parece refletir esta segunda posição com um radicalismo dos tempos de Clausewitz. Inimigos sem rosto são criados para resgatar o dilema da segurança e a imposição pela força e ameaça são os meios adequados para se atingir às finalidades e "interesses" da nação. Trata-se de uma política externa completamente anacrônica, posto que as teorias realistas das relações internacionais foram desenvolvidas e inspiraram as práticas de estadistas do porte de Nixon em um período onde a guerra era iminente. Da mesma forma entende Bresser Pereira:

Ao propor a guerra contra o Iraque, da mesma forma que antes, ao denunciar o acordo de Kyoto, ou ao recusar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, Bush e os falcões nacionalistas que o rodeiam, divididos em dois grupos, os neoconservadores da Costa Leste e os cristãos messiânicos da Costa Centro-Sul, revelam-se governantes incapazes de compreender a natureza do tempo em que vivem. Transformam os Estados Unidos em um gigante fora do tempo, que age como se estivesse no século XIX. [32]

Durante a guerra fria o conflito era de fato uma possibilidade cotidiana e as questões de segurança eram primordiais na agenda internacional. Já na década de 70 a segurança passa a ombrear com outras áreas temáticas. O diálogo leste-oeste, por exemplo, aos poucos cede espaço norte-sul, além de outras novidades na agenda internacional.

A intervenção no Iraque, obviamente, altera o seguimento que vinha sendo dado às relações internacionais. Mas afirmar que período a se seguir será de unilateralismo é pouco consistente. As empreitadas militares promovidas e ainda a serem promovidas pelos EUA não demonstram de maneira alguma sua hegemonia, tal como quer os adeptos da corrente neo-realista. O elevadíssimo déficit público e na balança de pagamentos dos Estados Unidos, a perda do valor do dólar frente ao euro, a incapacidade em conter o terrorismo, o desmantelamento de antigas alianças e o surgimento de novas potências econômicas como a Índia e a China são mais determinantes para o futuro da posição americana no sistema internacional que qualquer invasão de países castigados por anos de embargo econômico ou a deposição de tiranos no mundo árabe.

Talvez a mudança mais significativa que pode-se, desde já, ser apontada seja a quebra em definitivo do regime de segurança coletivo que vinha padecendo muito antes da guerra do golfo. O Conselho de Segurança ainda é o órgão legalmente instituído com a exclusividade no uso da força no âmbito internacional, mas a prática dos Estados há muito destoam com as leis e o Direito Internacional, pois na lição de Kelsen, a norma está no plano do dever ser. Esta inconformidade porém gera um inconveniente muito mais político que jurídico. O fato de os EUA e demais Estados constantemente desrespeitarem as disposições da Carta das Nações Unidas não tornam tais atos legais, legítimos, ou mesmo morais.

Posições céticas e alardeantes como a do ilustre jornalista Paulo Francis, o qual na década de oitenta já afirmava que ninguém sério leva as Nações Unidas à sério, são verdadeiras tagarelices. O critério moral e legal ainda é, e sempre serão o da conformidade dos atos dos Estados com as normas internacionais que, em se tratando de segurança coletiva, estão dispostas na Carta de São Francisco. Mesmo que a política externa americana paute-se na força em detrimento do Direito Internacional, a sociedade civil internacional e doméstica não raciocina como Maquiavel e os falcões de Bush e muitas vezes exigem que os atos políticos sejam também morais. Não resta dúvida, portanto, que, por mais desacreditada que seja o Conselho de Segurança e as Nações Unidas como um todo no exercício de suas finalidades, vale a posição do embaixador Antônio de Aguiar Patriota, de que as Nações Unidas não constituem uma garantia de paz mundial. Por isso mesmo, deve-se preservá-la e trabalhar pelo seu fortalecimento. Os custos de manutenção da Organização são mínimos em comparação com os riscos que correríamos na eventualidade de seu desaparecimento.


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SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1.


NOTAS

1SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público Resumido. Belo Horizonte: Inédita, 1999, p. 417.

2 A consolidação do Direito Internacional Público como disciplina e corpo normativo autônomo e sistematizado se dá basicamente nos séculos XVI e XVII, com a consolidação do Estado como organização político-jurídica em substituição aos feudos. Neste sentido, o Tratado de Westfália de 1648 estabeleceu verdadeiro divisor de águas no tratamento desta disciplina e na configuração da ordem internacional. Destarte, sua denominação mais correta nos períodos anteriores ao século XVII é a expressa por Hugo Grócio, qual seja o direito das gentes, claramente influenciado pelo ius gentium romano.

3 SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público Resumido. Belo Horizonte: Inédita, 1999, p. 19.

4 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 27.

5 SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público Resumido. Belo Horizonte: Inédita, 1999, p. 21.

6 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 30 a 36.

7 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 33.

8 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 9.

9 CERVO, Amado Luiz. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). Relações Internacionais - dois séculos de História, vol. 1. Brasília: IBRI, 2001, p. 66

10 De 1815 a 1870, raras foram as guerras de grandes proporções entre Estados europeus, com exceção da Guerra da Criméia (Inglaterra e França contra a Rússia) em 1953, as guerras pela independência na Bélgica e Grécia, e os movimentos revolucionários de 1820, 1830 e 1848 em boa parte dos Estados europeus, os quais, apesar de terem surtido efeitos transnacionais, estavam longe de configurar um conflito entre Estados soberanos.

11 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 10.

12 HOBSBAWM, Eric Jonh. A Era do Capital, 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 114.

13 HOBSBAWM, Eric Jonh. A Era dos Extremos, 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 51

14 O objetivo de representar universalmente a sociedade internacional não se completou pela não adesão de importantes países, principalmente os Estados Unidos.

15 RANGEL, Vicente Marota. Direito e relações internacionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed. 1988, p. 98.

16 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 12.

17 Cabe aqui lembrar que foi no período entre-guerras que se deu a primeira tentativa de responsabilizar um chefe de Estado pelos crimes cometidos em guerra, qual seja o Kaiser Guilherme II pelos crimes cometidos na Primeira Guerra Mundial.

18 SCHACHTER, Oscar. In defense of international rules on the use of force. In: University of Chicago Law Review, vol. 53, 1986, p. 126.

19 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 15.

20 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 146.

21 Tome-se como exemplo as intervenções em El Salvador, Nicarágua, Panamá, Chile, Vietnã, Coréia e Irã.

22 Tome-se como exemplo as intervenções na Alemanha Oriental, Hungria, Checoslováquia e Afeganistão.

23 DAMASIO, Jesus E. de. Direito Penal – parte geral. Vol. 1, 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 381.

24 BROWNLIE, Ian. International law and the use of force by states. Oxford, ed. Clarendon Press, 1963, p. 256. Apud: HUCK, Hermes Marcel. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 177.

25 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 185.

26 Carta datada de 20 de Março de 2003 do Representante dos Estados Unidos nas Nações Unidas endereçada ao Presidente do Conselho de Segurança.

27 The actions being taken are authorized under existing Council Resolutions, including its resolutions 678 (1990) and 687 (1991). Resolution 687 imposed a series of obligations, that were conditions of the ceasefire established under it. It has been long recognized and understood that a material breach of these obligations removes the basis of the ceasefire and revives the authority to use force under resolutions 678. This has been the basis for coalition use force in the past and has been accepted by the Council, as evidenced, for example, by the Secretary-General’s public announcement in January 1993 following Iraq’s material breach of resoltion 687apply the coalition participation as a mandate from the Council to use force according to resolution 678 (tradução livre).

28 ROBERTS, Adam. Law and the use of force after Iraq. In: Survival, verão de 2003, vol. 45, nº 45, p. 43.

29 If there was continuity of authority from 1990 to 2003, in whom was that authority vested? (...) If the Council authorises certain member states to undertake a task, but is then unable to agree on follow-up action, does the original authorization still stand? Do the current views of the Council, wich in March 2003 were, for the most part, against the use of force, trump its past authorisations? (tradução livre)

30 MELLO, Celso C. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 391.

31 Guerra é a luta armada entre Estados desejada ao menos por um deles e empreendida tendo em vista um interesse nacional.

32 BRESSER, Luiz Carlos Pereira. O gigante fora do tempo: a guerra do Iraque e o sistema global. Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1.


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CERQUEIRA, Daniel Lopes. A intervenção americana e britânica no Iraque: uma análise sobre a sua legalidade e efeitos nas relações internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 606, 6 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6339. Acesso em: 24 abr. 2024.