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A importância das missões de paz no século XX

A importância das missões de paz no século XX

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Desde a primeira experiência bem-sucedida, em 1948, as operações de paz protagonizaram os maiores sucessos e os mais desastrosos fracassos das Nações Unidas em sua tarefa de evitar tragédias dentro da comunidade internacional.

RESUMO: Desde sua concepção, a Organização das Nações Unidas observa as operações de paz como o modo mais expressivo para contribuir com a manutenção da segurança internacional e a preservação dos direitos humanos. Através dessas missões, a ONU intervém diretamente em conflitos regionais que interferem no funcionamento de países e busca garantir o desfecho menos traumático para as partes conflitantes. Desde a primeira experiência bem-sucedida, em 1948, as operações de paz protagonizaram os maiores sucessos e os mais desastrosos fracassos das Nações Unidas em sua tarefa de evitar tragédias dentro da comunidade internacional. Apesar dos tropeços, o século XX não seria o mesmo sem essas missões, presentes nas principais guerras travadas nas décadas que seguiram à Segunda Guerra Mundial.

PALAVRAS-CHAVE:Nações Unidas. Operações de Paz. Conflitos. Conselho de Segurança.


1 INTRODUÇÃO

Apesar de não estarem legalmente previstas em seu regimento interno, as missões de paz planejadas pela Organização das Nações Unidas foram estabelecidas nos primeiros anos de sua existência, tornando-se a medida mais expressiva da organização na salvaguarda da segurança e na proteção aos direitos humanos da comunidade internacional. Durante as décadas que sucederam a criação da ONU, o objetivo final dessas operações permaneceu o mesmo, garantir o desfecho menos traumático possível em conflitos locais.

Neste artigo, será exposto o papel das operações de paz estabelecidas pelas Nações Unidas para a preservação dos direitos humanos em zonas de risco, assim como as suas diferentes características durante os anos. A natureza altamente mutável das crises diplomáticas exigia uma ferramenta que pudesse adaptar-se na mesma intensidade, com missões de paz capazes de cumprir seus mandatos de acordo com as especificidades do caso concreto. Por consequência da constante mudança de características, uma noção pacificada de como essas intervenções da ONU deveriam proceder era um dos aspectos mais complicados.

Inicialmente, pilares foram elaborados para nortear a aplicação das operações de paz nesse novo cenário internacional de um sistema de proteção das nações, surgido após a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, a realidade dos desafios enfrentados demonstrou a complexidade de se traçar arestas para a incidência dos efeitos de uma missão de paz sem ter um conhecimento prático prévio.

Findada a Guerra Fria, o contexto mundial ganhou novos contornos, gerando uma nova demanda por missões de paz mais complexas e multifuncionais. Atritos sociais e culturais passaram a protagonizar várias crises diplomáticas, exigindo uma reformulação na maneira que as Nações Unidas gerenciavam suas operações humanitárias e militares de manutenção da paz.

Não tardou para que a política tradicional de intervenção das Nações Unidas, ainda pautada na dinâmica dos embates existentes na comunidade internacional das décadas de 1950 e 1960, apresentasse seus primeiros tropeços no fim do século XX. Assim, uma reforma na aplicação dessas medidas tornou-se a principal pauta do Conselho de Segurança, visto que uma revisão nas operações de paz ganhou contornos mais dramáticos com o alto número de mortos em conflitos regionais desse período, dados que serviram de combustível para uma mudança na logística das operações da ONU, com o fim de viabilizar um eficiente sistema de proteção dos direitos humanos dentro da configuração política internacional moderna.


2 O CONCEITO DAS MISSÕES DE PAZ NA CARTA DAS NAÇÕES

Em sua concepção, a Carta das Nações foi assinada para criar uma organização capaz de convergir os esforços internacionais dos países-membros na manutenção da paz e da segurança mundial, surgindo, assim, a Organização das Nações Unidas. Embora não haja previsão expressa no seu regimento, as operações de paz foram criadas nos primeiros anos de existência da ONU atendendo aos objetivos normatizados dos Capítulos VI (solução pacífica de conflitos), VII (ação em caso de ruptura de paz e atos de agressão) e VIII (participação de organizações regionais e sub-regionais na manutenção da paz e segurança) da aludida Carta. Assim, afirma-se que missões de paz, definidas para resguardar os direitos humanos da população e buscar uma resolução diplomática entre as partes conflitantes, encontram esse respaldo legal para funcionar como instrumentos de intervenção em áreas conflagradas, respeitando a soberania dos Estados e a autodeterminação dos povos, princípios norteadores do Direito Internacional Público.

A primeira operação de paz organizada pela ONU ocorreu em 29 de maio de 1948, com o Acordo de Armistício durante a Primeira Guerra Árabe-Israelense. Nessa data, o Conselho de Segurança, mediante a Resolução nº 50/1948, criou a Organização da ONU de Supervisão de Trégua (UNTSO) no Oriente Médio com o mandato – a descrição das tarefas da missão - de garantir o cumprimento do cessar-fogo, além prevenir incidentes locais que prejudicassem o acordo. Essa missão de paz continua alocada na região até hoje, auxiliando outras operações e ocupando o papel de observador dos atritos culturais e sociais entre grupos locais.

Cumpre frisar que as operações de paz, em razão da ausência de previsão legal no regimento interno das Nações Unidas, não possuíam forma definida ou parâmetros em sua execução. De início, a única formalidade existente era de que o Conselho de Segurança detinha a competência para definir operações de paz, salvo exceções, mediante resolução que determinasse seu mandato.

Outrossim, o aparato militar para executar essas missões não pertence às Nações Unidas, visto que a ONU não possui força própria, tendo soldados cedidos pelos países-membros para compor as tropas de “capacetes azuis”, nome popularmente dado aos soldados participantes de operações de paz devido a cor azul dos elmos. Cumpre frisar que tal determinação está prevista na Carta das Nações Unidas, em seu art. 43, in verbis:

Artigo 43. 1. Todos os Membros das Nações Unidas, a fim de contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais, se comprometem a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais.2. Tal acordo ou tais acordos determinarão o número e tipo das forças, seu grau de preparação e sua localização geral, bem como a natureza das facilidades e da assistência a serem proporcionadas

Bases mais fortes foram colocadas para as missões de paz em 1956, quando uma crise política conhecida como “Guerra de Suez” eclodiu envolvendo atritos econômicos entre Egito e potências européias, com a Assembléia Geral da ONU reagindo prontamente.


3 OPERAÇÕES DE PAZ DURANTE A GUERRA FRIA

Através da criação da primeira Força de Emergência das Nações Unidas (First United Nations Emergency Force – UNEF I), aprovada pela AGNU por meio da Resolução 1001/1956 para intervir na Guerra de Suez, foi estabelecida uma operação composta por tropas armadas, autorizadas a usar força em cenários específicos. A UNEF I foi a primeira missão de paz “tradicional” e para definir as arestas do seu campo de atuação o então Secretário-Geral da Organização, Dag Hammarskjöld, tentando disseminar a noção de diplomacia preventiva, estabeleceu três linhas centrais, valores absorvidos pelas Nações Unidas que se perpetuam até as missões de hoje, que são: a) consentimento das partes, b) imparcialidade e c) uso mínimo de força.

Em razão da ausência de menção expressa na Carta das Nações Unidas, operações de peacekeeping sofreram uma falta de conceituação clara e a iniciativa de Hammarskjöld demonstrou a dinamicidade das operações de paz em adequar-se às necessidades do conflito, um dos grandes trunfos dessa medida para o controle de crises.

A questão da força utilizada nas operações é um capítulo à parte dentro da organização. No início da trajetória das missões de paz, ainda restava compreender a extensão das capacidades que as Nações Unidas tinham em amenizar crises através dessas operações que, na época, se limitavam a monitorar a execução dos acordos firmados entre as partes conflitantes no âmbito diplomático e promover ajuda humanitária. Assim, uma mudança na utilização do processo de peacekeeping seria inevitável tendo em vista o contexto propenso a conflitos que existia durante a Guerra Fria.

Em 1960, o Congo passava por fortes intempéries políticas dentro de seu território após a emancipação da Bélgica e consequente invasão de tropas belgas em seu país. Diante do caos amargado pela população local, o Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou a criação da Operação das Nações Unidas no Congo (Óperation des Nations Unies au Congo – ONUC), através da Resolução nº 143/1960, tendo como mandato inicial a manutenção da ordem e o afastamento das tropas belgas e, posteriormente, estendendo-se também a proteção da integridade territorial e a ajuda para estabelecer um novo governo legítimo.

A ONUC foi uma operação sem precedentes na história das Nações Unidas em razão de ser uma intervenção direta nos assuntos internos de um país-membro, passando por uma transição de missão de manutenção da paz para uma força militar de imposição da paz, sendo a primeira operação de peace enforcement. Em razão da alta complexidade do conflito, caracterizado por um governo totalmente instável enfrentando uma situação de guerra, o Conselho de Segurança flexibilizou o formato tradicional das missões de paz, permitindo o uso de força pelos capacetes azuis quando fosse necessário, mediante Resolução nº 161/1961. Em 1964, a ONUC foi encerrada com seu mandato cumprido.

Apesar do sucesso em evitar uma guerra civil de proporção nacional e restaurar a estabilidade política do país, essa missão no Congo teve repercussões negativas. Além do falecimento do Secretário-Geral Dag Hammarskjöld durante um dos compromissos vinculados à UNODC, a operação gerou uma crise diplomática e econômica em virtude do posicionamento de países-membro contrários aos atos parciais da ONU, privilegiando um dos lados do conflito. União Soviética, França e Bélgica recusaram-se em contribuir com os custos da missão, quase levando as Nações Unidas à falência.  Nos vinte anos seguintes, houve apenas cinco missões de paz, fruto de uma retração proveniente da falta de consenso dentro da organização.

Em geral, as missões de paz tiveram sucesso no cumprimento de seus mandatos durante a Guerra Fria, apesar das complicações oriundas do período. Membros permanentes do Conselho de Segurança utilizavam-se do seu poder de veto para manter as Nações Unidas distantes de conflitos que a interessavam, impedindo que operações desse tipo acontecessem. Nesse ínterim, 14 missões de paz foram realizadas com relativo sucesso, estimulando um maior fortalecimento das operações de paz.

Findada a Guerra Fria, novas variáveis passaram a reger o cenário internacional. Disputas intraestatais ou interestatais, de cunho étnico, religioso e cultural, entre grupos armados que não reconhecem a autoridade das Nações Unidas, ganharam expressividade, incitando uma revisão nas atribuições das operações de paz de forma a zelar pela paz dentro desse novo contexto.


4 FRACASSOS DA ONU NO FIM DO SÉCULO XX

Na década de 1990, as operações de manutenção de paz acumularam seus maiores fracassos, comprometendo as diretrizes consagradas por Dag Hammarskjöld. Um desses episódios ocorreu na Somália, em 1992, quando o Conselho de Segurança decidiu intervir nos conflitos entre facções tribais que ocorriam na região desde 1986. Mediante a Resolução nº 751, emitida em 24 de abril de 1992, foi criada a Operação das Nações Unidas na Somália I (United Nations Operation in Somalia I - UNOSOM I) para garantir o cumprimento do cessar-fogo firmado entre as partes beligerantes em Mogadishu, capital somaliana.

Apesar dos esforços em garantir um ambiente seguro para a assistência humanitária, outras missões precisaram ser estabelecidas, existindo, em 1993, uma UNOSOM II, com um mandato que permitia o uso da força para aplicar métodos coercitivos com o intuito de alcançar o apaziguamento da situação local. O descontrole no gerenciamento da missão, com tropas de capacetes azuis atacando uma das partes do conflito, gerou a perda do apoio de grandes potências e inviabilizou o sucesso em efetivar os objetivos previstos em seu mandato. Após o fim da missão, em retrospecto, apesar das 154 mortes de peacekeepers, percebe-se que "a intervenção na Somália não foi uma falha abjeta, uma estimativa de 1.000 vidas foram salvas, mas a falta de gerenciamento deve ser uma lição ilustrativa para membros das operações de paz em outras missões" (CLARK, Walter & HERBST, Jeffrey. 2013.).

No mesmo ano de 1992, a região do Leste Europeu passava por abruptas mudanças com a dissolução da Ioguslávia, concentrando atritos entre diferentes grupos étnicos, culturais e religiosas. Em razão disso, o Conselho de Segurança das Nações Unidas emitiu Resolução nº 743 para autorizar a criação da Força de Proteção das Nações Unidas (UN Protection Force - UNOPROFOR), força de paz que teve como mandato delimitar áreas seguras para a população civil da região. Em 1995, tropas sérvias, comandadas pelo general Ratko Mladic, invadiram a cidade de Srebrenica, local guardado pelas Nações Unidas que concentrava mais 40 mil refugiados, e massacraram mais de 8 mil bósnios mulçumanos. Membros da missão de paz solicitaram ataques aéreos para proteger a cidade, mas foram recusados, com receio de causar maiores dificuldades para a resolução diplomática da guerra. A falta de operações de paz mais compatíveis com as condições dos conflitos enfrentados havia contribuído para mais um capítulo tenebroso do séc. XX, dessa vez, o primeiro genocídio reconhecido após o Holocausto.

Contudo, a pior das cicatrizes deixada por essa década aconteceu em Ruanda. Em 1993, o país enfrentava o auge das tensões entre os dois grupos étnicos predominantes quando o governo ruandês, ocupado por hutus, firma um acordo de paz, chamado Acordo de Arusha, com a Frente Patriótica Ruandesa, composta por tutsis e hutus moderados, e pede apelo às Nações Unidas para oferecer suporte. Assim, a Resolução nº 872, aprovada pelo Conselho de Segurança no mesmo ano, estabelece a Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda (United Nations Assistance Mission for Rwanda – UNAMIR) para ajudar a implementar os termos do acordo, entretanto, em 1994, o presidente ruanês morre sob circunstâncias suspeitas, aquecendo novamente os atritos sociais. Logo, um massacre é cometido pelos hutus, maioria no país, contra os tutsis e os hutus moderados, totalizando um número próximo de um milhão de mortos em poucos dias, com a região sob supervisão de uma operação de manutenção de paz despreparada para garantir a preservação dos direitos humanos nessas circunstâncias.

Nesse contexto, cumpre frisar que a ONU tomou medidas posteriores que realmente tiveram eficácia em contribuir para que falhas como essa não acontecessem. O Secretário-Geral da época, Boutros Boutros-Ghali, com intuito de fortalecer as operações de paz perante os novos desafios que se aninhavam no fim do século criou, em 1992, o Departamento de Operações de Manutenção de Paz (Departament of Peacekeeping Operations - DPKO).

Em busca do aprimoramento, surgiu em 1995, dentro do aludido departamento, a Unidade de Lições Aprendidas, peça catalisadora na produção de relatórios sobre as missões executadas, através de estudos em conjunto com países-membros, organizações não-governamentais e universidades, dando enfoque nos acontecimentos em Ruanda, Somália e Srebrenica. Essas e outras iniciativas dentro da organização foram lançadas para buscar uma solução na execução de suas operações, contudo, nenhuma teve sucesso.


5 REFORMA DAS OPERAÇÕES DE PAZ

Em 1997, com Kofi Annan assumindo o cargo de Secretário-Geral, as Nações Unidas começam a reconhecer a imprescindibilidade de uma reforma institucional no que tange as missões de paz. Quando ocupava a posição de comando do DPKO, anos antes, Annan tinha apontado essa necessidade de renovação e sua ascensão na organização iria refletir nisso.

“Já não é mais o suficiente implementar acordos ou separar antagonistas; a comunidade internacional quer que as Nações Unidas demarquem limites, controlem e eliminem armas pesadas, subjuguem a anarquia, e garantam a entrega de ajude humanitária em zonas de guerra. Essas são claramente tarefas que pedem por ‘dentes’ e ‘músculos’, além de qualidades menos tangíveis que não procuramos no passado. Em outras palavras, há crescentes demandas para que as Nações Unidas imponham a paz, como originalmente idealizado na Carta.” (ANNAN, pag.3, 1993, tradução livre)

Ademais, houve um novo aumento na demanda por intervenção das Nações Unidas no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, vindo de países que necessitavam de ajuda na gestão de seus governos. Conceitos como administração pública passaram a ter destaque em missões de paz, após o auxílio bem-sucedido da ONU em reestabelecer a democracia no Kosovo e no Timor-Leste. O enraizamento da noção de segurança e estabilidade como caminho para o fortalecimento das instituições públicas nesse período possibilitou uma renovação nas operações que, paulatinamente, recuperavam a confiança perdida.

Nesse ínterim, um painel formado pelas Nações Unidas para averiguar o futuro das operações de paz, com a direção do ex-Chanceler argelino Lakhdar Brahimi, elaborou, após quatro meses de deliberação, um relatório referido pela doutrina como Relatório Brahimi. Chamado oficialmente de Revisão Compreensiva da Questão das Operações de Paz em Todos os Seus Aspectos (Comprehensive Review of The Whole Question of Peacekeeping Operations in All Their Aspect), o documento foi lançado em 2000, na Cúpula do Milênio, contendo várias recomendações que, na ótica de Bellamy e Williams (2011, p.129), foram divididas em: Tomada de decisões; Mandato e recursos; Rapidez e Efetividade na realização e Eficácia na Implementação.

Logo em seu início, o Relatório cita a colocação da Carta das Nações Unidas, de “salvar as gerações futuras dos flagelos da guerra”, indicando, na sequência, como a década anterior foi falha ao não existir uma renovação do comprometimento dos países-membros com as obrigações da ONU. Com tal provocação, esse documento demonstra sua intenção resolutiva no que tange as pendências institucionais existentes.

Inicialmente, vale ressaltar que o Relatório Brahimi ganha respaldo em suas primeiras páginas a conceituar as operações de paz como “a técnica desenvolvida para preservar a paz em situações frágeis durante a interrupção do conflito, e dar assistência a implementação do acordo negociado pelos peacemakers”. Incumbido de revisar as atividades das Nações Unidas até ali, o documento define com concretude o que são tais missões, algo essencial para compreender sua problemática.

Um dos pontos principais, que ocupa o centro onde as recomendações do relatório orbitam, é o mandato das missões de paz. Para o documento, a disponibilidade de recursos deve ser observada de perto antes da aprovação de missões com mandatos muito abrangentes, fadadas ao fracasso tendo em vista a incompatibilidade com a realidade. Com isso em vista, recomendou-se uma aproximação maior do Conselho de Segurança com os países contribuintes das tropas antes de qualquer decisão. A clareza também é imprescindível, visto que mandatos sem definições claras não podiam ser tolerados em razão do risco da missão não ser capaz de cumprir seus objetivos. Assim, as Nações Unidas deveriam garantir que haveria recursos suficientes antes de aprovar uma operação de paz organizada para proteger civis, algo complexo e dispendioso para as tropas.

Nessa senda, Brahimi continua suas observações ao debruçar-se sobre a implementação rápida dos capacetes azuis em regiões de conflito. Inspirado no episódio com a Bósnia, em que a UNPROFOR foi designada para acompanhar um cessar-fogo e chegou à região no momento em que a guerra havia retornado, o relatório aponta que o período de seis a doze primeiras semanas após o acordo de paz são cruciais para o sucesso da missão, com o devido estabelecimento da paz. Essa rapidez das tropas deve ser realizada com eficácia, dispondo de força robusta para encarar situações complexas, aproximando as operações de paz de cumprir com sucesso seus mandatos.

Ademais, tais medidas deveriam ser implementadas em harmonia com a constante comunicação entre operações de paz e as próprias Nações Unidas. Essa questão também foi alvo da argumentação de Brahimi, sugerindo a criação de órgãos que concentrassem informações e viabilizassem o contato com as missões de paz, materializado na Secretaria de Informação e Análise Estratégica (Information and Strategic Analysis Secretariat) no âmbito do Comitê Executivo de Paz e Segurança (Executive Committee on Peace and Security), para evitar a incapacidade dos capacetes azuis em evitar transgressões absurdas aos direitos humanos em razão de falta de suporte logístico, como ocorreu em Ruanda e Srebrenica.

Apesar de muito celebrado, o Relatório Brahimi encontrou resistência no Conselho de Segurança para ser plenamente abraçado pela ONU. Contudo, mudanças institucionais foram feitas impulsionadas pelas suas recomendações, como uma nova agenda para as futuras atividades do Departamento de Operações de Paz, assim como o estabelecimento de um programa de reforma para as Nações Unidas, sendo essa a grande herança do documento. 

O referido Departamento de Operações de Paz, também conhecido pela sigla DPKO (Department of Peacekeeping Operations), surgiu em 1992 como uma iniciativa do período conturbado para a comunidade internacional perante o fim da Guerra Fria e, por ser a base operacional de todas as operações de campo da ONU, protagonizou capítulos interessantes, sofrendo diversas mudanças no século XXI para se adequar a demanda de missões de paz mais robustas, nos moldes da UNODC, tratada em capítulo anterior.

Atualmente, o caráter revisional das missões de paz ainda está presente nas Nações Unidas. Em 13 de outubro de 2014, o atual Secretário-Geral Ban Ki-moon estabeleceu o Painel Independente de Alto Nível Sobre Operações de Paz, para analisar as operações em curso e antever as necessidades futuras. No 15º aniversário do Relatório Brahimi, Ban Ki-moon anunciou o novo painel apontando que “o mundo está mudando e as operações de paz da ONU também precisam mudar se quiserem continuar sendo uma ferramenta indispensável e eficaz na promoção da paz e segurança internacional “ (KI-MOON, 2014).

Por fim, constata-se que a Organização das Nações Unidas contribui para um ambiente internacional mais pacífico, ressalvados certos aspectos de seu funcionamento. Apesar de seus tropeços, ressalta-se que as missões de paz estabelecidas pela ONU beneficiam milhões de pessoas por ano, tendo realizado 71 operações desde seu surgimento, estando 16 delas ainda em atividade e envolvendo desde proteção de civis em regiões que sofreram desastres naturais até países em crise que estão sem um governo estável. Nesse aspecto, existe uma capacitada assistência eleitoral das Nações Unidas que envolve proteção dos locais de votação, fornecimento de equipamentos e suporte logístico, trazendo bons resultados na promoção da democracia em países-membro atormentados por crises políticas recentes e beneficiando milhões de eleitores. Atualmente, Congo, Costa do Marfim e Libéria recebem ajuda de operações de paz com esse viés.

Toda essa força de trabalho, militar e civil, apenas é viável em razão da distribuição dos gastos entre os 193 países-membro da organização dentro do contexto de voluntariedade e humanitarismo apoiado pela comunidade internacional. Em comparação, um estudo de 2006, realizado pelo Escritório de Responsabilidade do Governo dos Estados Unidos, demonstrou que os EUA pagariam o dobro do que a ONU desembolsou para organizar uma operação de paz nos moldes da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Essa discrepância persiste, pois o orçamento aprovado pela ONU para os gastos com missões de paz entre o período de julho de 2015 e junho de 2016 foi de $8.27 bilhões, representando 1,6% dos custos planejados pelos Estados Unidos com operações militares em 2015, segundo dados colhidos pelo Escritório do Subsecretário de Defesa dos Estados Unidos.

Com esse retrato montado dos impactos das missões de paz durante os seus anos de existência, existe um entendimento geral de que as Nações Unidas corretamente dispõem dessa ferramenta de apaziguamento de conflitos e proteção de civis, buscando reciclar seus conceitos norteadores para aprimorar-se aos desafios do novo século. Apesar dos deslizes estamparem com maior peso a trajetória das operações de paz, o impacto positivo na vida de milhões de pessoas nesses 68 anos de atividade é incomensurável e demonstra os benefícios de organismos internacionais buscarem maior protagonismo no cenário mundial, de forma altiva e atenta às mazelas da humanidade.


6 CONCLUSÃO

As operações de manutenção de paz compõem a face mais expressiva das Nações Unidas, em virtude de sua proposta intervencionista em regiões de embate política e bélico, ocasiões em que a população civil encontra-se desamparada. A função de tais missões é buscar o desfecho menos traumático para quaisquer conflitos, auxiliando países afetados na retomada da paz.

Conforme demonstrado acima, houve episódios em que a ONU encontrou obstáculos que não soube lidar, gerando tristes capítulos na história do século XX, entretanto, não desqualifica o potencial das operações de paz em zelar pelos direitos humanos.

A década de 1990, marcada pelos tropeços do Conselho de Segurança, também marcou o início de um movimento interno de reforma das instituições ligadas à política de manutenção de paz, permitindo a presença de novas perspectivas. No fim dessa análise, resta evidente que o peacekeeping encontra ressalvas, mas é uma alternativa barata, eficiente e capaz de dirimir a transgressão dos direitos humanos em períodos de guerra, conforme demonstra a própria História moderna.


7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Daniel da Cunha. A importância das missões de paz no século XX. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5734, 14 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66007. Acesso em: 26 abr. 2024.