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Estado virtual ampliado

Estado virtual ampliado

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RESUMO: No artigo tentaremos confrontar duas idéias, duas definições gerais sobre o Estado: o racionalismo (como quer uma das correntes que sustentam sua origem pautada na organização) e o irracionalismo: que nos parece bastante atual, mas que será potencializado no futuro próximo, inclusive, mais ou menos seguindo os rastros do capital especulativo. Portanto, o artigo não é uma tentativa de futurismo do Estado, com previsões e longas definições acerca do futuro do Estado – nem é uma atualização das tantas tecnologias colocadas ao alcance de muitos (e-government, e-procurement [1], etc.), dos aparatos do poder e disponíveis para maximizar e brutalizar ainda mais a força existente e já posta em jogo. Também não se trata de uma análise baseada nessa Matrix que se abrirá sobre todos nós – até porque esta Matrix ou rede controlativa existe há muito tempo e praticamente em todos os lugares. Enfim, também não será nosso objetivo analisar ou descrever essa Matrix.

PALAVRAS-CHAVE: Estado; racionalidade; irracionalismo; virtual; política.

SUMÁRIO:1. Estado Virtual Ampliado. 2. A Tecnologia Serve à Razão? 3. A Negação do Estado Mágico. 4. Estado Irracional. 5. Um Estado sem Visão ou Razão Social. 6. Outro Olhar Crítico sobre o Estado Irracional. 7. Estado Latente: potência natural? 8. Estado Virtual. 9. Bibliografia.


1. Estado Virtual Ampliado

A premissa de todo o texto, de modo bem resumido, sugere que novas virtualidades estão sendo engendradas no mundo social, mais especialmente na política e no nível gerencial/operacional do Estado moderno. Desse modo, essas novas possibilidades, potencialidades (definidas como virtualidades) tanto são capitalistas quanto são transformadoras da própria realidade social e política que as engendrou, tanto são boas quanto são más. Na verdade, as virtualidades e o virtual nem são bons e nem são maus, pertencem simplesmente à ordem do político. Em suma, é esta dimensão do virtual que irá migrar para o interior do Estado, conferindo-lhe a conotação política que dá título ao trabalho: Estado Virtual Ampliado.

Agora, o que vem a ser isso, como se apresenta sua dinâmica e seus principais postulados e ferramentas?

Esse é o objetivo do texto e é em torno disso que caminham nossas argumentações.


2. A Tecnologia Serve à Razão?

É bastante conhecido e difundido o modelo que Max Weber criou para o Estado Racional e, portanto, da própria racionalização. Mas, relembremos que o Estado Racional é um modelo ou tipo de Estado que só se desenvolve no Ocidente, pois sua estrutura de sustentação e funcionamento está calcada nas burocracias especializadas e no direito racional. É aí que o capitalismo prospera, porque é aí que a racionalidade deve incrementar a produção e, portanto, a arrecadação estatal. Nesse sentido pragmático é que se diz que o Estado Racional não suporta que o funcionário venha a aprender a fazer, fazendo: o dispêndio é grande e os riscos de erros são maiores do que o desejado. O que implica na colocação de funcionários especializados (técnicos) e na afirmação de que a burocracia é funcionária do Estado e não do governo.

No sentido propriamente jurídico, pode-se dizer que temos um modelo que faz remontar o Direito racional ao direito romano (Estado Municipal de Roma), modelo que desenvolveria algumas características ainda mais precisas, como: direito sistematizado, estabilizado, estável e acessível; racionalização do processo (sucessão de atos que regulam o começo, meio e fim do próprio processo ou dos procedimentos); formalismo: não comporta o erro formal, quanto à forma; predominam aspectos burocráticos do direito (o que não está nos autos, não está no mundo); justiça formal; garantias do contrato ou do processo (o próprio direito está subordinado aos autos do processo); demandas reduzidas a fórmulas judiciais (o excessivo apego burocrático reduz, condiciona ou subordina o conteúdo à forma); dupla racionalização: secular e temporal (o comportamento católico foi estruturado da forma mais racional possível, em regras morais de conduta, além de não se permitir que as ações/relações jurídico–mercantis estivessem reguladas por procedimentos de luta: duelo, por exemplo); direito calculável, mecânico e maquínico (como se toda relação humana ou social pudesse ser programada e, assim, programável, previsível): se há demanda judicial, tem que haver resposta processual; pensamento jurídico formal: cada direito abriga (obriga) um princípio jurídico formal; direito formalmente desenvolvido – a relação jurídica não pode admitir imprevistos, sobretudo de natureza extra-processual; numa fórmula: Estado + Direito (jurisprudência formal) = capitalismo. No Brasil, ainda há a excessiva codificação.

Num exemplo mais singular, já aventado e que exemplifica bem o excesso do racionalismo, tomemos a relação forma-conteúdo. Em resenha do 6º volume dos Cadernos do Cárcere (Ed. Civilização Brasileira, 2002), José Luís Jobim (professor da USP) destaca justamente a dinâmica e a mobilidade que deve haver nessa relação. Em princípio, porém:

...("pode-se falar de uma prioridade do conteúdo sobre a forma"), Gramsci deu uma resposta positiva, no sentido de que a obra de arte é um processo e as modificações de conteúdo são também modificações de forma, já que o conteúdo pode ser "resumido" logicamente: "Quando se diz que o conteúdo precede a forma, quer-se simplesmente dizer que, na elaboração, as sucessivas tentativas são apresentadas com o nome de conteúdo e nada mais. O primeiro conteúdo que não satisfazia era também forma e, na realidade, quando se atinge a ‘forma’ satisfatória, também o conteúdo se modifica" (Jobim, 3 nov. 2002).

Desse processo histórico, retenhamos como exemplo geral a adequação dos meios aos fins e como exemplos específicos a relação custo-benefício e a planilha de contabilidade por partida dobrada – passos dados em direção a uma Política Econômica Estatal (iniciada como base do mercantilismo). A outra base de sustentação desse Estado de Direito é a burocracia e, em suma, suas condicionantes ainda podem ser vistas da seguinte forma:

A burocracia é, como vimos, o exemplo mais típico do domínio legal. Repousa nos seguintes princípios: 1º, a existência de serviços definidos e, portanto, de competências rigorosamente determinadas pelas leis ou regulamentos, de sorte que as funções são nitidamente divididas e distribuídas (...) 2º, a proteção dos funcionários no exercício de suas funções, em virtude de um estatuto (efetivação dos juízes, por exemplo) (...) 3º, a hierarquia das funções [2], o que quer dizer que o sistema administrativo é fortemente estruturado em serviços subalternos e em cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à instância superior; em geral, esta estrutura é monocrática e não-colegiada e manifesta uma tendência no sentido da maior centralização; 4º, o recrutamento se faz por concurso, exames ou títulos, o que exige dos candidatos uma formação especializada. Em geral, o funcionário é nomeado (raramente eleito) com base na livre seleção e por contrato; 5º, a remuneração regular do funcionário sob a forma de um salário fixo e de uma aposentadoria quando ele deixa o serviço público (...) 6º, o direito que tem a autoridade de controlar o trabalho de seus subordinados, eventualmente pela instituição de uma comissão de disciplina; 7º, a possibilidade de promoção dos funcionários com base em critérios objetivos e não segundo o livre arbítrio da autoridade; 8º, a separação completa entre a função e o homem que a ocupa, pois nenhum funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da administração (Freund, 1987, p. 170-171).

Com o que podemos concluir que se trata, realmente, de um modelo que se constitui de maneira peculiar no Ocidente, revelando traços e características precisas e bem distintas das outras formas de organização burocrática dos Estados Antigos.

Outra dimensão importante na obra de Max Weber e que diz respeito a este trabalho, é a dimensão de uma ética de responsabilidade na qual todos os cidadãos são atores [3]. Mas antes é preciso compreender de que modo essa ética teria surgido na formação do autor, para entender seus fundamentos.

Podemos encontrar pistas nos moldes familiares em que cresceu Weber, com dois pólos diferentes: o pietismo protestante da mãe e um pragmatismo político-profissional do pai. É provável que esse choque o tenha direcionado para a exploração da dimensão ética do cotidiano, permitindo-lhe observar uma noção de ética que inclui a responsabilidade individual e cotidiana. Uma ética diferente daquela que atribui tudo a um Estado ou a algum ente superior.


3. A Negação do Estado Mágico

Pois, bem tendo-se em conta esses pressupostos do Estado Racional, vejamos o porquê de nos reportarmos ao Estado Moderno (saibamos que se trata do Estado moderno-racional), sobretudo como Estado soberano, centrado, centralizado (e centralizador), e apto a realizar os próprios interesses comerciais expansionistas. Porém, para aprofundarmos nosso entendimento, iniciemos a análise desse Estado Racional por sua contradição e negação: mandarinato. Na definição de Max Weber (1985), o sentido de negação está no conteúdo do pensamento mágico e este, por sua vez, revela a essência do mandarinato:

O mandarim é geralmente um literato de formação humanista, que possui uma prebenda [4], mas carece de todos os conhecimentos em matéria de administração; ignora a jurisprudência, mas, em compensação, é calígrafo; sabe fazer versos; conhece a milenária literatura dos chineses, sendo capaz de interpretá-la (...) um funcionário desta natureza não administra por si mesmo. A administração encontra-se em mãos dos funcionários de sua repartição. O mandarim é mandado de um lugar para outro, a fim de que não consiga se erradicar em nenhum. A ele é vedado desempenhar o cargo em sua terra natal. Em virtude de não compreender o dialeto da província em que serve, torna-se para ele impossível lidar com o público. Um Estado com empregados desse gênero é algo muito diferente de um Estado ocidental (Weber, p. 157).

A partir dessa definição de mandarinato (governo de mandarins) de Max Weber, é possível antecipar que o Estado Racional, portanto, é em tudo diferente do chamado Estado Oriental, mitológico, assentado sobre alguma forma de pensamento mágico - a exemplo do Estado Antigo e até do Estado Romano e, depois, no Absolutismo. É aquele Estado de Direito Racional que não pode ficar ao sabor da irresponsabilidade das interpretações mágicas, e que necessita se desprender das limitações religiosas ou divinas da sociedade. Esse Estado necessita de interpretações razoáveis, lógicas, coerentes [5], especializadas, mecânicas, maquínicas (veja-se a expressão máquina do Estado), metalizada [6]. Em síntese, trata-se da caracterização e categorização do Estado que pode ser reduzido à matemática se preferirmos [7], bem como se aplica a máxima racionalização (aqui, sinônimo de maximização) ao próprio desenvolvimento das forças produtivas. A lógica de um voluntarismo apaixonado não é a lógica da responsabilidade – aliás, via de regra, acaba limitada ao oportunismo da primeira hora.

E se ao modelo nós fundirmos algumas bases legais e democráticas, então teremos o Estado Democrático de Direito e a dominação baseada na lei, dominação legal ou estatutária (também dominação legal/racional): "Dominação legal em virtude de estatuto. Seu tipo mais puro é a dominação burocrática. Sua idéia básica é: qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma" (Weber, 1989, p. 128-129).

Neste sentido, ainda cabe ressaltar que tanto os partidos quanto os sindicatos e os movimentos sociais (vide MST), hoje, são enormes bases e/ou estruturas administrativas e burocráticas. Daí também dizer-se que a política foi burocratizada: na história política que nos trouxe da Ágora ao palanque eletrônico, há a interposição de planilhas e programas de controle desenvolvidos unicamente para tentar projetar e prognosticar a conduta do eleitor: especialmente com o uso de pesquisas de opinião pública. Para o marketing, pouco importa se na embalagem deve-se encaixar ou embalar um sabonete ou um candidato [8]. Pode-se acrescentar ainda a lógica do palanque e a lógica palaciana, hoje em clara contradição, o que desencadeou uma séria crise dentro das fileiras partidárias. Pode-se perguntar: é uma ética da responsabilidade ou da conveniência política?

De outra forma, isto é, de forma crítica, pode-se dizer que a crítica está em que a razão, a própria lógica, para ser útil e boa, deve gerar receita e não necessariamente produzir reflexão, conhecimento e postura crítica: na teoria e na prática, é razoável o que produz lucro, pois o restante é especulativo, é mera interrogação e esta bem pode ser uma interrogação indesejável sobre a pretensa validade da verdade lucrativa e cumulativa [9]. A crítica diz que a razão deixou de ser crítica e que lógico é o que é lucrativo.

Mas será a mesma burocracia – apta à organização racional – a origem das mazelas de uma dominação tão grave quanto outro qualquer? Vejamos se é possível falarmos de um Estado Político não-Público (irracional).


4. Estado Irracional

Observando algumas relações entre o mercado e o Estado, podemos dizer que há um Estado Político (não público) e que pratica a apropriação econômica de forma exclusiva, monopolista – resumidamente: Capitalismo Monopolista de Estado. Complementarmente, é um Estado poderoso e não organizativo, uma vez que o poder deixa de ser equiparado à estrutura ou organização social [10]. Esse Estado se baseia em numerários que impressionam: serão números retumbantes, reverberantes como os 100% de aprovação de Saddam Hussein.

Em todos os continentes a política será quantificada (a maior democracia do mundo: em números absolutos, um milhão de eleitores ou mais, na China e na Índia) e não necessariamente qualificada (como a mais intensa, com diferenças substanciais nas proposições, temáticas, programas ou projetos de poder). Pode até ser que o Estado venha a adquirir uma espécie de olho mágico (o dirigível auxilia na segurança pública do Rio de Janeiro), mas em compensação perde o encanto [11], é incapaz de nos ludibriar novamente com seus cantos de sereia: já tivemos O Ouro Pelo Brasil!

Assim, o Estado, sem propriamente um olhar mágico que atraia a razão para si, perde a batalha da videosfera [12] (os traficantes têm câmeras nas entradas das favelas e dos morros para fiscalizar, precisar a chegada ou a entrada da polícia). O Estado tem sua imagem abalada, prejudicada – há um olhar crítico [13].

Para muitos, de forma mais crítica, é um Estado que controla (desenvolve, articula) a economia de forma extremamente racional, produtiva, lucrativa, mas em meio a um mercado irracional, frenético, incontrolável. É o Estado em que a lógica e a razão econômica, cumulativa (de apropriação individual ou de classe), prepondera no interior de sua própria máquina administrativa – nem mesmo o Estado é mais capaz de socializar para melhor arrecadar, pois hoje, mais do nunca, só há socialização dos prejuízos. Transformando, por fim, a própria administração ou burocracia em novo tipo ou fração de classe social dominante, uma vez que a burocracia se encontra encastelada no Estado e imprime a seus interesses o status [14] ou a condição de interesse de classe predominante. Suas próprias ações são de extrema eficácia (ao menos, é o que se busca), a fim de satisfazer os próprios interesses.

É um Estado rentável, sobretudo para aqueles que se intitulam governantes, para aqueles que se locupletam da própria máquina do Estado (nesse aspecto, sem dúvida, trata-se de uma expressão de conteúdo e funcionamento do Estado Patrimonial [15]). Sob a ordem econômica há uma razão específica (subjacente, mas viva) e que torna a burocracia, ela mesma, tecnicamente financeirizada. Vejamos isso ainda em Freund (1987):

A burocracia moderna desenvolveu-se sob a proteção do absolutismo real no começo da era moderna. As antigas burocracias tinham caráter essencialmente patrimonial, isto é, os funcionários não gozavam das garantias estatutárias atuais, nem de remuneração em espécies. A burocracia que conhecemos desenvolveu-se com a economia financeira moderna, sem que se possa, entretanto, estabelecer um vínculo unilateral de causalidade, pois outros fatores entram em jogo: a racionalização do direito, a importância do fenômeno de massa, a centralização crescente por causa das facilidades de comunicações e das concentrações das empresas, a extensão da intervenção estatal aos domínios mais diversos da atividade humana e, sobretudo o desenvolvimento da racionalização técnica (Freund, p. 171-172).

Deste modo, vê-se que é um Estado em que a razão fornece, oferece as bases da própria dominação e não mais configura os limites, os obstáculos ou as restrições ao jugo do príncipe, do soberano, quando se supunha que houvesse a passagem das marcas pessoais e individuais para a administração pública, baseada na impessoalidade, neutralidade, abstinência em relação ao privado e (re)afirmativa do interesse público. E, assim, a dominação faz-se de cunho racional e de base legal, pois que direito público e administração pública, nesse marco histórico, coincidem na definição dos termos das finalidades da produção em massa, mas de apropriação cada vez mais individualizada.

É óbvio, enfim, que o interesse público acaba submetido à força da apropriação privada ou classista, mas é menos claro como se opera essa lógica de apropriação econômica e de poder – daí a necessidade, a insistência, em focar a burocracia política dos tecnocratas.

A dívida social é quantificável, mas e as soluções também são? É óbvio que não há passe de mágica ou só bem-querer (e dever-ser) que resolva as crises sociais. Porém, sem essa vontade de fazer algo em prol da mudança social, não há regra ou fórmula econômica (economicismo) que se auto-aplique. Isto é, se a justiça social não é auto-aplicável e, por isso, depende tanto de recursos quanto de planejamento, estratégia, programa político e econômico, é ainda mais óbvio que todo plano econômico responde a condicionantes político-ideológicos: inegável que a vontade qualifica a ação política. É de se lembrar ainda que haja razões que o coração desconhece, porque a razão é pluridimensional. Da mesma forma, sempre é oportuno ter em mente que a razão já produziu o Holocausto e a Bomba H [16].

Contraditoriamente, no instante em que mais se alargam as possibilidades técnicas de controle, ampliando-se as visões do Estado sobre tudo e todos, é aí que o Estado se mostra menos visionário. Nessa cadeia de eventos, é evidente que o Poder Judiciário que até hoje alimentou o Estado de Direito Clássico também sairá fustigado.


5. Um Estado Sem Visão ou Razão Social

O poder do Estado vem de imagens fortes e das comunicações dramáticas ou sedutoras que possa produzir. Portanto, esse poder não provém mais da lei, como naquele suposto Estado de Direito dos séculos XVIII e XIX. O Estado tentará, sem dúvida, algumas adequações, reformulando partes de sua estrutura e qualificando pessoal. Mas será suficiente [17]?

Os concursos públicos, especialmente para a magistratura, vêm embutidos de especial atenção ao social, exigindo dos novos juízes mais sensibilidade para o espírito da lei, para a subjetividade – para a formação da livre convicção baseada na função e na relevância social da lei e não a mera atenção à eficácia normativa, pois que não há norma eficaz sem reconhecimento e acolhimento social. Trata-se da subjetividade que agrega valor (objetivamente, portanto), a exemplo do trabalho voluntário/social, pois a melhoria da qualidade das relações humanas (genéricas) transforma o profissional em uma melhor pessoa.

Para muitas empresas, o trabalho comunitário é altamente lucrativo, pois o trabalhador que se doa à comunidade, gratuitamente, será capaz de doar-se integralmente para manter seu trabalho e produção em alta. Portanto, há incremento na produção, o social é produtivo porque se o indivíduo é capaz de se doar ao social (genérico, coletivo e difuso por definição) ele também será capaz de se doar à produção (limitada ao fazer laborioso e ao consumo imediato). Aliás, diz a regra da lógica formal que quem pode o mais (investir no social), pode o menos (incrementar a produção individual).

Mas mesmo nesse caso, em que se está voltado de coração à solução dos problemas sociais, mesmo aí as medidas tópicas devem ser racionalizadas, equilibradas, pois não há milagres econômicos ou varinha de condão que se preste à multiplicação dos pães. Vejamos, como exemplo, o que disse o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva no primeiro pronunciamento oficial antes da posse:

O povo brasileiro sabe, entretanto, que aquilo que se desfez ou se deixou de fazer na última década não pode ser resolvido num passe de mágica. Assim como carências históricas da população trabalhadora não podem ser superadas da noite para o dia. Não há solução milagrosa para tamanha dívida social, agravada no último período. Mas é possível e necessário começar, desde o primeiro dia de governo (Silva, 29 out. 2002).

Em seguida, mas de forma pragmática ou técnica, o que inclui o desenvolvimento da própria área da ciência e da tecnologia (ciência e tecnologia desenvolvendo mais racionalidade e vice-versa), acrescentou o presidente eleito:

Queremos construir um amplo mercado de consumo de massas que dê segurança aos investimentos das empresas, atraia investimentos produtivos internacionais e represente um novo modelo de desenvolvimento e compatibilize distribuição de renda e crescimento econômico. A construção dessa nova perspectiva de crescimento sustentado e de geração de emprego exigirá a ampliação e o barateamento do crédito, o fomento ao mercado de capitais e um cuidadoso investimento em ciência e tecnologia. Exigirá também uma inversão de prioridades no financiamento e no gasto público, valorizando a agricultura familiar, o cooperativismo, as micro e pequenas empresas e as diversas formas de economia solidária (Silva, 29 out. 2002).

Na política se impõem modificações urgentes (reformas políticas do Estado), como: autonomia do Banco Central; fidelidade partidária; veto popular (seguindo o modelo norte-americano); voto distrital (com o que se deveria evitar que o quociente eleitoral pudesse eleger um candidato sem nenhuma expressividade eleitoral: 200 votos); equalização da proporcionalidade parlamentar entre Estados e regiões, corrigindo as distorções existentes. Porém, de forma negativa e perversa, essa mesma equalização da vida pública, se não acompanhada da elaboração ou construção de uma ampla consciência política e técnica (quando se busca por meios razoáveis - dialogando, por exemplo -, mas atentos às finalidades sociais), é capaz de gerar desvios, distorções, deformidades técnicas e políticas (públicas) ainda mais graves, como vemos no dia-a-dia e a exemplo do que passamos a expor.


6. Outro Olhar Crítico sobre o Estado Irracional: Estado ilógico ou 2º desencantamento do mundo?

De outra forma, retomando aspectos globais, com a perda da legitimidade o Estado perde sua eficiência, vigência, evidência, potência (onipresente, onipotente, onisciente). Torna-se prepotente, pois que tenta (em vão) impor-se pela força, limitado à pré-potência. Podemos dizer que vem da falta de uma ética pluralista justa e universal.

De visionário (vim, vi e venci), o Estado passa à condição de coadjuvante, tele-expectador e nem sempre ativo ou consciente das regras exibidas – o Estado perde(u) visão e, às vezes, é o próprio alvo. Essa perda de foco, de enfoque estatal, deve-se especialmente ao fato de que o mundo e a realidade presente no ato de criação do Estado-nação não existem mais. A dinâmica, a transformação, a mudança, enfim, a incerteza e a instabilidade provocadas sucessivamente abalaram de modo profundo noções clássicas, rígidas, controláveis e controladoras: a essência do próprio Estado confere a essas condições o status de cláusulas pétreas. Porém, hoje as pedras desmancham no ar. Duas heranças dessa rigidez são: a segurança pública e a segurança jurídica.

Por isso, a comunicação virtual (Internet, Web), em tempo real, instantânea, sobrepondo-se às fronteiras, entraves e obstáculos (burocráticos, legais e utilizados como forma de limitação, intimidação e controle) é, talvez, a mais perceptível descaracterização das estruturas e dos sistemas estatais. Com a rede, a descaracterização e o dano são apenas potencializados, principalmente se pensarmos que a economia volátil vem fazendo o resto do serviço há cerca de duas décadas.

Ainda podemos imaginar que alguns mecanismos modernos potencializam a transparência e a democratização do acesso ao Estado, e embora isto não seja completamente falso, esse fato é uma possibilidade aberta apenas para um Estado voltado a este fim. Esses meios também potencializam o surgimento de mecanismos de corrupção e concentração de poder.

Assim, a exemplo das ferramentas de software e-government, particularmente as baseadas nas tecnologias da Web, ferramentas interativas têm sido criadas como um novo ambiente tecnológico para comunicação entre cidadãos e governo. Os mais ingênuos, no entanto, esquecem-se de que em diferentes grupos culturais e em diferentes sociedades, existem diferenças nas culturas de organização, e têm sido essas culturas as fontes de conflitos, pois as tecnologias em geral têm a tendência de uniformizar e massacrar culturas minoritárias. Isto já veio com o rádio e com o Cinema (com a TV o processo foi acelerado), mas é a Internet o maior agente neste momento. Contudo, há uma diferença fundamental: ela é a mais democrática forma de comunicação virtual, uma vez que cada um pode funcionar como um pólo cultural. Já no nível governamental a coisa toda não se dá bem assim, pois a centralização e a burocratização são barreiras reais, a ponto de se poder dizer que a Internet, a princípio, mais divide do que une os cidadãos, quando concentra poder nas mãos do Estado. Lembremo-nos de que a tendência das agências estatais é centralizar e cruzar as informações que possuam dos cidadãos.

Autores como Hood (1998) e Thompson (et al., 1990), colocam isso de forma instigante ao salientar que a análise da teoria cultural sugere que se acontecer alguma mudança tecnológica, ela pode levar a visões divergentes da própria modernização social. Embora numa análise do ponto de vista antropológico - mas seguindo-se essa mesma linha do desenvolvimento cultural como um modo de descrever a sociedade e suas instituições -, pode-se sugerir que há quatro mitos culturais em que grupos e instituições respondem a certos ambientes centralizados e massificados.

Desse prisma, tende-se a interpretar que toda a experiência humana busca uma unidade na diversidade, de modo semelhante ao comportamento dos sistemas ecológicos e vivos na natureza. Nesses sistemas buscamos analisar atitudes que possibilitem adaptações, porque na sua ausência os conflitos acontecem: quando a adaptação é difícil ou demorada. Esta seria a tendência tecno-social sem um Estado interventor e burocratizado, e somente neste sentido a tecnologia exerceria um expressivo papel de liberação das forças vivas da sociedade. Da mesma forma, só nesse modelo liberalizado a tecnologia poderia incrementar o exercício da democracia social, cultural e política.

Do contrário, essa tecnologia ligada ao Estado não se mostra produtiva, e ainda que originalmente tenha sido relacionada para estudos de ecossistemas e estivesse ligada à teoria cultural de Thompson [18]: onde analisa as melhorias em serviços públicos por meio de ferramentas e-government. Em resumo, os quatro mitos dessa interseção da tecnologia nos mecanismos do Estado, que sinalizamos a seguir, indicam o sonho e a vontade, o bem e o mal lado-a-lado. Em síntese, os mitos são o próprio reflexo da fabricação e do emprego das tecnologias políticas.

1º Mito: Tecnologia Benigna

O mito nos diz que o mundo tecnológico é generoso: a bola sempre voltará no ponto de partida, à base, independentemente da maneira que a arremessamos. Neste caso, a instituição responsável pode ter uma atitude baseada na não-intervenção. Esse mito também encoraja e justifica tentativas e erros: experimentos arrojados em face da incerteza (Thompson et al, 1990, p. 27).

2º Mito: Tecnologia Efêmera – oposta à tecnologia benigna

O mundo tecnológico, por assim dizer, é um lugar assustadoramente cruel e o menor deslize pode resultar no seu completo colapso. A instituição responsável deve tratar a tecnologia com muito cuidado – um pequeno deslize leva a bola para fora do alvo. Esse mito é a justificativa para aqueles que resistiriam às inovações tecnológicas, especialmente em sistemas relacionados de grande escala, e usariam a tecnologia somente de maneira modesta e descentralizada.

3º Mito: Tecnologia Perversa ou Tecnologia Inconstante

Essa perspectiva nos diz que a tecnologia é benigna na maior parte das ocorrências, mas é vulnerável a uma ação imprevista, como um arremesso ocasional da bola na borda de um "disco". A instituição responsável deve, portanto, ajustar-se diante de ocorrências notáveis – nem um experimento desenfreado nem tampouco um comportamento extremamente cuidadoso dos outros dois mitos é apropriado: tudo depende do mapeamento e controle da linha divisória entre esses dois estados. Especialistas tecnológicos serão vitais para essa tarefa.

Por fim, em contraste com todas as outras três, temos o quarto mito – um mito realístico.

4º Mito: Tecnologia Excêntrica (um mundo aleatório)

A bola (as probabilidades) pode(m) rolar para qualquer lugar. Instituições com essa visão de tecnologia não controlam o vetor tecnológico e nem aprendem realmente: as instituições responsáveis; apenas contam com ocorrências irregulares, experimentando os produtos da contínua inovação tecnológica.

O conjunto dos mitos faz perceber o que diz o info-filósofo Pierre Levy (1993), quando conclui que a "tecnologia não é nem boa, nem má, nem neutra", e que tudo continua a depender da ação humana. Enfim, por definição, a tecnológica é um atributo político da vida moderna e será tão mais politizada quanto mais próxima dos assuntos do Estado e da prática política popular: a tecnologia não é nem boa, nem má, nem neutra; a tecnologia é política.


7. Estado Latente: potência natural?

A política no Estado Irracional corre o risco de ser tomada como o virtual que não foi atualizado [19]. De provável que era, tudo se tornou meramente possível, ou melhor, uma probabilidade que se tornou impossível ou no mínimo improvável. Portanto, a política necessita dessa energia que revitaliza e leva para além do status inicial, enfim, que leva do interesse privado à consciência pública, como vemos em Hanna Arendt (1991):

A excelência em si, arete como a teriam chamado os gregos, virtus como teriam dito os romanos, sempre foi reservada à esfera pública, onde uma pessoa podia sobressair-se e distinguir-se das demais. Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na intimidade; para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença de outros, e essa presença requer um público formal, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores (p. 58).

Desse ponto de vista, o virtual pode ser uma ótima fonte para se retomar a excelência, porque reinterpreta a noção de espaço público e da experiência discursiva, a exemplo dos inúmeros manifestos de resistência publicados na net. Mas, diferentemente dos manifestos de resistência cultural impressa, que - ou são publicados em órgãos de imprensa alternativos ou custeados pelo próprio autor (a exemplo de toda a produção literária marginal de Plínio Marcos) - acabam limitados a um pequeno público, porque a circulação é pequena, o que se publica na rede é de domínio público e tão visível quanto qualquer página oficial do Estado ou então representativa do grande comércio real ou virtual.É, pois, necessário transformar-se em experiência política concreta, aqui sinônimo de esfera pública.

Da mesma forma, é necessário colocar a excelência da política ao alcance de todos ou iniciar a provocação da excelência (virtus ou virtude) que há em todos – é preciso sublevar o ídion: aquele tipo que se diz sem-causa. De forma similar, é preciso ativar a potência que há em todos nós, no dizer de Canivez (1991):

Por um lado, pode-se dizer com Kant que a liberdade é o único direito inato que o indivíduo possui. Mas é um direito absolutamente fundamental, no sentido de ser a condição de aquisição de todos os outros direitos: não há direitos (propriedade, livre comunicação etc) a não ser para um ente livre. Por outro lado, o homem em estado de natureza define-se como ser razoável, isto é, não como um ser que já desenvolveu seu raciocínio, inteligência etc, mas que pode desenvolve-los. Define-se, para retomar a expressão de Rousseau, por sua perfectibilidade; é o animal que é razão em potência, animal dotado de razão. O direito natural repousa pois sobre a consciência que o indivíduo tem de sua natureza de ser racional (p. 88).

Por isso, podemos entender que a formalidade (impessoalidade, imparcialidade), em tese desenvolvida no interior da burocracia, é resultado ela mesma de longo processo histórico da própria razão (ou do engenho humano em criar artefatos e artifícios de certa forma controlados e com certa dose de consistência). A mesma engenhosidade, portanto, que poderia ser analisada de acordo com as implicações e imbricações que se desenvolva com a política em seu sentido amplo. Basicamente, pode-se dizer que na chamada razão de Estado se estendem as motivações do Estado em manter algum sigilo sobre sua base de dados, uma vez que na República é racional e lógica a defesa do interesse público: há dados que, se forem revelados, podem comprometer a segurança pública. Outra questão será discutir se cabe à Constituição definir os temas pertinentes a essa base de dados e por quem ela seria manipulada – quais são os limites democráticos?

Também podemos dizer que o sistema político seja controlativo, na medida em que o sistema político é o maior dos artefatos construídos, exatamente com a finalidade de buscar um maior ou mais extensivo controle dos cidadãos (não só a razão, como também a cibernética aplicada ao Estado). Mas será que o engenho humano é dirigido à dominação e por isso a liberdade vem sempre em anexo?

De qualquer modo, a racionalidade humana inicial e fundante, pode-se dizer, está na potência, na verossimilhança de analisarmos (racionalmente) a política, visto que somos potencialmente racionais e essencialmente políticos. Como animais sociais e políticos, geramos intencionalidade para o grupo e objetivamos a vida social, destacando-nos dos outros animais sociáveis. Mas a racionalidade política é só potencialmente humana, ainda poderíamos dizer, tendo em conta que nem todos participam da política (da vida pública) com efervescência – é de se lembrar que a política para muitos não passa de rumor e, via de regra, de maus rumores. Mas, seja como for, a política implica na condição de criarmos condições públicas, gerais, seguindo o princípio da universalidade, em que se desenvolva o dever de respeitarmos o direito à possibilidade de cada um, desenvolver sua potencialidade racional. Isto é, o direito de um implica nos direitos dos outros e vice-versa, e nessa base de universalidade estão, enfim, erigidos os direitos políticos humanos - essa também será a segurança política e filosófica dos direitos humanos. Há algo, enfim, mais imparcial e impessoal do que as declarações de direitos humanos?

O Estado Irracional é fruto de um conjunto de potencialidades, virtualidades humanas, políticas e técnicas, que não foi atualizado, que não se tornou realidade. É o nosso próprio Estado Contemporâneo, incapaz de compreender a dinâmica da técnica e a necessária concretização: não só no sentido técnico mas também no sentido lógico e político, onde a prática deve corresponder ao discurso e não se adaptar a ele. É um Estado de Direito Sem Garantias Reais (de direitos mais virtuais do que reais), que ainda carece de uma base conceitual realmente universal para a qual possamos propor uma ética pluralista, com sustentação lógica e teleológica.

Pois bem, esse Estado, com esta sustentação universal e com base na ética de responsabilidade de Max Weber, chamaremos de Estado Virtual.


8. Estado Virtual: alguns contornos

No Estado de Direito clássico, o centro de imputação era o cidadão (garantido pelo Estado Liberal e Constitucional, pelo Estado-nação), como sujeito de direitos instituído nessa condição de maioridade política (como eleitor), recebendo a chancela da personalidade jurídica. Com a rede, os centros de imputação são cambiáveis, intercambiáveis, ora visualizando-se o próprio sujeito de direitos disfarçado de cidadão e internauta ou consumidor do mundo virtual (vide e-commerce e o tratamento liberal, consumista que também se dá ao meio), ora consumado sob a forma de vanguardas sócio-culturais. Nesse momento, há a eclosão de movimentos sociais de resistência e de altercação política contra as tentativas ou tendências de hegemonização (um tipo de homogeneização total) da própria rede. A rede, no entanto, tanto pode derivar o ciberespaço, como fórum de ativismo, quanto a Matrix em que todos estão encastelados. No romance Neuromancer de William Gibson encontra-se a primeira definição para ambos, e sinteticamente significam que:

A Matrix teve a sua origem nos primitivos jogos eletrônicos – disse a voz gravada -, nos primeiros programas gráficos e nas experiências militares com conectores cranianos. — No monitor Sony, uma guerra do espaço bidimensional desaparecia atrás de uma floresta de brotos gerados matematicamente, demonstrando as possibilidades espaciais das espirais logarítmicas; e então entrou uma filmagem militar azulada, com animais de laboratório plugados a sistemas de controle, capacetes controlando circuitos de comando de tanques e aviões de combate. — O cyberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões de operadores autorizados em todas as nações, por crianças aprendendo altos conceitos matemáticos...Uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável. Linhas de luz abrangendo o não-espaço da mente; nebulosas e constelações infindáveis de dados. Como marés de luzes de cidade... [20] (Gibson, 2003, pp. 67-68).

A partir da citação, é fácil perceber como os centros de imputação de direitos do Estado Virtual não seguem mais os modelos ou padrões firmados no classicismo, sobretudo aqueles advindos dos séculos XVIII e XIX: Estado-nação e Estado de Direito. E é substancialmente a esse deslocamento dos centros de referência jurídica e política que chamaremos de os primeiros ensaios/redutos ou manifestações/características do Estado Virtual: o próprio deslocamento/ampliação dos centros de referência. Na vida real como no virtual, vê-se preservada, infelizmente, a figura do "cidadão-servo", pois ainda está em plena vigência a chamada "liberdade do escravo" ou "servidão voluntária" como queria La Boetie (1986), seguido pelo próprio Marx (1989) na crítica ao direito de propriedade como regulador dos "direitos da cidadania".

De modo amplo, acreditamos, residem aqui alguns alertas quanto à necessidade de se manter viva a análise crítica sobre os usos/abusos da tecnologia, quanto à sua utilização, mas não quanto à sua utilidade – pois que a técnica é parte da própria essência humana. Assim, parece-nos, deve ser entendido o alerta dado por Adorno, na Mínima Moralia (2001):

Não bater à porta. — Por enquanto, a tecnificação torna os gestos precisos e grosseiros e, com eles, os homens. Desaloja dos gestos toda a hesitação, todo o cuidado, toda a urbanidade. Submete-os às exigências implacáveis e, por assim dizer, a-históricas das coisas. Assim se desaprende, por exemplo, como fechar uma porta de forma suave, cuidadosa e completa (...) Que significa, para o sujeito, que já não existem janelas com caixilhos que se podem abrir, mas maçanetas giratórias, que já não haja vestíbulo, limiar frente à rua ou muros que rodeiam os jardins (...) Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que as utilizam reside já o violento, o brutal e o constante atropelo dos maus tratos fascistas. Da morte da experiência é em grande parte responsável o fato de as coisas, sob a lei da pura utilidade, adquirirem uma forma que restringe o trato com elas ao simples manejo... (grifos nossos, p. 35).

Enfim, tal qual há uma lei de pura utilidade, também encontramos um nicho de liberdade política no Estado Virtual: a condição/capacidade de produzirmos mensagens políticas livremente. Diga-se de passagem, um fato inédito na história política que só foi possível graças ao desenvolvimento/aprimoramento de novos suportes técnicos: a exemplo da Internet. Por isso, a rede, o virtual, o ciberespaço trazem o germe do futuro, e quem sabe seja o momento de a liberdade realizar suas promessas. Ao contrário do centralismo estatal, a liberdade no ciberespaço convida à desobediência civil, embalada por Thoreau (1986) e desde Chiapas, no México. O que, certamente, não é pouco.


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Sociologia. 4ª ed. São Paulo : Ática, 1989.


10.Notas

1 O termo é utilizado para indicar uma solução de software que oferece melhores condições para cotação de preços e compra de materiais via Internet.

2 Equivale a ressaltar a divisão de funções que, classicamente, decorre da separação de poderes – esta precedência subordina a divisão à separação.

3 Entendemos que essa ética responsável pelas ações e pelo social pode ser desenvolvida na rede, mas desde que estimulada culturalmente.

4 Farta remuneração, em detrimento de pouca ou quase nenhuma implicação laboriosa. No popular: mamata, emprego de barnabé.

5 Técnicas ou tecnológicas, a exemplo da total informatização eleitoral.

6 A arquitetura imponente, os pórticos e portais do Estado tendem a blindar os segredos da estrutura estatal, aliás, mais e mais carros de autoridades já vêm, de fábrica, equipados com vidros fumê e blindagem especial – sem vitrais, o Estado é indevassável, nebuloso, opaco.

7 Do navegar é preciso à relação de custo-benefício que há em projetos de fome-zero, pois, por exemplo, é a estatística que define os níveis possíveis para a mortalidade infantil.

8 Novamente a relação forma-conteúdo. E ainda que já se saiba, há muito tempo, que quem vê cara não vê coração ou por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento (o epitáfio do próprio sepulcro caiado).

9 Teoricamente (vale dizer, de forma lógica), um povo não pode concluir que o melhor para si é afastar-se do capitalismo?

10 Pode-se dizer que está em curso uma contradição entre o poder político (como poder de Estado) e o poder social: a capacidade de auto-organização da sociedade.

11 Por desencantamento (ou segundo desencantamento do mundo) ou a perda da magia como fonte de explicação válida do mundo, pode-se entender a crescente distância ou lacuna entre o sensível e o inteligível, ou seja, os sentidos já não bastam para decodificar a realidade externa, o mundo e, submersos nessa sensação, também sentimo-nos um tanto ausentes (dos significados ou daquilo que produz significados). Na verdade, hoje, a distância é insuperável e irreversível – daí a sensação do desencantamento -, só aumentando a percepção de nossas limitações, nossa própria percepção de como somos incompletos, finitos e extremamente limitados. Nosso conhecimento de nós mesmos, hoje e cada vez mais, depende essencialmente do não-humano, das máquinas: dos supercomputadores (Virilio, 1993, p. 25).

12 Não abordamos aqui nem mesmo o conceito de Estado Informacional (o campo de estudos de Régis Debray), mas somente o sentido de que o próprio Estado é produtor e refém das imagens que ele próprio gera, deixa que sejam veiculadas ou ainda que acabe por alimentar. Seguindo Debray (1994): Estamos vendo em que aspecto todo Estado é tecnocrata. De se apropriar ou controlar os sistemas técnicos de fabricação e transporte de sinais (...) Portador de sentido por natureza e produtor de mensagens por função, acompanha passo a passo os suportes e propulsores de vestígios (...) Os sistemas técnicos avançam mais depressa do que as doutrinas e leis, de tal modo que os textos devem, incessantemente, alcançar a tecnologia (p. 64). Vemos aí como a máquina imprime o Estado.

13 Mas ainda há um olhar perdido (por entre as massas), bem como há um outro inquisidor, à espreita, quase vidrado, vítrico, um olhar de tela plana e de cristal líquido, equivalendo tela e poder (não é à toa que a Rede Globo já fez presidentes da República e também é por isso que se fala de um movimento de sem-telas). Donde se conclui que, nessa razão meramente maquínica, perdendo-se ou se distanciando por completo das finalidades do Estado, os aparelhos e aparatos burocráticos e ideológicos do Estado perdem até mesmo quando seus engenheiros são desafiados a conter a queda de duas torres gêmeas.

14 Ainda em Debray (1994): Na França, o aparecimento do Estado moderno parece ter coincidido com a grafosfera. É lógico se nos lembrarmos que os valores de universalidade, indexados inteiramente aos progressos da Razão gráfica, aparecem com a escrita e generalizaram-se com a imprensa. A transmissão oral, por natureza particularista e contextual, ignora a idéia de interesse geral e o universo abstrato da lei (...) Aliás, na Idade Média, a palavra "Estado" só aparece, em latim, com um genitivo e letra minúscula (o status da Igreja, do Império, etc.), no sentido de: estado das coisas ou situação. O termo assume um tom absolutista no final do século XV: do status regni, passa-se para status sem mais (p. 65).

15 Esse fenômeno político ocorre quando o Estado – na qualidade de patrimônio público – é transformado em patrimônio privado, sob a égide das classes ou dos grupos dominantes.

16 O Estado acabou como sombra do que era, miríade em que suas imagens vão se apagando e suas inscrições sobrevivem somente através das metáforas. Vejamos em Debray (1994): É precisamente porque o Estado é, em si mesmo, invisível e inaudível que ele deve se fazer ver e ouvir, custe o que custar, por metáforas. Chamar a atenção de todos através de sinais combinados, observáveis e tangíveis. Sem essa sinalização, a crença não teria objeto, nem meios de transmissão (p. 61).

17 O Estado de Direito Clássico definia-se como o império da lei (independentemente da legitimidade), ao passo que hoje se destaca o império do direito, porque a legitimidade outrora relegada agora é essencial.

18 Também foi adaptada pelo auditor de sistemas governamentais John Bourn, usando um artigo acadêmico dos professores Helen Margetts (University College London) e Patrick Dunleavy (London School of Economics and Political Science) (Margetts and Dunleavy, 2002).

19 Condenado ao estado de latência, limitado no estado de pujança sem manifestação ou exteriorização – estanque como a boa fé do indiciado, ou seja, que não saiu do papel, que por inércia permaneceu inerte, amorfo, indefinido e por fim irrealizável.

20 Em outra passagem, podemos analisar a lógica e o discurso descontínuo que forma a Matrix: — Neuromancer. A passagem para a terra dos mortos. Onde você está, meu amigo. Marie-France, minha senhora, preparou este caminho, mas o senhor dela a estrangulou antes que eu pudesse ler o livro dos seus dias. Neuro de nervos, os caminhos de prata. Romance. Necromante. Eu trago os mortos de volta, mas não, meu amigo, eu sou os mortos e a sua terra. — E o menino deu uns passos de dança, deixando as pegadas na areia. Riu. Uma gaivota gritou. — Fique. Se a sua mulher é um fantasma, ela não sabe disso. E você também não saberá (Gibson, 2003, p. 276).


Autores

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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  • Marcos Luiz Mucheroni

    Marcos Luiz Mucheroni

    bacharel em Ciência da Computação pela UFSCar/SP, doutor em Engenharia Elétrica pela Poli/USP, professor de Paradigmas de Linguagens (graduação e pós-graduação) na Fundação UNIVEM de Marília e Teoria do Caos e Cibercultura (mestrado em Ciência da Informação) na UNESP de Marília, membro pesquisador do Núcleo de Estudos, Pesquisas, Integração e de Práticas Interativas (NEPI), filiado ao CNPq

    é autor de inúmeros artigos nacionais e internacionais.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho; MUCHERONI, Marcos Luiz. Estado virtual ampliado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 656, 24 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6621. Acesso em: 18 abr. 2024.