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Família multiespécie e direito de família: uma nova realidade

Família multiespécie e direito de família: uma nova realidade

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A família multiespécie é aquela formada por humanos e seus animais de estimação, quando considerados membros ou, até mesmo, filhos. É uma nova realidade afetiva que reclama a proteção do ordenamento jurídico pátrio.

RESUMO: Diante da crescente popularidade de animais de estimação nos lares, os mesmos vêm ganhando espaço significativo dentro das famílias, ao ponto de serem considerados como membros. O problema surge quando do divórcio ou dissolução da união estável, onde o animal de estimação torna-se o centro das discussões no que diz respeito a "guarda" e "pensão alimentícia". Inexistindo, portanto, legislação específica que regule a relação humano-animal, nestes casos, os litigantes contam somente com a sensibilidade do julgador em dirimir tais conflitos na esperança de que não considerem seus animais de estimação como meros objetos passíveis de partilha e valoração econômica, tendo em vista o afeto presente na relação.

PALAVRAS- CHAVE: Direito de família; guarda; pensão alimentícia; animais de estimação.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Da família multiespécie: o surgimento de um novo tipo de família; 2. De bens semoventes a “filhos de quatro patas"; 3. Aplicabilidade das normas da proteção da pessoa dos filhos aos animais de companhia; 4. Da (im) possibilidade de pensão alimentícia aos animais de estimação; 5.Análise do projeto de Lei 1.365/2015; Considerações Finais. Referências


INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, o Direito vem sendo atingindo por diversas transformações em decorrência da constante evolução da sociedade e dos novos estilos de vida adotados pelos indivíduos que a compõem. No contexto social em que vivemos, seria impossível pensar o Direito tão somente como um conjunto de regras a serem aplicadas a determinadas situações, pura e simplesmente.

Dentro desta contextualização introdutória, talvez o Direito de Família tenha sido a ramificação que mais trouxe novidades e sofreu mais modificações, justamente por a família mudar constantemente, diante dos novos arranjos familiares com as mais diversas formações, todas devidamente protegidas pelo Estado e amparadas constitucionalmente, mostrando-se o rol trazido pelo art. 226 da Constituição Federal de 1988 meramente exemplificativo.

Existem diversos tipos de entidades familiares: famílias matrimoniais, decorrentes do casamento; famílias informais oriundas da união estável; famílias homoafetivas iniciadas a partir do elo afetivo entre pessoas do mesmo sexo; famílias monoparentais constituídas pelo vínculo afetivo entre um dos genitores com seus filhos; famílias anaparentais baseadas no vínculo existente entre irmãos diante da ausência dos pais; e ainda, a família "multiespécie" novidade no Direito de Família que merecerá profundas análises diante do tema aqui proposto.

Diante disto, mostra-se necessário discutir acerca deste novo modelo de família, principalmente no que diz respeito em sede de divórcio ou dissolução de união estável, pois quando deste evento, o ex-casal entra em profunda discussão quanto a quem vai ficar o bichinho de estimação considerado como membro da família e não como simples objeto passível de partilha, tal qual indica a legislação atual.

Nesse sentido, o presente trabalho traz a importância de se estudar e analisar esse novo fenômeno familiar, visto que, os animais de estimação ou companhia vem ganhando mais amplitude, tanto no aspecto afetivo como no aspecto econômico.

As pessoas, ao decidirem levar um animal de estimação para casa, na grande maioria das vezes, estão extremamente preocupadas com o bem estar do bichinho, buscando garantir a melhor alimentação, o melhor atendimento veterinário, bem como os melhores produtos pets postos em mercado, justamente pela intenção de integrá-lo ao ambiente familiar e as pessoas que o compõem, sem qualquer risco a saúde ou a segurança dos envolvidos.

Ao despender determinada quantia mensal e ao mesmo tempo oferecer todo o amor e carinho possível, a relação de reciprocidade entre animal e humano torna-se cada vez mais estreita, sobrevindo, portanto, uma eventual separação de um dos tutores e do animal uma verdadeira catástrofe para ambos, tendo em vista todo o afeto presente na interação humano-animal.

Ao passo que, para o humano, o animal de estimação é considerado um membro da família, deve o judiciário adequar-se a essa nova realidade social, devendo tentar atender ao máximo a satisfação da lide levada ao seu conhecimento. Para isto, mostra-se necessário definir até que ponto esse direito de ter o animal em companhia deve ser tutelado e em que medida, como, por exemplo discute-se a "guarda" e, até mesmo, um tipo de "pensão" para custeio e subsistência do mesmo.

Até o momento, as lides que vêm permeando o judiciário brasileiro estão sendo resolvidas, no que couber, nos ditames do instituto da guarda que diz respeito a proteção a pessoa do filhos, merecendo, portanto, profunda análise quanto ao seu cabimento, tendo em vista que o referido instituto é justamente aplicado a pessoas e não a animais, somado ainda ao fato de inexistir qualquer legislação específica que comporte tais circunstâncias.

Por fim, o presente trabalho concentra-se no desenvolvimento de cinco tópicos. O primeiro cinge-se na tentativa de conceituar família "multiespécie", bem como de demonstrar os elementos indicadores que caracterizam este novo grupo familiar. O segundo, por sua vez, cuida dos animais quanto bens semoventes, segundo o Código Civil de 2002 e a evolução dos mesmos na sociedade, sendo até mesmo considerados como" filhos". O terceiro, cuida da aplicabilidade das normas da proteção da pessoa dos filhos aos animais de companhia diante da inexistência de legislação específica diante dos casos concretos. O quarto cuida, como o tópico anterior, acerca do uso de "pensão alimentícia" para os animais de estimação tomando por base recente julgado acerca do tema. Por fim, mas não menos importante, preocupa-se com a análise do Projeto de Lei de nº 1.365 de maio de 2015, que trata acerca da guarda dos animais de estimação. 


1 DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE: O SURGIMENTO DE UM NOVO TIPO DE FAMÍLIA

Cuida, o artigo 226 da Constituição Federal de 1988, da família, intitulada âncora da sociedade e detentora de especial proteção do Estado. Relacionado a isto, segue em seus demais parágrafos algumas conceituações de entidades familiares previstas no texto magno, elencadas de forma meramente exemplificativa, ou seja, não há impedimentos quanto a formação de novos arranjos familiares em busca da felicidade tão apregoada pelo Direito das famílias.

Desta forma, diversos são os tipos de entidades familiares: famílias matrimoniais, decorrentes do casamento; famílias informais oriundas da união estável; famílias homoafetivas iniciadas a partir do elo afetivo entre pessoas do mesmo sexo; famílias monoparentais constituídas pelo vínculo afetivo entre um dos genitores com seus filhos; famílias anaparentais baseadas no vínculo existente entre irmãos diante da ausência dos pais.

Verifica-se, portanto, que a família vem a todo instante transmudando-se, de acordo com sociedade e com os fatos que nela ocorrem, passando de, originalmente, como aquela reconhecida e protegida pelo Estado somente quando formada por laços sanguineos, dando lugar a formações familiares unidas por laços afetivos, onde buscam seus alicerces no afeto e pela constante busca da felicidade como forma de realização de cada um de seus membros.

Continuando, eis que vem ganhando um grau significativo de popularidade, a chamada "família multiespécie", podendo ser conceituada, como aquela formada pela interação humano-animal dentro de um lar, onde os componentes humanos reconhecem os animais de estimação como verdadeiros membros da família.

Difícil imaginar, na sociedade em que vivemos, um lar no qual não possua um animal de estimação, sendo diversos os motivos pelos quais induzem as pessoas a levarem um bichinho para casa, mas, talvez, o principal deles é o de vencer a solidão, sentimento que assola o mundo contemporâneo, no intuito de uma companhia leal e constante.

Assim, torna-se imperioso destacar quais o elementos norteadores para empregar uma real definição do que seria a família multiespécie, afinal, o simples fato de ter um animal de estimação em casa parece não se demonstrar suficiente para classificá-lo como real membro da família. Outrossim, os elementos aqui apontados não formam um rol taxativo e/ou cumulativo, mas tão somente induz, de forma exemplificativa, características próprias de famílias constituídas por humanos e animais de estimação.

Primeiramente, deve-se mencionar a necessidade da presença de afeto na relação humano-animal, na medida em que deve ser aferido o grau de importância que aquele ser representa para a família. A exemplo, temos os constantes casos de desaparecimento animais, nos quais os tutores, movidos pelo desespero oferecem até mesmo recompensa, na maioria das vezes pecuniária, pela devolução do animal desaparecido. Outro fator que merece destaque, é a preocupação com o estado de saúde dos animais de companhia, onde os tutores despendem quantias altas para reabilitação de saúde do bichinho na tentativa de poupá-lo de sofrimento e da morte. 

Continuando, pontua-se o estabelecimento de uma convivência constante entre os membros humanos e os animais de companhia, merecendo relevância a convivência dentro lar, visto que, aqueles animais que vivem na área externa da casa somada a falta de qualquer participação na rotina dos membros, bem como utilizados para outras funções, a exemplo da guarda, já descaracterizaria a formação de uma família multiespécie.

Ainda sobre a convivência, nota-se a preocupação dos tutores em incluir de todas as maneiras seus animais de companhia nas atividades desenvolvidas pela família, como viagens, fotos para os álbuns de família, compra de presentes, e, até mesmo, a realização de festa comemorativa pelo natalício do bichinho. Todas demonstram caráter inclusivo e reafirmam a condição do animal como membro da família.

A consideração moral seria outro indicativo para conceituar este novo arranjo familiar conceituado para indicar a existência da preocupação com as consequências que determinadas ações podem gerar para outrem (PETER, apud, LIMA). Encaixa-se neste ponto, a disposição de se abster de determinadas coisas ou situações em benefício do animal, como deixar de viajar, voltar cedo para casa para o bichinho não passar muito tempo só, evitar determinados produtos de limpeza em virtude de alergias que podem desenvolver no animal, entre outras inúmeras situações.

 Diante das considerações apontadas acima vislumbra-se, que a família não está adstrita unicamente pelo afeto e convivência entre seres humanos, mas, de igual forma, entre o vínculo estabelecido entre humanos e animais levados para o ambiente familiar, tidos como animais de companhia, sendo até mesmo considerados como membros da família.

A relevância do surgimento deste novo arranjo familiar é de tamanha importância que muitas pessoas, sejam oriundas de uniões estáveis ou de uniões matrimoniais, estão optando por não ter descendentes, dando lugar aos "filhos" de quatro patas, bem como os donos e tutores estão sendo substituídos por "mães", "pais", "irmãos", "tios", de acordo com a extensão da família.

Cumpre ao Direito, desta forma, adequar-se a essa nova modalidade de entidade familiar que vem cada vez mais ganhando espaço nos lares, sendo que este novo modelo, de igual forma, merece proteção estatal sucedendo delas, por consequência, efeitos jurídicos decorrentes de eventuais rupturas, de acordo com o tratamento a que é atribuído ao animal em questão, cuidando o tópico seguinte no que concerne a classificação existente aos animais, bem como a elevação do status de semovente até a condição de "filho", em alguns casos.


2 DE BENS SEMOVENTES A “FILHOS DE QUATRO PATAS”

De maneira abrangente e universal, podemos asseverar que um bem representa tudo que nos traga contentamento ou prazer. Pode-se ainda afirmar, que bem em outro sentido, é o oposto de mal; denota bondade, caridade, gentileza, entre outros. Fala-se ainda que o termo bem explicita posse, pertença, poderio e até propriedade.

Bem lembrado ainda a definição de bem trazida por Caio Mário da Silva Pereira (PEREIRA, apud, CHAVES, 2012, p.496), vejamos:

[...] tudo que nos agrada: o dinheiro é um bem, como o é a casa, a herança de um parente, a faculdade de exigir uma prestação; bem é ainda a alegria de viver, o espetáculo de um pôr do sol, um trecho musical; bem é o nome do indivíduo, sua qualidade de filho, o direito a integridade física e moral. Se todos são bens, nem todos são bens jurídicos. Nessa categoria inscrevemos a satisfação de nossas exigências e de nossos desejos, quando amparados pela ordem jurídica.

Afastando, portanto, a genericidade do termo bem e focando sob a face jurídica, o termo possui acepção particular. Representa, pois, tudo aquilo sensível a valoração jurídica, ou seja, aquilo que pode servir como causa de uma relação jurídica.

Nesse sentido, o Código Civil de 2002, dentre as diversas classificações dos bens, tratou dos semoventes segundo o legado do superado Código de 1916, categorizando os animais como bens semoventes, sem qualquer distinção, ou seja, define os animais como bens móveis suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Partindo da premissa literal do artigo citado acima, conclui-se que como bens semoventes, os animais compõem patrimônio do seu titular, sendo passível, portanto, de venda, troca e, até mesmo, ser atribuído valor econômico, se considerado como bem pura e simplesmente.

Desta forma, o problema atual surge a partir da análise que em tempos remotos os animais eram tidos como instrumento de trabalho, pastoreio, guarda de patrimônio, controle de pragas, entre outras funções para as quais eram designados pela sua própria natureza e instinto. Hoje, em contrapartida, os animais de estimação ocupam um lugar significativo nos lares e aos mesmos é distribuído todo afeto possível na interação humano-animal.

Os animais de estimação, especialmente, cachorros (mais presente nos lares) deixaram de ser o "melhor amigo do homem" e passaram a qualidade de "filho". Esta é a nova realidade que permeia os lares contempoâneos.

Não é incomum a situação de inúmeras pessoas que "adotam" animais de estimação os elevando a qualidade de "filho"  em detrimento da procriação tradicional, optando por não dar continuidade a família por meio de descendentes. Noutro ponto, ainda vislumbra-se casais com filhos humanos e animais de estimação, ambos convivendo em condições de igualdade e tratamento.

Percebe-se, diante das situações acima citadas, que as famílias nestas circunstâncias, em especial casais, sentem-se em seu íntimo o total exercício da parentalidade em relação aos animais de estimação, dividindo responsabilidades, despesas alimentares, médicas, vestuário e, até mesmo, opções de lazer para seus "filhos de quatro patas".

Verifica-se essa condição na medida em que noutros tempos, os animais eram limitados aos ambientes externos das casas, no quintal; no jardim; acorrentados para soltura somente ao anoitecer; com casas próprias de cachorro, por exemplo, enfim, com espaços de vivência e convivência limitados. Era segundo dito popular da "porta para fora".

Contemporaneamente, os animais adentram sem qualquer limitação nos lares, fazem uso do sofá, inexistindo qualquer oposição, e  até mesmo dividem o mesmo quarto que os donos, restando evidente a posição de membro totalmente inserido na família. Portanto, o acesso irrestrito ao lar humano evidencia, de forma concreta, que os animais de estimação não são simplesmente ditos como membros da família, eles são considerados e vivem realmente como daquele grupo do qual estão inseridos.

Nesse diapasão, não pode mais haver a consideração de que o animal de estimação, considerado como membro da família, substituindo muitas vezes os filhos humanos sejam vistos unicamente como bem jurídico de valor econômico, sem prestigiar o afeto presente na relação humano-animal, não mais de companheirismo como outrora, mas sim na qualidade de pais e "filhos".

Desta forma, na condição em que vem sendo clamados como "filhos", não parece estranho que venham chegando ao judiciário demandas suscitando a guarda e custódia dos animais de estimação quando da dissolução da união estável ou do divórcio de casais. Nesse sentido, seriam tais lides abarcadas pela vara de família ou pelas varas cíveis?

O primeiro caso relativo a este tipo de situação é oriundo da 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de janeiro de 2015 em sede de apelação onde um homem obteve espécie de posse compartilhada do cãozinho de estimação com sua ex-companheira.

Em primeiro grau, litigavam os ex-companheiros pelo reconhecimento e dissolução da união estável, bem como a divisão dos bens comuns do casal, dentre eles o cãozinho de nome Dully da raça Cocker Spaniel, de idade já avançada, chegada a vida dos mesmos após aborto espontâneo da autora.

Assim, em sede de sentença, o juiz a quo determinou a posse e devolução de Dully para a ex-companheira/autora, sob o fundamento de que a mesma comprovou com êxito ser legítima proprietária do animal de estimação, tendo em vista que todos os documentos, tais como carteira de identificação e cartão de vacinação, continham como proprietária o nome da autora.

Indignado com a decisão de primeiro grau, insurgiu-se o réu contra sentença por meio de apelação direcionada ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pretendendo unicamente a reforma da decisão quanto à posse do cão, pugnando para que a posse/guarda fosse de sua exclusividade.

Em seu voto, o relator, Desembargador Marcelo Lima Buhatem, destacou a importância do tema diante da ausência de normatização pelo legislador, bem como considerou desafiador, visto que deve-se revisar dogmas e conceitos clássicos do Direito Civil.

Destacou ainda, não basta ao animal de estimação ser visto como parte do Direito Ambiental ou Transindividual,, tampouco ser classicamente concebido como semovente.

Para o desembargador, ao animal de companhia é necessário empregar outro tratamento, justamente por ser de estimação e dotado de afeto e,  nas palavras do mesmo, " por preencher as necessidades humanas emocionais, afetivas, que, atualmente, de tão caras e importantes não podem passar desapercebidas pelo operador."

Ademais, o voto trouxe a afirmativa que os animais são seres que compõem  a família de forma afetiva em relação aos seus donos, sendo sua possível perda passível de sofrimento desmedido.

APELAÇÃO CÍVEL Nº 0019757-79.2013.8.19.020822ª  CÂMARA CÍVEL

DIREITO CIVIL - RECONHECIMENTO/DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL - PARTILHA DE BENS DE SEMOVENTE - SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA PARCIAL QUE DETERMINA A POSSE DO CÃO DE ESTIMAÇÃO PARA A EX- CONVIVENTE MULHER– RECURSO QUE VERSA EXCLUSIVAMENTE SOBRE A POSSE DO ANIMAL – RÉU APELANTE QUE SUSTENTA SER O REAL PROPRIETÁRIO – CONJUNTO PROBATÓRIO QUE EVIDENCIA QUE OS CUIDADOS COM O CÃO FICAVAM A CARGO DA RECORRIDA  DIREITO DO APELANTE/VARÃO EM TER O ANIMAL EM SUA COMPANHIA – ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO CUJO DESTINO, CASO DISSOLVIDA SOCIEDADE CONJUGAL É TEMA QUE DESAFIA O OPERADOR DO DIREITO –  SEMOVENTE QUE, POR SUA NATUREZA E FINALIDADE, NÃO PODE SER TRATADO COMO SIMPLES BEM, A SER HERMÉTICA E IRREFLETIDAMENTE PARTILHADO, ROMPENDO-SE ABRUPTAMENTE O CONVÍVIO ATÉ ENTÃO MANTIDO COM UM DOS INTEGRANTES DA FAMÍLIA – CACHORRINHO “DULLY” QUE FORA PRESENTEADO PELO RECORRENTE À RECORRIDA, EM MOMENTO DE ESPECIAL DISSABOR ENFRENTADO PELOS CONVIVENTES, A SABER, ABORTO NATURAL SOFRIDO POR ESTA – VÍNCULOS EMOCIONAIS E AFETIVOS CONSTRUÍDOS EM TORNO DO ANIMAL, QUE DEVEM SER, NA MEDIDA DO POSSÍVEL, MANTIDOS –  SOLUÇÃO QUE NÃO TEM O CONDÃO DE CONFERIR DIREITOS SUBJETIVOS AO ANIMAL, EXPRESSANDO-SE, POR OUTRO LADO, COMO MAIS UMA DAS VARIADAS E MULTIFÁRIAS MANIFESTAÇÕES DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, EM FAVOR DO RECORRENTE – PARCIAL ACOLHIMENTO DA IRRESIGNAÇÃO PARA, A DESPEITO DA AUSÊNCIA DE PREVISÃO NORMATIVA REGENTE SOBRE O THEMA, MAS SOPESANDO TODOS OS VETORES ACIMA EVIDENCIADOS, AOS QUAIS SE SOMA O PRINCÍPIO QUE VEDA O NON LIQUET, PERMITIR AO RECORRENTE, CASO QUEIRA, TER CONSIGO A COMPANHIA DO CÃO DULLY, EXERCENDO A SUA POSSE PROVISÓRIA, FACULTANDO-LHE BUSCAR O CÃO EM FINS DE SEMANA ALTERNADOS, DAS 10:00 HS DE SÁBADO ÀS 17:00HS DO DOMINGO.

Ainda em relação ao mencionado acórdão, decidiu em seu voto, o relator, pela reforma parcial da sentença de primeiro grau, garantindo ao recorrente, diante das circunstâncias do processo, principalmente em razão do bem estar e interesse do animal em disputa, ressalte-se de idade já avançada e por consequencia necessitar de cuidados constantes,  o direito a companhia do cão Dully, sendo ao recorrente deferido o direito de exercer a posse provisória, devendo o mesmo agir de acordo com os interesses e necessidades do animal, sendo facultado buscar o cãozinho em fins de semana alternados, às 8h da manhã do sábado e devolvendo-o às 17h do domingo, na residência da apelada ex-companheira.

A partir de então, várias outras demandas surgiram, tendo como cerne a posse/guarda de animais de estimação quando da dissolução de uniões estáveis e/ou casamentos.

Frise-se, de igual forma, decisão da 10ª câmara de Direito Privado do TJ/SP, onde determinou o direito de cada litigante a ficar com o cão Rody durante semanas alternadas. A decisão ainda foi além da anterior, suscitando que o homem não é o único sujeito detentor de consideração moral, mas sim todos os sujeitos viventes, vejamos:

É preciso, como afirma Francesca Rescigno, superar o antropocentrismo a partir do reconhecimento de que o homem não é o único sujeito digno de consideração moral, de modo que os princípios de igualdade e justiça não se aplicam somente humanos, mas a todos os sujeito viventes.

 Diante das premissas trazidas pelas sensíveis decisões, urge o ordenamento jurídico pela necessidade de uma legislação específica que trate a matéria de animais de estimação quando disputados em sede de divórcio ou dissolução de união estável, visto que inúmeros casos irão chegar ao judiciário e nem todos os aplicadores do direito terão a sensibilidade e trato necessário para lidar com o assunto em questão, podendo daí surgir decisões injustas em relação aos tutores, bem como aos animais, merecedores de proteção e garantia de seu bem estar.

Indubitável mostra-se que não mais pode ser atribuída ao animal de estimação, aquele que é tratado como "filho", como 'membro da família", a denominação  semovente, bem móvel, res, parte do patrimônio, entre outros adjetivos que suscitem valoração econômica, pois a interação humano-animal é dotada de afeto não podendo ser desmerecida ou esquecida, mas sim protegida pelo Estado em suas diversas formas.


3 APLICABILIDADE DAS NORMAS DA PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS AOS ANIMAIS DE COMPANHIA

O capítulo XI do Código Civil de 2002 traz em seu corpo as normas disciplinadoras questões relativas a proteção da pessoa dos filhos, mais precisamente os tipos de guarda a serem exercidas pelos pais quando findado o casamento, a união estável e até mesmo as situações de filhos havidos fora de uniões.

Assim, além das normas previstas nos artigos, há a presença de princípios basilares que auxiliam o julgador no momento da decisão relativa ao destino do menor em disputa.

Entende-se por guarda em seu conceito mais singelo, a atribuição a ambos os pais ou a apenas um dos encargos de cuidado, zelo e proteção do filho, bem como preservar a continuidade da convivência (ROLF, apud, CHAVES, 2012):

Compete aos pais ter os filhos em sua companhia e custódia, e não meramente companhia física, mas uma relação de comunicação que englobe não apenas o espaço físico do filho em interação com seu genitor, mas que nesse ambiente também impere uma relação de afeto e de carinho unindo ascendente e filho com laços de verdadeira e ilimitada comunhão de um fraterno amor.  

Nesta linha de raciocínio, cumpre mencionar o principio que norteia toda e qualquer situação que envolva questões relacionadas a guarda de menores sob poder familiar, qual seja, princípio do melhor/maior interesse do menor ou principio do melhor interesse da criança e adolescente.

Preconiza tal princípio que qualquer decisão que tenha como ponto central questões que envolvam menores, deverá ser norteada pelo melhor e o que for mais conveniente a fim de que possa satisfazer suas necessidades e interesses. Ressalte-se que nas ações que envolvam guarda, o interesse do menor se posiciona hierarquicamente superior ao desejo e vontade dos pais, só assim será alcançado com integralidade a proteção dos direitos do menor. 

Trazendo para a questão que envolve guarda de animais de estimação, tais premissas não poderiam ser diferentes, visto que, quando da disputa judicial, o melhor interesse do animal deverá ser levado em consideração, ou seja, a proteção de seu bem-estar.

Assim, só será considerado atingido o princípio anteriormente citado, através da concretização do bem- estar do animal através de duas premissas: bem -estar físico e psicológico.

Em termos de bem-estar físico, englobam-se as necessidades de água, alimentação, passeios diários, saúde e um ambiente com espaço adequado para tamanho e peculiaridades de cada raça.

No que tange ao bem-estar psicológico, merece destaque o que segue:

O bem-estar psicológico do pet também deverá ser considerado na análise do seu bem-estar global. Pesquisas indicam que existem métodos científicos para determinação do estado emocional do animal, que utilizam processos comportamentais e biológicos. Standards comportamentais e hormonais servem para indicar se o bem-estar animal, em termos psicológicos, está sendo alcançado. Existem algumas sugestões de comportamento cuja presença ou ausência podem servir como indicadores de estados emocionais positivos ou negativos nos animais, como: comportamento brincalhão, aproximação de outros animais, automutilação, vocalização, comportamentos de coleta ou exploratórios, etc. Em termos biológicos, flutuações hormonais são indicativas de determinadas emoções. A presença, ausência ou nível de concentração de certos hormônios ou a medição de certos processos psicológicos podem caracterizar estados emocionais de um animal que é incapaz de comunicar verbalmente essas emoções. ( MCCLAIN, apud, LIMA)

Desta forma, o melhor interesse do animal possui algumas justificativas. A primeira pontua que os animais, assim como os humanos possuem inteligência e sensibilidade, na medida em são capazes de dar e retribuir afeto, sentir tristeza e até mesmo sofrer depressão (neste último, especialmente cães e gatos), merecendo destaque as palavras do médico-veterinário Luiz Fernando de Carvalho Bovolato:

Experiências traumáticas, perdas por morte ou abandono, introdução de um novo indivíduo sendo da mesma espécie ou não, mudança de ambiente ou mesmo de rotina subitamente, solidão, fome, frio, sede, dentre outras, são fatores que levam os animais a entrar em estado de depressão. Cada animal responde, diferentemente, de maneira individual ao fator exposto, independentemente da espécie, raça ou sexo.

A segunda, permeia sob o fato de que atualmente o número de animais de estimação nos lares supera o número de crianças . Ressalte-se que só no ano de 2016, no Brasil, 44,3% dos domicílios possuem pelo menos um cachorro e 17,7%, um gato, segundo matéria veiculada no jornal Estado de Minas no ano de 2016.

Sendo assim, a recusa por quem quer que seja em proteger os animais, que da mesma maneira que as crianças são indefesas e amados pelos seus tutores, permanece em um verdadeiro disparate com a realidade.

Um terceiro fator, encontra-se no fato do exercício da parentalidade na interação humano-animal diante de uma relação de cuidados e preocupações, tal qual com filhos humanos. Frise-se, como já falado, muitas pessoas optam por animais em detrimento da procriação.

Diante das justificativas acima apresentadas, parece no mínimo insensível, a postura de alguns aplicadores do direito em considerar o animal de estimação, tratado e considerado como filho, como mero objeto, sem levar em consideração todo afeto existente na relação.

Nesta linha de raciocínio, se considerarmos as várias formas de constituição de família todas protegidas pelo Estado, não poderíamos desprestigiar as famílias multiespécie, a atual concepção de família não permitiria. Assim, frente a inexistência de legislação própria que regule as relações entre animais de estimação e humanos, entende-se totalmente cabível as normas relativas a proteção da pessoa dos filhos aos animais de companhia, sempre de acordo com o melhor interesse do animal.

Impende destacar que tais normas carregam consigo a previsão dos institutos da guarda compartilhada e unilateral, sem prejuízo de outras também válidas, tais como a guarda alternada.

Merece destaque a importância da guarda compartilhada, na qual prevê, em medida de igualdade, o exercício do atributos do poder familiar, sendo de responsabilização conjunta tudo que envolva o menor. Sendo assim, é direito de ambos os tutores terem em sua companhia e convivência o animal de estimação em litígio e, de igual forma, dividir a responsabilização pelo mesmo.

Em contrapartida, a guarda unilateral será exercida por apenas um dos genitores, enquanto ao outro será concedido a regulamentação do direito de visitas. Esta, por sua vez, carrega em seu bojo o inconveniente de privar o menor da convivência contínua com um dos genitores, qual seja, aquele que detém tão-somente o direito de visita.

Existe ainda a modalidade de guarda alternada, onde a divisão de tempo em companhia entre o menor e os genitores é dividido de maneira igual ou de acordo com os interesses dos envolvidos.

Noutro giro, frise-se que ao contrário do humano, o animal de estimação nunca irá alcançar autonomia, sempre existirá, enquanto o mesmo viver, a inteira dependência deste para com seus tutores. Pressupõe, desta forma, que tal relação, qual seja, humano-animal, seja pautada no afeto, dedicação e diante de uma conduta humana responsável, a fim de proporcionar até o último dia de vida do animal, dignidade, proteção e bem-estar.

Ao aplicar o julgador o instituto da guarda, seja ela qual for, deverá o mesmo ter a sensibilidade necessária para fazer uso da melhor opção possível ao animal de estimação e aos tutores, a fim de que seja alcançado em sua plenitude o melhor interesse do animal de acordo com suas necessidades e adequações.

Por fim, diante da inércia do legislador em acompanhar as mudanças da sociedade, inexistindo, portanto, legislação específica que regule a situação em questão, pugna-se pela aplicação das normas da proteção da pessoa dos filhos aos animais de estimação, visto que os mesmos não podem ser visto como meros objetos suscetíveis a divisão patrimonial.


4 DA (IM) POSSIBILIDADE DE PENSÃO ALIMENTÍCIA AOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

A família, em seus contexto e com os avanços que passa, retrata a sociedade em que vivemos. Como já falado, o afeto parece ser a mola propulsora da família, sendo ele o elemento justificador para suas diversas formações.

Diante disto, o instituto da pensão alimentícia encontra seu fundamento primordial no princípio da solidariedade familiar, este ainda deriva da solidariedade social ancorado na erradicação da pobreza e da marginalização social.

Assim, a solidariedade no direito de família apregoa que a obrigação alimentar deriva de seus fundamentos, ou seja, no dever de prestar assistência a quem necessita dentro dos membros que compõem o núcleo familiar.

Os alimentos, portanto, englobam as prestações, pecuniárias ou não, a fim de garantir a subsistência digna de outrem que não pode prover por si só. Nas palavras de Cristiano Chaves (p. 760, 2012), " é possível entender-se por alimentos o conjunto de meios materiais necessários para a existência das pessoas, sob o ponto de vista físico, psíquico e intelectual".

Fundamentam-se, os alimentos, em duas premissas básicas: necessidade e possibilidade. A primeira representa a carência material de quem pleiteia. A segunda, por sua vez, a possibilidade de quem irá fornecer os alimentos. Tais premissas devem ser estabelecidas dentro da ideia de patrimônio mínimo, ou seja, dentro do que alimentante realmente necessidade  para evitar o enriquecimento sem causa.

Desta forma, estão aptos a pedir e prestar alimentos, os parentes, os cônjuges ou companheiros, do que necessitem para viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

Diante, do assunto abordado no presente trabalho, importa destacar a previsão de alimentos devida aos filhos. Ressalte-se, que enquanto menores a necessidade de receber alimentos é presumida, enquanto maiores provada.

A obrigação alimentar dos pais perante os filhos decorre, tal qual o dever de guarda (engloba direito a companhia, cuidado e proteção), decorre do poder familiar, de manter integralmente a prole. Frise-se que essa obrigação não é perpetua, mas enquanto durar a menoridade ou a necessidade quando maiores.

Trazendo tais conceitos a relação humano-animal de estimação, de pronto destacamos que ao adquirir ou "adotar" um animal, o tutor ou os tutores, devem ter a ciência de que aquele animal irá depender até o último dia de sua vida de seu tutor, sendo que a necessidade do mesmo se perpetua ao longo dos tempos até o evento morte.

Em recente julgado, a 7ª câmara cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de forma inusitada, determinou o pagamento de despesas no importe de R$ 1.050 (mil e cinquenta reais) por parte do ex-companheiro para animais de estimação adquiridos na constância da referida união. A convivência perdurou por 22 (vinte e dois) anos e ao longo dela foram adquiridos 6 (seis) animais, sendo cinco cachorros e uma gata.

A decisão trouxe a pauta acerca da possibilidade ou não do pagamento de pensão alimentícia para animais de estimação, visto que, como já mencionado anteriormente já vem sendo aplicados as normas relativas a guarda aos mesmos, numa espécie de garantir o regime de convivência entre os ex-casal e os animais dos mesmos.

  Novamente, encontra-se a legislação atrasada quanto questões que envolvam animais de estimação e humanos, visto que inexiste qualquer legislação sobre, cabendo novamente ao judiciário o dever de dirimir tais situações da melhor maneira possível.

Quanto ao julgado, o réu que foi compelido ao pagamento, alegou, em suma, que os animais são de exclusiva propriedade da autora/ex-companheira, sendo descabido "encargo alimentício".

No entanto, não foi o que considerou o TJ-RJ. O mesmo sopesou que os seis animais foram adquiridos na constância da união e que os mesmos possuem elevada despesas e, portanto, não seria justo, impor somente a ex-companheira, "guardiã" dos mesmos o dever de custeio dos mesmos, visto que são em considerável número e um dos animais ainda faz tratamento de câncer por meio de quimioterapia.

A decisão, ao que consta, foi inédita, não só no Rio de Janeiro, mas em todo o país. Em tempos remotos, jamais seria suscitada qualquer tipo de pedido como este pugnando por "pensão alimentícia" a animais, mas hoje, diante das mudanças nos núcleos familiares, a função dos mesmos foi modificada, com diversas finalidades.

Sendo, portanto, uma decisão de cunho peculiar, sem dúvidas terá o condão de criar precedentes por todo o país, não podendo ser descartada a possibilidade de novos casos.

A decisão pareceu pertinente quanto ao caso, na medida em que impôs a divisão das despesas dos animais entre os ex-companheiros, ressaltando que os animais não podem ser vistos como coisas ou propriedade de um ou de outro, mas sim como membros da família constituída por duas pessoas que os adquiriram quando a união permanecia feliz, não podendo os mesmos serem descartados da vida de ambos como objeto.

Mostra-se, portanto, totalmente cabível a utilização de algumas normas e preceitos da pensão alimentícia (humanos) aos animais, pois os mesmos necessitam de cuidados constantes, estes englobam despesas, tais como alimentação, médico veterinário, medicações, sejam de uso contínuo ou esporádico, vacinas anuais, vermífugos, tratamentos de saúde, dentre outras, devendo ser estabelecida a divisão destas despesas entre ex-companheiros ou casais divorciados que os adquiriram na constância da união ou casamento.

Frise-se que o quantum a ser fixado é outro ponto relevante, pois nem sempre o que detém a "guarda" é o que possui maiores condições financeiras, e nem sempre quem possui maiores condições deverá ter a guarda, tendo em vista o melhor interesse do animal, devendo-se equalizar a situação de maneira que não haja privação dos animais das necessidades básicas, muito menos agrida o patrimônio dos tutores a ponto de afetar a própria subsistência.

Assim, enquanto não sobrevier legislação específica quanto aos casos, contarão os futuros litigantes tão-somente com a sensibilidade e sensatez dos aplicadores do direito, na esperança de que vejam seus "filhos de quatro patas" como membros da família e não como simples objetos de valoração econômica sem qualquer valor sentimental para seus tutores. É o que se deseja.


5 ANÁLISE DO PROJETO DE LEI 1.365/2015

Como já falado anteriormente, inexiste legislação que trate especificamente sobre as questões que envolvam direitos dos animais de estimação no âmbito familiar, especialmente sobre "guarda" ou "pensão".

Atualmente o que temos de mais próximo em relação aos assuntos aqui abordados é o projeto de Lei 1.365 de maio de 2015 que conta, atualmente, com onze artigos, de autoria do Deputado Ricardo Tripoli (PSDB-SP), onde encontra-se na fase de Coordenação de Comissões Permanentes (CCP), com última movimentação datada em 25 de maio de 2016.

O projeto de Lei traz em seu corpo, genericamente, a disposição sobre a guarda de animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade e do vínculo conjugal entre seus possuidores.

Ao iniciar a leitura dos dispositivos, percebeu-se a preocupação em prestigiar tanto os casais em sede de divórcio, quanto as dissoluções de uniões estáveis, hetero ou homoafetivas.

Em seguida, conceitua como posse responsável os deveres e obrigações relacionados ao direito de possuir o animal de estimação, devendo o juiz aplicar de forma subsidiária legislações vigentes que regulam a manutenção de animais silvestres nativos ou exóticos, domésticos e domesticados, tidos como de estimação.

O referido projeto ainda traz os tipos de guarda a serem aplicadas nos casos de litígios, quais sejam, compartilhada e unilateral, somente. Conceituando a guarda unilateral como aquela exercida e concedida a só uma das partes e, como guarda compartilhada, quando o exercício da posse responsável for concedido a ambas as partes.

Quanto as exigências para o deferimento ou indeferimento da guarda, deverá o juiz observar as seguintes condições: ambiente adequado para a morada do animal; disponibilidade de tempo , condições de trato, de zelo e de sustento; o grau de afinidade entre o animal e a parte. Por último, os juiz ainda deverá considerar as demais condições imprescindíveis para a manutenção da sobrevivência do animal com suas características.

Prevê ainda, procedimentos processuais, como audiência de conciliação, bem como a faculdade do juiz de basear-se em orientação técnico-profissional para determinar a referida guarda para a aplicação do caso concreto.

Ademais, ainda aduz a  possibilidade de visitas ao tutor que não foi concedida a guarda, bem como lhe garante o direito de fiscalizar o exercício da posse da outra parte em atenção às necessidades específicas do animal e de comunicar ao juízo competente qualquer descumprimento.

Outrossim, cuida da proibição de realização de cruzamentos, alienação do animal, ou dos filhotes destes, sem a anuência do outro tutor, prevendo a reparação de danos para tal. Sendo que se houver filhotes advindos dos animais de estimação pertencentes aos tutores, os mesmos deverão ser divididos em números iguais, ou em valor pecuniário, de acordo com a média de preço do mercado.

Em suma, o projeto sustenta-se na justificativa de fornecer ao julgador subsídios para determinar a guarda/posse dos animais de estimação quando do litígio de seus donos/tutores, na tentativa de desqualificar o animal como objeto que faz parte da partilha de bens do ex-casal.

Muito embora a intenção do projeto venha a cuidar da questão da guarda dos animais de estimação, percebe-se da sua leitura uma maior preocupação com a situação do ex-cônjuges ou ex-companheiros, em detrimento do bem-estar e interesse do animal.

O projeto, por mais que apresente em sua justificativa o desejo de "descoisificar" os animais de estimação, ainda os trata como coisas/objetos, na medida em que alguns momentos ressalta a expressão "posse", o que não parece adequado, tendo em vista que os animais nesta situação são tidos como membros da família. Alinha-se a esta constatação, de igual forma, a previsão do direito de divisão de filhotes advindos de cruzamento e divisão pecuniária, bem como a necessidade de anuência do outro tutor nos casos de alienação do animal.

Seguindo, não parece fazer sentido, ganhar dinheiro às custas de quem se tem afeto ou se ama, pois se assim o for, o animal será visto como propriedade e, consequentemente, haverá valoração econômica e não afetiva. O grande ponto aqui é o afeto existente entre tutores e animais, e não o quanto lucrativo este animal possa ser. 

Outro ponto, é que em nenhum momento o projeto privilegia qualquer indício de "pensão alimentícia", tão somente prevê que a guarda será deferida a quem detiver maior disponibilidade, condições de trato, zelo e por fim, sustento. Como já falado aquele que detém maiores condições financeiras nem sempre deverá ser o detentor da guarda do animal de estimação, bem como se há possibilidades financeiras o custeio das despesas do animal deverão ser arcadas por ambos, e não somente pelo detentor da guarda.

Por fim, merece lembrar que ainda trata-se de um projeto de Lei que merece a reforma de muitos pontos a fim de que se alcance o objetivo almejado, qual seja, não só a guarda, mas, de igual forma, que haja previsão de forma justa para o custeio e sustento do animal centro do litígio. Só será alcançada sua real magnitude a partir do momento em que a questão for vista de forma mais ampla e afastada do preconceito advindo do antropocetrismo (homem como centro do universo) que considera o homem como centro de tudo, que deverá ceder para o direito a vida, ao biocentrismo (todas as formas de vida são igualmente importantes). Aqui tratamos de seres viventes que merecem proteção e garantia por parte de todos. 


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo aqui proposto e discutido, percebe-se o surgimento de uma nova espécie de família: não mais aquela, tradicional, formada tão-somente por humanos, mas sim uma nova, formada a partir da relação de afeto existente entre humano e animal.

Não há mais cabimento para a afirmativa de que o todo e qualquer animal seja considerado um bem, como parte do patrimônio de alguém ou de duas pessoas, pois não há como mensurar o valor de um animal de estimação que é tratado como "filho" para as pessoas envolvidas. O valor sentimental, o afeto, ultrapassam qualquer entendimento.

Urge desta forma, que o direito se molde a essa nova realidade social, bem como que o legislativo saia de sua inércia na medida em que crie legislação específica que regule a relação humano-animal, mais precisamente quando das rupturas dos relacionamentos amorosos, sejam oriundos do casamento ou da união estável, humanos.

Neste sentido, cumpre enquanto não sobrevenha legislação específica, a necessidade de se aplicar aos casos de divórcio e dissolução de união estável, as normas que permeiam o Direito de Família, no que couber, mais especificamente o instituto da proteção da pessoa dos filhos e da pensão alimentícia, na medida em que a ruptura do vínculo humano não pode atingir maleficamente o animal, bem como pelo fato de o mesmo possuir necessidade presumida permanente, visto que, ao contrário dos humanos nunca irá alcançar a independência, necessitando, portanto, de todos os cuidados, manutenção, custeio e subsistência oriunda de seus tutores.

Quanto ao projeto de Lei de n° 1.365 de maio de 2015, o mesmo ainda não mostra-se suficiente para abarcar de forma satisfatória a situação do animal de estimação centro do litígio, pois o mesmo ainda denota em alguns momentos que o animal é um objeto, beneficiando muito mais ao ex-casal do que o interesse e bem-estar do animal, necessitando assim a revisão de seus artigos.

Por fim, o que se espera é uma tutela efetiva por parte do Direito, bem como do Estado, no sentido de proteger e criar normas específicas, em conformidade com os anseios atuais, que regulem a interação humano e animal, este último entendido como membro da família, afastando-se, portanto, a ideia de que o animal é um objeto, propriedade de seus donos.


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