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Deveres gerais de conduta nas obrigações civis

Deveres gerais de conduta nas obrigações civis

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Há deveres que excedem do próprio e estrito dever de prestação, especialmente nas obrigações negociais, mas que são com ele necessariamente anexos, unidos ou correlacionados.

SUMÁRIO: 1. DEVERES ANEXOS À PRESTAÇÃO E DEVERES GERAIS DE CONDUTA; 2. DEVER DE BOA-FÉ OBJETIVA NAS OBRIGAÇÕES; 2.1. Deveres pré e pós-contratuais; 2.2. Dever de não agir contra o ato próprio; 3. DEVER DE REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DAS OBRIGAÇÕES; 4. DEVER DE EQUIVALÊNCIA MATERIAL DE DIREITOS E DEVERES; 5. DEVER DE EQUIDADE; 6. DEVER DE INFORMAR; 6.1. Dever de informar e efeito jurídico da publicidade; 6.2. Dever de informar e garantia de cognoscibilidade; 7. VIOLAÇÃO POSITIVA DA OBRIGAÇÃO.


1. DEVERES ANEXOS À PRESTAÇÃO E DEVERES GERAIS DE CONDUTA

Há deveres que excedem do próprio e estrito dever de prestação, especialmente nas obrigações negociais, mas que são com ele necessariamente anexos, unidos ou correlacionados. Larenz denomina-os "deveres de conduta", que resultam do que as partes estipularam, ou do princípio da boa-fé, ou das circunstâncias, ou, finalmente, das exigências do tráfico, que podem afetar a conduta que de qualquer modo esteja em relação com a execução da obrigação. Para ele, esses deveres não podem ser demandados autonomamente, mas sua violação fundamenta obrigação de indenização ou, ante certas circunstâncias, a resolução do negócio jurídico. Esses deveres resultam naturalmente da relação jurídica obrigacional, mas se diferenciam por seu caráter secundário ou complementar do dever primário de adimplemento. Toda obrigação recebe seu caráter distintivo (sua configuração como contrato de locação, de compra e venda, de empreitada) precisamente através do dever primário de adimplemento, mas seu conteúdo total compreende ademais deveres de conduta mais ou menos amplos [1].

Sem embargo da excelência dessa construção doutrinária, que dilatou os efeitos das obrigações, no sentido da solidariedade social, e da cooperação, com positiva influência na doutrina brasileira, atente-se para duas importantes restrições que delas resultam: a) os deveres de conduta seriam imputáveis apenas ao devedor; b) seriam derivados do dever primário da prestação de adimplemento, neste sentido qualificando-se como secundários, ou complementares, ou acessórios, ou conexos, ou anexos, segundo variada terminologia adotada na doutrina.

A doutrina jurídica portuguesa opta pela denominação "deveres acessórios de conduta", conforme se vê em Antunes Varela e em Menezes Cordeiro. Antunes Varela distingue os deveres acessórios de conduta, assim entendidos os que estão dispersos no Código Civil e na legislação avulsa, a exemplo de não se vender coisa com vício, e o "dever geral de agir de boa-fé", que seria muito mais que um dever acessório. A generalidade dos deveres acessórios de conduta não daria lugar à exigibilidade da prestação ou do adimplemento, mas sua violação poderia obrigar à indenização dos danos causados à outra parte ou dar mesmo origem à resolução do contrato ou à sanção análoga [2].Para Menezes Cordeiro são deveres acessórios: a) os deveres in contrahendo, impostos aos contraentes durante as negociações que antecedem o contrato, revelados pelos deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade; b) deveres de eficácia protetora de terceiros; c) deveres post pactum finitum, que subsistiriam após a extinção da relação obrigacional; d) deveres que subsistem na nulidade [3]. Esses deveres remetem, de um modo ou de outro, ao princípio ou dever geral de boa-fé.

Todavia, a evolução do direito fez despontar deveres de conduta que se revestiram da dignidade de princípios normativos, de caráter constitucional e infraconstitucional, que deixaram de ter "caráter secundário, complementar, do autêntico dever de adimplemento", referido por Larenz, que tanta influência exerceu e exerce na civilística brasileira. Os deveres de conduta, convertidos em princípios normativos, não são simplesmente anexos ao dever de prestar adimplemento. A evolução do direito fê-los deveres gerais de conduta, que se impõem tanto ao devedor quanto ao credor e, em determinadas circunstâncias, a terceiros. Esses deveres não derivam da relação jurídica obrigacional, e muito menos do dever de adimplemento; estão acima de ambos, tanto como limites externos ou negativos, quanto como limites internos ou positivos. Derivam diretamente dos princípios normativos e irradiam-se sobre a relação jurídica obrigacional e seus efeitos, conformando e determinando, de modo cogente, assim o débito como o crédito. Os deveres gerais de conduta exigem interpretação de seus efeitos e alcances diretamente conjugada aos dos princípios de onde promanam. A compreensão de uns implicam a dos outros.

Os princípios são explícitos quando já positivados no ordenamento jurídico, como os referidos no art. 170 da Constituição, para a ordem econômica (justiça social, livre iniciativa, valorização do trabalho humano, função social da propriedade, defesa do consumidor etc.); são implícitos quando são extraídos dos valores consagrados no ordenamento jurídico mercê da interpretação sistemática de seus preceitos. No que respeita ao contrato em geral, o Código Civil de 2002 verteu em princípios normativos explícitos a boa-fé objetiva ou de conduta e a função social e, implicitamente, a equivalência material. Esses princípios engendram deveres gerais de conduta a qualquer obrigação e não apenas aos contratos, pois têm sede constitucional, como desdobramento dos princípios da solidariedade social e da justiça social (arts. 3º, I, e 170 da Constituição), que transformaram profundamente o paradigma individualista do Código Civil anterior.

Devemos esclarecer que é corrente no Brasil a terminologia alemã de cláusula geral, ora com significado semelhante ao de princípio, ora com significado mais restrito de valor ou conjunto de valores, cujo conteúdo se concretiza na aplicação da norma que a contém. Preferimos tratar as duas hipóteses como princípios, assumindo os riscos da generalização, como o faz Pontes de Miranda. Freqüentemente, ambas utilizam conceitos indeterminados, o que amplia a função de aplicação do direito e, consequentemente, a responsabilidade do aplicador. A preferência por princípios é crescente no direito atual, como se vê na denominação adotada na União Européia para o projeto de código unificado de direito contratual, da chamada Comissão Lando: "Princípios do Direito Contratual Europeu" [4]. Neste caso, os princípios terão natureza dispositiva ou supletiva, podendo as partes integrá-los ou não ao contrato. No direito brasileiro, os princípios têm caráter normativo cogente, com primazia sobre a convenção das partes e integração necessária ao ato ou negócio jurídico, salvo se se tratar de contrato internacional, cuja lei nacional aplicável pode ser escolhida.

No Código Civil, os princípios assumem primazia, com enunciações freqüentes no conteúdo de suas regras, às vezes ao lado de conceitos indeterminados. Os conceitos indeterminados ( e. g.: "desproporção manifesta" e "valor real da prestação", do art. 317) complementam e explicitam o conteúdo das regras jurídicas, mas não têm autonomia normativa. Já os princípios são espécies de normas jurídicas, podendo ter enunciações autônomas ou estarem contidos como expressões nas regras. No art. 187, as expressões "fim econômico e social", "boa-fé" e "bons costumes" são princípios, pois o ato jurídico que exceder os limites por eles impostos será considerado ilícito e, consequentemente, nulo. Relativamente ao contrato, o Código Civil faz menção expressa à "função social do contrato" (art. 421) e, nesse ponto, foi mais incisivo que o Código de Defesa do Consumidor. Consagrou-se, definitivamente e pela primeira vez na legislação civil brasileira, a boa-fé objetiva, exigível tanto na conclusão quanto na execução do contrato (art. 422). A referência feita ao princípio da probidade é abundante uma vez que se inclui no princípio da boa-fé, como abaixo se demonstrará. No que toca ao princípio da equivalência material o Código o incluiu, de modo indireto, nos dois importantes artigos que disciplinam o contrato de adesão (arts. 423 e 424), ao estabelecer a interpretação mais favorável ao aderente (interpretatio contra stipulatorem) e ao declarar nula a cláusula que implique renúncia antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do negócio (cláusula geral aberta, a ser preenchida pela mediação concretizadora do aplicador ou intérprete, caso a caso).

O Código de Defesa do Consumidor é uma lei eminentemente principiológica, com vasta utilização não só dos princípios mas de conceitos indeterminados. De seus variados dispositivos podem ser colhidos os princípios da transparência, da harmonia das relações de consumo, da vulnerabilidade do consumidor, da boa-fé, da segurança do consumidor, da equivalência material entre consumidores e fornecedores, da informação, de modificação de prestações desproporcionais, de revisão por onerosidade excessiva, de acesso à justiça, da responsabilidade solidária dos fornecedores do produto ou do serviço, da reparação objetiva, da interpretação favorável ao consumidor, da equidade. Desses princípios defluem direitos gerais de conduta correspondentes, nas relações jurídicas de consumo.

Os deveres gerais de conduta, ainda que incidam diretamente nas relações obrigacionais, independentemente da manifestação de vontade dos participantes, necessitam de concreção de seu conteúdo, em cada relação, considerados o ambiente social e as dimensões do tempo e do espaço de sua observância ou aplicação. Essa é sua característica, razão porque são insuscetíveis ao processo tradicional de subsunção do fato à norma jurídica, porque esta determina a obrigatoriedade da incidência da norma de conduta (por exemplo, a boa-fé) sem dizer o que ela é ou sem defini-la. A situação concreta é que fornecerá ao intérprete os elementos de sua concretização. Utilizando-se uma metáfora, é uma moldura com tela em branco, para que o conteúdo (a pintura) seja necessariamente concretizado dentro dos limites e condições que objetivamente se apresentem. Não se confunde com sentimentos ou juízos de valor subjetivos do intérprete, porque o conteúdo concreto é determinável em sentido objetivo, até com uso de catálogo de opiniões e lugares comuns (topoi) consolidados na doutrina e na jurisprudência, em situações semelhantes ou equivalentes. O lugar e o tempo são determinantes, pois o intérprete deve levar em conta os valores sociais dominantes na época e no espaço da concretização do conteúdo do dever de conduta. Não deve surpreender que o mesmo texto legal, em que se insere o princípio tutelar do dever de conduta, sofra variações de sentido ao longo do tempo.


2. DEVER DE BOA-FÉ OBJETIVA NAS OBRIGAÇÕES

A boa-fé objetiva é dever de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais, especialmente no contrato. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de conduta. Para Menezes Cordeiro [5], a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela.

A boa-fé objetiva não é princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-constituída [6], mas que será preenchida com a mediação concretizadora do intérprete-julgador. Cada relação obrigacional exige um juízo de valor extraído do ambiente social, considerados o momento e o lugar em que se realiza; mas esse juízo não é subjetivo, no sentido de se irradiar das convicções morais do intérprete. Como esclarece Larenz [7], deve ser tomado como módulo o pensamento de um intérprete justo e eqüitativo, isto é, "que a sentença há de ajustar-se à exigências geralmente vigentes da justiça, ao critério refletido na consciência do povo ou no setor social a que se vinculem os participantes (por exemplo, comerciantes, artesãos, agricultores)", desde que observados os valores de fidelidade e confiança.

O Código Civil estabelece, no art. 113, que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Essa regra é cogente, não podendo ser afastada pelas partes. Cada figurante (devedor ou credor) assume o dever próprio e em relação ao outro, de comportar-se com boa-fé, obrigatoriamente. Como se vê, vai além do simples dever anexo à prestação. Ao regular o abuso do direito, o art. 187 qualifica como ato ilícito, gerador de dever de indenizar, exercer o direito contrariamente à boa-fé. No art. 422 refere-se a ambos os contratantes do contrato comum civil ou mercantil, não podendo o princípio da boa-fé ser aplicado preferencialmente ao devedor, neste caso segundo a regra contida no art. 242 do Código Civil alemão. Nas relações de consumo, todavia, ainda que o inciso III do art. 4º do CDC cuide de aplicá-lo a consumidores e fornecedores, é a estes que ele se impõe, principalmente, em virtude da vulnerabilidade daqueles. Por exemplo, no que concerne à informação o princípio da boa-fé volta-se em grande medida ao dever de informar do fornecedor.

Além dos tipos legais expressos de cláusulas abusivas o Código de Defesa do Consumidor fixou a boa-fé como cláusula geral de abertura, que permite ao aplicador ou intérprete o teste de compatibilidade das cláusulas ou condições gerais dos contratos de consumo. No inciso IV do art. 51 a boa-fé, contudo, a boa-fé está associada ou alternada com a eqüidade ("... com a boa-fé ou a eqüidade"), a merecer consideração, adiante.

Por seu turno, o art. 422 do Código Civil de 2002 associou ao princípio da boa-fé o que denominou de princípio da probidade ("... os princípios da probidade e boa-fé"). No direito público a probidade constitui princípio autônomo da Administração Pública, previsto explicitamente no art. 37 da Constituição, como "princípio da moralidade" a que se subordinam todos agentes públicos. No direito contratual privado, todavia, a probidade é qualidade exigível sempre à conduta de boa-fé. Quando muito seria princípio complementar da boa-fé objetiva ao lado dos princípios da confiança, da informação e da lealdade. Pode dizer-se que não há boa-fé sem probidade.

A boa-fé não se confunde com o dever observância dos bons costumes, os quais têm sentido mais amplo de condutas socialmente aceitas, como tradução da moral comunitária dominante ao plano jurídico, que lhe empresta juridicidade. A boa-fé objetiva oferece dimensão mais específica, como dever de conduta dos participantes da relação obrigacional segundo fundamentos e padrões éticos. Sabe-se que a moral e as normas morais, existentes em cada comunidade, não se confundem com a ética, sublimada como padrões ideais de conduta. A moral extrai-se da realidade social, com suas contingências e vicissitudes (por isso, fala-se de moral cristã, moral burguesa, por exemplo), enquanto a ética é um dever ser otimizado, ideal, que orienta a conduta humana à máxima harmonia e perfectabilidade. Com risco de simplificação, dizemos que os bons costumes estão mais próximos da moral, e a boa-fé da ética.

2.1. Deveres pré e pós-contratuais

Questão relevante é o dos limites objetivos do princípio da boa-fé nos contratos. A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do princípio da boa-fé objetiva são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato. O Código de Defesa do Consumidor avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda informação ou publicidade suficientemente precisa (art. 30), ao impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art. 46), ao tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto (art. 32).

O Código Civil não foi tão claro em relação aos contratos comuns, mas, quando refere amplamente (art. 422) à conclusão e à execução do contrato, admite a interpretação em conformidade com o atual estado da doutrina jurídica acerca do alcance do princípio da boa fé aos comportamentos in contrahendo e post pactum finitum. A referência à conclusão deve ser entendida como abrangente da celebração e dos comportamentos que a antecedem, porque aquela decorre destes. A referência à execução deve ser também entendida como inclusiva de todos os comportamentos resultantes da natureza do contrato. Em suma, em se tratando de boa-fé, os comportamentos formadores ou resultantes de outros não podem ser cindidos.

Independentemente do alcance da norma codificada, o princípio geral da boa-fé obriga, aos que intervierem em negociações preliminares ou tratativas, o comportamento com diligência e consideração aos interesses da outra parte, respondendo pelo prejuízo que lhes causar. A relação jurídica pré-contratual submete-se à incidência dos deveres gerais de conduta. Construiu-se, no século XIX, remontando-se ao jurista alemão Ihering, a teoria da culpa in contrahendo, para imputar a quem deu causa à frustração contratual o dever de reparar, fundando-se na relação de confiança criada pela existência das negociações preliminares; nessa época de predomínio da culpa, procurou-se arrimo na responsabilidade civil extranegocial culposa, gerando pretensão de indenização. Larenz entende que não apenas procede a indenização do dano em favor da parte que tenha confiado na validade do contrato, mas todo dano que seja conseqüência da infração de um dever de diligência contratual, segundo o estado em que se acharia a outra parte se tivesse sido cumprido o dever de proteção, informação e diligência. Ou seja, na prática, a infração de dever de conduta pré-contratual deve ser regida pelos mesmos princípios da responsabilidade por infração dos deveres de conduta contratual [8]. Nesta última direção, encaminha-se o direito positivo brasileiro, principalmente quanto aos efeitos da informação que antecede. O art. 30 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que toda informação obriga o fornecedor e "integra o contrato que vier a ser celebrado". Portanto, os dados de informação que antecedem o contrato de consumo são partes integrantes deste, independentemente da vontade ou culpa das partes.

2.2. Dever de não agir contra o ato próprio

Entre tantas expressões derivadas do princípio da boa-fé pode ser destacado o dever de não agir contra o ato próprio. Significa dizer que a ninguém é dado valer-se de determinado ato, quando lhe for conveniente e vantajoso, e depois voltar-se contra ele quando não mais lhe interessar. Esse comportamento contraditório denota intensa má-fé, ainda que revestido de aparência de legalidade ou de exercício regular de direito. Nas obrigações revela-se, em muitos casos, como aproveitamento da própria torpeza, mas a incidência do dever não exige o requisito de intencionalidade.

Essa teoria radica no desenvolvimento do antigo aforismo venire contra factum proprium nulli conceditur, significando que a ninguém é licito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta, quando esta conduta interpretada objetivamente segunda a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, justifica a conclusão que não se fará valer posteriormente o direito que com estes se choque. No direito anglo-americano é longa a tradição do instituto do estoppel, em razão do qual "uma parte é impedida em virtude de seus próprios atos de exigir um direito em detrimento da outra parte que confiou em tal conduta e se comportou em conformidade com ela" [9]. A teoria encontra-se consolidada na doutrina e na jurisprudência. Puig Brutau sustenta que quem deu lugar a uma situação enganosa, ainda que sem intenção, não pode pretender que seu direito prevaleça sobre o de quem confiou na aparência originada naquela situação; esta aparência, afirma-se, deu lugar à crença da "verdade" de uma situação jurídica determinada [10].

O conteúdo desse dever é também versado doutrinariamente sob a denominação de teoria dos atos próprios, "que sanciona como inadmissível toda pretensão lícita mas objetivamente contraditória com respeito ao próprio comportamento anterior efetuado pelo mesmo sujeito". O fundamento radica na confiança despertada no outro sujeito de boa-fé, em razão da primeira conduta realizada. A boa-fé restaria vulnerada se fosse admissível aceitar e dar curso à pretensão posterior e contraditória. São requisitos: a) existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; b) exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa devida à contradição existente entre as duas condutas; c) a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas condutas [11]. Já Anderson Schreiber, sob a ótica do direito brasileiro, considera como pressupostos de incidência da vedação de venire contra factum proprium: a) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial; b) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c)um comportamento contraditório com este sentido objetivo; d) um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição [12].

O Código Civil de 2002, nos preceitos destinados ao lugar do adimplemento, introduziu norma (art. 330) cuja natureza corresponde ao dever de não contradizer o ato próprio: "O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato". Em outras palavras, o credor não pode fazer valer o estipulado no contrato contrariando a conduta que adotou, ao admitir que o adimplemento se fizesse em outro lugar, pois gerou a confiança do devedor que assim se manteria. Outra norma que realiza esse dever é o parágrafo único do art. 619, relativamente ao contrato de empreitada, mediante o qual o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou; não pode prevalecer o contrato contrariando essa conduta assim consolidada.

A aplicação da teoria é ampla em situações variadas; no direito das obrigações podem ser referidas: a) quando uma parte, intencionalmente ou não, faz crer à outra que tal forma não é necessária, incorrendo em contradição com seus próprios atos quando, mais tarde, pretende amparar-se nesse defeito formal para não cumprir sua obrigação; b) quando, apesar da nulidade, uma parte considera válido o ato, dele se beneficiando, invocando a nulidade posteriormente por deixar de interessá-la; c) quando um fornecedor oferece bonificações nas prestações ajustadas, cancelando-as sem aviso prévio; d) quando uma parte aceita receber reiteradamente as prestações com alguns dias após o vencimento, sem cobrança de acréscimos convencionados para mora, passando a exigi-los posteriormente.


3. DEVER DE REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DAS OBRIGAÇÕES

O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do negócio sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer obrigação contratual repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.

Para Miguel Reale o contrato nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. "O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida" [13].

No período do Estado liberal a inevitável dimensão social do contrato era desconsiderada para que não prejudicasse a realização individual, em conformidade com a ideologia constitucionalmente estabelecida; o interesse individual era o valor supremo, apenas admitindo-se limites negativos gerais de ordem pública e bons costumes, não cabendo ao Estado e ao direito considerações de justiça social.

A função exclusivamente individual do contrato é incompatível com o Estado social, caracterizado, sob o ponto de vista do direito, como já vimos, pela tutela explícita da ordem econômica e social na Constituição. O art. 170 da Constituição brasileira estabelece que toda a atividade econômica – e o contrato é o instrumento dela – está submetida à primazia da justiça social. Não basta a justiça comutativa que o liberalismo jurídico entendia como exclusivamente aplicável ao contrato [14]. Enquanto houver ordem econômica e social haverá Estado social; enquanto houver Estado social haverá função social do contrato.

Com exceção da justiça social, a Constituição não se refere explicitamente à função social do contrato. Fê-lo em relação à propriedade, em várias passagens, como no art.170, quando condicionou o exercício da atividade econômica à observância do princípio da função social da propriedade. A propriedade é o segmento estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular.

Tampouco o Código de Defesa do Consumidor o explicitou, mas não havia necessidade porquanto ele é a própria regulamentação da função social do contrato nas relações de consumo.

No Código Civil de 2002 a função social surge relacionada à "liberdade de contratar", como seu limite fundamental. A liberdade de contratar, ou autonomia privada, consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida por muitos como o toque de especificidade do direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite externo ou negativo mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos "exercida em razão e nos limites da função social do contrato" (art. 421).

O princípio da função social é a mais importante inovação do direito contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo o Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social.

O princípio da função social do contrato harmoniza-se com a modificação substancial relativa à regra básica de interpretação dos negócios jurídicos introduzida pelo art. 112 do Código Civil de 2002, que abandonou a investigação da intenção subjetiva dos figurantes em favor da declaração objetiva, socialmente aferível, ainda que contrarie aquela.


4. DEVER DE EQUIVALÊNCIA MATERIAL DE DIREITOS E DEVERES

O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.

No Código Civil o princípio teve introdução explícita nos contratos de adesão. Observe-se, todavia, que o contrato de adesão disciplinado pelo Código Civil tutela qualquer aderente, seja consumidor ou não, pois não se limita a determinada relação jurídica como a de consumo. Esse princípio abrange o princípio da vulnerabilidade jurídica de uma das partes contratantes, que o Código de Defesa do Consumidor destacou.

O princípio da equivalência material rompe a barreira de contenção da igualdade jurídica e formal, que caracterizou a concepção liberal do contrato. Ao juiz estava vedada a consideração da desigualdade real dos poderes contratuais ou o desequilíbrio de direitos e deveres, pois o contrato fazia lei entre as partes, formalmente iguais, pouco importando o abuso ou exploração da mais fraca pela mais forte.

O princípio da equivalência material desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. A lei presume juridicamente vulneráveis o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente de contrato de adesão, dentre outros. Essa presunção é absoluta, pois não pode ser afastada pela apreciação do caso concreto. O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que pode estar presente na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude de circunstâncias supervenientes que levem a onerosidade excessiva para uma das partes.


5. DEVER DE EQUIDADE

A equidade, entendida como justiça do caso concreto, tem este como sua razão de ser, na contemplação das circunstâncias que o cercam; cada caso é um caso. O apelo à equidade é o reconhecimento pela própria lei de que a prestação pode ser injusta. Já Aristóteles, em lição sempre atual, dizia que a própria natureza da equidade é a retificação da lei onde esta se revela insuficiente pelo seu caráter universal, porque "a lei leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade de falha decorrente dessa circunstância" [15]. Nesses casos a equidade intervém para julgar, não com base na lei, mas com base naquela justiça que a mesma lei deve realizar.

Durante o predomínio do individualismo jurídico, a equidade praticamente desapareceu do direito civil, principalmente do direito das obrigações, em virtude da concepção dominante de insular as relações privadas em campo imune à interferência do Estado ou dos interesses sociais. A aplicação da equidade, milenarmente construída como valor constituinte da justiça, envolve necessariamente a intervenção do juiz, que é o agente do Estado, e retomou sua força no Estado Social, desenvolvido desde as primeiras décadas do século XX, como etapa da evolução do Estado Moderno.

O juízo de eqüidade conduz o juiz às proximidades do legislador, porém limitado à decidibilidade do conflito determinado, na busca do equilíbrio dos poderes privados. Apesar de trabalhar com critérios objetivos, com standards valorativos, a eqüidade é entendida no referido sentido aristotélico da justiça do caso concreto. O juiz deve partir de critérios definidos referenciáveis em abstrato, socialmente típicos, conformando-os à situação concreta, mas não os podendo substituir por juízos subjetivos de valor.

O Código Civil determina explicitamente a formação do juízo de equidade, para solução de certas situações com potencialidade de conflito, o que obriga o juiz a buscar os elementos de decisão fora da simples e tradicional subsunção do fato à norma. São exemplos dessa viragem à equidade, aplicáveis ao direito das obrigações: a) se os juros de mora não cobrirem o prejuízo do credor, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder eqüitativamente indenização suplementar (art. 404); b) se a pena civil ou cláusula penal for manifestamente excessiva, deve ser eqüitativamente reduzida pelo juiz (art. 413); c) se a obrigação do locatário pagar o aluguel pelo tempo que faltar, pelo fato de devolver a coisa antes do encerramento do contrato, for considerada excessiva, o juiz fixará a indenização "em bases razoáveis", ou seja, equitativamente (art. 572); d) se o aluguel arbitrado pelo locador, após notificado o locatário a restituir a coisa em razão do encerramento do prazo, for considerado manifestamente excessivo, poderá o juiz reduzi-lo (art. 575); e) se a prestação de serviços for feita por quem não possua título de habilitação, mas resultar benefício para a outra parte, o juiz atribuirá uma "compensação razoável", o que apenas será feito mediante a equidade (art. 606); f) se ocorrer diminuição do material ou da mão-de-obra superior a dez por cento do preço convencionado, no contrato de empreitada, poderá ser este revisto (art. 620); g) se as pessoas imputáveis pela reparação dos danos causados pelo incapaz não dispuserem de meios suficientes, o juiz fixará indenização equitativa que será respondida diretamente pelo incapaz, de modo a não privá-lo do necessário (art. 928); se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir eqüitativamente a indenização (art. 944).

O contrato pode estar submetido à arbitragem por opção das partes, seja mediante cláusula compromissória nele incluída, seja mediante específico contrato de compromisso (arts. 851 a 853 do Código Civil), subtraindo-se da administração regular de justiça ou do juiz de direito, para solução de eventuais conflitos. O art. 2º da Lei n. 9.307, de 1996 (que regula a arbitragem), estabelece que a arbitragem poderá ser de direito (definindo qual) ou de equidade, a critério das partes, e o art. 18 define o árbitro como juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou homologação do Poder Judiciário. Como juiz de fato, o árbitro decide segundo o largo alcance da equidade, sem se ater a qualquer norma de direito. Mas, ainda que as partes tenham vinculado a arbitragem a normas jurídicas, o dever geral de agir segundo a equidade integra o contrato.


6. DEVER DE INFORMAR

O direito à informação e o correspectivo dever de informar têm raiz histórica na boa-fé, mas adquiriram autonomia própria, ante a tendência crescente do Estado Social de proteção ou tutela jurídica dos figurantes vulneráveis das relações jurídicas obrigacionais. Indo além da equivalência jurídica meramente formal, o direito presume a vulnerabilidade jurídica daqueles que a experiência indicou como mais freqüentemente lesados pelo poder negocial dominante, tais como o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente. Nessas situações de vulnerabilidade, torna-se mais exigente o dever de informar daquele que se encontra em situação favorável no domínio das informações, de modo a compensar a deficiência do outro. O dever de informar é exigível antes, durante e após a relação jurídica obrigacional.

O ramo do direito que mais avançou nessa direção foi o direito do consumidor, cujo desenvolvimento aproveita a todo o direito privado. A concepção, a fabricação, a composição, o uso e a utilização dos produtos e serviços atingiu, em nossa era, elevados níveis de complexidade, especialidade e desenvolvimento científico e tecnológico cujo conhecimento é difícil ou impossível de domínio pelo consumidor típico, ao qual eles se destinam. A massificação do consumo, por outro lado, agravou o distanciamento da informação suficiente. Nesse quadro, é compreensível que o direito avance para tornar o dever de informar um dos esteios eficazes do sistema de proteção.

O dever de informar impõe-se a todos os que participam do lançamento do produto ou serviço, desde sua origem, inclusive prepostos e representantes autônomos. É dever solidário, gerador de obrigação solidária. Essa solidariedade passiva é necessária, como instrumento indispensável de eficaz proteção ao consumidor, para que ele não tenha de suportar o ônus desarrazoado de identificar o responsável pela informação, dentre todos os integrantes da respectiva cadeia econômica (produtor, fabricante, importador, distribuidor, comerciante, prestador do serviço). Cumpre-se o dever de informar quando a informação recebida pelo consumidor típico preencha os requisitos de adequação, suficiência e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles importa descumprimento do dever de informar.

A adequação diz com os meios de informação utilizados e com o respectivo conteúdo. Os meios devem ser compatíveis com o produto ou o serviço determinados e o consumidor destinatário típico. Os signos empregados (imagens, palavras, sons) devem ser claros e precisos, estimulantes do conhecimento e da compreensão. No caso de produtos, a informação deve referir à composição, aos riscos, à periculosidade. Maior cautela deve haver quando o dever de informar veicula-se por meio da informação publicitária, que é de natureza diversa. Tome-se o exemplo do medicamento. A informação da composição e dos riscos pode estar neutralizada pela informação publicitária contida na embalagem ou na bula impressa interna. Nessa hipótese, a informação não será adequada, cabendo ao fornecedor provar o contrário. A legislação de proteção do consumidor destina à linguagem empregada na informação especial cuidado. Em primeiro lugar, o idioma será o vernáculo. Em segundo lugar, os termos empregados hão de ser compatíveis com o consumidor típico destinatário. Em terceiro lugar, toda a informação necessária que envolva riscos ou ônus que devem ser suportados pelo consumidor será destacada, de modo a que "saltem aos olhos". Alguns termos em língua estrangeira podem ser empregados, sem risco de infração ao dever de informar, quando já tenham ingressado no uso corrente, desde que o consumidor típico com eles esteja familiarizado. No campo da informática, por exemplo, há universalização de alguns termos em inglês, cujas traduções são pouco expressivas, a exemplo do aparelho denominado mouse.

A suficiência relaciona-se com a completude e integralidade da informação. Antes do advento do direito do consumidor era comum a omissão, a precariedade, a lacuna, quase sempre intencionais, relativamente a dados ou referências não vantajosas ao produto ou serviço. A ausência de informação sobre prazo de validade de um produto alimentício, por exemplo, gera confiança no consumidor de que possa ainda ser consumido, enquanto que a informação suficiente permite-lhe escolher aquele que seja de fabricação mais recente. Situação amplamente divulgada pela imprensa mundial foi a das indústrias de tabaco que sonegaram informação, de seu domínio, acerca dos danos à saúde dos consumidores. Insuficiente é, também, a informação que reduz, de modo proposital, as conseqüências danosas pelo uso do produto, em virtude do estágio ainda incerto do conhecimento científico ou tecnológico.

A veracidade é o terceiro dos mais importantes requisitos do dever de informar. Considera-se veraz a informação correspondente às reais características do produto e do serviço, além dos dados corretos acerca de composição, conteúdo, preço, prazos, garantias e riscos. A publicidade não verdadeira, ou parcialmente verdadeira, é considerada enganosa e o direito do consumidor destina especial atenção a suas conseqüências.

Em determinadas obrigações o dever de informar é particularizado para um dos figurantes ou participantes. No Código Civil, por exemplo, o comprador, se o contrato contiver cláusula de preferência para o vendedor, tem o dever de a este informar do preço e das vantagens oferecidos por terceiro para adquirir a coisa, sob pena de responder por perdas e danos (art. 518); o locatário tem o dever de informar ao locador as turbações de terceiros, que se pretendam fundadas em direito (art. 569); o empreiteiro que se responsabilizar apenas pela mão-de-obra tem o dever de informar o dono da obra sobre a má qualidade ou quantidade do material, sob pena de perder a remuneração se a coisa perecer antes de entregue (art. 613); o mandante tem o dever de informar terceiros da revogação do mandato, sob pena de esta não produzir efeitos em relação àqueles (art. 686); o segurado tem o dever de informar à seguradora, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé (art. 769); o promitente na promessa de recompensa tem o dever de informar a revogação desta, utilizando a mesma publicidade, sob pena de cumprir o prometido (art. 856); o gestor de negócio tem o dever de informar o dono do negócio a gestão que assumiu, tanto que se possa fazê-lo, sob pena de responder até mesmo pelos casos fortuitos (art. 864). São todos deveres anexos à prestação, não se enquadrando no conceito de deveres gerais de conduta.

6.1. Dever de informar e efeito jurídico da publicidade

Décadas atrás, Jean Carbonnier levantara a necessidade da análise jurídica da publicidade, ao afirmar que "o estudo do contrato na nossa época não se deveria separar de um estudo da publicidade" [16]. Para o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, publicidade é "toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos e idéias" [17]. Para atingir suas finalidades, a publicidade deve observar os princípios básicos de liberdade, identificação, veracidade, lealdade e ordem pública. Porém, há uma distinção qualitativa com a informação em sentido estrito. A publicidade tem por fito atrair e estimular o consumo, enquanto a informação visa a dotar o consumidor de elementos objetivos de realidade que lhe permitam conhecer os produtos e serviços e exercer suas escolhas. Sem embargo da distinção, ambas são espécies do gênero informação, incidindo o dever de informar. Até o advento e consolidação do direito do consumidor, a publicidade não gerava conseqüências jurídicas a quem dela se utilizasse ou mesmo abusasse. Entendia-se que era o preço a pagar ou a ser suportado pela sociedade, para o desenvolvimento das atividades econômicas, em favor do irrestrito princípio da livre iniciativa. Afirmava-se que era um dolus bonus, tolerado ou desconsiderado pelo direito, pois sua função era apenas a de estimular e atrair ao consumo. Mas, já se disse que "a evolução contemporânea do direito positivo, caracterizado pela proteção e informação dos consumidores, a regulamentação da publicidade, a força obrigatória dos documentos publicitários e o desenvolvimento da obrigação de informar, parece deixar um lugar muito reduzido ao ‘dolus bonus’" [18]. No nosso entendimento, não há mais lugar algum ao dolus bonus.

Para realizar o direito fundamental à informação, o direito do consumidor toma a publicidade sob dois aspectos: no primeiro, a publicidade preenche os requisitos de adequação, suficiência e veracidade, considerando-a lícita; no segundo, a publicidade ultrapassa limites positivos e negativos estabelecidos na lei, para defesa do consumidor, tornando-a ilícita. A publicidade ilícita é enganosa quando divulga o que não corresponde ao produto ou serviço, induzindo em erro; é abusiva quando discrimina pessoas e grupos sociais ou agride outros valores morais. A publicidade ilícita não produz efeitos em face do consumidor, que pode resolver o contrato por esse fundamento. A Constituição portuguesa (art. 60º) proibe todas as formas de publicidade oculta ou indireta. Do mesmo modo, a Lei de Defesa dos Consumidores portuguesa rejeita a publicidade que não seja inequivocamente identificada e desrespeite a verdade e os direitos dos consumidores. O sentido de "inequivocamente identificada" resulta em tornar ilícito o merchandising. Considera-se merchandising a aparição ou inserção camuflada de produtos em programas de televisão, rádio, em filmes, em espetáculos teatrais, sem indicação da natureza de mensagem publicitária. No direito brasileiro não é clara a proibição, havendo entendimento doutrinário de sua possível admissibilidade, desde que seja adaptada ao princípio da identificação [19]. Pensamos, ao contrário, que não preenche o requisito de adequação do dever informar, porque não utiliza a transparência na publicidade, alcançando o consumidor de surpresa e de modo subliminar.

6.2. Dever de informar e garantia de cognoscibilidade

O direito fundamental à informação visa à concreção das possibilidades objetivas de conhecimento e compreensão, por parte do consumidor típico, destinatário do produto ou do serviço. Cognoscível é o que pode ser conhecido e compreendido pelo consumidor. Não se trata de fazer com que o consumidor conheça e compreenda efetivamente a informação, mas deve ser desenvolvida uma atividade razoável que o permita e o facilite. É um critério geral de apreciação das condutas em abstrato, levando-se em conta o comportamento esperado do consumidor típico em circunstâncias normais. Ao fornecedor incumbe prover os meios para que a informação seja conhecida e compreendida.

A cognoscibilidade abrange não apenas o conhecimento (poder conhecer) mas a compreensão (poder compreender). Conhecer e compreender não se confundem com aceitar e consentir. Não há declaração de conhecer. O consumidor nada declara. A cognoscibilidade tem caráter objetivo; reporta-se à conduta abstrata. O consumidor em particular pode ter conhecido e não compreendido, ou ter conhecido e compreendido. Essa situação concreta é irrelevante. O que interessa é ter podido conhecer e podido compreender, ele e qualquer outro consumidor típico destinatário daquele produto ou serviço. A declaração de ter conhecido ou compreendido as condições gerais ou as cláusulas contratuais gerais não supre a exigência legal e não o impede de pedir judicialmente a ineficácia delas. Ao julgador compete verificar se a conduta concreta guarda conformidade com a conduta abstrata tutelada pelo direito.

Pretende-se com a garantia de cognoscibilidade facilitar ao consumidor a única opção que se lhe coloca nos contratos de consumo massificados, notadamente quando submetidos a condições gerais, isto é, "pegar ou largar" ou avaliar os custos e benefícios em bloco, uma vez que não tem poder contratual para modificar ou negociar os termos e o conteúdo contratual. O Código do Consumidor brasileiro (arts 46 e 54) estabelece que os contratos de consumo não serão eficazes, perante os consumidores, "se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo", ou houver dificuldade para compreensão de seu sentido e alcance, ou se não forem redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, ou se não forem redigidos com destaque, no caso de limitação de direitos.

Todas essas hipóteses legais configuram elementos de cognoscibilidade, situando-se no plano da eficácia, vale dizer, sua falta acarreta a ineficácia jurídica, ainda que não haja cláusula abusiva (plano da validade). Os contratos existem juridicamente, são válidos mas não são eficazes. O direito do consumidor, portanto, desenvolveu peculiar modalidade de eficácia jurídica, estranha ao modelo tradicional do contrato. No lugar do consentimento, desponta a cognoscibilidade, como realização do dever de informar.


7. DEVER DE COOPERAÇÃO

Tradicionalmente, a obrigação, especialmente o contrato, foi considerada composição de interesses antagônicos, do credor de um lado, do devedor de outro. Por exemplo, o interesse do comprador seria antagônico ao interesse do vendedor. Tal esquema era adequado ao individualismo liberal, mas é inteiramente inapropriado à realização do princípio constitucional da solidariedade, sob o qual a obrigação é tomada como um todo dinâmico, processual, e não apenas como estrutura relacional de interesses individuais. O antagonismo foi substituído pela cooperação, tido como dever de ambos os participantes e que se impõe aos terceiros, como vimos na tutela externa do crédito. Revela-se a importância não apenas da abstenção de condutas impeditivas ou inibitórias, mas das condutas positivas que facilitem a prestação do devedor. O dever de cooperação é mais exigente nas hipóteses de relações obrigacionais duradouras.

Perlingieri ressalta que "a obrigação não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada vez mais como uma relação de cooperação". Isso implica mudança radical de perspectiva: a obrigação deixa de ser considerada estatuto do credor, pois "a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor" [20].

Ainda que não distinga os deveres gerais de conduta (salvo quando se refere à boa-fé) dos que denomina deveres acessórios de conduta, reconhece Antunes Varela que estes tanto recaem sobre o devedor como afetam o credor, "a quem incumbe evitar que a prestação se torne desnecessariamente mais onerosa para o obrigado e proporcionar ao devedor a cooperação de que ele razoavelmente necessite, em face da relação obrigacional, para realizar a prestação devida" [21]. Entendemos, porém, que a cooperação não é efeito secundário dos deveres acessórios, mas ela própria dever geral de conduta que transcende a prestação devida para determinar a obrigação como um todo.

O dever de cooperação resulta em questionamento da estrutura da obrigação, uma vez que, sem alterar a relação de crédito e débito, impõe prestações ao credor enquanto tal. Assim, há dever de cooperação tanto do credor quanto do devedor, para o fim comum. Há prestações positivas, no sentido de agirem os participantes de modo solidário para a consecução do fim obrigacional, e há prestações negativas, de abstenção de atos que dificultem ou impeçam esse fim.

Em certas obrigações o dever de cooperação é mais ressaltado, especialmente quanto ao credor. Orlando Gomes, referindo-se a Von Tuhr, demonstra que em algumas "é indispensável a prática de atos preparatórios, sem os quais o devedor ficaria impedido de cumprir a obrigação" citando o exemplo clássico da escolha do credor nas obrigações alternativas. Se o credor se nega a praticar o ato preparatório, torna-se responsável pelo retardamento no cumprimento da obrigação [22].


NOTAS

1 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: ERDP,1958, p. 22.

2 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1986, p. 117.

3 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 603-31.

4 Cf. HARTKAMP, Arthur. The principles of european contract law. Stvdia ivridica: colloquia 8. Coimbra, n. 64, p. 53-58, 2002.

5 CORDEIRO, 1997, p. 1.234.

6 MENGONI, Luigi. Spunti per una teoria delle clausule generali. In: Il principio de buena fede. Francesco D. Busnelli (Coord.). Milano: Giuffrè, 1987, p. 10.

7 LARENZ, 1958, p. 143.

8 LARENZ, 1958, p. 110.

9 BLACK, Henry Campbell. Black’s law dictionary. St. Paul: West Publishing, 1990, verbete estoppel.

10 PUIG BRUTAU, José. Estudios de derecho comparado: la doctrina de los actos proprios. Barcelona: Ediciones Ariel, 1951, p. 102.

11 BORDA, Alejandro. La teoria de los actos proprios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993, p. 12.

12 SCHREIBER, Andrson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 271.

13 REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 10.

14 Não é por acaso que um dos maiores teóricos do neoliberalismo, Frederick Hayeck, entende que a justiça social é o principal obstáculo a ser removido. Em visão profundamente individualista, diz que "ao contrário do socialismo, deve ser dito que o liberalismo se dedica à justiça comutativa, porém não àquilo que se denomina justiça distributiva ou, mais recentemente, justiça ‘social’". Para ele, em uma ordem econômica baseada no mercado, o conceito de justiça social não tem sentido, nem conteúdo. No jogo econômico, somente a conduta dos jogadores pode ser justa, não o resultado. HAYECK, Frederick. Liberalismo: Palestras e Trabalhos. Trad. Karin Strauss, São Paulo: Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1994, p. 51.

15 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário de Gama Cury. Brasília: Ed.UnB, 1995, p. 109.

16 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 6ª edição. Paris: LGDJ, 1988, p. 273.

17 A diretiva européia nº 84/450/CEE define a publicidade como "qualquer forma de comunicação feita no âmbito de uma atividade comercial, artesanal ou liberal tendo por fim promover o fornecimento de bens ou de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações".

18 GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3ª edição. Paris: LGDJ, 1993, p. 534.

19 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ada Pellegrini Grinover et al. (Coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 266.

20 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 212.

21 VARELA, 1986, p. 119.

22 GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 102.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Deveres gerais de conduta nas obrigações civis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 711, 16 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6903. Acesso em: 19 abr. 2024.