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A hediondez do crime de extorsão mediante sequestro

A hediondez do crime de extorsão mediante sequestro

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Estuda-se a lei de crimes hediondos com uma análise histórica e jurídica e, em especial, o caráter da hediondez do crime de extorsão mediante sequestro.

Introdução

O renomado jurista do Império, Tobias Barreto, afirmava que o Direito Penal “é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade de um povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza. Nele se espelha a sua alma. ”[1] Ora, sendo a alma a fonte dos sentimentos do ser humano, é o que o inspira à perfeição. Todavia, apesar da inspiração, uma vez corrompida, quase impossível é que o indivíduo se auto refreie, já que seu egocentrismo o torna implacável em face de seu semelhante. Surge então a necessidade da tutela das relações para que, com a interação, a perfeição possa ser buscada na maior plenitude possível, surgindo a necessidade da submissão a um ser que, ao menos em tese, seja o ápice da perfeição e que possa guiar a todos nesta busca, um ser repleto de ideais. Na Antiguidade tais seres eram deuses, hoje são Estados.

Sendo manifestações de ideais, tornou-se inquestionável a todos que lhes são tutelados, o direito de lhes reger. Inerente aos ensinos está punição quando o produto de um ato consiste num erro, na concepção estatal. Surge, então, o direito de punir para tais manifestações, o que temos, hoje, por ius puniendi do Estado.

Sobre tal direito, afirmava o renomado jurista do Império: “deixo aos metaquímicos do Direito a tarefa de demonstrar a combinação binária da justiça moral com a utilidade social, que se costuma dar como solução satisfatória do problema da penalidade. ”[2] Eis o que iremos experimentar.


Pena

Segundo o filósofo penalista, Roberto Lyra, “a palavra pena vem do latim, segundo uns, de poena (castigo, suplício), segundo outros, de pondus (peso), porque, na balança da Justiça, seria necessário equilibrar os dois pratos. Há quem atribua, porém, ao vocábulo, origem grega – ponos (trabalho, fadiga), ou o filie ao sânscrito – punya (pureza, virtude). No sentido medieval de expiação, os partidários dessa última etimologia poderiam invocar a precedência da expressão expiar, do grego eus (pius) – bom, religioso, afável. Expiar seria, pois, fazer bem, converter em bom corrigir. [3]”

Desde a Antiguidade se busca compreender o que significa a pena. Dentre as mais diversas concepções, uma que perdura, há aproximadamente 3,5 mil anos, é a da Torá, escrita pelo legislador Moisés. Nela se trabalhava a ideia de expiação, como única forma de remissão de pecados. A remissão, por sua vez, se dava com o pagamento da dívida, para que, só daí, pudesse-se conquistar a paz para com Deus, que, por conseguinte, concederia a paz social mediante suas bênçãos. Nesse sentido, desde aquela época, verifica-se fundamentos para a construção de uma ideia de justiça, conciliada com utilitarismo, que, mais tarde, foi trabalhada por filósofos, migrando seu desenvolvimento, do campo religioso para o científico.

Todavia, desde as épocas mais rudimentares, até os dias atuais, a justiça preserva a ideia de conservação de indivíduos e do que eles adotaram por seus direitos, reagindo, assim, contra todas as ameaças que qualquer ser lhes trouxer, sendo ele integrante do meio social, justiça penal, ou alóctone, justiça beligerante.

Ora, a ideia de justiça penal carrega, em si, logicamente, a concepção de penas devidamente adequadas, o que foi sendo desenvolvido ao longo dos séculos com o desenvolvimento da humanidade e de suas ciências. O que antes fora tido como justo, atualmente não o é, por conseguinte o conceito de pena foi se modificando conjuntamente com as sociedades. Tal conceito, que vem sendo trabalhado à medida que a sociedade vem se tornando mais complexa e as relações sociais vão se tornando gradativamente mais interdependentes. A religiosidade foi secularizada e a fundamentação da pena teve que migrar para o campo científico, onde, por meio da filosofia e sociologia, passou-se a perscrutar outros fundamentos para que um indivíduo que desrespeita normas, aceite a punição que a sociedade, mediante o Estado, impõe-lhe. São as chamadas teorias do direito de punir.


Teorias do Direito de Punir.

O ordenamento jurídico penal assegura ao Estado o ius puniendi, isto é, o direito subjetivo de punir, que deve estar em conformidade com o que as normas estabelecem (direito penal objetivo). O Estado, então é o sujeito do direito de punir e tem por objeto os tutelados que violarem as normas jurídicas penais, que, por sua vez, visam proteger os principais bens jurídicos da sociedade, quando todos os outros recursos do direito se demonstram ineficazes. 

Teorias Absolutas – pune-se porque pecou (punitur quia peccatum est).

Contrárias ao que pensava Tobias Barreto, as teorias absolutas não trazem uma combinação binária, porquanto nelas somente está presente o quesito justiça, não levando em consideração a utilidade social.

Também denominada de teoria da retribuição, defendida principalmente por Hegel e Kant, ela parte da ideia, segundo Claus Roxin, “de que a função da pena reside na compensação da culpa que o agente assumiu em virtude de seu fato”.[4]Esquece-se, então, a finalidade social, o que é um grande problema, já que não se preocupa com a reintegração do indivíduo no meio social.

Ponto principal em sua defesa está o fato de que ela impede uma pena mais severa do que equivale a culpa do agente.

Teorias Relativas– pune-se para que não peque (punitur quia peccatum est)

As teorias relativas, por sua vez, ainda não suprem a combinação binária de justiça moral e utilidade social, porque se direciona somente a este ponto, considerando a pena, exclusivamente, como um instrumento de prevenção para que não ocorram futuros delitos. Defensores de tais teorias são aqueles chamados de utilitárias, que visam conciliar a mínima aflição ao infrator, fornecendo, da forma mais abrangente possível, a segurança aos tutelados do Estado.

São as principais ramificações da teoria desenvolvida pelos utilitaristas: a) teoria da prevenção especial e teoria da prevenção geral.

Prevenção especial

Nos termos de Roxin, seria uma “profilaxia” em relação a indivíduos que, apesar de comporem o meio social, não se integram nele adequadamente, porquanto infringem a norma desrespeitando bens jurídicos que a sociedade considera demasiadamente importantes. Assim a pena seria uma resposta ao indivíduo que infringiu as normas, no sentido de desestimulá-lo a infringi-las novamente. Prevenção especial positiva, pois a aplicação da pena geraria uma reflexão no indivíduo, que o faria perceber o erro que cometeu, reintegrando-o no meio social com uma nova capacidade cognitiva. Negativa, já que a pena conceberia incômodos ao indivíduo que desestimulariam ele a cometer novamente o delito, mediante o medo de sofrer novamente.

Prevenção geral

Seria uma profilaxia em relação a coletividade, que motiva o meio social para que todos assumam a responsabilidade de serem fieis ao ordenamento jurídico. Prevenção geral negativa se dá quando a pena é imposta para reprimir possíveis infratores do meio social. Já a positiva, para disseminar o sentimento de segurança no meio social e reafirmar o Estado de Direito como vigorante, mediante a implementação da pena.

Teorias Mistas – pune-se porque pecou e para que não peque (punitur quia peccatum est et ne peccetur).

Seria a combinação binária das teorias absolutas e relativas, uma vez que se busca a conciliação, mediante síntese dialética, da justiça moral e da utilidade social. O foco passa a ser tríplice: compensação da culpa, conceder segurança ao meio social e ressocializar o indivíduo que infringiu a norma.


Análise do objeto das penas segundo o Código Penal de 1940 e a Constituição de 1988.

Código Penal de 1940.

Em meio ao Estado Novo, no contexto mundial da Segunda Grande Guerra, é promulgado o Código Penal de 1940, pelo então Ministro da Justiça, Francisco Campos, que assevera:

“O novo Código Penal é informado por uma vigorosa política criminal. As penas revelaram-se insuficientes na luta contra a criminalidade. O novo Código estabelece as medidas de segurança destinadas a prevenir a criminalidade, criando novas garantias para a sociedade contra a legião cinzenta dos inadaptados, cujo número costuma crescer nas conjunturas como a do nosso tempo, aumentando a zona do risco na medida em que cresce a densidade material e técnica da convivência humana.

O sistema de penas era, igualmente, inadequado. Fugindo à rigidez e indeterminação da pena, o novo Código adotou o compromisso da individualização da pena, dando, assim, ao juiz uma larga margem de apreciação das circunstâncias e dos motivos do crime, bem como da personalidade do criminoso. ”[5].

Não poderia ser diferente, uma vez que, sendo o projeto elaborado por Alcântara Machado, foi revisado, dentre outros, pelos gigantes, Nelson Hungria e Roberto Lyra. Este, um dos maiores garantistas que o País teve a honra de ter.

Conforme Lyra, “ a objetividade jurídica do crime é o bem de outrem, protegido pela lei e ofendido pelo crime. A objetividade jurídica da pena é o bem do culpado que a lei atinge. ”[6]

Portanto, apesar do contexto ditatorial, verifica-se o que houve uma grande preocupação com o utilitarismo, no Código Penal de 1940, porquanto, além da individualização da pena, buscou-se assegurar penas, quando cabidas, pecuniárias e alternativas, fazendo acepção de crimes e dando isonomia aos criminosos. Evidente está o caráter utilitário de prevenção geral e especial positivas, caracterizando uma identidade ao Código e, por consequência, dando direcionamento de como deveria ser à legislação penal esparsa.


Constituição de 1988.

Oriunda de um período pós ditadura militar, onde as penas eram, em sua grande maioria, de caráter totalmente de prevenção especial e geral negativas. Naquele período, esqueceu-se de que se deve evitar o ato de violência como ameaçador, a presunção de inocência assim como julgamentos as ocultas, desrespeitando leis, puramente arbitrários, com o maior rigor possível, algo que Beccaria clamava,com veemência, ser uma violação a condição humana e, mais tarde,foram tais paradigmas repetidos pelos integrantes da Escola Clássica.

Por conseguinte, a Constituição Cidadã, estabeleceu como fundamentais os direitos e garantias individuais que asseguram aos acusados segurança, enquanto se defendem, e dignidade à medida que cumprem a pena, caso condenados. Retornou-se o caráter de prevenção geral e especial positivos, onde se busca, mediante diversas garantias e direitos, proteger os cidadãos de possíveis abusos de poder, porém, ao mesmo tempo, punir quem desrespeita a ordem social do Estado Democrático de Direito, visando, mediante as garantias, estímulos suficientes para demonstrar a preocupação estatal com o indivíduo e sua futura reintegração social, além de emanar uma voz de tranquilizadora a sociedade, que anseia por paz. Eis o Estado de caráter constitucional garantista.

Contexto histórico e a Constituição

Primeiramente, antes de analisarmos a Constituição e o contexto social brasileiro da época de transição entre a Ditadura Militar e a nova ordem democrática brasileira, conheceremos o chamado Movimento Lei e Ordem. Este é uma política criminal que tem como base a ideia de que o Direito Penal, se não for o único, é o principal meio de deter o crescimento exponencial da criminalidade e, por isso, deve ser maximizado.

O Movimento surgiu em um contexto social que lhe era muito propício, explica Alberto Silva Franco: “a) no incremento da criminalidade violenta direcionada a seguimentos sociais mais privilegiados e que até então estavam indenes a ataques mais agressivos (sequestros de pessoas abonadas ou de alto estrato político ou social, roubos a estabelecimentos bancários etc); b) no terrorismo político e até mesmo no terrorismo imotivado, de facções vinculadas tanto à esquerda, como à extrema direita, do espectro ideológico; c) no crescimento do tráfico ilícito de entorpecentes e de drogas afins; d) no avanço do crime organizado pondo à mostra a corrupção e a impunidade; d) no incremento da criminalidade de massa (roubos, furtos etc) que atormenta o cidadão comum; f) na percepção do fenômeno da violência como dado integrante do cotidiano, omnipresente na sociedade; g) no conceito reducionista de violência, fazendo-o coincidir com o de criminalidade; h) na criação pelos meios de comunicação social de um sentimento coletivo de insegurança e no emprego desses mesmos meios para efeito de dramatização da violência e para seu uso político.”[7]

Um dos precursores teóricos, que originou o Movimento, é o americano James Quinn Wilson, que, no início da década de 80, mediante suas publicações, buscou legitimar políticas públicas de combate à criminalidade em geral, inclusive aos pequenos crimes, especialmente ao tráfico ilícito de entorpecentes, grande representante do descaso de uma sociedade com uma dada região onde ele incide. É importante ressaltar que os pensamentos de Quinn Wilson foram a base para diversas políticas americanas de caráter criminal, por meio das quais se pregou a necessidade de punições mais rígidas.

James Quinn Wilson, conjuntamente com George L. Kelling, lançaram um artigo científico que ficou conhecido como “Teoria das Janelas Quebradas”, pela qual se buscou fundamentar uma relação de causalidade da desordem para com o aumento da criminalidade. A partir do exemplo de uma janela quebrada, vislumbrou explicar como se dá o surgimento de descasos na sociedade, quanto ao tratamento do que é público, e como as relações das pessoas vão se deteriorando gradativamente a medida que tal descaso vem se tornando cada vez mais cotidiano, culminando no aumento da criminalidade. Trata-se de um efeito em cadeia que surge com descaso e desencadeia em um número infrene de delitos. Exemplificando, seria como se a partir de uma janela quebrada, na qual não se buscou o concerto, suscitasse no descaso da sociedade em relação à aquele lugar, dando maior abertura para a atuação de delinquência que, crescendo, mais tarde se tornaria em criminalidade, gradativamente pior. Tudo se iniciaria com uma janela quebrada e com o descaso em relação a ela.

Ainda no contexto de recrudescimento da legislação penal norte-americana, em 1994, o prefeito eleito da cidade de Nova York, Rudolph Giuliani, cumprindo as promessas de combate à criminalidade feitas durante sua campanha, aplicou a política de “Tolerância Zero”, conjuntamente com o chefe de polícia Willian Bratton. Tal política, mediante o equipar de policiais e o maior policiamento das ruas, buscou inibir principalmente os crimes menores, objetivando coibir a ocorrência de crimes de maiores proporções que seriam consequências do descaso com aqueles. Não se tolerava qualquer infração, aplicando, na maioria absoluta dos casos, até nos casos de crimes menores, penas privativas de liberdade. Assim, como a Teoria das Janelas Quebradas, busca a explicações em reações em cadeia, que devem ser impedidas desde o início.

Todavia é importante ressaltar que a política criminal de Lei e Ordem deve seu crescimento principalmente a grande mídia, que, influenciando a opinião pública, legitimou na sociedade a aplicação do Movimento. Inclusive a maioria da população passou a aprovar a atuação da polícia, mesmo havendo abusos de autoridade, sendo vista a utilização da violência como algo comum, nas abordagens e suscetível de erros toleráveis.

Na Europa, outro autor, Ralf Dahendorf, no mesmo contexto de tempo, divulgava e fortalecia o Movimento Lei e Ordem. Em sua obra, divulgada ainda em 1985, com o mesmo nome do Movimento, fez importantes considerações, dentre elas que a impunidade cada vez mais crescente leva a deslegitimação do sistema normativo e um enfraquecimento da moral na sociedade, desencadeando, na condição social, o que ele denomina de anomia. Em suas palavras: “a anomia é, pois, uma condição onde tanto a eficácia social como a moralidade cultural das normas tendem a zero. Isto, por sua vez, significa que as sanções deixam de ser aplicadas e que a consciência das pessoas torna-se, segundo as palavras de Durkheim, ‘incapaz de exercer [sua] influencia’. Considerando-se a função das autoridades em apoiar as sanções, a anomia também representa a anarquia”.[8] Isso, porque “o caminho para a anomia seria um caminho ao longo do qual as sanções iriam sendo progressivamente enfraquecidas. Os responsáveis deixam de aplicar as sanções; indivíduos e grupos são isentos delas. A impunidade torna-se quotidiana”[9].

Pregando que o crime é “uma mancha inaceitável na ficha impecável de uma sociedade ordeira, bem além de restringir de forma intolerável as vidas de cidadãos seguidores da lei”[10], Dahrendorf defende penas sob o fundamento de repressão geral, uma vez que visa difundir a reafirmação das instituições do Estado vigente, intimando todos os cidadãos que o respeitem, por bem ou por mal.

O Movimento Lei e Ordem é fundamental para entendermos no que o Constituinte Originário se inspirou ao elaborar o inciso XLIII do artigo 5 da Constituição Federal:

Art. 5º, XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem.

Tal inspiração se deve ao fato de que o País tinha acabado de sair de um regime ditatorial e estava buscando firmar uma nova ordem democrática, não podendo tolerar condutas que agredissem amplamente um dos fundamentos da República Federativa, qual seja, a dignidade da pessoa humana, mas, agora, voltada ao “bom cidadão”. Assim, inspirados nas indagações a respeito de proteções a bens jurídicos de forma deficiente, cria-se um novo padrão para tratar da legislação penal, por intermédio dos mandados de criminalização, reafirmando o caráter abjeto de determinados crimes em face da nova ordem social democrática.

Em outras palavras, a Constituição de 1988 derivou do trauma originado durante a Ditadura Militar. Por conseguinte,a Assembleia Constituinte visou impedir que futuros crimes pudessem ter sua punibilidade extinta mediante acordos políticos que favorecessem déspotas que poderiam assumir o Poder.

O contexto histórico dos anos 80-90, na qual surgiu a Carta Magna, era muito peculiar. A democracia havia acabado de ressurgir, mas a situação da sociedade brasileira ainda era caótica e violenta. O tráfico de drogas era um problema constante e grave, visto que assolava a maioria dos países da América do Sul, além dos Estados Unidos, que viviam uma verdadeira guerra contra os narcotraficantes. Esses dominavam e submetiam aos seus interesses as regiões mais pobres das grandes capitais, constituindo um Estado paralelo baseado no medo e na enorme quantia financeira armamentos de primeira linha. Nessa conjuntura, surgiram as facções criminosas, tal qual o Comando Vermelho, que constituíam um Estado paralelo nas periferias e favelas, comandando não somente o crime, mas a vida civil daqueles que ali moravam.

 Em meio a isso, a população, já transtornada pela repressão da ditadura e apavorada com o aumento da violência, cercada por uma verdadeira guerra com vítimas diárias e sentindo-se insegura, solicitava ao Poder Púbico que interviesse para prevenir e punir os criminosos de maneira eficaz e acentuada.

Logo a Assembleia Constituinte, em reflexo a tais traumas dos anos anteriores, à situação da segurança pública brasileira nas últimas décadas do século XX e seguindo uma política baseada na Lei e Ordem, introduziu um rol de crimes que seriam considerados os mais repugnantes, a ponto de serem inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, de maneira a sempre punir quem os pratica. Os crimes conhecidos como “Constitucionalmente Hediondos” são a tortura, o terrorismo e o tráfico de entorpecentes. Além disso, a Lei Maior deixou a critério do legislador a iniciativa de rotular outros crimes como hediondos. Nota-se que, ao entrar em detalhes que, de certo modo, não deveriam ser tratados lá, os constituintes acabaram impondo mandados de criminalização, que seriam concretizados em dispositivos que tratam de direitos penais material e processual.

E como podemos destacar, não demorou ao legislador para que fosse promulgada uma lei reprimindo de maneira mais severa os crimes que a sociedade considerava mais repugnantes e graves, endurecendo o sistema punitivo, obedecendo os mandados de criminalização que foram feitos. E isso pode ser facilmente explicado ao observarmos que o clima de violência e redemocratização do País, ainda era presente e marcava a vida das grandes cidades. Tráficos de entorpecentes, sequestros, latrocínios assassinatos são exemplos da crescente violência da nova ordem democrática.

A dramatização, já mencionada, dos meios de comunicação, que se aproveitavam do pânico da população e da frágil situação econômica e social do Brasil, à época, contribuindo para a “síndrome do medo” da sociedade, que passou a apoiar uma solução penal e policial mais radical e repressiva para enfrentar a criminalidade, uma política típica do Movimento Lei e Ordem.

Todavia, é oportuno notar a contrariedade de posicionamentos quando em um país democrático seja positivado visões extremistas quanto a regulamentação da visão criminal, principalmente as positivadas na Lei Maior. Mas foi o que aconteceu, já que o Movimento Lei e Ordem foi o alicerce para a norma supracitada da nossa Constituição.

Apesar de notório, é de assaz importância lembramos que não é surpreendente que a Constituição possua posicionamentos antagônicos, uma vez que também é fundamento, da República Federativa do Brasil, o pluralismo político, que influi em diversificados posicionamentos.

Antagoniza-se com o pensamento inerente a Lei e Ordem, o Garantismo Penal muito mais forte em nossa Constituição e, simploriamente trata-se da ideia de Estado opressor e indivíduo oprimido. Como já foi mencionado, o Brasil havia acabado de sair de um período ditatorial e, por isso, estava ojerizado com o tratamento dado a presos políticos. Visando, então, inibir que se repetisse o que foi vivenciado, adotou-se por grande parte dos docentes, de grandes universidades do País, o garantismo penal, porquanto muitos, dentre eles, sofreram, de alguma forma, repressão por seus posicionamentos político-sociais. Em suma, o garantismo, teoria adotada pelo Constituinte Originário, busca a preservação da dignidade da pessoa humana, mediante a positivação de direitos e garantias fundamentais, que se tornam verdadeiras pedras de toque no ordenamento jurídico como um todo, além de uma vasta ramificação de principiológica que deve reger todas as demais leis, tanto em suas criações, quanto na interpretações, aplicações e execuções.

Temos como exemplo do Garantismo Penal em nossa Constituição, os princípios da legalidade, da igualdade, da humanidade da pena, da presunção de inocência, da culpabilidade, da exclusiva proteção de bens jurídicos tidos por essenciais (lesividade ou ofensividade), da intervenção mínima, da efetividade, da proporcionalidade, proibição de meios de provas ilícitos dentre outros que tem seu tronco na dignidade da pessoa humana.

Apesar do garantismo, o legislador tinha um contexto social propício para o recrudescimento penal dado pelos mandados de criminalização do Constituinte, além de Tratados Internacionais que o Brasil assinou para o combate ao crime. Em face disto, o legislador elaborou a Lei nº 8.072/90, comumente chamada de Lei de Crimes Hediondos, fruto do pensamento de Direito Penal Máximo.

Podemos ainda citar, para a pura elucidação, casos emblemáticos do contexto social da época que propiciaram a criação da lei. Diversas extorsões mediante sequestro, realizadas por quadrilhas, aconteceram nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. A mídia, oportuna, contribuiu mais uma vez para o sentimento de insegurança, visando audiência. O caso de Antônio Beltran Martinez, então vice-presidente do Bradesco, é um exemplo de grande repercussão da época. Ele foi sequestrado em São Paulo e somente foi libertado depois de quarenta e um dias de cativeiro, após o pagamento de 4 milhões de dólares. Abílio Dinis foi outra vítima de grande repercussão. Ele, então, presidente do Grupo Pão de Açúcar, também foi sequestrado em São Paulo, no mês de dezembro de 1989, por militantes de movimentos políticos de esquerda. Neste caso, ocorreram gravações durante o crime. Abílio foi libertado pela polícia depois de ficar em cativeiro por seis dias. E, por fim, o caso de Roberto Medina, que passou 16 dias em cativeiro, no Rio de Janeiro, em 1990, e só foi libertado depois do resgate de 2,5 milhões de dólares.


Análise sobre o crime de extorsão

Antes de passarmos para a análise das consequências da hediondez é necessário estudar o crime de extorsão, previsto pelo artigo 158 do Código Penal, que não recebeu o caráter de hediondo pela Lei nº. 8072/90, ao contrário da extorsão qualificada pela morte (artigo 158, parágrafo 2º) e da extorsão mediante sequestro na forma simples e na forma qualificada (artigo 159, caput e parágrafos 1º, 2º e 3º).

A extorsão é um crime contra o patrimônio; mas que também tutela a liberdade e incolumidade da pessoa e, na extorsão qualificada, a vida; no qual a coisa pode ser móvel ou imóvel e é indispensável a participação da vítima para a consumação do crime, porque essa, sob o constrangimento da violência ou grave ameaça, entrega a coisa. A participação da vítima no ato de entregar a coisa é fundamental, porque caso contrário tratar-se há de roubo e não extorsão. A pena para a extorsão simples é de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.

O elemento objetivo do tipo é a conduta de constranger, ou seja, obrigar, coagir, forçar a vítima a entregar a coisa, mediante violência ou grave ameaça.

O artigo 158 possui a expressão “com o intuito de”. Trata-se do elemento subjetivo do tipo; é o dolo específico. Isto é, para ser extorsão é necessário o dolo de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, conforme o mesmo artigo. Porém, há de se sublinhar que se a vantagem for devida, o crime em questão será exercício arbitrário das próprias razões, previsto no art. 345 do CP.

A vantagem deve necessariamente ser econômica, devendo produzir efeitos de com essa natureza em proveito do agente ou de outrem. Caso contrário, não será tipificado o crime de extorsão.

Além do dolo específico, a forma de se praticar extorsão pode ser vinculada. O tipo vinculado se dá de três maneiras: constranger para fazer; tolerar que se faça ou deixar de fazer algo.

Isso significa dizer que é preciso analisar três elementares diferentes que, somadas, hão de formar o crime de extorsão:

  • Constrangimento com violência ou grave ameaça.
  • Finalidade de vantagem indevida.
  • Fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer.

Tal estudo é crucial, porque, historicamente, sempre houve a discussão se o crime de extorsão era formal ou material. Antes estava estabelecido, como previa a Súmula 96 do STJ, que o crime era formal e se consumava com o constrangimento e violência ou grave ameaça, ou seja, com o simples efeito da conduta do agente sobre a vítima. De tal maneira que, se o criminoso não precisasse da vantagem indevida e a vítima não precisa fazer; tolerar que se faça ou deixar de fazerdeterminada coisa já seria possível consumar o crime.

Porém, no Boletim Informativo 502 do STJ, há uma decisão paradigmática que modificou o rumo do entendimento de quando se consuma o crime de extorsão:

“Sob tal contexto, a Turma entendeu que, in casu, feita a exigência pelo recorrido, a vítima não se submeteu à sua vontade, deixando de realizar a conduta que ele procurava lhe impor. Assim, a hipótese é de tentativa como decidido pelo tribunal a quo, e não, como pretende o recorrente, de crime consumado. Precedente citado: HC 95389-SP, DJe 23/11/2009.(REsp 1.094.888-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 21/8/2012).”

Portanto, passou a entender que o crime de extorsão é crime material, exigindo a ocorrência do resultado, no caso, a obtenção de indevida vantagem econômica. Assim, abriu-se espaço para que ocorressem as seguintes situações:

  • Se o agente constranger a vítima e ela não fizer o que foi exigido, ocorre a tentativa de extorsão.
  • Se o agente constranger a vítima e ela fizer o que foi exigido, mas ele não consegue a vantagem econômica, ocorre extorsão consumada. Da mesma forma que, se além do constrangimento, obtém a vantagem econômica e a vítima faz a coisa exigida.

Observe-se que, se a exigência for feita por um funcionário público, em razão de suas funções ou no exercício de sua função, será crime de concussão. 

Essa discussão sempre foi cercada de divergências na doutrina. Para Hungria, Fragoso e Damásio, o crime de extorsão era formal, enquanto Noronha afirmava ser material. Para muitos, a forma como foi redigido o artigo 158 dá a entender que a obtenção da vantagem econômica é irrelevante, tratando-se, portanto, de crime formal; a jurisprudência também via de tal maneira, até o supracitado entendimento do STJ.

Passemos aos parágrafos. O parágrafo 1º determina tal qual o roubo, que se a extorsão é praticada por duas ou mais pessoas ou com o emprego de arma, a pena será aumentada de 1/3 até metade.

O §2º é uma réplica do §3º do artigo 157, aplicando-se ao delito as qualificadoras lesão corporal grave e morte. Trata-se de extorsão qualificada mediante violência e se dessa resulta morte, será considerado crime hediondo, de acordo com o inciso III do artigo 1º da Lei 8.072/90, incluído pela Lei nº. 8.930/94, resultante da comoção popular após o homicídio de Daniella Perez. Se resultar “somente” lesão corporal grave, o crime não será considerado hediondo.

Contudo, devemos atentar que os resultados qualificadores somente podem ser atribuídos se forem originários da violência utilizada na prática do delito[11]. Lembremos que a causa especial de aumento de pena prevista no artigo 9º da Lei de Crimes Hediondos não poderá ser aqui aplicada, em face de revogação expressa do artigo 224 do Código Penal pela Lei nº. 12.015/2009. Outro detalhe é que se a qualificadora morte ocorre por causa fortuita ou força maior, não se pode impor a forma culposa. Logo, neste caso, a pessoa responde por extorsão simples ou eventualmente majorada, mas não qualificada.

O §3º foi acrescentado pela Lei nº. 11.923/2009 e determina que se o crime for cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de seis a doze anos, além da multa. Porém, se for gerado o efeito lesão corporal grave ou morte, a pena tornar-se-á equivalente à da extorsão mediante sequestro seguida de morte, além de dar caráter de hediondez ao crime. E, tal qual o latrocínio, são admitidas as formas dolosa e culposa, mas jamais por caso fortuito ou força maior.

A ação penal é pública incondicionada e a competência é do juiz singular e não do Tribunal do Júri, mesmo para a forma qualificada (artigo 158, §2º)[12].

3.1. O crime de extorsão mediante sequestro

Ao contrário da extorsão, a extorsão mediante sequestro, prevista no art. 159 do Código Penal e seus parágrafos, é sempre crime hediondo. Como estudamos previamente, não há dúvida que esse crime é o ponto gerador da Lei 8.072/90, graças à onda de extorsões mediante sequestro que assolaram as grandes metrópoles do país no final dos anos 80, causando intranquilidade e temor na sociedade, levando o legislador a promulgar, na linha de pensamento de Lei e Ordem, o rigoroso instituto legal aqui estudado.

Tão combativo foi o legislador que chegou a aumentar todos os limites de pena mínima previstos pelo Código Penal de 1940 para o crime, desde sua forma simples até qualificada pelo resultado morte, como bem dispõe o art. 6º da Lei de Crimes Hediondos, que, dando nova redação ao art. 159 do Código Penal, aumentou a pena mínima da extorsão mediante sequestro na forma simples de seis para oito anos, na forma agravada pelo fato do sequestro durar mais de 24 (vinte e quatro) horas, do sequestrado ser menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime for cometido por bando ou quadrilha a pena mínima foi aumentada de oito para doze anos (§1º), na forma qualificada pelo resultado lesão corporal grave a pena  mínima foi aumentada de doze para dezesseis anos (§2º) e a extorsão com resultado morte teve a pena mínima dilatada de 20 para 24 anos (§3º).

Passados mais de 25 anos da promulgação da lei, restou mais que claro que o fenômeno do alto índice de extorsão mediante sequestro era passageiro, visto que, apesar da prática de tal crime ainda existir, sua intensidade diminui, muito graças ao combate policial às quadrilhas que se especializavam em cometer tal infração.

Isto posto, resta claro o rigorismo do legislador em punir o crime. João José Leal mostrou bem a ausência de lógica do legislador ao estabelecer as penas:

Esta exasperação desnecessária da reprimenda revela-se injusta do ponto de vista da lógica punitiva, quando constatamos que uma tentativa de extorsão mediante sequestro, sem lesão ou morte da pessoa sequestrada, poderá ser punida com pena superior à do homicídio simples.[13]

Apesar das críticas, não é passível de discussão o fato do crime de extorsão mediante sequestro ter a maior pena cominada para um crime em nosso ordenamento penal. O sujeito que a pratica é o resultado é morte estará submisso a uma pena que varia de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta anos) de reclusão.

Assim estabelece o caput do art. 159:

 “Art. 159 - Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: ”

Antes de analisarmos a redação do caput, vamos somente relembrar que este é um crime contra o patrimônio. Podemos identificar que, além do dolo genérico de privar a liberdade de alguém, obstando o direito de locomoção de ir e vir até mesmo dentro de sua residência, a expressão “com o fim de”, transcreve um dolo específico, o elemento subjetivo do tipo. A finalidade de obter, para sim ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate. E a privação de liberdade é utilizada como meio para a prática do crime de extorsão mediante sequestro, com o fim especial de obter qualquer vantagem.

Apesar da lei utilizar a expressão qualquer vantagem, devemos entendê-la como sendo uma vantagem indevida, caso contrário estaríamos entrando sob o prisma de outra infração penal, o crime de exercício arbitrário das próprias razões.

Além disso, a infração penal está contida no rol de crimes contra o patrimônio e assim deverá ser entendido, devendo a vantagem ser necessariamente de natureza econômica e mensurável economicamente, afastando-se as demais situações, que se configurarão em outros tipos penais. É nesse sentido que se posiciona a maior parte da doutrina, como Rogério Greco que afirma que, caso a vantagem pudesse ser interpretada como qualquer outro proveito, configurar-se-ia outra infração penal[14], tal qual a situação do homem que sequestra uma mulher para satisfazer a lascívia; nesse caso não se trata de extorsão mediante sequestro, mas sim de sequestro (art. 148 do CP) em concurso com o crime de estupro (art. 213 do CP).

Trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Além disso, é crime complexo, já que a ação do criminoso pode ser direcionada para mais de uma vítima, em uma situação hipotética na qual a ação do criminoso uma pessoa é sequestrada e outra paga a quantia em dinheiro pelo resgate, sofrendo prejuízo em seu patrimônio. E, sendo complexo, o sujeito ativo pode ser aquele que sequestra, mas também o que se comunica com os parentes da vítima.

É crime formal, no qual existe um resultado naturalístico, que é algo perceptível pelos sentidos, ou seja, a entrega do dinheiro. Porém não há discussão na doutrina, visto que já está pacificado que tal ação é condição para a consumação do crime. A extorsão mediante sequestro se consuma com o simples sequestro, no momento em que a pessoa tem seu direito de liberdade privado contra sua vontade. Havendo o dolo especifico de tirar proveito econômico indevido da vítima, mesmo que isso não ocorra ao fim do iter criminis, houve a infração penal.

Na extorsão mediante sequestro, o pagamento do resgate é chamado de exaurimento,tipo exaurido ou pós-factum impunível. Normalmente, nos crimes formais, o resultado naturalístico é um irrelevante penal, não tendo significado algum. Às vezes o legislador transforma isso em circunstâncias de aumento de pena.

Os §§ 1º, 2º e 3º do artigo 159 do Código Penal definem as modalidades qualificadas.

  “§ 1o Se o sequestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, se o sequestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido por bando ou quadrilha;(...)

  § 2º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave;(...)

  § 3º - Se resulta a morte: (...).” 

O §1º trata das situações em que o sequestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, o sequestrado é menor de 18 (dezoito) anos ou maior de 60 (sessenta) e se o crime for cometido por bando ou quadrilha (vulgo associação criminosa).

A primeira dessas qualificadoras é de natureza objetiva e a pena cominada será de 12 (doze) a 30 (trinta) anos, reclusão. Nessa situação a contagem do prazo se dá a partir do momento em que a vítima se vê de fato privada de sua liberdade. A razão de ser dessa qualificadora se dá pelo que fato que, quanto maior for o tempo de privação de liberdade da vítima à mercê dos criminosos, maiores serão seus danos psicológicos e o sofrimento de seus familiares.

A segunda qualificadora também é de natureza objetiva. Nessa situação a vítima é mais indefesa, oferecendo menor resistência. Foi a Lei 10.741/03, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, que acrescentou a modalidade qualificada a vítima ter 60 (sessenta) anos ou mais. Greco, sempre claro, observa:

Merece registro o fato de que a idade das vítimas deverá ser conhecida, pois, caso contrário, poderá ser alegado o chamado erro de tipo. Assim, por exemplo, se o agente sequestra a vítima, que imagina contar com mais de 20 anos de idade, quando, na realidade, tem apenas 17 anos, não poderá incidir a qualificadora, se provada a hipótese de erro.[15]

A terceira qualificadora é para as situações em que o crime for cometido por quadrilha ou bando. Para que isto ocorra, o grupo criminoso deve estar de acordo com o artigo 288 do Código Penal e sua nova redação, dada pela Lei 12.850/2013. Isto é, deve haver a agregação permanente de pessoas com o intento de cometer um número qualquer de delitos. Caso ela ocorra com o propósito de cometer um único crime, não incidirá a qualificadora.

Os §§ 2º e 3º preveem a qualificadora para o caso em que do crime resulte lesão corporal de natureza grave ou morte na vítima e necessariamente na vítima, respectivamente. São crimes qualificados pelo resultado, no qual a lei protege, além do patrimônio e da liberdade, a vida da pessoa. Lembremos que o resultado pode ser doloso ou culposo, nesse último caso correspondendo a crime preterdoloso. Para a primeira situação a pena é de 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos de reclusão; para a segunda, de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos de reclusão.

O § 4º premia o condenado que, em concurso, colabore com a autoridade para libertar o refém. Dá ao Promotor o poder de negociar com o criminoso uma pena menor, em troca de cooperação para resgatar o sequestrado. É influência do instituto da barganha do Direito americano. Note-se que o dispositivo não exigiu que o vínculo entre os criminosos fosse o de associação criminosa, como uma das situações do § 1º, mas sim que o crime fosse cometido em concurso. Além disso, não é necessário que a agente indique o coparticipante, mas ao menos informe à autoridade da ocorrência do sequestro e que isso facilite à libertação da vítima; se em nada ajudar, o sujeito não será beneficiado pela delação. Como relembraremos adiante, esse artigo foi introduzido pelo artigo 7º da Lei nº 8.072/90.

Por fim, a Lei de Crimes Hediondos eliminou a pena de multa para os crimes do artigo 159. A ação peal é pública incondicionada e a competência é do juízo singular e não do Tribunal do Júri.

Crítica sobre a hediondez da extorsão mediante sequestro

A questão posta, após essa análise, passa a ser a seguinte: por qual motivo a extorsão nem sempre é crime hediondo e a extorsão mediante sequestro sempre é hedionda?

A resposta é simples: porque assim quis o legislador de 1990. Todavia, se analisarmos o critério adotado pelo mesmo, encontraremos uma falha em sua decisão, passível de crítica. A lei determinou que certos crimes tivessem o rótulo de hediondos por serem presumidamente repugnantes e asquerosos. Porém, ao impor sua visão sobre a gravidade desses crimes, ela o fez de maneira abstrata e generalizada, tendo em vista que, em certos casos, é possível que um crime de extorsão, mesmo que não se trate de extorsão qualificada mediante violência que resulte a morte, o único caso em que o crime do artigo 158 possui o caráter da hediondez, seja tão perverso quanto esse, em razão de certos aspectos do caso concreto que não foram apreciados pelo legislador.

Por exemplo, se da extorsão mediante violência resulte uma lesão corporal de natureza grave na vítima que seja a debilidade do olfato, a aceleração da gravidez, a cegueira da vítima, ou qualquer uma das situações previstas no parágrafo 1º ou o 2º do artigo 129, o crime não será considerado hediondo.

O mesmo vale para o parágrafo 3º do artigo 158, que prevê a extorsão mediante a restrição da liberdade da vítima, que não possui caráter de hediondez, caso resulte na morte da vítima. Ou seja, uma extorsão mediante sequestro que, por mais desprezível que seja, que não resulte na morte da vítima, será considerada hedionda, enquanto aquela que restringe a sua liberdade e na qual a vítima vem a falecer, não! De tal modo, por mais repugnante que seja a ação extorsiva prevista no artigo 158 do Código Penal, só terá o caráter de hediondez se dela resultar morte e for praticada mediante violência.

Podemos até mesmo comparar com crimes diferentes da extorsão e obviamente menos graves, que, contudo, são considerados hediondos. Exemplo perfeito é o crime do inciso VII-B, art. 1º, da Lei 8.072/90: “falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998) ”. Tal previsão adveio por conta de uma grande falsificação de medicamentos no começo e na metade da década de 90. E, como a redação é vaga, falsificar produtos homeopáticos, como os da “Herbalife”, por exemplo, atribui pena de 10 anos. Isso obviamente não é mais grave que uma extorsão.

Vejam que o problema não é dar o caráter de hediondez à extorsão qualificada pela morte: é um crime gravíssimo e corretamente possui o caráter de hediondo, quanto a isso não resta dúvidas. O problema encontra-se no fato que o legislador não enxergou a possibilidade concreta de que outras formas de extorsão poderiam ser igualmente ou, em casos particulares, ainda mais asquerosas. Isso é resultado da pressa e da desatenção do legislador que, ao promulgar a Lei 8.072/90, não vislumbrou a possibilidade de criar contradições em nosso Direito Penal.


As consequências da hediondez

Sabendo isso, devemos então entender quais são as consequências, penais e processuais penais, da hediondez.

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:

I - anistia, graça e indulto;

II – fiança

A primeira consequência que logo de cara nos surge está prevista no artigo 2º da Lei 8.072/90: é a proibição da anistia, graça e indulto.

Sabemos que estas são causas extintivas de punibilidade, previstas no inciso II do artigo 107 do Código Penal. A anistia é forma que o Estado tem de renunciar ao seu direito de punir; como visto com o fim da ditadura, já que foi concedida a vários membros do Governo que se envolveram em diversos crimes, ela costuma perdoar crimes políticos, mas também pode ser dada para crimes comuns. É a União quem possui competência para conceder a anistia, de acordo com o art. 21, XVII, da Constituição Federal.

A graça e o indulto, por sua vez, também são formas do Estado, através do Presidente da República, de recusar ao seu ius puniendi, perdoando a prática de crimes. Diferentemente da anistia, porém, os crimes não costumam ter cunho político. Por sua vez, o que diferencia a graça do indulto é que a primeira é concedida individualmente, a alguém específico, enquanto o indulto é concedido de maneira coletivo a fatos determinados pelo Presidente, normalmente por meio de decreto.

A Constituição Federal não prevê que os crimes hediondos e equiparados a hediondos sejam insuscetíveis de indulto, como se denota de seu art. 5º, inc. XLIII. Porém, a Lei 8.072/90 propôs uma vedação além da prevista, proibindo, além da graça e da anistia, o indulto. Assim, surgiu uma discussão na doutrina, com duas correntes: a primeira defende a inconstitucionalidade do inciso I da Lei 8.072/90, por propor vedação e limitação não prevista pela nossa Carta Magna, indo flagrantemente contra essa. Já a segunda defende que a expressão graça da Constituição deve ser interpretada latu sensu, abrangendo também o instituto do indulto. Ocorre que a Lei nº. 9.455/97, que definiu os crimes de tortura, não proibiu a concessão de indulto para tais infrações. De tal maneira, a omissão do legislador levou a uma discussão doutrinária se o indulto poderia ser concedido ou não em casos de crimes de tortura.

A segunda consequência da hediondez é a proibição da concessão da fiança, como prevê o inc. II do art. 2º da Lei 8.072/90. Anteriormente, também era proibida a concessão de liberdade provisória, mas tal decorrência foi afastada pela Lei nº. 11.464/2007. Já em 1996, João José Leal criticava:

Aqui, mais uma vez, a norma ordinária afrontou os princípios constitucionais que tratam da matéria. O primeiro deles é o que estabelece, como garantia fundamental, o direito inalienável de ninguém ser mantido na prisão, “quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança” (artigo 5º, inc. XLVI). A liberdade provisória, portanto, é um direito fundamental.[16]

A consequência que restou depois de tal mudança legislativa foi a manutenção da possibilidade de concessão de liberdade provisória para as infrações penais da Lei de Crimes Hediondos. O que ocorre é que a lei proíbe que tal instituto ocorra com a fiança. Como a própria Constituição prevê a concessão de liberdade provisória sem fiança, em seu art. 5º, LXVI, esse regime ainda existe.

O § 1º do art. 2º da Lei nº. 8.072/90 sofreu uma importante alteração em razão da Lei nº. 11.464/07.

§ 1o  A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.

Antes, determinava que as penas pelos crimes previstos no art. 2º seriam cumpridas integralmente em regime fechado; com a alteração, passou-se a exigir que as penas fossem cumpridas inicialmente em regime fechado, permitindo a progressão de regime, sob a égide do § 3º, após o cumprimento de ⅖ (dois quintos) da pena para o condenado primário e ⅗ (três quintos) para o reincidente. Porém, uma mudança ocorrida em 27 de junho de 2012 passa, muitas vezes, despercebida. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão extraordinária, concedeu o Habeas Corpus 111.870 e declarou a inconstitucionalidade de §1º do art. 2º da Lei de Crimes Hediondos, já alterado pela Lei nº. 11.464/07.

De tal maneira, essa decisão permitiu que aos casos futuros o julgador, se possível, fixe um regime inicial de pena diverso do fechado a todas as infrações previstas na Lei nº. 8.072/90. Além disso, como beneficia o réu e em respeito ao princípio da retroatividade, ela atinge todas as condenações transitadas em julgado ou pendentes de recurso, para que seja aplicada.

O § 2º do art. 2º da Lei nº. 8.072/90 também teve sua redação modificada pela Lei nº. 11.464/07.

§ 2o  A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Ele estabelece, portanto, uma regra específica para a progressão do regime de pena nos casos de crimes hediondos. A regra geral da progressão está prevista no § 2º do artigo 33 do Código Penal. Outros elementos que devemos lembrar sobre a progressão é que ela não pode ocorrer “por salto”, isto é, passar do regime fechado ao aberto, sem antes cumprir pena no regime semi-aberto e que não é mais obrigatório o exame criminológico para fins de progressão de pena.

Isto posto, suponhamos que certo agente tenha sido condenado à pena máxima do crime de extorsão mediante sequestro com resultado morte, trinta anos de reclusão em regime fechado. Com isso, se o condenado for e cumprir com bom comportamento o lapso de tempo exigido pela lei, ele passará ao regime semi-aberto. Como são necessários 2/5 (dois quintos) de tempo de cumprimento de pena para esta situação apresentada, a progressão ocorrerá após 12 (doze) anos de prisão. Lembremos também que “pena cumprida é pena extinta”, motivo pelo qual o segundo cálculo de progressão será feito em base ao tempo restante de cumprimento, ou seja, 18 anos.

Determina o § 3º do art. 2º da Lei nº. 8.072/90, com redação dada pela Lei nº 11.464/2007, que:

“§ 3o  Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. ”

Esse parágrafo dá a incorreta ideia de que a regra geral é que o condenado será mantido preso e só poderá recorrer em liberdade se o juiz assim consentir. Porém, o sentenciado que interpor o recurso, em regra, apelará em liberdade. Só é admitida a prisão se estão presentes os requisitos da prisão preventiva, caso em que o condenado já respondeu o processo preso. Nessa situação, deverá o juiz fundamentar o porquê de não conceder a apelação em liberdade. O que ordena a fundamentação da decisão judicial é a exigência de nossa Carta Magna, no inciso IX do art. 93.

Caso o condenado respondeu o processo em liberdade, ele apelará em liberdade, salvo se presentes os requisitos da prisão preventiva. De qualquer maneira deverá o juiz fundamentar a decisão que concedeu ou não o direito ao réu de apelar em liberdade.

A prisão temporária, de natureza cautelar, é prevista no § 4º da Lei nº. 8.072/90 e deve ser interpretada com base no que dispõe a Lei nº. 7.960/89, que trata de tal instituto.

§ 4o  A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei no 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.

Esse parágrafo também teve a redação dada pela Lei 11.464/2007. A prisão temporária deve ocorrer quando fundamental para o bom andamento das investigações do inquérito policial; ou quando o indiciado não tiver moradia fixa ou não a indicar; ou se houver fundadas razões de que o indiciado é autor ou partícipe do crime. Apesar de poder ser prorrogada por 30 (trinta) dias no caso do cometimento de crimes hediondos, decorrido seu prazo deve o preso ser imediatamente colocado em liberdade.

O art. 3º da Lei nº. 8.072/90, sanciona:

Art. 3º A União manterá estabelecimentos penais, de segurança máxima, destinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais ponha em risco a ordem ou incolumidade pública.

Observe-se que ele deve ser interpretado à luz da Lei nº. 11.671/2008, que dispõe sobre a transferência e a inclusão de presos em estabelecimentos federais de segurança máxima. Rogério Greco, mais uma vez claríssimo, lembra:

A inclusão do preso em estabelecimento penal federal de segurança máxima é de natureza excepcional, devendo, ainda, ser determinado o prazo de sua duração, que não poderá ser superior a 360 (trezentos e sessenta) dias, podendo ser renovado, também excepcionalmente, quando o solicitado motivadamente pelo juízo de origem, observados os requisitos de transferência.[17]

O art. 5º da Lei de Crimes Hediondos adiciona um inciso ao artigo 83 do Código Penal, que prevê os requisitos necessários à concessão do livramento condicional:

Art. 5º Ao art. 83 do Código Penal é acrescido o seguinte inciso:

"Art. 83.

(...)

V - Cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza. ”

O legislador achou apropriado aumentar o prazo necessário para a concessão de livramento condicional nos casos em que são cometidos crimes hediondos, sem, porém, excluir os outros requisitos. Logo, o agente que cometer uma infração no rol da Lei nº. 8.072/90 deverá se submeter às condições cabíveis e não reiteradas, previstas nos incisos do artigo 83 do Código Penal, quais sejam:

  1. O tempo mínimo de pena aplicado ao condenado deve ser igual ou superior a dois anos, mesmo que somadas, nos termos do art. 84 do Código Penal;
  2. Comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto;
  3. Ter reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração;
  4. Ter cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza
  5. Crimes cometidos com violência ou grave ameaça a pessoa.

O requisito específico para esse agente é, portanto, o do inciso V do art. 83 do Código Penal. Não pode se submeter ao regime dos incisos I e II desse artigo, que determinam que o condenado deve cumprir mais de um terço da pena se não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes e mais da metade se reincidente em crime doloso, respectivamente. O que particularmente salta aos olhos, além do aumento do cumprimento de pena, é o regime da reincidência específica. Isso é entendido por parte da doutrina como se referindo à crimes da mesma natureza, ou seja, crime hediondos, terrorismo, tráfico de drogas ou tortura. Logo, para essa visão, seria reincidente específico sujeito que cometa um dos crimes previstos na Lei n. º 8.072/90 e, depois de transitada em julgado a condenação, cometa outro crime do rol da mesma Lei, ainda que diverso. Por exemplo, quem foi condenado por terrorismo e depois cometeu estupro.

Outra visão defende que a reincidência específica trata somente de crimes que se referem a bens jurídicos iguais. Logo, num caso em que o agente é condenado por terrorismo e depois comete estupro não incide tal requisito para a concessão do livramento condicional.

O art. 6º da Lei nº. 8072/90 aumentou as penas para diversos crimes considerados hediondos, a destacar: do crime de roubo (art. 157, §3º CP) se resulta lesão corporal grave, reclusão de cinco a quinze anos além da multa, se resulta morte, reclusão de vinte a trinta anos; da extorsão mediante sequestro (art. 159 e seus §§ 1º, 2º e 3º do CP), respectivamente, pena de reclusão de oito a quinze anos, reclusão de doze a vinte anos, reclusão de dezesseis a vinte e quatro anos e reclusão de vinte e quatro a trinta anos; do estupro (art. 213 do CP), pena de reclusão de seis a dez anos; da epidemia (art. 267 do CP) reclusão de dez a quinze anos e, por fim, do envenenamento de água potável, alimento ou substância medicinal (art. 270 do CP), pena de reclusão de dez a quinze anos. Os artigos 214 e 223 foram revogados do Código Penal pela Lei nº. 12.015/2009.

O artigo 7º da Lei de Crimes Hediondos trouxe a delação premiada na hipótese de crime de extorsão mediante sequestro, inserindo o § 4º ao artigo 159 do CP, anteriormente estudado.

O artigo 8º elaborou qualificou o delito de associação criminosa para casos em que forem praticados crimes hediondos e previu um novo tipo de delação premiada:

Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único. “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

Para que ocorra tal situação e considerando o artigo 288 do Código Penal, devemos ter alguns elementos, qual a conduta de se associarem (sendo associar o equivalente a uma reunião não eventual de pessoas e com caráter duradouro) três ou mais pessoas com o fim específico de cometer um número indeterminado e constante de crimes. Como é crime formal, já a formação da associação criminosa configurará a infração penal, não sendo necessária a prática de um crime para que se consuma o crime do artigo 288 do CP.

E o participante dessa associação, como bem determina o parágrafo único acima citado, que possibilita o desmantelamento, isto é, a interrupção das atividades ilícitas da associação criminosa, será beneficiado pelo instituto da delação, tendo a pena reduzida de um a dois terços.

4.1. Avaliação sobre a mudança legislativa desde 1990.

A Lei nº. 8.072/90 sofreu diversas modificações com o passar dos anos. Como notamos, foram várias mudanças, seja no rol de crimes previstos como hediondos, seja nas consequências que a hediondez traz. Afinal, como dito anteriormente, a lei foi promulgada em caráter excepcional, perante os clamores da aterrorizada sociedade brasileira dos anos 90 e do sensacionalismo da mídia.

Uma das mudanças que merece ser destacada foi a atualização do rol de crimes hediondos ocorrida em 1994. A origem de tal mudança foi o homicídio da atriz Daniela Perez, filha de Glória Perez. A jovem fora assassinada pelo então ator Guilherme de Pádua e sua esposa, Paula Thomáz. O ocorrido gerou comoção nacional. Somado às chacinas da Candelária e de Vigário Geral, ambas no Rio de Janeiro, tais fatos se tornaram justificativa para uma mudança legislativa, como clamavam a mídia e as diversas campanhas promovidas pela sociedade daquela época. De fato, o abaixo-assinado requerendo a inclusão do homicídio no rol da hediondez, promovida por Glória Perez após o assassinato de sua filha, reuniu mais de 1,3 milhões de assinaturas. Veio, então, a Lei nº. 8.930/94, que modificou a redação do art. 1º, adicionando incisos e considerando como hediondo o crime de homicídio quando praticado por grupo de extermínio, em reflexo às já citadas chacinas, o homicídio qualificado do art. 121 e seus §§ e o crime de genocídio previsto nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei nº. 2.889/56, tentado ou consumado.

Percebe-se então que a sociedade e suas súplicas frente às infrações penais que, somadas ao sensacionalismo da mídia, a assustavam, vinham pedir socorro ao Direito Penal para que enfrentasse a criminalização e resolvesse os problemas de segurança pública. Tanto é que foi nesse mesmo ritmo que, no final do ano de 1998, frente à falsificação de medicamentos, como pílulas anticoncepcionais ou remédios para o câncer de próstata, ações promovidas por quadrilhas que se aproveitavam da fraca fiscalização. O resultado já é sabido: mulheres engravidaram, pois, ingeriram a “pílula da farinha” e idosos morreram porque seus remédios eram ineficazes. Frente a isso, mais uma vez a sociedade clamou que as autoridades tomassem alguma atitude. E, de novo, o legislador aumentou o rol das condutas previstas como hediondas, acrescendo o inciso VII – B, pela Lei nº. 9.695/98, com a seguinte redação:

VII-B - Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998)

Vieram também outras modificações relativas ao rol de crimes hediondos, como a Lei 13.142/2015, que incluiu o crime de lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição; e a nova redação dos Crimes contra a Liberdade Sexual, advinda pela Lei nº. 12.015/2009, que modificou os meios de cometimento do crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal e também adicionou o artigo 217-A, crime de estupro de vulnerável, inserindo o Capítulo II, “Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável”, ao Código Penal. Tal mudança legislativa modificou também a Lei de Crimes Hediondos, pois ambos os crimes, ainda que com diversas ações nucleares, já estavam previstos na Lei nº. 8.072/90. Vale destacar, sobre os crimes de estupro e estupro de vulnerável, que a mudança social ocorrida nos últimos anos sobre o que era estupro, graças ao aumento do papel da mulher na sociedade, além da demonstração de que o culpado nesse tipo de crime é, exclusivamente, o agente e não a vítima; foram a raiz para a alteração legislativa.

E, como já destacamos anteriormente, o inciso II e os §§ 1º, 2º e 3º foram alvos de mudança legislativa, por meio da Lei nº. 11.464/2007. Isto ocorreu pois as consequências da hediondez previstas pelo inciso II e pelo §1º feriam princípios do direito penal e do processo penal: a proibição da liberdade provisória no inciso II não observou os incisos LXVI e LXI do artigo 5º da Constituição que, respectivamente, determinam que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” e “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”; enquanto o § 1º, que obrigava que a pena seria cumprida integralmente em regime fechado, era uma violação clara ao princípio da individualização da pena, consequência do agora citado inciso LXVI do art. 5º da CF e do art. 34 do CP.

Com esta análise, percebe-se que o legislador agiu precipitadamente ao promulgar a Lei nº. 8.072/90, sem antes estudar de maneira profunda quais seriam as consequências da hediondez, se estas estavam de acordo com direitos e garantias fundamentais; quais os crimes mais repugnantes de nosso sistema normativo e se eles merecem o status de hediondo, para evitar exageros, como no caso do inciso VII-B da Lei de Crimes Hediondos, ou proteção hipossuficiente, já que certos crimes são abomináveis, mas nem por isso possuem o status de hediondo, vide a análise sobre extorsão.

Em sua pressa para satisfazer os anseios da população nos anos 90, o legislador abriu espaços para discussões jurisprudenciais e doutrinárias que duram até hoje. A conclusão que podemos fazer sobre a Lei de Crimes Hediondos é que, apesar de ter produzido diversos efeitos e muitas vezes positivos, combatendo o crime, ela não atinge a raiz do problema da segurança pública: a concretização da norma penal. Não é somente a letra da lei que há de resolver a sistemática criminalização no país e a certeza que o criminoso tem de sair impune. A execução penal também deve ser eficaz, punindo de maneira justa o meliante e servindo de exemplo positivo para a população, que deve agir corretamente e cooperar com as entidades públicas e de segurança do país. Caso contrário, teremos uma lei severa, mas instituições enfraquecidas, sem recursos e desmoralizadas, gerando, por exemplo, presídios lotados, com presos que aguardam julgamento e entram para a “escola do crime”, e a sociedade continuará a ver o Direito Penal não como a ultima ratio, mas sim como a primeira forma de combater seus problemas.


Conclusão

Verificamos que tanto o Código Penal de 1940 quanto a Constituição, em sua maioria absoluta, pregam as penas relativas à prevenção geral e especial positivas, quando criados. Todavia, o Código Penal, a legislação penal extravagante, com o decorrer do tempo sofreram fortíssima influência dos mandados de criminalização oriundos da política criminal do Movimento Lei e Ordem. Isso muito se deve à banalização dos crimes feita pela mídia, cada vez mais presente nas casas dos indivíduos que compõem a sociedade. Se antes, para sofrerem o mal da violência social, normalmente, era necessário que estivessem fora de suas casas, hoje, basta ligarem algum aparelho de comunicação que receberão uma enxurrada de informações, até mesmo alteradas, visando a surpresa e atenção de seus expectadores. Verdadeiramente, busca-se a expectativa, que cada vez é mais crescente nas sociedades modernas, mas uma expectativa de violência, que grita aos representantes para que tomem as devidas atitudes.

Os representantes do povo, o Congresso Nacional, com um verdadeiro analfabetismo funcional quanto ao ordenamento jurídico, propõem leis totalmente incoerentes com o ordenamento democrático brasileiro, almejando alegações de que buscaram satisfazer as vontades do povo que clamava socorro enquanto estavam amedrontados. Ora, um cão amedrontado morde irracionalmente até mesmo o dono que lhe estende a mão para ajudá-lo. O cão é o povo; os dentes, o Congresso Nacional e o dono bem-intencionado, a Constituição. É notório as agressões ao ordenamento jurídico com a criação de tantas leis inválidas em relação a coerência que o Constituinte Originário vislumbrou. 

Uma das mordidas mais ferozes sofridas é a lei de crimes hediondos. Por mais que o próprio Constituinte Originário tenha estipulado tais crimes na Lei Maior, é importante observar que um dos principais fundamentos que regem toda a República Federativa do Brasil é a Dignidade da Pessoa Humana. Também o Pluralismo Político, mas não o Movimento Lei e Ordem.

Ora, deveria ser ponderado pelo Legislativo, ao elaborarem as leis, que por mais que haja pluralidade de posicionamentos quanto ao tratamento a criminalidade, é valor preponderante a dignidade da pessoa humana, direcionada ao garantismo penal. Esse é o direcionamento que o Constituinte dá nos incisos e parágrafos do artigo 5º, se preocupando em estabelecer diversificados direitos e garantias que assegurem a Dignidade da Pessoa Humana. Daí surgiram muitos princípios que deveriam reger absolutamente todo o ordenamento. Princípios, direitos e garantias que, na criação da lei de crimes hediondos, foram esquecidos, sendo exaltado tão somente uma vertente do Pluralismo Político, qual seja, o Movimento Lei e Ordem.

A Lei de crimes Hediondos é mais uma deformidade, uma ferida que ainda sangra, oriunda de um cão amedrontado. Tanto a mídia, quanto o Legislativo, juristas e aplicadores do direito têm suas parcelas de responsabilidade com os reflexos que virão em tempos futuros. De hemorragia morrerá o dono e o que o substituirá, ao invés de tentar acariciar, especará novamente aquele que um dia foi espancado e, aparentemente, não sabe viver de outro modo. Eis a síndrome do povo brasileiro: ordem e progresso mediante lei e ordem.


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Notas

[1]LYRA, Roberto. Direito Penal Científico (Criminologia). Rio de Janeiro: José Konfino, 1974, p.37.

[2] LYRA, Roberto. Direito Penal Científico..., p.35.

[3]LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal, Vol. II, Arts. 28 a 74, Companhia Editora Forense, Rio de Janeiro, 1958. p. 11.

[4]ROXIN, Claus. Introdução ao direito penal e ao direito processual penal/ Claus Roxin, Gunther Arzt, Klaus Tiedemann; tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes; Coord. E Supervisor Luiz Moreira. – Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p.9

[5]LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal, Vol. II, Arts. 28 a 74, Companhia Editora Forense, Rio de Janeiro, 1958.p. 71 e 72.

[6] LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal, Vol. II, Arts. 28 a 74, Companhia Editora Forense, Rio de Janeiro, 1958.p. 55.

[7]FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 5ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005.Pág 84 e 85.

[8]DAHRENDORF, Ralf. A Lei e a Ordem; Tradução de Tamara D. Barile. -  São Paulo: Instituto Tancredo Neves; Fundação Friedrich Naumann, 1987. Pág. 33

[9] Idem. Pág. 34

[10].Idem. Pág. 111.

[11] GRECO, Rogério. Leis penais especiais comentadas: Crimes hediondos e tortura – Doutrina e jurisprudência, Volume I. Editora Impetus, 1ª edição, 2016, pág. 30

[12] MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos: textos, comentários e aspectos polêmicos; Editora Saraiva, 7ª edição, 2002, pág. 40

[13] LEAL, José João. Crimes Hediondos – Aspectos Políticos e Jurídicos da Lei 8.072/90, Atlas, 1ª Edição, 1996, pág. 69.

[14] GRECO, Rogério. Leis penais especiais comentadas: Crimes hediondos e tortura – Doutrina e jurisprudência, Volume I. Editora Impetus, 1ª edição, 2016, pág. 41

[15] GRECO, Rogério. Leis penais especiais comentadas: Crimes hediondos e tortura – Doutrina e jurisprudência, Volume I. Editora Impetus, 1ª edição, 2016, pág. 45

[16] LEAL, José João. Crimes Hediondos – Aspectos Políticos e Jurídicos da Lei 8.072/90, Atlas, 1ª Edição, 1996, pág. 104.

[17]GRECO, Rogério. Leis penais especiais comentadas: Crimes hediondos e tortura – Doutrina e jurisprudência, Volume I. Editora Impetus, 1ª edição, 2016, pág. 127-128


Autor

  • Thiago Pereira Gomes Lima

    Thiago Pereira Gomes Lima

    Estagiário do Ministério Público Federal desde Agosto de 2017, atuando na área criminal. Estagiário do Ministério Público de São Paulo entre Março de 2016 e Janeiro de 2017, atuando na área criminal.

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