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Abuso de direito

Abuso de direito

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Sumário: 1.Referências Históricas – 2.Noções propedêuticas indispensáveis à compreensão do tema – 3.Conceito e afirmação da teoria – 4.Distinção entre o abuso de direito, ato ilícito e cláusulas abusivas – 5.Caracterização e autonomia do abuso de direito – 6. A positivação do abuso de direito – 7. Efeitos do ato abusivo – 8. Incidência da doutrina do abuso de direito nas situações cotidianas – 9. Conclusão.


1. REFERÊNCIAS HISTÓRICAS

            Não obstante ter sido construída ao longo do século XX pela doutrina e jurisprudência, a teoria do abuso de direito possui sua origem atrelada ao Direito Medieval, tendo sido observada nos atos emulativos (aemulatio), os quais podem ser compreendidos como os atos praticados pelos indivíduos com a intenção deliberada de causar prejuízos a terceiros. Quanto à manifestação da aemulatio na era medieval, é mister destacar o escólio do Mestre San Tiago Dantas (1).

            Já se sabe o que foi a vida medieval, o ambiente de emulação por excelência. A rixa, a briga, a altercação, é a substância da vida medieval. Brigas de vizinhos, brigas de barões, brigas de corporações, nos seio das sociedades; brigas entre o poder temporal e o poder espiritual. Todas as formas de alterações, a sociedade medieval conheceu, como não podia deixar de acontecer numa época de considerável atrofia do Estado. É aí que, pela primeira vez, os juristas têm conhecimento deste problema: o exercício de um direito com o fim de prejudicar a outrem. O direito como elemento de emulação. Entende-se, por emulação, o exercício de um direito com o fim de prejudicar outrem. Quer dizer, que em vez de ter o fim de tirar para si um benefício, o autor do ato tem em vista causar prejuízo a outrem.

            No que concerne aos atos emulativos, é imperioso frisar que os mesmos podiam ser constantemente observados, principalmente, nas relações imanentes ao direito de propriedade, quando proprietários ou vizinhos exercitavam seus direitos com o objetivo de prejudicar terceiros.

            Fora, portanto, através das normas da aemulatio que se intentou a relativização do direito subjetivo de propriedade, o qual, até então, era compreendido de maneira absoluta. Dessa forma, passou-se a relativizar o direito subjetivo, deixando de lado seu caráter absoluto a fim de se iniciar o império da função social dos direitos.

            É de suma importância mencionar que o Direito Romano também guardou vestígios do exercício dos atos emulativos, vez que, eram praticados os mais grosseiros abusos sob o firme pretexto de se exercitar um direito reconhecido por lei. Desvirtuava-se a finalidade social dos direitos subjetivos com o intuito de causar dano injusto a terceiro.

            Consoante preleciona Paulo Nader (2) "a figura do abuso do direito, se não chegou a ser teorizada pelos romanos, pelo menos foi conhecida do ponto de vista doutrinário". Ocorre que os romanos eram infensos às teorias, posto que buscavam estabelecer soluções casuísticas para as situações práticas que iam se descortinando.

            Os romanos não desconheciam totalmente a teoria do abuso de direito. Ao contrário, utilizaram-se dela para apresentar soluções a determinados casos concretos. Dentre as tentativas de vedação ao abuso do direito localizadas no Direito Romano, temos: a proibição ao proprietário de demolir sua casa para vender os materiais; a perda da propriedade quando o titular se recusava a prestar caução de dano infecto; ou, ainda, as proibições de se manterem incultas as terras e de se manterem os latifúndios.

            Na França, durante o período que antecedeu o Código Napoleônico, era consagrada, pela legislação vigente à época, a proibição do uso da propriedade em desconformidade com a sua destinação social. Entretanto, com o advento do Código Civil Francês, prevalecera o pensamento individualista, esvaindo-se, dessa maneira, o princípio que limitava o exercício absoluto e anti-social do direito de propriedade. Apesar disso, a doutrina do abuso de direito era aplicada em diversos julgados dos órgãos jurisdicionais franceses.

            O leading case, em matéria de abuso de direito, data de 1912. È o famoso caso Clement Bayard, julgado pela Corte de Amiens, onde fora taxativamente aceita a teoria do abuso de direito. De acordo com o caso anteriormente citado, o proprietário de um terreno confinante a um campo de pouso de dirigíveis construiu, sem qualquer justificativa plausível ou interesse próprio, enormes torres com lanças de ferro colocadas em seus vértices, as quais, por sua vez, passaram a representar perigo para as aeronaves que ali aterrissavam. Assim, ao proferir o julgamento da causa, o Tribunal considerou abusiva a conduta do titular do domínio, atestando, portanto, o exercício anormal e despropositado do direito de propriedade.

            Outro famoso caso que bem caracteriza a figura do abuso de direito, passou-se no início do século XX e encontra-se, desta feita, inserto na jurisprudência alemã. Consta que o proprietário de uma fazenda, sob a alegação de que sempre que se encontrava com seu filho ocorria altercação, impediu-lhe que penetrasse em suas terras, a fim de visitar o túmulo de sua mãe, que lá se encontrava sepultada. Apesar de não encontrar amparo na legislação, o filho provocou a tutela jurisdicional estatal e obteve ganho de causa, tendo-lhe sido assegurado o direito de visitar as terras de seu pai nos dias de festa. Tal decisão, proferida em 1909, consistiu no grande marco para a plena caracterização do abuso do direito no ordenamento jurídico da Alemanha.

            No Direito moderno, fora o Código Civil da Prússia, de 1794, a primeira legislação a tornar defeso o exercício do direito fora dos limites próprios. Posteriormente, a doutrina do abuso de direito fora difundida na maioria dos ordenamentos jurídicos das grandes nações, notadamente no Direito Italiano, Russo, Argentino e Português, tendo este último, influenciado o Código Civil brasileiro de 2002.

            Por fim, no Direito brasileiro, o revogado Código Civil de 1916 não previa diretamente o instituto do abuso do direito. Utilizava-se uma interpretação inversa do dispositivo contido no inciso I do art. 160, o qual, por sua vez, albergava como excludente do ato ilícito o exercício regular de um direito. Contudo, o atual Código Civil preencheu essa lacuna legislativa, embora a doutrina e a jurisprudência já fizessem uso do instituto há algum tempo.


2. NOÇÕES PROPEDÊUTICAS INDISPENSÁVEIS À COMPREENSÃO DO TEMA

            A fim de se obter uma melhor compreensão da teoria do abuso de direito, necessário se faz delinear, inicialmente, a noção de direito subjetivo, posto que, não se pode olvidar a existência de uma vinculação estreita entre os dois institutos.

            Para De Plácido e Silva (3), direito subjetivo consiste no "poder de ação assegurado legalmente a toda pessoa para defesa e proteção de toda e qualquer espécie de bens materiais e imateriais, do qual decorre a faculdade de exigir a prestação ou abstenção de atos, ou o cumprimento da obrigação, a que outrem esteja sujeito".

            De modo mais sintético, consideramos que o direito subjetivo seria um poder assegurado pelo ordenamento jurídico e dependente da vontade do sujeito, para que o mesmo obtenha a satisfação dos seus interesses. Seria constituído, portanto, por dois elementos: interesse e vontade.

            Segundo o postulado de Cunha de Sá (4), existem três hipóteses em que o titular do direito subjetivo poderá comportar-se. Vejamos:

            a) O comportamento do indivíduo se coaduna com a estrutura formal do direito subjetivo exercido, bem como com o valor normativo que lhe é inerente. Nesta circunstância estar-se-ia diante de um exercício regular e legítimo de um direito;

            b) O comportamento do titular do direito subjetivo não se conforma com a estrutura formal de tal direito. Esta possibilidade configuraria a incidência de um ato ilícito;

            c) O comportamento do sujeito conforma-se com a estrutura formal do direito subjetivo que se pretende exercer, todavia, contraria o sentido normativo interno de tal direito, isto é, o valor que se apresenta como seu fundamento jurídico. Seria o caso, portanto, da caracterização do abuso de direito.

            Com efeito, é mister salientar que o instituto do abuso de direito não se vincula exclusivamente aos direitos subjetivos. A teoria deve ser aplicada a outras prerrogativas individuais, a exemplo das liberdades, faculdades, funções ou poderes, haja vista que todas elas também possuem um fundamento axiológico.

            Superadas tais considerações iniciais, nos deteremos na análise das teorias justificadoras e negativistas do abuso do direito, além, logicamente, da atribuição do conceito deste instituto objeto de nossa pesquisa.


3. CONCEITO E AFIRMAÇÃO DA TEORIA

            A persecução do conceito, bem como a inquirição sobre a existência do abuso como conceito jurídico autônomo, foram responsáveis pelo surgimento de diversas teorias, as quais, por sua vez, intentavam justificar ou negar o ato abusivo, identificando-o ou distinguindo-o do ato ilícito.

            Gostaríamos de salientar que não é nosso desiderato fazer uma análise pormenorizada de todas as teorias que sustentam cientificamente a doutrina do abuso do direito. Entretanto, buscaremos fixar, de modo bastante sintético, a idéia central das principais teorias negativistas e afirmativistas pertinentes ao instituto ora analisado.

            As teorias negativistas, conforme já denota a própria nomenclatura, tentaram demonstrar a inexistência do abuso de direito. Dentre elas procuraremos destacar as três principais, as quais tiveram como precursores Duguit, Rotondi e Planiol.

            A teoria professada por Leon Duguit, negava o conceito de direito subjetivo, pugnando apenas pelo reconhecimento de situações jurídicas objetivas, vez que não considerava o homem como detentor de direitos, mas apenas deveres. Defendia a lógica de que não havendo direito subjetivo não haveria necessidade de se falar em abuso.

            De acordo com os críticos à teoria de Duguit, sua tentativa de explicação do ordenamento jurídico nada teria acrescentado a compreensão do sistema, visto que, mudaram-se as palavras, mas a realidade permaneceu essencialmente a mesma.

            No que pertine a teoria de Mário Rotondi, esta considerava o abuso de direito como uma categoria metajurídica, ou seja, um fenômeno que só existe de fato, mas não no plano do direito constituído. Segundo a idéia de Rotondi, seria papel da doutrina e da jurisprudência alertar ao legislador para a necessidade da criação de novas disposições que albergassem o abuso de direito. Não competia ao intérprete ou ao Magistrado substituir o legislador no preenchimento de tal lacuna legislativa.

            A crítica formulada contra a teoria de Rotondi dá conta que este propugnou tão somente a impotência da ciência jurídica para disciplinar seja de forma preventiva ou repressiva, a categoria dos atos abusivos. Ou seja, Rotondi reconheceu a existência sociológica do fenômeno do abuso, constatou que as relações sociais estão fartas em exemplos de exercício de direitos de forma contrária ao interesse jurídico coletivo e negou que o direito pudesse considerar a figura do abuso sem a modificação da própria lei.

            Já a tese de Marcel Planiol considera haver uma contradição na expressão abuso de direito, tendo em vista que não seria possível se falar simultaneamente em ato conforme e contrário ao direito. Portanto, ou se exercitaria o direito e o ato seria lícito ou se abusaria dele e assim estar-se-ia praticando um ilícito.

            A crítica a essa teoria teve supedâneo na negação à contradição defendida por Planiol. Dessa maneira, sustenta-se a possibilidade de um ato ser, a um só tempo, conforme a um direito determinado e contrário ao direito considerado em sua generalidade e objetividade, como conjunto de regras sociais obrigatórias.

            Foi justamente com arrimo na crítica da tese de Planiol, que surgiram as primeiras correntes afirmativistas. Para um melhor conhecimento do tema, cuidaremos de explanar, neste trabalho, as seis principais teorias que buscaram a afirmação da doutrina do abuso de direito.

            Antes de adentrarmos na análise das teorias afirmativas, cumpre-nos fazer alusão à corrente subjetivista, a qual reconhecia a existência do abuso de direito quando o titular do direito subjetivo o exercitava com a intenção de causar danos a terceiros, sem que existisse qualquer interesse econômico que norteasse o seu comportamento. Essa teoria não prosperou, haja vista não ser razoável a adoção, nos tempos hodiernos, da doutrina da aemulatio. Ademais, não se concebe a indagação da intenção do titular do direito subjetivo ao exercitá-lo.

            A primeira corrente afirmativa considerou o abuso de direito como princípio geral de interpretação das normas jurídicas, isto é, como instrumento que permitia a adaptação do direito positivo à realidade social. Foi através desta teoria que se aferiu a idéia de que as normas atribuidoras de direitos devem ser interpretadas em conformidade com a sua letra e com seu conteúdo valorativo.

            Quanto a segunda corrente, a qual fora capitaneada por René Savatier, incumbe mencionar que a mesma defende a idéia da caracterização do abuso de direito segundo o dano causado. Sendo assim, preceitua que o dano anormal evidencia-se quando o exercício do direito extrapola ou não a medida fixada pelos costumes.

            No tocante à terceira teoria, seguida por Georges Ripert, esta propaga a idéia de que o abuso de direito seria resultado da subordinação da Lei positiva aos princípios morais. Nesse passo, o ato abusivo além de causar danos a outrem, seria também reprovável em virtude da sua infringência aos deveres morais de justiça, eqüidade e humanidade, os quais, por sua vez, se encontram num patamar superior ao plano da legalidade. Pode-se consignar como grande mérito dessa teoria o fato da mesma ter introduzido a idéia de moralidade no exercício dos direitos.

            A quarta teoria, sustentada por Louis Josserand, encontra-se calcada no postulado de que o titular de qualquer direito apenas pode utilizar-se de suas prerrogativas caso elas não estejam em desconformidade com os interesses vitais da coletividade. Dessa forma, o verdadeiro critério do abuso do direito só pode ser extraído do desvio do direito em relação ao seu verdadeiro espírito, ou seja, de sua finalidade ou função social, seja a mesma econômica ou moral, egoísta ou desinteressada.

            Pela quinta corrente, denominada causalista, o ato abusivo consiste naquele que se encontra dissociado da vontade do legislador. O abuso seria identificado pela confrontação da conduta do titular do direito subjetivo, com os interesses consagrados pelo legislador, os quais são responsáveis diretos pelo reconhecimento e a tutela dos direitos.

            A sexta e última teoria que nos prontificamos a analisar, corresponde à concepção do ato abusivo como aquele onde o sujeito excede os limites ao exercício do direito, sendo tais limites determinados pelos fundamentos axiológicos. Dúvidas não restam que esta seria a teoria mais consentânea à doutrina do abuso de direito, visto que revela a preocupação assente do operador do direito em limitar o exercício do direito subjetivo aos seus fundamentos axiológico-normativos.

            Não há, portanto, um enorme distanciamento entre as teorias que procuram justificar o abuso de direito, tendo em conta que o legítimo interesse apenas desaparece em razão do caráter imoral da intenção do titular do direito subjetivo, ou ainda da deturpação dos fins éticos, sociais e econômicos do direito.

            Assim, é com base na combinação dos postulados da teoria de Josserand e da última doutrina por nós analisada, que podemos abstrair a construção do conceito do abuso de direito. É conveniente frisar quão árdua é a missão de encontrar tal conceito, pois, essa tarefa vem provocando constantes inquietações em toda a doutrina mundial, principalmente, em razão da variedade de teorias que buscam afirmar este tema tão palpitante que estamos trabalhando.

            O conceito que atribuímos ao abuso de direito corresponde ao exercício de um direito subjetivo ou outras prerrogativas individuais, de maneira exacerbada, ou seja, de modo desconforme aos limites estabelecidos pelos fundamentos axiológico-normativos inerentes ao direito ou prerrogativa individual exercitada.

            "O fim – social ou econômico – de um certo direito subjetivo não é estranho à sua estrutura, mas elemento de sua própria natureza", consoante preleciona Heloísa Carpena (5).

            Delineado o conceito de abuso de direito, passaremos a análise, no próximo tópico, acerca da sempre necessária distinção entre o aludido instituto, o ato ilícito e as cláusulas abusivas.


4. DISTINÇÃO ENTRE O ABUSO DE DIREITO, ATO ILÍCITO E CLÁUSULAS ABUSIVAS

            Para que sejam estirpadas quaisquer dúvidas, bem como afastadas eventuais confusões, é de bom alvitre que procedamos à diferenciação entre os institutos do abuso de direito, ato ilícito e cláusulas abusivas. Estas distinções se tornam particularmente relevantes, visto que ofertam a exata compreensão do instituto, objetivo este perseguido por nós ao longo deste trabalho.

            Conforme veremos posteriormente, apesar do legislador do Código Civil de 2002 ter inserido a figura do abuso de direito no Título pertinente aos atos ilícitos, os dois institutos jurídicos não se confundem. Muito pelo contrário. Ambos os conceitos se excluem mutuamente.

            O fator determinante da diferença entre o abuso de direito e ato ilícito é a natureza da violação a que eles se referem. No ato ilícito a violação é observada quando o indivíduo afronta diretamente um comando legal, levando-nos a crer que o aludido comando contém previsão expressa da conduta praticada pelo indivíduo. Já no abuso, o sujeito aparentemente estaria agindo no exercício de seu direito. Contudo, na configuração de tal hipótese, o sujeito se encontra violando os valores que justificam o reconhecimento desse direito pelo ordenamento jurídico.

            Nas duas possibilidades supra descritas, o sujeito se encontra inserido no plano da antijuridicidade, sendo que, ao praticar o ato ilícito o mesmo estaria a violar os limites lógico-formais, enquanto que ao praticar o ato abusivo violaria os limites axiológico-materiais.

            De acordo com o escólio de Heloísa Carpena (6), in verbis:

            O ilícito, sendo resultante da violação de limites formais, pressupõe a existência de concretas proibições normativas, ou seja, é a própria lei que irá fixar limites para o exercício do direito. No abuso não há limites definidos e fixados aprioristicamente, pois estes serão dados pelos princípios que regem o ordenamento, os quais contêm seus valores fundamentais.

            Não obstante o fato do ato ilícito e do ato abusivo ensejarem a responsabilidade civil os mesmos não podem ser igualados. A idéia que deve imperar é a da existência de diferença quanto à natureza da violação e, por via de conseqüência, quanto à necessidade de expressa previsão da conduta proibida.

            No que concerne à distinção existente entre o abuso de direito e as cláusulas abusivas, temos que o primeiro se caracteriza através do exercício de um direito subjetivo ou prerrogativa individual de maneira desconforme com os fundamentos axiológico normativos (limites éticos, sociais, econômicos e legais) de tal direito ou prerrogativa, enquanto que as segundas se caracterizam pelo excesso, onerosidade, implicando vantagem indiscriminada de um indivíduo em relação a outro. Na melhor das hipóteses, as cláusulas abusivas estariam afrontando os limites éticos das relações negociais.

            As cláusulas abusivas podem conter um exemplo de abuso de direito e, não ser considerada como abusiva por essa razão, visto que, são assim definidas em virtude da vantagem excessiva atribuída a um contratante e do ônus elevado suportado pelo outro.

            Dessa forma, a cláusula abusiva se caracteriza pela soma das seguintes circunstâncias: a) predisposição unilateral; b) inserção em condições gerais; c) atribuição de vantagens excessivas ao predisponente; e d) atribuição de onerosidade e desvantagem excessiva ao aderente. Já o abuso de direito se caracteriza pelo afrontamento dos limites axiológico-materiais de determinado direito subjetivo ou prerrogativa individual.

            In fine, insta mencionar que, na seara dos efeitos jurídicos, as cláusulas abusivas possuem como efeito imediato a sua nulidade, ao passo que o exercício abusivo de um direito ou prerrogativa individual enseja diretamente a responsabilização civil.


5. CARACTERIZAÇÃO E AUTONOMIA DO ABUSO DE DIREITO

            A primeira vista, para que o abuso de direito se faça presente, nos termos do que preceitua o Código Civil de 2002, necessário seria a existência de uma conduta que exceda um direito correspondente a determinada pessoa, a fim de que esta atue no exercício irregular de um direito.

            A regra geral que deveria ser observada nos remete a razão de que cada direito tem de ser exercitado em obediência ao seu espírito peculiar, sem desvio de finalidade ou de sua inafastável função social. Não existe direito absoluto em nosso ordenamento jurídico, posto que o exercício de qualquer direito deve se conformar com os fins sociais e econômicos inerentes ao mesmo, como também se balizar com o princípio da boa-fé.

            Diante disso, para se proceder à caracterização do abuso de direito deve-se tentar identificar o seu motivo legítimo, o qual deve ser extraído, conforme leciona Heloísa Carpena (7),"das condições objetivas nas quais o direito foi exercido, cotejando-as com sua finalidade e com a missão social que lhe é atribuída, com o padrão de comportamento dado pela boa-fé e com a consciência jurídica dominante".

            Em compasso com essa linha de raciocínio, torna-se imperioso fazer alusão ao sempre abalizado entendimento de Cristiano Chaves de Farias (8) quando o mesmo atesta que:

            . .. não se pode deixar de reconhecer uma íntima ligação entre a teoria do abuso de direito e a boa-fé objetiva – princípio vetor dos negócios jurídicos no Brasil (arts. 113 e 421, CC) – porque uma das funções da boa-fé objetiva é, exatamente, limitar o exercício de direitos subjetivos (e de quaisquer manifestações jurídicas) contratualmente estabelecidos em favor das partes, obstando um desequilíbrio negocial.

            Caracterizado o ato abusivo mediante o exercício de um direito ou prerrogativa de maneira contrária aos valores que justificam o reconhecimento dos mesmos, procederemos a uma abordagem desse ato como categoria jurídica autônoma.

            Não obstante o fato de encontrar-se inserido no plano da antijuridicidade, como também de ter sido incluído no Código Civil de 2002 no Título pertinente ao ato ilícito, o ato abusivo não pode ser confundido com o ato ilícito, consoante já fizemos a diferenciação anteriormente. Com efeito, entendemos que o abuso de direito se apresenta como uma categoria autônoma da antijuridicidade.

            As teorias que negam a autonomia do ato abusivo se fundamentam na equiparação deste com o ilícito, em razão de ambos produzirem os mesmos efeitos, qual seja a responsabilização civil do agente. Todavia, discordamos de tal posicionamento, pois, a caracterização do ato ilícito nem sempre enseja a obrigação de indenizar. Podem ocorrer situações em que o indivíduo esteja acobertado por alguma excludente de responsabilidade.

            Ademais, convém salientar que o abuso de direito não está condicionado à violação de limites formais ou concretas proibições normativas. Sua doutrina vai muito mais além dessa realidade, pois, os seus limites são ditados pelos princípios que regem o ordenamento jurídico, o que, mais uma vez implica o reconhecimento de sua autonomia jurídica.

            A doutrina do abuso de direito está em sintonia com a atual tendência da racionalidade jurídica, a qual não mais se coaduna com a idéia da completude do ordenamento e sim com a consagração dos princípios como valores fundamentais do sistema jurídico nacional, os quais, em sua maioria, se encontram constitucionalizados. Vale destacar, em especial, para o estudo do abuso do direito, a incidência dos princípios da socialidade e eticidade, ambos consagrados pelo Código Civil de 2002.

            Não se admite mais que o direito positivado possa prever exaustivamente todas as condutas anti-sociais ou indesejáveis. Tal função será melhor desempenhada pelos princípios, visto que os mesmos passaram a assumir um maior grau de normatividade, permitindo uma constante adequação do ordenamento jurídico às exigências de nosso tempo, de forma a tornar o sistema mais dinâmico.

            Nesta realidade, o Magistrado seria chamado a exercer sua função de maneira mais inovadora e criativa e, acima de tudo, muito pouco dependente do texto legal. Assim, sempre que a jurisprudência transcender às prescrições normativas, os princípios do próprio sistema certamente serão acionados, para no âmbito de sua normatividade, adequarem-se ao caso concreto apresentado. É bom ressaltar que a hipótese anteriormente aventada não se confunde com a função integrativa dos princípios, a qual, por sua vez, é observada na existência de lacuna no ordenamento jurídico.

            Por todas essas razões, não podemos nos furtar em admitir o instituto do abuso de direito como uma categoria jurídica autônoma, haja vista que o mesmo apesar de se encontrar inserido no plano da antijuridicidade, em nada se confunde com o ato ilícito, conforme já fora amplamente demonstrado.


6. A POSITIVAÇÃO DO ABUSO DE DIREITO

            A teoria do abuso de direito apesar de não representar uma inovação para o sistema jurídico nacional, visto que, o revogado Código Civil de 1916 já a reconhecia de forma indireta, apenas recebera sua positivação pelo ordenamento com o advento do Código Civil de 2002.

            De acordo com o inciso I do art. 160 do Código Civil de 1916, não deveriam ser constituídos atos ilícitos os que fossem praticados no exercício regular de um direito reconhecido. A contrario sensu, podemos abstrair da redação do aludido dispositivo que os atos porventura praticados no exercício irregular de um direito seriam considerados como ilícitos.

            Observe-se que o legislador de 1916 não consagrou diretamente a tese do abuso de direito. Pelo contrário, equiparou-o com o ato ilícito atribuindo responsabilidade ao titular pelos danos causados a terceiros. Esse tratamento legislativo em nada contribuiu para a compreensão e difusão da teoria no Direito pátrio, fazendo com que tanto a doutrina quanto a jurisprudência pouco se ocupassem acerca desse tão importante instituto jurídico.

            Com efeito, apesar de anos de ausência de previsão normativa específica, restou a jurisprudência à árdua missão de estabelecer contornos e aplicação ao abuso de direito, embora tenha havido muita dissonância nos entendimentos.

            Dessa maneira, a jurisprudência procurou, durante anos, gerar uma solução satisfatória para as situações concretas que não se amoldavam à doutrina do ato ilícito. Tanto é assim que a caracterização do abuso pelos Tribunais tem sido relacionada ao descumprimento da função do direito subjetivo, como também a violação da boa-fé objetiva ou ao descumprimento de um dever moral.

            Já o Código Civil de 2002, diferentemente de seu antecessor, consagrou de forma expressa a teoria do abuso do direito, muito embora não tenha trazido no texto legal a sua denominação, haja vista que o incluíra no Título pertinente aos atos ilícitos.

            Sob a influência do Código Civil Português, o nosso atual Código Civil positivara o abuso de direito em seu art. 187 atribuindo que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

            O abuso, portanto, não mais aparece relacionado ao exercício irregular de um direito ou prerrogativa individual, posto que passara a assumir função limitadora destes, mediante a imposição de limites éticos. Tais limites, por sua vez, serão estabelecidos em conformidade com o princípio da boa-fé objetiva, os bons costumes e a função social e econômica dos direitos.

            Conforme já poderíamos imaginar, a inserção do abuso de direito no bojo do Código Civil de 2002, apesar de ter significado um importante avanço em nosso ordenamento jurídico, não poderia escapar de algumas notas críticas, as quais passaremos a considerar em seguida.

            Em primeiro plano, é mister considerar a confusão provocada pelo legislador ao ter inserido a teoria do abuso de direito no Título II do Capítulo V do Livro III – Do ato ilícito – uma vez que, não reconheceu a autonomia do ato abusivo perante o ilegal, deixando de promover, conseqüentemente, a identificação das duas espécies de antijuridicidade. A despeito disso, urge ressaltar que a própria norma expressamente dispôs que "também comete ato ilícito" aquele que age abusivamente.

            Ademais, em decorrência do equívoco legislativo supra considerado, poder-se-ia atribuir como efeito da concepção do abuso de direito como espécie de ato ilícito, a responsabilidade subjetiva, sendo a culpa elemento quase indissociável do conceito de ilicitude. Na realidade, a aplicação da teoria do abuso de direito exige responsabilização objetiva, a qual encontra substrato na teoria do risco, e revela o ato abusivo através da confrontação entre o ato praticado e os valores tutelados pelo ordenamento civil-constitucional.

            Na óptica de Heloísa Carpena, a afirmação de que será abusivo o ato que exceda manifestamente os limites do direito em questão, comporta várias objeções. A primeira estaria relacionada à utilização do advérbio "manifestamente", posto que o mesmo geraria dúvidas quanto ao seu alcance, ou seja, se diria respeito ao grau ou a quantidade. Ainda em conformidade com a citada doutrinadora, impõe-se negar ambas as hipóteses, vez que, tal circunstância não seria elemento do ato abusivo, sendo necessário à caracterização do mesmo, tão somente, a inobservância de limites axiológicos.

            A crítica ao dispositivo constante do art. 187 do Código Civil persiste ainda quanto à afirmação de que o titular poderá abusar do direito quando "exercê-lo". Ocorre que o emprego de tal verbo pode gerar a falsa impressão de que a conduta omissiva não poderia caracterizar abuso, não correspondendo, portanto, com a realidade posta através das situações concretas.

            Infeliz também fora a redação normativa ao referir apenas à titularidade de um "direito", tendo em vista que a utilização de tal expressão transparece a idéia de restrição da aplicabilidade da teoria. Vale salientar que o abuso, como categoria autônoma dos atos contrários ao direito, não se limita ao exercício de determinado direito subjetivo, identificando-se igualmente com outras situações jurídicas subjetivas, consoante já fora defendido por nós em linhas anteriores.

            Não obstante as críticas direcionadas contra a literalidade de algumas expressões constantes do preceito normativo do art. 187 do Código Civil, impossível negar a importância da positivação do abuso de direito em nosso sistema jurídico, levando-se em consideração, principalmente, o fato de que a consagração de tal instituto contribuirá para por fim a antigas celeumas suscitadas pelos operadores do direito.

            Destarte, para se obter um melhor resultado quanto à utilização da teoria ato abusivo, é imperioso que se promova uma interpretação construtiva da mesma, notadamente a partir do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, a fim de que, dessa forma, o nosso sistema jurídico seja revigorado, ao permitir a adequação das normas à realidade social que, por seu turno, apresenta-se sempre dinâmica.


7. Efeitos do Ato Abusivo

            A priori incumbe consignar que pelo fato do ato abusivo tratar-se de matéria de ordem pública, tem-se como o seu primeiro efeito a possibilidade do mesmo ser suscitado como matéria de defesa (não sendo necessária a propositura de ação) pela parte interessada, pelo Ministério Público ou mesmo conhecido ex officio, a qualquer tempo ou grau de jurisdição.

            Outrossim, por não se tratar de ato ilícito, a noção de ato abusivo extrapola a teoria da responsabilidade civil. O ato abusivo, dessa maneira, comporta sanções diretas e/ou indiretas. Quando o ato abusivo é reconhecido judicialmente, além do dever de indenizar, pode decorrer também a nulidade do ato, consoante preconiza o art. 166, inciso VI do Código Civil, sempre que a questão for pertinente à fraude de lei imperativa.

            No caso de cominação de sanção indireta para fins de tornar possível a reparação dos danos provocados pelo ato abusivo, defendemos, a exemplo da imensa maioria da doutrina, a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva, a qual, por sua vez, encontra substrato na teoria do risco.

            Corroborando com o entendimento explicitado acima, destacamos o Enunciado nº 37 da Jornada de Direito Civil, o qual preconiza que "a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico".

            As conseqüências do ato abusivo devem ser as mesmas de qualquer atuação sem direito, de todo ato ou omissão ilícitos. Assim, a obrigação de indenizar tem lugar desde que, o comportamento abusivo do agente se alinhe com os demais pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam o dano e o nexo causal entre o ato abusivo e o dano. A obrigação de indenizar é, portanto, o mais importante efeito decorrente do ato de abuso.

            Já a sanção direta do ato abusivo consiste, em primeiro lugar, em sua reparação in natura, ou seja, na possibilidade de se determinar o desfazimento do ato. Entretanto, para a aplicação dessa natureza de sanção, o Magistrado, ao seu prudente arbítrio, deverá proceder a escolha da mais eficaz para o caso concreto. Citando exemplos de sanções diretas, temos, além do desfazimento do ato, a tutela inibitória, a improponibilidade da ação, dentre outras.

            Para que haja a obrigação de indenizar é imprescindível a ocorrência do dano. Donde se falar ser possível que ato abusivo não dê lugar à reparação, mas apenas ao desfazimento do ato, por não ter havido prejuízo.

            Por fim insta salientar que, diferentemente do ato ilícito, o ato abusivo não enseja a responsabilidade penal do sujeito, tendo em vista o fato do mesmo ser atípico, pois, apenas se revela pela sua disformidade valorativa em relação a prerrogativa individual ou direito exercido e nunca pela contrariedade a específicas obrigações normativas, não podendo, dessa maneira, ser previamente enquadrado pela lei como fato criminoso.


8. Incidência da Doutrina do Abuso de Direito nas Situações Cotidianas

            Para demonstrar a incidência da doutrina do abuso de direito em nossas relações cotidianas, não precisamos procurar muito, posto que a mesma ocorre notadamente com as mais diversas relações de consumo e de vizinhança. Todavia, não são as únicas, pois até na rede mundial de computadores, a internet, o comportamento abusivo se manifesta.

            No afã de ilustrar a nossa abordagem procuraremos citar situações em que o direito ou prerrogativa individual foram exercitados em patente violação aos fundamentos valorativos (morais e sociológicos) inerentes aos mesmos, v.g. a boa-fé, os fins sociais ou econômicos e os bons costumes.

            O que despertou nosso interesse pelo tema foi justamente uma reportagem veiculada por um tele jornal, a qual abordava um abuso cometido numa relação de vizinhança. Consta da mesma reportagem que o indivíduo era proprietário de um imóvel residencial, o qual tinha uma portentosa área de lazer, com piscina e demais atrativos. Ocorre que ao lado dessa propriedade fora construído um pequeno prédio com três andares. O proprietário da casa, sentindo-se ofendido em seu direito a privacidade, bem como arrimando-se num suposto direito ao pleno exercício de seu domínio, ordenou que fosse ampliada a altura do muro que limitava o seu imóvel e o pequeno edifício. Realizada a obra, constatou-se que o muro ficara da altura do edifício e, mais um agravante, fora utilizado concreto para ampliar o muro. Concluindo o fato, os moradores do prédio ficaram afetados, uma vez que fora obstada a entrada da luz solar em parte do edifício, além da circulação do ar. Tendo os moradores prejudicados provocado a tutela jurisdicional do Estado, obtiveram ganho de causa, através do desfazimento da obra, ou seja, a demolição do muro. No entanto, a medida restara inexeqüível, haja vista que em tendo sido utilizado concreto para erguer o muro, a demolição poderia comprometer a estrutura do prédio. De acordo com a matéria, a situação permanece até então sem solução.

            Apesar de considerarmos a existência de abuso no comportamento do proprietário da casa, este ato também pode ser taxado como ilegal, haja vista também ter afrontado os dispositivos do Código Civil que disciplinam os direitos de vizinhança. Mas ainda assim reconhecemos violação ao fim social inerente ao direito à privacidade, bem como a boa-fé.

            Na seara das relações consumeristas, um dos mais claros exemplos de abuso de direito pode ser encontrado por ocasião das cobranças de débitos. Ocorre que muitos fornecedores costumam, no exercício do direito de crédito, extrapolar os limites permitidos para a cobrança, ocasionando para o devedor enormes constrangimentos e, em alguns casos, expondo-o ao ridículo. Um exemplo clássico dessa prática é o do cobrador de porta, indivíduo que realiza a cobrança de maneira humilhante, vexatória, visto que, expõe o devedor ao ridículo perante a vizinhança e demais pessoas presentes no momento.

            Ainda nas relações de consumo, considera-se abusiva cláusula contratual que autorizava a Instituição Financeira a descontar diretamente da conta corrente de funcionário público, seu cliente, valor de empréstimo, uma vez que os vencimentos do servidor têm natureza alimentar, não se admitindo que a instituição credora continuasse a efetivar tal desconto. Claro está que tal conduta excede os limites éticos de qualquer negócio, ensejando, via de conseqüência, o abuso de direito.

            Exemplos diversos de cláusulas abusivas, isto é, cláusulas contratuais que excedem a boa-fé e a função social do contrato, são facilmente encontrados no dia a dia, tais como: as taxas de serviços cobradas pelos hotéis sem qualquer sentido, uma vez que a hospedagem já se apresenta como o objeto da contratação; as cláusulas que isentam de responsabilidade por furtos ou danos causados a veículos nos estacionamentos de shoppings, restaurantes ou supermercados; as cláusulas que permitem o curso cobrar mensalidades, independente da desistência do alunos, dentre tantas outras.

            Dentre práticas comerciais viciadas de abuso, destacamos a venda casada, a recusa de recebimento de cheques de correntistas com menos de seis meses ou um ano de conta corrente, etc.

            Um exemplo de abuso que pode ser abstraído das relações de comércio na internet, diz respeito às compras realizadas através de cartões de crédito. Nesse tipo de negociação, contraente fornecedor abusa da boa-fé do consumidor ao utilizar-se de seus dados para prática de fins escusos, ou ainda quando recebe o pagamento e descumpre a sua prestação na avença. Neste caso, além de atentar contra a boa-fé da outra parte, violou também os fins econômicos e sociais que norteavam a sua posição como contratante. Decerto que na área penal esta conduta poderia ser enquadrada como estelionato.

            Outra situação que ocorre na internet e que enseja o abuso de direito, é justamente o spamming. O spam nada mais é do que o envio ao consumidor-usuário de publicidade de serviços ou produtos, oferecendo uma gama de vantagens para o caso de uma efetiva contratação ou utilização, sem que a mesma tivesse sido solicitada. Após receber tais mensagens indesejadas, o usuário geralmente perde um bom tempo selecionando, lendo e excluindo as mesmas. Ademais, o spamming causa grandes dificuldades aos fornecedores de serviços de internet, já que os mesmos necessitam viabilizar medidas para coibir essa prática, o que, naturalmente, implica aumento nos custos de sua atividade econômica.

            Pela falência que pode gerar a internet o spam contraria o fim social e econômico da grande rede, o que já serviria para enquadrar a prática como abuso de direito. De outro norte, insta salientar que a conduta dos spammers também é atentatória a boa-fé objetiva. Uma pessoa que envia mensagens para uma outra sem que esta tenha ao menos solicitado, está distante da probidade e lealdade que se espera das relações intersubjetivas, mesmo que se manifestem em meios virtuais.

            Segundo nossa concepção, a lide temerária também se configuraria como hipótese de abuso de direito. As lides temerárias, mal que acomete o Poder Judiciário, caracterizam-se por postulações sem o menor fundamento jurídico, sendo, portanto, motivadas pela má-fé e, muitas vezes, pela intenção de devedores em postergar o pagamento de obrigações líquidas, certas e vencidas. Seriam abusivas, pois, atentam contra a boa-fé, bons costumes e fins sociais e econômicos, devendo as mesmas serem reprimidas por todos que ainda crêem na Justiça. Neste caso, convém ressaltar que o próprio Código de Processo Civil cuidou de cominar sanções para essas lides infundadas. É a chamada litigância de má-fé.

            No âmbito do Direito de Família, podemos citar como conduta considerada abusiva, a do cônjuge detentor da guarda dos filhos, que, deliberadamente, tenta embaraçar o exercício do direito de visitas do outro cônjuge.

            Interessante exemplo de violação dos bons costumes diz respeito à vedação da chamada "farra do boi", a qual consistia numa manifestação cultural que acabava submetendo os animais à crueldade excessiva, hipótese esta que também não poderia deixar de ser considerada como abusiva.

            Conforme podemos perceber, no campo prático de incidência da teoria ora estudada, a linha de diferenciação entre o abuso de direito e o ilícito é bastante tênue, o que faz complicar ainda mais o papel do operador do direito na aplicação da doutrina do abuso de direito.


9. Conclusão

            Em breve síntese, concluímos que o dispositivo que inseriu a teoria do abuso de direito no Código Civil de 2002, tratou-se de norma destinada a promover a relativização dos direitos e prerrogativas individuais, de forma a coibir o exercício abusivo dos mesmos pelos seus sujeitos, preservando-se com isso os interesses coletivos e o bem estar social. Portanto, todo e qualquer ato jurídico que desrespeite tais valores, ainda que não sejam considerados ilícitos por falta de previsão legal, pode ser qualificado como abusivo, ensejando a correspondente responsabilização.

            Não há, destarte, direito absoluto em nosso ordenamento jurídico, devendo todo exercício de direitos e prerrogativas respeitar os fins sociais e econômicos, os bons costumes e, principalmente, a boa-fé.


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Notas

            1 Programa de Direito Civil, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1979, vol. 1, p. 368-369. Aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942-1945).

            2 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 404.

            3 Vocabulário Jurídico, 16ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1999.

            4 SÁ, Fernando Augusto Cunha de. Abuso do Direito. Coimbra: Almedina, 1997, p. 465-466.

            5 Cf. "Abuso de Direito no Código de 2002", In TEPEDINO, Gustavo (coord.), A Parte Geral do novo Código Civil – Estudos na perspectiva civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

            6 Ob. cit. p. 382.

            7 Ob. cit. p. 382.

            8 CHAVES, Cristiano Farias de. Direito Civil – Teoria Geral. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 521.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, João Álvaro Quintiliano. Abuso de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 727, 2 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6944. Acesso em: 20 abr. 2024.