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Critérios para a demissão do servidor público

Critérios para a demissão do servidor público

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Entenda como funciona a dosimetria da pena disciplinar e o estabelecimento dos critérios para legitimar a expulsão de servidor dos quadros do serviço público.

Questão de grande complexidade enfrentada por aqueles que militam na área disciplinar diz respeito à individualização da reprimenda; procedimento de dificuldade acentuada que, segundo Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho representa a aceitação do princípio da isonomia, na justiça distributiva, segundo o qual devem os homens ser tratados desigualmente na justa medida de suas desigualdades, ou seja, segundo uma igualdade proporcional. [1]

É certo que no âmbito penal, por conta da Reforma de 1984, que adotou o chamado sistema trifásico de dosimetria de pena, proposto por Nelson Hungria, foram estabelecidos parâmetros para essa complexa operação. [2]

Ocorre que na seara disciplinar esse problema se acentua, visto inexistirem critérios semelhantes àqueles fixados pela legislação penal.

Ademais, não se pode olvidar a existência de posicionamento que defende a impossibilidade de individualização da reprimenda, nas hipóteses em que o legislador estabelece uma pena fixa, como a demissão, por exemplo.[3]

Em que pese tal entendimento, deve prevalecer a posição contrária, na medida em que a imposição constitucional de individualização da pena, prevista expressamente no art. 5º., inciso XLVI, se estende aos processos disciplinares. Nesse sentido, a jurisprudência estabelece:

[...] O art. 128 da Lei n. 8.112/1990 impõe a ponderação, caso a caso, da natureza e da gravidade da infração cometida, dos danos que dela provierem, das circunstâncias agravantes ou atenuantes e dos antecedentes funcionais. A individualização da pena é preceito constitucional que deve ser observado também no processo disciplinar. Precedentes [...]

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - MS 15905 / DF -MANDADO DE SEGURANÇA 2010/0205792-1, Ministro CESAR ASFOR ROCHA – Primeira Seção , DJ 14.08.12.

Ao examinar o tema, Antonio Carlos Alencar Carvalho assinala:[4]

[...] Na aplicação das penalidades, para fins de cumprimento do princípio constitucional d individualização da pena, a autoridade administrativa julgadora dever verificar, ante balizas determinadas pelo art. 128, da Lei Federal 8.112/90, quais fatores preponderam: 1. Natureza da infração cometida; 2. Gravidade da infração cometida; Os danos que dela provieram para o serviço público; 4. As circunstâncias agravantes; 5. As circunstâncias atenuantes; Os antecedentes funcionais [...]

Na mesma direção, ao analisar a discussão acerca do ato de demissão ser vinculado ou discricionário, Inácio de Loiola Mantovani Fratini assevera:[5]

[...] não obstante exista certa divergência na doutrina e na jurisprudência acerca do assunto, vem preponderando entendimento que, de fato, parece ser o melhor, de que é viável a mitigação da pena de demissão e de demissão a bem do serviço público, com a manutenção do servidor nos quadros da administração pública se as circunstâncias de caráter objetivo, subjetivo e pessoal indicarem para a conveniência da manutenção do agente em seu cargo [...]

Ao encontro desse entendimento, o disposto no art. 20 e seguintes da Lei Federal 13.655/2018, que incluiu no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público; dispõe:

[...] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.’ ...  ‘Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente [...]

Nesse contexto, é possível afirmar que prevalece a posição que propicia ao julgador o exame de todas essas circunstâncias, podendo, em caráter excepcional e desde que devidamente motivado, mitigar uma pena de demissão.[6]

Superada esta discussão, ingressa-se noutra, de igual complexidade.

Com efeito, a grande questão a ser enfrentada nesse segundo momento, situa-se na identificação da existência ou não de um juízo de incompatibilidade absoluta, no qual se afira que a permanência do indiciado nos quadros do serviço público se mostre desaconselhável.

Nessa empreitada é possível trilhar um caminho que forneça subsídios concretos para o julgador decidir acerca da reprimenda mais razoável e proporcional. Porém, forçoso é reconhecer que a despeito de certa resistência por parte de alguns administrativistas, o embasamento teórico para que se alcance tal objetivo parte necessariamente de outro ramo do Direito, qual seja, o Direito Penal.

Por certo não se pode olvidar que, nos termos do magistério de  J. Cretella Júnior,[7] constitui erro elementar transplantar, pura e simplesmente, para o campo do direito disciplinar as noções cristalizadas e já tradicionais no campo penal. Todavia, como assinala o referido autor, aqueles que defendem a total autonomia do direito disciplinar acabem por cometer erro típico dos que tomam posições radicais, porque confundem ‘autonomia’ com soberania, procurando inovar na reformulação dos institutos do novo ramo; jamais aceitando qualquer canalização de conceitos hauridos em outros setores da ciência jurídica, mesmo de campos afins, como é o caso do direito penal em relação ao direito disciplinar.

Nesses termos, em algumas situações – quiçá em razão de ambos terem no Direito Público a sua origem, bem como caracterizarem-se pelo exercício do jus puniendi –, regras do Direito Penal terão significativos reflexos no âmbito disciplinar.

A rigor, poucos dispositivos penais têm tanta influência na aplicação da pena expulsória quanto o disposto no art. 92, do Código Penal, que prevê os chamados efeitos específicos da sentença penal condenatória.

Para melhor compreensão a respeito do raciocínio a seguir desenvolvido, se faz necessário, inicialmente, a transcrição do dispositivo legal que trata da matéria:           

[...] Art. 92 - São também efeitos da condenação:

I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo

a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;

b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos...

Parágrafo único - Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença [...]

Evidencia-se, ictu oculi, que embora o legislador, no parágrafo único do art. 92, do Código Penal, tenha expressamente vedado a hipótese dos aludidos efeitos terem sua aplicação de forma automática, não tratou de elencar quais seriam os critérios que levariam o julgador a determinar, entre outros, a perda do cargo e função.

Daí a necessidade de se socorrer de ensinamentos doutrinários acerca dos motivos que ensejariam essa perda.

Contudo, é bem verdade que a doutrina nacional aborda o assunto de forma um tanto quanto perfunctória.

A respeito, Sebastião Oscar Feltrin,[8] ao analisar o parágrafo único, do art. 92, do Código Penal, concluiu que o juiz deve levar em consideração o alcance do dano causado, a natureza do fato, as condições pessoais do agente, o grau de sua culpa, etc., para concluir sobre a necessidade da medida em concreto.

Destarte, a referida “necessidade da medida em concreto”, no plano prático, está ligada à incompatibilidade absoluta entre o fato praticado pelo condenado e sua permanência no cargo ou função pública.

Compartilhando de idêntico entendimento, Heleno Cláudio Fragoso,[9] após advertir que a consequência (efeito) não seria automática, acrescenta que o juiz, ao adotá-la, deverá nortear-se por um juízo de incompatibilidade do agente com o exercício do cargo, das funções ou do mandato eletivo.  E conclui o autor: isso dependerá da natureza e da gravidade do dever violado ou do abuso de poder cometido.

Por sua vez, verifica-se que o Direito Comparado fornece mais subsídios sobre o assunto; máxime o Direito Português.

Com efeito, ao contrário do Direito Brasileiro, no qual apenas o parágrafo único do art. 92, do CP faz singela alusão à necessidade de fundamentação, os artigos 65º e 66º, do Código Penal Português, expressamente prevêem a proibição do exercício de função quando o fato revelar indignidade no exercício do cargo ou implicar na perda da confiança necessária ao exercício da função.  [10]

Tal entendimento é amplamente acolhido pela doutrina daquele País. A propósito, M. Maia Gonçalves,[11] ao apreciar o Parecer da Câmara Corporativa sobre a Proposta da Lei n. 9/X, transcreveu: deve admitir-se que a gravidade do facto e da pena correspondente criaram ao agente uma situação em que o seu regresso à função pública está formalmente contra-indicado. 

No Direito Brasileiro, com a adoção da medida em ultima ratio, verifica-se que Edmir Netto de Araújo assinala que a demissão só é aplicável em casos de extrema gravidade, que denotem claramente a incompatibilidade do servidor punido com o serviço público. [12]

Em suma, é correto concluir que somente após minudente análise de todas as circunstâncias que envolvem a falta disciplinar, o julgador poderá entender que a conduta praticada revela um quadro de absoluta incompatibilidade de permanência do servidor em seu cargo, optando assim, por sua legítima expulsão.


Notas

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães, As Nulidades no Processo Penal, 7ª. edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p.217.

[2] Art. 68 - A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.

[3] A respeito: “ Quanto  à tese de proporcionalidade e razoabilidade na aplicação da  pena  de  demissão,  embora  seja possível o exame da penalidade imposta,  já que estaria relacionada com a própria legalidade do ato administrativo,  é  firme  o  entendimento  do STJ no sentido de que caracterizada   a   conduta   para   a   qual   a   lei  estabelece, peremptoriamente, a aplicação de determinada penalidade, não há para o  administrador  discricionariedade a autorizar a aplicação de pena diversa (v.g.: MS 20.052/DF, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, DJe 10/10/2016)” - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - AgRg no RMS 45248 / ES - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2014/0063773-9 – Relator Ministro BENEDITO GONÇALVES - Órgão Julgador T1 - Data do Julgamento 01/12/2016 - Data da Publicação/Fonte DJe 19/12/2016. No mesmo sentido: Pareceres GQ-177 e GQ-183, da Advocacia-Geral da União.

[4] CARVALHO. Antonio Carlos Alencar, Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância, 2ª. edição, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2011, p. 785.

[5] FRATINI, Inácio de Loiola Mantovani,  As hipóteses de demissão simples e demissão agravada à luz da Lei 10.261/68 e a incompatibilidade com o serviço público. Critérios para a mitigação da pena legalmente prevista, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 85, janeiro/junho de 2017, p. 231.

[6] A respeito: “1. A Terceira Seção do STJ firmou compreensão no sentido de que, nos termos do disposto na Lei nº 8.112/1990, o Processo Administrativo Disciplinar somente poderá ser anulado quando constatada a ocorrência de vício insanável (art. 169, caput), ou revisto, quando apresentados fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do servidor punido ou a inadequação da penalidade aplicada (art. 174, caput), sendo certo que a nova reprimenda não poderá ser mais gravosa (art. 182, parágrafo único).

2. Precedentes: MS 13.341/DF, Rel. Min. HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), TERCEIRA SEÇÃO, j. 22/6/2011, DJe 4/8/2011; Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, j. 13/5/2009, DJe 4/6/2009.

3. Nos referidos julgados, ficou consignado: "São ilegais os Pareceres GQ-177 e GQ-183, da Advocacia-Geral da União, segundo os quais, caracterizada uma das infrações disciplinares previstas no art. 132 da Lei 8.112/1990, se torna compulsória a aplicação da pena de demissão, porquanto contrariam o disposto no art. 128 da Lei 8.112/1990, que reflete, no plano legal, os princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da razoabilidade" -            SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – MS 10950 / DF MANDADO DE SEGURANÇA - 2005/0137679-8 Ministro Og Fernandes, Publicado aos 01/06/2012.

[7] JUNIOR, J. Cretella. Prática do Processo Administrativo. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.104.

[8] FRANCO, Alberto Silva; FELTRIN, Sebastião Oscar, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, p.1598.

[9] FRAGOSO, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal: a nova parte geral,  Editora Forense, Rio de Janeiro, 1993, p.382.

[10] Artigo 66.º

Proibição do exercício de função

1 - O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da atividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:

a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;

b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou

c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.

2 - O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou atividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.

3 - Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coação processual, pena ou medida de segurança.

4 - Cessa o disposto nos n.ºs 1 e 2 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação de medida de segurança de interdição de atividade, nos termos do artigo 100.º

5 - Sempre que o titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, for condenado pela prática de crime, o tribunal comunica a condenação à autoridade de que aquele depender.

[11] . GONÇALVES, M. Maia, Código Penal Português, 10ª. edição, anotado e comentado, Coimbra:Almedina, 1.996.

[12] ARAÚJO, Edmir Netto de. O Ilícito Administrativo e seu Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p.63. Nesse sentido, cita o autor, a título de exemplo, o caso de um professor primário, em uma pequena cidade, que rotineiramente se encontra embriagado ou frequente regularmente casas de prostituição; ou, ainda, um contador fazendário dado ao vício de jogos de azar.


Autor


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOURENÇO, Messias José. Critérios para a demissão do servidor público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5676, 15 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70418. Acesso em: 19 abr. 2024.