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Nova Lei de Falências e abolitio criminis em matéria de crime falimentar

Nova Lei de Falências e abolitio criminis em matéria de crime falimentar

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O tipo penal falimentar previsto no inciso VII, do art. 186, do revogado Decreto-Lei nº 7.661/1945, foi expressamente revogado, inexistindo na nova lei de recuperação e falência previsão semelhante.

I - INTRODUÇÃO

"Com a manus iniectio, uma das 5 (cinco) ações previstas no direito romano da época das legis actiones, surge o processo de execução, em sua primeira fase. A execução inicialmente era feita sobre o próprio corpo do devedor, permitindo a lei que se repartissem tantos pedaços do corpo do devedor quantos fossem seus credores." [1]

Com essa frase de forte efeito didático começa o Prof. Manoel Justino a examinar a Nova Lei de Recuperação e Falência em sua magistral obra de comentário à nova lei. Após apresentar a evolução histórica do direito falimentar, fazer uma análise de direito comparado com os países centrais e apresentar o pensamento da melhor doutrina brasileira, o autor destaca que a principal questão que norteia a revogação da lei pretérita e o surgimento da novel legislação, prende-se ao aspecto da preservação da empresa, como valor de utilidade social.

Assim preleciona o referido mestre:

"A transcrição do pensamento dos grandes mestres estudiosos do direito falimentar, que, aliás, já constava da edição anterior deste livro, é necessária para que se demonstre a existência de respeitável corrente de pensamento que, em resumo, poder-se-ia definir como centralizada na preocupação de possibilitar a recuperação da sociedade empresária, de tal forma que, havendo sinais de que determinada empresa não estaria caminhando da melhor forma, propiciasse a Lei um modo de intervenção que, logo aos primeiros sinais de crise, aplicasse remédios que pudessem evitar o agravamento da situação. Desta forma, seria possível tentar sanear sua situação econômica, preservando-se a empresa como organismo vivo, com o que se preservaria a produção, mantendo-se os empregos e, com o giro empresarial voltando à normalidade, propiciando-se o pagamento de todos os credores". [2]

Essa parece, igualmente, ser a preocupação maior do legislador instituída nos artigos 47, que trata da recuperação judicial, e 75, que trata da falência, da nova Lei, in verbis:

"Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica."

"Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa."

Assim, tem-se um novo viés que deve orientar tais processos, no sentido da preservação da empresa, em que pesem as criticas de que durante o longo tramite legislativo da lei, cujo projeto se estende desde meados de 1993, em que foram acrescidas cerca de 500 emendas, tal propósito foi subvertido pela pressão de um dos setores mais organizados da economia brasileira, o setor bancário, que conseguiu conduzir tal processo deliberativo no sentido de seus interesses.

Recorremos novamente à experiência inigualável do Prof. Manoel Justino, cuja lição é clara acerca dessa questão:

"Em outras palavras, antes de qualquer preocupação com recuperação da empresa, a Lei se preocupa em "salvar" o dinheiro investido pelo capital financeiro, inviabilizando – ou ao menos tornando bastante problemática – a possibilidade de recuperação". [3]

Apesar das críticas, a doutrina é quase unânime no reconhecimento da oportunidade da nova lei, posto que a lei revogada, o Decreto-lei nº 7.661, de 21 de Junho de 1945, não se prestava mais às necessidades do momento atual da vida empresarial brasileira.

É o que veremos no decorrer deste artigo, em que examinaremos o inadequado tratamento existente na antiga lei, que enquadrava como crime falimentar, o fato típico consistente na falta de apresentação do balanço dos empresários e sociedades empresárias à obtenção do visto judicial (art. 186, VII), punível com pena de detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.

Tal fato descrito em lei, na atualidade, se cingia a mera formalidade de aposição de carimbos e vistos, sem qualquer exame do conteúdo apresentado, superada de há muito pela exigência do registro dos livros contábeis no Registro do Comércio, e praticamente ignorada pela vasta maioria das empresas, especialmente as de menor porte.

No entanto, diante da imposição legal, freqüentemente o empresário falido se via processado criminalmente pela pratica de tal conduta.

A nova Lei de Recuperação e Falência veio reparar tal situação, conforme examinaremos adiante.


II - A REVOGAÇÃO DO TIPO PENAL PREVISTO NO INCISO VII DO ARTIGO 186 DO DECRETO-LEI 7.661/1945 (LEI DE FALÊNCIAS)

Com a entrada em vigor da nova Lei de Recuperação e Falência, em 9 de Junho de 2005, conforme expressa determinação contida nos artigos 200 e 201 da Lei nº 11.101, de 9 de Fevereiro de 2005, in verbis:

"Art. 200. Ressalvado o disposto no art. 192 desta Lei, ficam revogados o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, e os arts. 503 a 512 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal."

"Art. 201. Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação."

o tipo penal falimentar, previsto no inciso VII, do Artigo 186, do revogado Decreto-Lei nº 7.661/1945, adiante reproduzido:

"Art. 186. Será punido o devedor com detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, quando concorrer com a falência algum dos seguintes fatos:

...

VII – falta de apresentação do balanço, dentro de 60 (sessenta) dias após a data fixada para o seu encerramento, a rubrica do juiz sob cuja jurisdição estiver o seu estabelecimento principal."

foi expressamente revogado, inexistindo na nova lei de recuperação e falência previsão semelhante.

Durante décadas em que vigeu o Decreto-lei 7.661/1945, tal dispositivo obrigava o comerciante e sociedades comerciais, na antiga terminologia, a apresentarem ao juiz com jurisdição sobre o estabelecimento comercial, seus livros diários e balanço, normalmente até o dia 2 de março do ano seguinte, para obtenção do chamado visto judicial, sob pena de, sobrevindo a decretação de falência, serem incursos nas penas privativas de liberdade previstas naquele diploma legal.

Tal obtenção do visto do juiz configurava-se como mera formalidade, em que os livros diários eram apresentados e se obtinha a rubrica do magistrado, sem qualquer exame mais detido, posto que, por óbvio, inexistem condições objetivas, de pessoal qualificado e recursos adequados, para se examinar peças contábeis de relativa complexidade técnica.

Ocorre, via de regra, que, especialmente entre micro e pequenas empresas, tal regra de enorme gravidade, era solenemente ignorada, por empresários e contabilistas, que se acreditando dispensados da escrituração contábil e comercial, pela legislação do imposto de renda, quando enquadrados nas hipóteses de apuração do lucro presumido ou de opção pelo denominado "SIMPLES" (Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte), jamais apresentavam seus balanços à obtenção do visto do juiz, conforme determinava a lei.

Tal confusão deriva da leitura dos próprios textos de lei, que em vários dispositivos dispensam o contribuinte do cumprimento da obrigação em tela, especialmente aqueles contidos no Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo Decreto nº 3.000, de 26 de Março de 1999, como a seguir colacionamos:

"Art. 190. A microempresa e a empresa de pequeno porte, inscritas no SIMPLES, apresentarão, anualmente, declaração simplificada que será entregue até o último dia útil do mês de maio do ano-calendário subseqüente ao da ocorrência dos fatos geradores dos impostos e contribuições de que trata o art. 187 (Lei nº 9.317, de 1996, art. 7º).

Parágrafo único. A microempresa e a empresa de pequeno porte estão dispensadas de escrituração comercial desde que mantenham em boa ordem e guarda e enquanto não decorrido o prazo decadencial e não prescritas eventuais ações que lhes sejam pertinentes (Lei nº 9.317, de 1996, art. 7º, § 1º):

I - Livro Caixa, no qual deverá estar escriturada toda a sua movimentação financeira, inclusive bancária;

II - Livro de Registro de Inventário, no qual deverão constar registrados os estoques existentes no término de cada ano-calendário;

III - todos os documentos e demais papéis que serviram de base para a escrituração dos livros referidos nos incisos anteriores."

"Art. 527. A pessoa jurídica habilitada à opção pelo regime de tributação com base no lucro presumido deverá manter (Lei nº 8.981, de 1995, art. 45):

I - escrituração contábil nos termos da legislação comercial;

II - Livro Registro de Inventário, no qual deverão constar registrados os estoques existentes no término do ano-calendário;

III - em boa guarda e ordem, enquanto não decorrido o prazo decadencial e não prescritas eventuais ações que lhes sejam pertinentes, todos os livros de escrituração obrigatórios por legislação fiscal específica, bem como os documentos e demais papéis que serviram de base para escrituração comercial e fiscal.

Parágrafo único. O disposto no inciso I deste artigo não se aplica à pessoa jurídica que, no decorrer do ano-calendário, mantiver Livro Caixa, no qual deverá estar escriturado toda a movimentação financeira, inclusive bancária (Lei nº 8.981, de 1995, art. 45, parágrafo único)."

Ora, é absolutamente desproporcional que se exija do micro e pequeno empresário e de seus contabilistas, mormente técnicos contábeis, que apesar do enorme esforço e inegável valor, não estão preparados para resolver tal antinomia de normas jurídicas, que mesmo ao jurista causa desconforto, que desvendem tais meandros do direito pátrio.

Como tais empresas são aquelas mais suscetíveis, estatisticamente falando, de quebra e encerramento irregular, muitos empresários, sócios e administradores dessas sociedades, viam-se processados pela prática de crime falimentar que jamais tiveram o dolo de cometer, quando sobrevinha a decretação de falência.

Tratando-se de crime de mera conduta, em que o legislador não estipula a vinculação da ação a um determinado resultado, a mera ação ou omissão, por si só, já produzem a consumação do crime descrito no tipo penal. [4]

O Prof. Manoel Justino, ao examinar a lei pretérita, a esse respeito preleciona:

"Os delitos previstos nestes incisos VI e VII também seriam crimes de mera conduta. Independentemente do elemento subjetivo (dolo específico ou dolo eventual), o crime se configura pela simples ocorrência do fato ou prática do ato. Visa punir, da mesma forma que os incisos anteriores, o falido que também agiu com desídia na administração contábil de sua empresa, deixando de trazer seus livros comerciais em perfeita ordem. Por ser crime de mera conduta, independe do resultado; no entanto, ainda assim se encontra entendimento jurisprudencial no sentido de que apenas deverá ser punido tal delito se a omissão do falido concorreu de alguma forma para a falência ou para prejuízos a terceiros. Ou seja, mesmo havendo falta de livros obrigatórios ou falta de apresentação do balanço, a condenação somente ocorrerá se ficar demonstrada a concorrência deste ato para a falência. No entanto, é entendimento que pode ser contestado, pois, eventualmente, a inexistência dos livros obrigatórios ou a falta de apresentação do balanço pode ter sido provocada pelo falido, exatamente para não dar condições de apuração do delito, por exemplo, de desvio de bens." [5]

Com efeito, uma busca na jurisprudência dos nossos tribunais facilmente demonstra a existência de várias ações criminais que versam sobre a matéria.

Para exemplificar trazemos à colação o Acórdão da Sexta Câmara Criminal de Férias "Janeiro/2002", do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento do Habeas Corpus nº 368.791-3/4-00, do qual extraímos o seguinte excerto:

"ACORDAM, Sexta Câmara Criminal de Férias "Janeiro/2002", do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, conhecer em parte da impetração e, na parte conhecida, denegar a ordem, de conformidade com o relatório e voto do Relator, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

O advogado Dr. WALDIR HELU, com pedido de liminar, impetrou a presente ordem de habeas-corpus em benefício de JOSÉ ROBERTO BLAZ DE ARAGÃO e WALDOMIRO NOGUEIRA DOS SANTOS, alegando, em síntese, que sofre constrangimento ilegal por parte do MM. Juiz de Direito da 13ª Vara Cível da Comarca da Capital, em virtude do recebimento de denúncia contra ambos ofertada pelos crimes dos artigos 186, VI e VII e 188, III e VIII, ambos da Lei de Falências (DL 7661/45), porque não praticaram ou participaram da pratica de qualquer crime; (...) aduzem ainda que a jurisprudência considera que a falta de escrituração do livro diário e ausência de visto nos balanços, quando não derem causa à quebra, não constituem crimes falimentares, pelo que pedem a concessão da ordem para que anulação do recebimento da denúncia (sic), trancando-se a ação penal, ou determinando-se o prosseguimento do inquérito judicial a partir da contestação e novo recebimento da denúncia com a necessária motivação.

Indeferida a liminar (fls. 68), a autoridade apontada como coatora prestou as informações de fls. 71/72.

A D. Procuradoria Geral de Justiça é pela denegação da ordem.

É o relatório.

A despeito dos argumentos do i. impetrante, a ordem deve ser parcialmente conhecida e nesta parte denegada.

(...)

De outra parte, verifica-se que a denúncia não padece da nulidade apontada na impetração, pois descreve claramente os fatos atribuídos aos pacientes e, logo no início, separa os períodos em que a empresa falida foi administrada pelos pacientes e pelos outros dois administradores, afirmando:

"Os seus representantes legais, no período de 17 de outubro de 1994 a 07 de julho de 1997 eram os pacientes e no período de 7 de julho de 1997 e 27 de novembro de a997 eram os dois outros sócios."

Daí porque, a conclusão de que os fatos atribuídos aos pacientes são os em que eram eles os administradores da falida e a não escrituração do livro diário no termo de 21.12.65 a 7.7.97, bem como a falta de rubrica do juiz nos balanços no período da gestão dos pacientes, além de outros fatos, cuja natureza não permitiu apurar especificamente o período em que ocorreu, como a hipótese de desvio de bens, poderá ser apurado no decorrer do processo.

(...)

Por fim, o argumento de que a falta de escrituração do livro diário e a ausência de visto judicial nos balanços, quando tais fatos não deram causa à quebra, não são crimes falimentares, constituem matéria de mérito, dependem da produção de prova e seu exame aprofundado, só possível na sentença final, após toda instrução probatória e por isso mesmo é incompatível seu exame no âmbito restrito do remédio heróico.

Ante o exposto, conhece-se parcialmente da impetração e na parte conhecida denega-se a ordem.

Marcos Zanuzzi

Relator"

Conteúdo semelhante pode ser examinado nos julgados da Apelação Criminal nº 451.655-3/4-00 e da Apelação Criminal nº 479.864-3/2-00, ambas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Assim, conforme demonstrado, o tipo penal previsto no artigo 186, inciso VII, da antiga Lei de Falências, tinha plena aplicação nos processos falimentares até então examinados pelo judiciário, havendo certamente inúmeros empresários apenados até com a privação de liberdade, e outros tantos sofrendo a persecução penal em processos ainda em curso.

Por força da aplicação dos princípios da retroatividade da lei mais benigna (novatio legis in mellius) e da abolitio criminis, consagrados no artigo 2º do Código Penal, tais processos criminais devem ser imediatamente extintos, conforme veremos adiante.


III - ABOLITIO CRIMINIS EM MATÉRIA DE CRIME FALIMENTAR

Conforme examinamos acima, a revogação do Decreto-Lei nº 7.661/1945 pela Lei nº 11.101/2005, trouxe ao universo jurídico do direito brasileiro, um conflito de leis penais no tempo, uma vez que existem hoje, pessoas que cumprem penas restritivas de liberdade ou de direitos, por crime que não mais possui previsão legal, surgindo uma aparente ofensa ao cânone máximo do direito penal: nullum crimem, nulla poena sine praevia lege.

Para resolver tal conflito, o sábio legislador do Código Penal Brasileiro, com base no projeto do honorável Prof. Nelson Hungria, institui logo em seus primeiros dois artigos:

"DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL

Anterioridade da lei

Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Lei Penal no tempo

Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória."

Tais dispositivos estão em perfeita sintonia com o que dispõe a Constituição Federal em sua cláusula pétrea:

"Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXIV – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;"

Assim, tal aparente conflito tem sua solução prevista no sistema jurídico.

Tratando da matéria preleciona Damásio de Jesus:

"Desde que a lei entra em vigor, até que cesse a sua vigência, rege todos os fatos abrangidos pela sua destinação. Entre esses dois limites, entrada em vigor e cessação de sua vigência, pela revogação, situa-se a sua eficácia. Assim, não alcança os fatos ocorridos antes ou depois dos limites extremos: não retroage nem tem ultra-atividade. É o princípio tempus regit actum.

Pode ocorrer, porém, que um crime iniciado sob vigência de uma lei tenha seu momento consumativo sob a de outra; que o sujeito pratique uma conduta punível sob a vigência de outra, devendo a sentença condenatória ser proferida sob a de outra, que comine pena mais severa ou benéfica em relação à primeira; que durante a execução da pena surja lei nova, regulando o mesmo fato e determinando sanctio juris mais benévola. Como resolver a situação? Qual a lei a ser aplicada: a do tempo da prática do fato ou a posterior? Surgem pois, um conflito de leis penais no tempo e a necessidade de princípios para soluciona-lo.

Como decorrência do princípio nullum crimem, nulla poena sine praevia lege, há uma regra que domina o conflito de leis penais no tempo. É a da irretroatividade da lei penal, sem a qual não haveria nem segurança nem liberdade na sociedade, uma vez que se poderia punir fatos ilícitos após sua realização, com a abolição do postulado consagrado no art. 1º do CP. Se não há crime sem lei anterior, claro é que não pode retroagir para alcançar condutas que, antes de sua vigência, eram consideradas fatos lícitos. É regra legal, pois, a aplicação da lei vigente à época da prática do fato – tempus regit actum – aforismo que constitui garantia individual.

O princípio da irretroatividade vige, entretanto, somente em relação à lei mais severa. Admite-se, no direito transitório, a aplicação retroativa da lei mais benigna (lex mitior).

Temos, assim, dois princípios que regem os conflitos de direito intertemporal:

1º) o da irretroatividade da lei mais severa;

2º) o da retroatividade da lei mais benigna.

Esses dois princípios podem reduzir-se a um: o da retroatividade da lei mais benigna." [6]

A esse fenômeno em que a lei penal entra em conflito com a lei anterior, suprimindo norma incriminadora anteriormente existente se dá o nome jurídico de abolitio criminis.

Recorremos à lição de Paulo José da Costa Jr.:

"Poderá a lei penal extinguir-se pelo decurso do tempo em que devesse vigorar, no caso de disposições transitórias. Ou então pela obtenção do escopo a que se houvesse proposto. Ou mesmo pela eliminação do pressuposto que a houvesse gerado.

Normalmente, porém, a norma penal se extingue pela abolitio criminis, que poderá ser total (ab-rogação) ou parcial (derrogação).

Revogada a lei penal, de forma expressa ou tácita (quando a nova lei se mostra em todo ou em parte incompatível com a velha), o crime resta excluído da tipologia contida na Parte Especial. Com a revogação, cessam de imediato os efeitos penais (não os civis) da condenação. É um corolário lógico do princípio da legalidade. Descriminalizado o fato, não se justifica prosseguir na execução da pena, ou insistir nas demais conseqüências advindas da condenação." [7]

E ainda, do mesmo autor:

"Se, na sucessão temporal de leis, houver descriminalização do fato anteriormente punível, não surgem maiores dificuldades. Se se tratar de uma lei mais favorável, que venha a atingir o crime continuado ou o permanente, será aplicado ao delito em seu todo, respeitada assim sua unidade, ainda que ideal. É a única posição aceitável, diante do preceito constitucional. A lei mais benigna, no confronto das leis penais, haverá de prevalecer sempre, em nome do favor libertatis." [8]

A posição do mestre Damásio de Jesus coincide com a unanimidade da doutrina no tocante a aplicação da lei mais benigna, conforme leciona:

"A abolitio criminis, também chamada novatio legis, constitui fato jurídico extintivo da punibilidade, ex vi do art. 107, III, do CP, que reza:

"Extingue-se a punibilidade:

(...)

III – pela retroatividade de lei que não considera o fato como criminoso."

Como se observa, há duplicidade de dispositivos cuidando da mesma matéria: arts. 2º, caput, e 107, III. O princípio dos dois preceitos é o mesmo: a lei nova tem eficácia para reger condutas a ela anteriores, quando não as qualifique como criminosas. O disposto no art. 107 nada mais é que corolário do disposto no art. 2º, uma vez que, dentre os efeitos da abolitio criminis, inclui-se a extinção do poder-dever de punir." [9]

Celso Delmanto, em sua consagrada obra de comentário ao Código Penal, igualmente em consonância com a melhor doutrina, assim se manifesta:

"Extinção da punibilidade: A entrada em vigor da lei nova (posterior), que deixa de considerar o fato como criminoso (abolitio criminis), é uma das causas de extinção da punibilidade (CP, art. 107, III).

(...)

Alcance: A redação do parágrafo único deixa incontestável que a retroatividade benéfica não sofre limitação alguma e alcança sua completa extensão, sem dependência do trânsito em julgado da condenação. Basta, apenas, que a lei posterior favoreça o agente de qualquer modo, para retroagir em seu benefício." [10] (grifos do autor)

A jurisprudência dos tribunais superiores não poderia interpretar de outra forma, e assim o faz, havendo farto julgamento no sentido indicado pela doutrina.

Ainda recorrendo a Celso Delmanto podemos citar, dentre outras:

"A lei nova se aplica, no que favorecer o agente, até mesmo já havendo condenação transitada em julgado (STF, RE 102.923, DJU 10.5.85, p. 6855; RE 102.720, DJU 10.5.85, p. 6855; RE 103.306, DJU 22.3.85, p. 3629).

A lei nova, mais benéfica, retroage sem nenhuma limitação (TACrSP, Julgados 85/332).

O parágrafo único do art. 2º é amplíssimo, de modo que não alcança só os crimes e as penas, mas também as medidas de segurança e o regime de execução penal (TACrSP, Julgados 82/403)" [11]

Assim, conforme demonstrado, havendo ocorrido a revogação do art. 186, VII, da antiga Lei de Falências, por expressa disposição da nova Lei de Recuperação e Falência, deixando a falta de apresentação do balanço à rubrica do juiz (visto judicial) de ser imputada como crime falimentar, está extinta a punibilidade pela pratica de tal conduta, fazendo jus qualquer pessoa apenada nos termos da lei revogada aos benefícios legais.


IV - CONCLUSÃO

À vista de todo exposto neste artigo, pode-se concluir pela oportunidade da nova Lei de Recuperação e Falência, que vem em boa hora corrigir e atualizar a matéria falimentar em nosso meio jurídico, especialmente no tocante aos aspectos criminais abordados neste trabalho.

Em que pese a procedência das críticas à nova lei e a subversão de seus propósitos por interesses outros dos agentes financeiros, o processo de conformação da lei através da construção jurisprudencial certamente poderá adequá-la às necessidades da vida empresarial.

No tocante à hipótese de abolitio criminis examinada neste trabalho, cumpre aos advogados empreenderem seus esforços na proteção dos direitos de seus representados, apresentando as medidas que entenderem adequadas para o exame judicial da extinção da punibilidade.


NOTAS

  1. Manoel Justino Bezerra Filho, Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada, p. 31.
  2. Ibidem, p. 42/43.
  3. Op. Cit., p.44.
  4. Para Paulo José da Costa Junior, in Curso de Direito Penal, "Crimes de mera conduta são aqueles nos quais, para integrar o elemento objetivo do crime, basta o comportamento do agente, independentemente dos efeitos que venha a produzir no mundo exterior. Aperfeiçoam-se os delitos de simples atividade ou formais com a execução da conduta (omissiva ou comissiva), precindindo de qualquer resultado (naturalístico)." (p. 61). Com ele concorda Damásio de Jesus, para quem "Distinguimos os crimes formais dos de mera conduta. Estes são sem resultado; aqueles possuem resultado, mas o legislador antecipa a consumação à sua produção. No crime de mera conduta o legislador só descreve o comportamento do agente." (in Direito Penal, p. 191).
  5. Manoel Justino Bezerra Filso, Lei de Falências Comentada, p.483/484.
  6. Damásio E. de Jesus, Direito Penal, p. 72/73.
  7. Paulo José da Costa Jr., Curso de Direito Penal, p. 35.
  8. Op. Cit, p. 38.
  9. Op. Cit, p. 77.
  10. Celso Delmanto e outros, Código Penal Comentado, p. 5/6.
  11. Op. Cit, p.7/8.

BIBLIOGRAFIA

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COSTA JUNIOR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. 8 ed. São Paulo: DPJ Editora, 2005.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 5 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

FREITAS, Jayme Walmer de. Direito Criminal na Recuperação de Empresas e Falência – Lei nº 11.101/05. Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, disponível em <http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/artigos.39.9.3.htm>, acesso em 16/07/2005.

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LIMA, Alceu Amoroso. Os Direitos do Homem e o Homem sem Direitos. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda, 1999.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 22. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2002.

SILVA, Sergio Martins. Regulamento do imposto de renda anotado. São Paulo: Dialética, 2000.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO JR., Armando Francisco. Nova Lei de Falências e abolitio criminis em matéria de crime falimentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 751, 25 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7058. Acesso em: 23 abr. 2024.