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A densidade normativa do princípio acusatório na Constituição de 1988 e a condenação do réu sem acusação.

Análise da conformidade constitucional do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal

A densidade normativa do princípio acusatório na Constituição de 1988 e a condenação do réu sem acusação. Análise da conformidade constitucional do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal

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A releitura da eficácia processual das alegações finais absolutórias do Ministério Público é a única alternativa de conformidade constitucional com o princípio acusatório do desfecho da relação processual penal.

RESUMO

O presente trabalho visa a examinar a conformidade do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal com o art. 129, I, da Constituição da República. Como se sabe, o primeiro dispositivo permite ao juiz condenar o acusado ainda que o Ministério Público tenha oficiado, em alegações finais, por sua absolvição; o segundo dispositivo.consagrou o princípio acusatório na ordem jurídica brasileira e lhe deu estatura constitucional. A análise – que parte da premissa da superioridade democrática do princípio acusatório como modo de organização do processo penal – desdobrar-se-á em duas vertentes. Na primeira, será discutido o exato conteúdo jurídico do princípio acusatório em face de outros princípios processuais que lhe são limítrofes; na segunda, serão examinados o sentido e o alcance da norma constitucional que positivou, em nosso ordenamento, o princípio acusatório. O trabalho procurará demonstrar que a releitura da eficácia processual das alegações finais absolutórias do Ministério Público é não apenas dogmaticamente possível, como é também a única alternativa de conformidade constitucional com o princípio acusatório do desfecho da relação processual penal.


Quem tem o juiz como acusador precisa de Deus como defensor.

Dito medieval europeu


SUMÁRIO:I - Introdução. O princípio acusatório e princípio inquisitivo. A superioridade democrática do princípio acusatório. II – O princípio acusatório e o ordenamento jurídico brasileiro. O sistema do Código de Processo Penal. III – Princípio acusatório, princípio dispositivo e princípio da demanda: âmbitos e distinções conceituais. III (a) – Iniciativa probatória ex officio (ou o princípio dispositivo na vertente do princípio de debate) e princípio acusatório. III (b) – O princípio da demanda e o princípio acusatório. III (c) – O princípio dispositivo stricto sensu (vertente do poder de disposição do objeto de processo pendente) e o princípio acusatório. III (d) – Conclusões preliminares: a fronteira conceitual do princípio acusatório. IV – Positivação, conteúdo jurídico e eficácia normativa do princípio acusatório na Constituição de 1988. V – As alegações finais no processo penal brasileiro e a natureza jurídica das alegações finais do Ministério Público pela absolvição do acusado. V (a) – Da essencialidade das alegações finais. V (b) – Da natureza jurídica das alegações finais absolutórias do Ministério Público. V (c) – Desfechos processuais anômalos à luz da reconstrução da eficácia das alegações . inais absolutórias do Ministério Público. VI – À guisa de conclusão. Referências bibliográficas


I – INTRODUÇÃO. O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO E O PRINCÍPIO INQUISITIVO. A SUPERIORIDADE DEMOCRÁTICA DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO.

Este trabalho visa a examinar a conformidade constitucional – adotado como parâmetro de cotejo o art. 129, I, da Constituição da República – da norma permissiva contida no art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal, que autoriza o juiz, nos crimes de ação pública, a proferir sentença condenatória mesmo que o Ministério Público se manifeste, em alegações finais, em favor da absolvição do acusado. Como se sabe, o art. 129, I, da Constituição, sedimentou, no ordenamento processual penal pátrio, o princípio acusatório, cujo núcleo material está em atribuir a sujeitos processuais distintos as funções de acusação, defesa e julgamento. Distingue-se do princípio inquisitivo, que, em apertada síntese, funde em um único sujeito processual, em nome de um suposto plus de eficácia persecutória, as figuras do acusador e do juiz.

A consolidação, por norma constitucional de eficácia plena [01], do princípio acusatório em nosso processo penal teve o efeito de depurá-lo dos subsistemas processuais de natureza inquisitiva que permitiam, em alguns casos, a propositura da ação penal por ato do juiz [02], com sua subseqüente condução pelo órgão de acusação. A doutrina especializada saudou a decisão do constituinte originário: a conhecida afirmação de que "quem tem o juiz como acusador precisa de Deus como advogado" expressa, em feliz síntese, a idéia de que a função acusatória, ao exigir do acusador máxima diligência na exploração de uma hipótese inicial de persecução, pode impedi-lo, pelo compromisso lógico e psicológico que impõe, de enxergar com liberdade a verdadeira configuração dos fatos emergente da instrução processual em juízo.

Mas a superioridade do princípio acusatório sobre o princípio inquisitivo como diretriz de configuração subjetiva e funcional do processo penal decorre de fatores que vão além da esfera intraprocessual. Não se pode perder de vista que, por maior que seja o grau de independência institucional do acusador, é inerente à função acusatória a implementação da política criminal estruturada pelos poderes majoritários (isto é, de composição decorrente de manifestação eleitoral e, portanto, agenda naturalmente sensível à opinião pública majoritária). Embora nos países democráticos os órgãos de acusação em regra contem com alguma forma de proteção institucional contra interferências governamentais [03], a função acusatória em si é exercida em nome da sociedade, o que revela sua essência finalística majoritária, ainda que o princípio majoritário não se reflita nos critérios de composição dos quadros de acusadores estatais. [04]

À essência majoritária da função acusatória contrapõe-se a essência contramajoritária da atividade judiciária [05], cuja especificidade heurística está na ausência – ou ao menos em um honesto esforço pela ausência – de compromisso intelectual [06] com pré-concepções sobre as causas a serem julgadas. Daí a distinção, nos países europeus que estruturam o Ministério Público como magistratura [07], entre magistratura pro societate (Ministério Público) e magistratura pro individuo (Poder Judiciário).

Dessa distinção decorre o principal fator de inadequação do princípio inquisitivo ao Estado Democrático de Direito: atribuir o exercício de funções majoritárias a agentes cuja atividade é contramajoritária. Eventuais excessos da política criminal seja em sua configuração legislativa, seja em sua exegese e aplicação judiciária, ficam, no processo penal inquisitivo, sem contrapeso institucional; para serem conjurados, é necessário contar com dose excepcional, quase sobre-humana, de equilíbrio, de parte do juiz-inquisidor.

O princípio acusatório representa, em suma, a repercussão, no processo penal, do próprio princípio da separação de poderes, cuja eficácia normativa é essencial à garantia dos direitos fundamentais. É prevalente nos países da common law e na América Latina, mercê da influência do Código Penal Tipo.


II – O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. O SISTEMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

Não obstante a adoção explícita, pela Constituição de 1988, do princípio acusatório, o Código de Processo Penal – elaborado sob o influxo do autoritarismo de linhagem fascista do Estado Novo – contém várias disposições, em vigência formal, de duvidosa conformidade com tal princípio. A opção declarada do Código, conforme o Capítulo VI de sua Exposição de Motivos, relativo à ação penal, era pela separação dos órgãos e das funções de acusar e julgar, com expressa menção ao brocardo ne procedat judex ex officio. Já ali, contudo, observa-se um temperamento à adoção do princípio acusatório: era mantido o procedimento ex officio para as contravenções, por razões de celeridade.

No Capítulo VII da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, relativo às provas, observa-se clara injunção inquisitiva no texto: pretendia-se que o juiz criminal desempenhasse, durante a instrução, papel ativo na formação do conjunto probatório, mesmo que isso redundasse em prejuízo para o réu. Nas palavras do Ministro da Justiça da época, o notável jurista Francisco Campos:

Por outro lado, o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet.

Mas é no Capítulo XII da Exposição de Motivos, relativo à sentença, que apareciam os mais profundos temperamentos à eficácia do princípio acusatório na construção do processo penal brasileiro. Na linguagem da época:

O projeto, generalizando um princípio já consagrado pela atual Lei do Júri, repudia a proibição de sentença condenatória ultra petitum ou a desclassificação in pejus do crime imputado. Constituía um dos exageros do liberalismo o transplante dessa proibição, que é própria do direito privado, para a esfera de direito processual penal, que um ramo do direito público. O interesse da defesa social não pode ser superado pelo unilateralíssimo interesse pessoal dos criminosos. Não se pode reconhecer ao réu, em prejuízo do bem social, estranho direito adquirido a um quantum de pena injustificadamente diminuta, só porque o Ministério Público, ainda que por equívoco, não tenha pleiteado maior pena.

Em curiosa solução de compromisso, destilada na ambigüidade político-principiológica própria da Era Vargas, o Código de Processo Penal criava, para o juiz criminal, espécie de perfil de geometria variável, tanto menos inerte quanto mais se avançava no procedimento (e menos compreensíveis se tornavam para o cidadão comum os meandros da relação processual). Os nichos de atuação inquisitiva resultaram, nessas condições, deslocados do momento postulatório inicial da ação penal para a instrução e a pós-instrução, quando o juiz desempenharia, com supedâneo nos artigos 383 e 384, atividade comparável ao saneamento: o objeto da atividade saneadora então desempenhada não era, contudo, o processo, e sim o próprio conteúdo material da imputação.

Pode-se partir, pois, da premissa de que o Código de Processo Penal consubstancia acomodação entre os princípios inquisitivo e acusatório, com prevalência do segundo e relevantes aberturas normativas para o primeiro. Dessa acomodação de princípios resulta relação processual de configuração subjetiva ambígua: embora quase sempre respeitado o paradigma do actum trium personarum, certas situações processuais caracterizam-se por observância meramente formal desse paradigma, com atuação judicial potencialmente concorrente com a do órgão de acusação.

A posição de que o sistema acusatório não é adotado em forma pura pelo Código de Processo Penal é esposada, entre outros, por Paulo Rangel. Segundo o processualista e membro do Parquet do Rio de Janeiro:

O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são verdadeiros... Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente informativo, inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade real. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o sistema acusatório adotado entre nós é puro. Não é. Há resquícios do sistema inquisitivo, porém já avançamos muito. [08]

Geraldo Prado – que, em obra pertinente ao tema, qualifica o princípio e o sistema acusatório entre nós como meras promessas e afirma que prevalece, no Brasil, a teoria da aparência acusatória, porque muitos dos princípios opostos ao acusatório são implementados todo o dia [09]salienta a desconformidade do art. 383 do Código de Processo Penal (emendatio libelli) com o princípio acusatório, na medida em que permite ao juiz agravar a situação do acusado sem interferência do acusador e sem oportunizar-lhes o debate sobre a qualificação jurídica, cuja modificação já prefigurava desde o encerramento da instrução. Pode-se argumentar que o art. 384 do Código amolda-se ainda menos ao princípio acusatório, seja na hipótese do caput, seja na hipótese do parágrafo único.

Quanto ao caput, figure-se a hipótese em que o acusado se defendeu durante o processo – bem instruído o sumário de defesa – de imputação de furto, e o juiz passa a imputar-lhe apropriação indébita. É evidente a assunção, pelo juiz, já próximo de sentenciar o feito, de robusto compromisso intelectual com uma tese de acusação.

O mesmo fenômeno – que, em perspectiva estritamente descritiva, poderia ser chamado de desimparcialização – ocorre no âmbito do parágrafo único do artigo 384: basta imaginar situação em que o Ministério Público insiste em sua imputação, cuja qualificação jurídica importaria pena mais branda, e o juiz provoque, em aplicação analógica do artigo 28 do Código de Processo Penal, admitida pela doutrina e a jurisprudência, o Procurador-Geral de Justiça. Caso o Chefe do Ministério Público concorde com nova imputação (verdadeira "tese judicial de acusação"), estará prefigurada a condenação.

Não obstante a doutrina processual penal brasileira venha revelando, nos últimos anos, interesse crescente no estudo do princípio acusatório, praticamente não há, no cenário nacional, estudos mais aprofundados [10] – talvez pelo embotamento da capacidade de crítica determinado pela convivência com o direito positivo, talvez pela infreqüência da aplicação do dispositivo – sobre a conformidade com o princípio acusatório do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal, que cria a possibilidade jurídica de condenação penal, nos crimes de ação pública, mesmo que o Ministério Público, em alegações finais, tenha oficiado – opinado, na linguagem do Código – pela absolvição.

Trata-se de situação processual que mesmo em sua expressão mais elementar apresenta contornos teratológicos: embora o acusador relaxe a acusação; o juiz insiste na viabilidade da acusação – baseada em hipótese que não tem mais o crédito de seu próprio formulador – e profere sentença penal condenatória.

Para analisar essa situação do ponto-de-vista da conformidade constitucional, o presente trabalho adotará os seguintes vetores de investigação jurídica: (i) delimitação do âmbito material do princípio acusatório, abstratamente considerado, em face de princípios que lhe são correlatos, como o princípio dispositivo e o princípio da demanda; (ii) determinação da força normativa que o princípio acusatório, tal como previsto na Constituição de 1988, exerce sobre a estrutura do processo penal brasileiro no que diz respeito ao papel do órgão de acusação e do órgão jurisdicional; (iii) discussão sobre a natureza jurídica, à luz da força normativa que se possa atribuir ao princípio acusatório no sistema constitucional brasileiro, da manifestação do Ministério Público, em alegações finais, pela absolvição do acusado. A exploração desses vetores dar-se-á por meio dos instrumentos hermenêuticos consagrados (modos de interpretação teleológico, sistemático e histórico, entre outros), bem do recurso ao direito comparado.

A relevância do tema não se esgota no interesse científico em alimentar o debate sobre situação processual de contornos teratológicos. A reconfiguração jurídica dessa situação constitui objetivo para o qual convergem duas agendas do processo penal brasileiro que, não obstante serem de grande importância, não têm encontrado, com a freqüência desejável, espaços comuns para evolução conjunta e concertada: o fortalecimento institucional do Ministério Público e o aperfeiçoamento do sistema de garantias ao acusado no processo penal.

A idéia de que essas agendas são contrapostas é sofismática [11] e deve ser repelida: o Ministério Público brasileiro é dotado de extraordinário grau de independência, a qual tem como loci os próprios agentes ministeriais em face de seus superiores hierárquicos, e não apenas a instituição em face de outras instâncias estatais. A atuação do Ministério Público no Brasil dispõe, portanto, de plenas condições para desenrolar-se, em cada feito, secundum conscientiam, o que, na perspectiva garantista, representa possibilidade alargada de efetiva sensibilização do acusador pelo conjunto probatório, de preferência a um perfil de acusação vinculado a diretrizes e metas de escopo generalizante.


III – PRINCÍPIO ACUSATÓRIO, PRINCÍPIO DISPOSITIVO E PRINCÍPIO DA DEMANDA: ÂMBITOS E DISTINÇÕES CONCEITUAIS.

Como se afirmou antes, o princípio acusatório consiste, em sua acepção mais elementar, na diretriz de configuração subjetivo-funcional da relação processual pela qual as funções de acusação, defesa e julgamento devem incumbir a sujeitos processuais distintos. O princípio dispositivo, por sua vez, é de delimitação conceitual mais ambígua: ora diz respeito ao poder da parte de dispor do objeto do processo, ora diz respeito à produção de provas. Já o princípio da demanda circunscreve o objeto do processo ao pedido, demarcando a extensão jurídica (e também a profundidade, quando se tratar de direito disponível) da atividade jurisdicional.

É matéria pouco examinada e bastante tormentosa a que diz respeito à distinção e ao estabelecimento dos pontos em comum entre cada um desses princípios (acusatório, dispositivo e da demanda), bem como a inter-relação deles com o chamado princípio da iniciativa da parte, conceito jurídico talvez situado em plano mais elevado de abstração e generalidade do que os três, de molde a abrangê-los. A tarefa de distingui-los é, todavia, de alta relevância para os fins do presente trabalho: a delimitação do escopo do princípio acusatório – e, pois, o debate acerca de sua repercussão sobre a regra do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal – depende da fixação exata de seus significados jurídicos.

Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública têm funcionado entre nós como obstáculo ou inibidor dogmático à pesquisa sobre a aplicação do princípio dispositivo ao processo penal. Quanto ao princípio da demanda, a aceitação praticamente acrítica pela doutrina processual penal pátria [12] da característica genérica do pedido condenatório na ação penal, que somente admite a imputação como fator de delimitação da atividade jurisdicional criminal, tem limitado a pesquisa de seu conteúdo especificamente criminal aos mecanismos da emendatio libelli e mutatio libelli (arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal), bem como, em grau mais restrito, ao aditamento espontâneo à denúncia.

Esse relativo distanciamento da doutrina processual penal em relação aos princípios dispositivo e da demanda acaba por subtrair-lhe importantes instrumentos de análise no estudo do princípio acusatório. Não obstante, observa-se certo esforço dos doutrinadores que se debruçaram sobre o tema no sentido de restringir o conteúdo do princípio acusatório à expressão formal da idéia do actum trium personarum na relação processual penal. É a posição convicta de Ada Pellegrini Grinover e de Antonio Scarance Fernandes. Segue-a também, embora com mais nuances, Geraldo Prado.

Para a mestra do Largo de São Francisco:

A ambigüidade e indeterminação do binômio acusatório-inquisitório são conhecidas, sendo polivalente seu sentido. Por isso nos preocupamos, em diversos escritos, em salientar aquilo que distingue, sinteticamente, o modelo acusatório do inquisitório. No primeiro, as funções de acusar defender e julgar são atribuídas a órgãos distintos, enquanto no segundo as funções estão reunidas e o inquisidor deve proceder espontaneamente. É só no processo acusatório que o juízo é o actum trium personarum, de que falava o Búlgaro, enquanto no processo inquisitório a investigação unilateral a tudo se antepõe, tanto que dele disse Alcalá-Zamora não se tratar de processo genuíno, mas sim de forma autodefensiva da administração da justiça. Onde aparece o sistema inquisitório poderá haver investigação policial ainda que dirigida por alguém chamado juiz, mas nunca verdadeiro processo.

...

O que tem a ver, sim, com os poderes instrutórios do juiz no processo é o denominado adversarial system, próprio do sistema anglo-saxão, em contraposição ao inquisitorial system, da Europa continental e dos países por ela influenciados.

Denomina-se adversarial system o modelo que se caracteriza pela predominância da partes na determinação da marcha do processo e na produção das provas. No inquisitorial system, ao revés, as mencionadas atividades recaem de preferência sobre o juiz. Vê-se por aí a importância do correto entendimento dos termos acusatório-inquisitório (no sentido empregado no nº 2 deste trabalho) e adversarial-inquisitorial (no sentido agora utilizado). O termo processo inquisitório, em oposição ao acusatório, não corresponde ao inquisitorial (em inglês), o qual se contrapõe ao adversarial. Um sistema acusatório pode adotar o adversarial system ou o inquisitorial system, expressão que se poderia traduzir por "processo de desenvolvimento oficial". Ou seja, firme restando o princípio da demanda, pelo qual incumbe à parte a propositura da ação o processo se desenvolve por impulso oficial.

Acusatório-inquisitório e adversarial-inquisitorial são categorias diversas, em que os termos devem ser utilizados corretamente. De um lado, portanto, o contraste ocorre entre sistema acusatório e sistema inquisitório, no sentido empregado para o processo penal no nº 2 deste estudo; do outro lado, a proposição manifesta-se, tanto no processo penal como no civil, entre o "advesarial" e o "inquisitorial system", vale dizer, entre um processo que, uma vez instaurado (mantido assim, o princípio da demanda, ou dispositionsmaxime, na terminologia alemã), se desenvolve por disposição das partes (o que se denomina em alemão Verhandlungsmaxime) e o processo de desenvolvimento oficial.

Para ilustrar o binômio-condução do processo por disposição das partes e desenvolvimento oficial –, especificamente no que diz respeito à iniciativa probatória, vale lembrar o caso referido pela literatura inglesa relativamente a juiz cujo julgamento foi anulado, sendo o magistrado convencido a demitir-se, por ter formulado às testemunhas perguntas demais, o que feriria o fair trial. Como bem ressalta José Carlos Barbosa Moreira, no nosso sistema, bem que alguns juízes mereceriam, ao contrário, ao menos uma advertência por fazer poucas perguntas ou nenhuma ("Notas sobre alguns aspectos do processo – civil e penal – nos países anglo-saxônicos", Ver. Forense, vol. 344, p.98) [13].

O professor Antonio Scarance Fernandes, com supedâneo na lição de Vicente Greco Filho, manifesta-se em sucintos termos sobre as fronteiras externas do princípio acusatório, tal como instituído no ordenamento jurídico brasileiro:

Bem esclarece Greco Filho que o sistema resultante do art. 129, I, da Constituição Federal "não retira do juiz os poderes inquisitivos referentes à prova e perquirição da verdade...". "O que se repele é a inquisitividade na formulação da acusação, a qual deve ser privativa do Ministério Público ou do ofendido". [14]

O professor fluminense, por sua vez, assim se manifesta:

Com efeito, o princípio acusatório, visto pela perspectiva do direito de ação, inclui entre seus elementos o princípio da demanda, que não se confunde com o princípio dispositivo, corrente no processo civil, bem como não lhe é contraposto, em que pese a opinião de alguns doutrinadores, como também enquanto princípio de iniciativa do processo, não está prejudicado pela obrigatoriedade da ação penal, no caso brasileiro, da pública.

É preciso assinalar, para efeito de distinguir o princípio acusatório do dispositivo, quais são os elementos habitualmente invocados como componente do segundo, como o faz Barbosa Moreira, sublinhando os "pontos sensíveis da problemática", que envolvem, quase sempre os seguintes aspectos: iniciativa da instauração do processo; delimitação do objeto do litígio e do julgamento; impulso processual; aquisição do material de fato e de direito a ser utilizado na motivação da sentença; extinção do processo por ato dispositivo.

Conforme aduz o ilustre processualista, a doutrina alemã caminhou em direção à tendência de distinguir duas classes de situações, "uma relacionada com a liberdade do titular do direito de utilizar ou não o instrumento do processo para a respectiva vindicação; outra com o modo de funcionar do mecanismo processual no tocante aos fatos e à prova destes", prevalecendo, atualmente, a concepção em relação à qual, por princípio dispositivo, compreende-se o poder de decidir sobre a instauração do processo, respectiva subsistência e delimitação do litígio, enquanto um princípio de debate se caracterizaria pelos poderes de aquisição e introdução das provas no processo. Finalmente, há, na referida resenha, menção ao princípio da demanda sob a designação de parteibtrieb, integrado pelo poder de instauração do processo, diferente do princípio dispositivo strictu sensu, visto como poder de dispor sobre o objeto do processo já pendente.

Pensamos que, por princípio dispositivo, há de se entender aquele que permita dispor sobre o objeto do processo em tramitação, não sendo caracteristicamente acusatório ou inquisitório. Em feito por crime de ação penal privada conforme o Direito Brasileiro, ocorrerá a perempção, por exemplo, sempre que o autor abandonar o processo (artigo 60 do CPP), implicando verdadeira disposição sobre o conteúdo deste. De outra maneira, não é impensável um procedimento inquisitorial iniciado para apurar o cometimento, por alguém, de uma infração penal, que não se conclua por deliberação exclusiva do juiz-inquisidor, motivado por questões de política criminal.

É bem verdade que principalmente no direito estrangeiro há quem vincule o princípio dispositivo, com a possibilidade de retirada da acusação ou pedido de absolvição influindo na determinação da concreta providência a que o tribunal estaria conectado ao princípio acusatório. [15]

A análise em perspectiva crítica do pensamento desses doutrinadores conduz a conclusões de relevo para a conceituação do princípio acusatório. A posição de Ada Pellegrini Grinover e de Geraldo Prado – que, em linhas gerais, entendem serem as atividades processuais de acusar e de produzir provas conceitualmente estanques e regidas por princípios não imbricados – não parece encontrar, ressalvado o mérito da ilustre doutrinadora, respaldo na psicologia forense e na própria realidade do processo penal brasileiro.

III (a) – INICIATIVA PROBATÓRIA EX OFFICIO (OU O PRINCÍPIO DISPOSITIVO NA VERTENTE DO PRINCÍPIO DE DEBATE) E PRINCÍPIO ACUSATÓRIO

No plano psicológico, é evidente que toda atividade de produção de prova pressupõe que o sujeito processual que a esteja desempenhando tenha figurado previamente em seu psiquismo o objeto passível de comprovação pela prova que pretende produzir. Tal dado decorre da própria noção empírica de que toda procura é atividade finalística: quem procura sabe o que pretende encontrar. A atividade instrutória do juiz pode, nessa ordem de idéias, conforme a intensidade e o momento processual em que seja exercido, criar ou externar liame psicológico de sua parte – na forma de compromisso, inclinação ou favor – com a tese de acusação.

A realidade judiciária brasileira confirma essas premissas. A estrutura da instrução em contraditório, tal como positivada pelo Código de Processo Penal, põe o juiz em posição de voga na colheita da prova oral. Interrogatórios de acusados, depoimentos de testemunhas e declarações de ofendidos não são meramente presididos pelo juiz, mas conduzidos por ele, que, em todas as formas procedimentais vigentes, é o primeiro a formular perguntas e tem o dever de intermediar as das partes, que, a rigor, lhe são requeridas, deferidas e veiculadas uma a uma. Essa ordem procedimental relega as partes a um papel coadjuvante na produção da prova oral, pois o juiz acaba formulando, na parte inicial, inquisitiva, do ato, a maior parte das perguntas, enquanto as partes limitam-se aos questionamentos estritamente essenciais, haja vista o método canhestro como o Código lhes oportuniza a participação.

O resultado visível dessa estrutura instrutória – como ficou claro para o público nacional a partir da recente exibição em grande circuito do documentário Justiça, de Sandra Werneck, que expõe o funcionamento da Justiça Criminal do Estado do Rio de Janeiro – é a formação quase inevitável de um liame psicológico do juiz com a imputação contida na denúncia. O perfil inquisitivo da instrução nos procedimentos previstos no Código de Processo Penal acaba por levar o juiz criminal a uma postura de co-sustentador procedimental – mais comprobatória do que probatória – da imputação inicial, como se o despacho (rectius: decisão) de recebimento da denúncia criasse uma espécie de presunção hominis de que a pretensão punitiva é procedente, embora a presunção constitucional da inocência presumida devesse ser a única aplicável à hipótese.

Impende ressalvar que tal posição de co-sustentação da imputação a que é guindado o juiz criminal é estritamente decorrente das circunstâncias do procedimento; não existe regra relativa à relação processual propriamente dita que vincule o juiz, ainda que provisoriamente, à imputação inicial pelo simples fato do recebimento da denúncia, à hipótese que ela veicula, o que, de resto, decorre do perfil institucional do Poder Judiciário, caracterizado pelo trinômio independência-inércia-imparcialidade, e representa inegável avanço democrático em relação a sistemas processuais estruturados em torno do princípio inquisitivo.

Seria exagerado, ademais, concluir que em todo e qualquer caso a produção de provas ex officio pelo juiz criminal o identifica com o conteúdo material da imputação e/ou põe em xeque sua imparcialidade: pode ocorrer – e não é de todo incomum – que o juiz determine a produção de prova para melhor explorar determinada linha de defesa. Existem questões, de resto, cujo deslinde constitui verdadeira articulação para o mérito da causa, sem que se possa antever a parte a que a prova sobre ela produzida favorecerá (e.g., perícias grafotécnicas determinadas de ofício, omissas as partes, em crime de falsidade ideológica, cuja prova pode prescindir de prova pericial).

Emerge, então, a seguinte conclusão: o princípio acusatório, isoladamente considerado, pode conviver com a atribuição de poderes instrutórios ex officio ao juiz criminal, mas desde que o exercício desses poderes esteja sujeito à pelo menos dois condicionamentos: o primeiro deve recair sobre a oportunidade para a produção de provas ex officio, de modo que não seja permitido ao magistrado produzir provas antes que as partes o tenham feito; o segundo deve relacionar-se com o thema probandum, de modo que a atividade probatória do juiz só possa ser exercida para o esclarecimento de aspecto da imputação ainda não esteja elucidada pelas provas produzidas por ambas à parte, ficando proibida quando a prova do fato interessar apenas a uma delas.

Conclui-se, em suma, que a atribuição de poderes instrutórios ex officio somente não comprimirá até a implosão o conteúdo normativo do princípio acusatório – isto é, somente não criará condições para que o magistrado derive, no plano psicológico ou mesmo no da atuação processual, de um papel de condutor eqüidistante – se não permitir ao juiz criminal mais do que a produção de provas suplementares e, ao menos em perspectiva ex ante, de interesse comum à acusação e à defesa. O modelo de convivência do princípio acusatório com os poderes de instrução ex officio resulta, nessas condições, dialético: certos modos e medidas de outorga de poderes de instrução ao juiz são capazes de conviver, no plano normativo, com a efetiva separação subjetiva das funções processuais; a ultrapassagem e/ou a preterição desses modos e medidas é que a põe em xeque.

Afrânio da Silva Jardim ecoa essa linha de análise e enxerga com nitidez o perigo para o princípio acusatório na outorga desmedida de poderes instrutórios ao juiz. As seguintes passagens da obra do emérito professor e membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro são ilustrativas de seu pensamento a respeito desse ponto:

A nosso juízo, os princípios mais importantes para o processo penal moderno são da imparcialidade do juiz e o do contraditório. Pode-se mesmo dizer que os demais princípios nada mais são do que consectários lógicos destes dois princípios reitores.

Assim, o princípio da demanda ou da iniciativa das partes, próprio do sistema acusatório, decorre da indispensável neutralidade do órgão julgador. Sem ela, toda a atividade jurisdicional restará viciada. O próprio princípio do "Juiz Natural", relativo à jurisdição, tem como escopo assegurar adredemente a imparcialidade dos órgãos jurisdicionais.

A grande dificuldade do processo penal moderno é compatibilizar este indispensável princípio da imparcialidade do Juiz com a busca da verdade real ou material, na medida em que a outorga de poderes instrutórios pode, ao menos psicologicamente, atingir a sua necessária neutralidade, conforme adverte Liebman.

Por este motivo, a tendência é retirar do poder judiciário qualquer função persecutória, devendo a atividade probatória do Juiz ficar restrita à instrução criminal, assim mesmo, supletivamente, ao atuar das partes.

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Para o sucesso deste sistema processual [o princípio acusatório], desempenha o Ministério Público uma função da maior importância, assumindo a titularidade da ação penal e produzindo prova no interesse da verdade, deixando o Juiz eqüidistante do conflito de interesses que, porventura, surja no processo.

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Desta maneira, a tendência de nossa legislação é purificar ao máximo o sistema acusatório, entregando a cada um dos sujeitos processuais funções não precípuas, mas absolutamente exclusivas, o que dá ao réu a segurança de um processo penal mais democrático na medida em que o órgão julgador tenha a sua neutralidade integralmente preservada. [16]

A análise de Geraldo Prado enfrenta de modo exauriente o cotejo dos princípios acusatório, dispositivo e da demanda. Chama a atenção, de início, a afirmação categórica do autor de que o princípio acusatório, visto pela perspectiva do direito de ação, inclui entre seus elementos o princípio da demanda. Convém recordar que este último princípio remete à idéia de correlação entre jurisdição e pleito, proibindo ao juiz decidir com conteúdo mais extenso ou externo que o do pedido que lhe tenha sido dirigido. A idéia-força do princípio da demanda reside na garantia de inércia – e, pois, de imparcialidade – do Poder Judiciário em favor da parte em face da qual é formulado o pedido.

III (b) – O PRINCÍPIO DA DEMANDA E O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO

A transposição acrítica para o processo penal das regras do processo civil sobre a formação e a estabilização da relação processual pode condicionar embotamentos na compreensão da aplicabilidade do princípio da demanda ao processo penal.

No processo civil, quando a lide versa sobre questão de fato, a regra geral de legitimidade ad causam assegura elevado grau de certeza do autor sobre os fatos que fundamentam seu pedido. Daí o disposto no art. 264, caput e parágrafo único, do Código de Processo Civil: a modificação do pedido ou da causa de pedir não é permitida, após a citação, sem consentimento do réu e se torna absolutamente proibida após o saneamento do processo, ainda que consentisse o réu. Trata-se de regra tendente a preservar o réu contra eventual má-fé ou oportunismo do autor.

No processo penal pátrio e no dos países em que vige o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, a estrutura jurídica do crime e a configuração institucional do aparato estatal persecutório introduzem distinção essencial em relação ao processo civil: o autor da ação penal pública é obrigado a propô-la ainda que não tenha certeza de que o fato-crime ocorreu, na medida em que o princípio da obrigatoriedade impõe a denúncia tão-logo surjam indícios de materialidade e autoria suficientes para um juízo que não precisa ser de certeza, mas apenas de plausibilidade da imputação – tal é o teor da opinio delicti. O conteúdo jurídico da imputação contida na denúncia é, portanto, o de uma proposta de trabalho probatório para a verificação mais detida de sua veracidade. A ninguém que conheça o foro criminal deve causar estranheza a assertiva de que o Ministério Público acusa sem a certeza de que a acusação é procedente, pois ele o faz por dever de ofício – a certeza da imputação no momento da propositura da ação penal é puramente acidental a persecutio criminis.

A inserção do pedido condenatório na denúncia corresponde, assim, menos à estrita natureza jurídica da ação penal pública do que a uma acomodação de idéias resultante da prática forense. Nessa ordem de idéias, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido R. Dinamarco escrevem linhas esclarecedoras sobre a devida aplicação de conceitos de direito processual ao processo penal:

"Quem admitir que existe a lide penal (de resto, negada por setores significativos da doutrina) dirá que ela se estabelece entre a pretensão punitiva e o direito à liberdade; no curso do processo penal pode vir a cessar a situação litigiosa, como quando o órgão da acusação pede absolvição ou recorre em benefício do acusado – mas o processo penal continua até a decisão judicial, embora lide não exista mais. Em vez de "lide penal", é preferível falar em controvérsia penal.

...

Existe forte tendência a negar a ocorrência de lide no processo penal, o qual seria, conseqüentemente, um processo sem partes. Argumenta-se com o fato de que não haveria dois interesses em conflito, mas dois diversos modos de apreciar um único interesse, porque o interesse do Ministério Público é o de que se faça justiça, sendo a sua posição imparcial. Tal afirmação, levada a suas últimas conseqüências por aqueles que entendem inexistir processo quando não há lide, implicaria concluir que não há processo penal, mas procedimento administrativo. No tocante à exposição acima, quem afirmar a existência de lide penal dirá que a ação penal se destina à sua "justa composição" e que aquela ora se caracteriza como lide por pretensão contestada (réu que opõe resistência à pretensão punitiva, defendendo-se) e ora como lide por pretensão meramente insatisfeita (nulla poena sine judicio). Diante dessa divergência doutrinária, nesta obra fala-se em controvérsia penal e não em lide penal."

O objeto precípuo da ação penal pública, tal como estruturada em nosso ordenamento jurídico, no qual o juiz não está vinculado a eventual quantum de pena pleiteado pelo Ministério Público (podendo, inclusive, excedê-lo), é a verificação da existência fática e jurídica da pretensão punitiva estatal, tal como deduzida em juízo. Em termos mais precisos, pode-se afirmar que o objeto da ação penal pública é a declaração afirmativa da imputação (declaração de que o fato ocorreu e é punível), que deve ser certa e determinada e delimita a atividade jurisdicional, e não propriamente a condenação na dimensão quantitativa que lhe é inerente, tanto que eventual pleito ministerial de quantum da sanção penal, embora não seja vedado pela ordem jurídica, não constitui parâmetro de delimitação da jurisdição.

Se assim não fosse, não haveria espaço para a aplicação do princípio jura novit curia ao processo penal, que permite ao juiz, ao sentenciar, desprezar a capitulação penal da denúncia, desde que esteja convencido de que os fatos ocorreram conforme a descrição nela contida: o juízo de procedência da pretensão punitiva não decorre do acolhimento do pedido condenatório (que é integrado em sua dimensão quantitativa pela capitulação penal), mas sim do reconhecimento da viabilidade fática e jurídica da imputação.

Se a imputação é o verdadeiro objeto da ação penal pública; se o Ministério Público não procura o Poder Judiciário para pedir punição determinada por fato determinado, mas para pedir punição genérica por fato determinado, o princípio da demanda no processo penal deve refletir, em seu conteúdo jurídico, esse dado estruturante da atividade jurisdicional. Se na demanda processual penal é tão escassa a autonomia ontológica do pedido em relação à causa de pedir, o brocardo ne eat judex extra petita, que sintetiza o princípio da demanda, deve assumir, no processo penal, conotação apropriada: ne eat judex extra imputatii.

O mecanismo da mutatio libelli no processo penal corrobora essas conclusões e mostra, ao mesmo tempo, que as regras de estabilização da relação processual civil não se transpõem para a esfera criminal. Se a instrução revela que o fato é diverso do que está narrado na denúncia, isso significa que a imputação inicial é inviável. Ocorre que o legislador prefere, nesse caso, autorizar a reforma da própria imputação, em detrimento da idéia de que a relação processual estivesse estabilizada.

Essa opção legislativa parte de uma premissa fundamental: é provável que o acusador não tivesse conhecimento, quando formulou a imputação, da exata configuração dos fatos, pois esteve obrigado a denunciar o acusado tão-logo obteve indícios prefaciais de materialidade e autoria do delito – assim funciona a ação penal em nosso ordenamento. Parte também de outra premissa, igualmente fundamental: se a instrução deixar evidente que o fato-crime não corresponde à descrição da denúncia, ainda que os contornos sejam bastante próximos (e.g. a denúncia narra porte de entorpecente para uso próprio, e a instrução revela que autor estava em atividade de mercancia), o pedido condenatório inicial não bastará para ativar a jurisdição penal em relação ao fato que a instrução comprovou. O fundamento e a medida da jurisdição penal são dados, entre nós, não pelo pedido, mas pela imputação (causa de pedir). [17]

O princípio acusatório resulta, então, exatamente porque inclui o princípio da demanda, vulnerado na situação em que a imputação é infirmada pelo acusador e, não obstante, vem a ser reconhecida pelo órgão julgador. Do ponto-de-vista estritamente descritivo, o que essa situação deixa entrever é que o julgador não acolheu uma imputação deduzida por um acusador; a descrição mais correta dessa situação processual diria que o julgador deduziu, ele próprio, uma imputação.

III (c) – O PRINCÍPIO DISPOSITIVO STRICTO SENSU (VERTENTE DO PODER DE DISPOSIÇÃO DO OBJETO DE PROCESSO PENDENTE) E O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO

A ação penal pública no ordenamento jurídico brasileiro é, além de obrigatória, indisponível: não é dado ao Ministério Público desistir de ação penal pública que haja proposto. Conforme anteriormente mencionado, o chamado princípio da indisponibilidade da ação penal pública tem funcionado como obstáculo dogmático ao estudo do princípio dispositivo stricto sensu no processo penal pátrio.

Ocorre que o conteúdo proibitivo do princípio da indisponibilidade não é inteiramente coincidente com o conteúdo permissivo/preceptivo do princípio dispositivo stricto sensu. [18] Como se sabe, existem dois modos pelos quais o autor de uma ação pode relaxar unilateralmente sua pretensão após inicialmente deduzida: a desistência da ação e a renúncia ao direito.

A desistência da ação não repercute no plano do direito material e, portanto, quando admitida, costuma ter sua eficácia condicionada ao consentimento da parte contrária, sob pena do fenômeno processual que a doutrina chama de revelia de autor: o processo prossegue até o julgamento de mérito. O condicionamento da desistência da ação ao consentimento do réu destina-se a proteger este último contra nova ação, que seria juridicamente possível, pois a desistência não repercute no plano material – se não houvesse esse condicionamento, o autor poderia desistir de uma ação que apenas padecesse de má técnica e, com novo patrono, voltar a carga logo depois.

A renúncia ao direito opera no plano do direito material, mas repercute, por óbvio, na esfera processual: sólido ou precário o direito, o titular que a ele renuncia torna inviável o prosseguimento do processo em que estivesse deduzindo pretensão correlata. Observe-se que nada impede que a renúncia ao direito, quando lícita, tome forma de reconhecimento, pelo autor da ação, da procedência do fundamento da resposta do réu, como a este é lícito reconhecer a procedência do pedido do autor.

A impossibilidade do Ministério Público de desistir de ação penal que haja proposto segue premissas similares às que impedem o autor de qualquer ação de dela desistir ou condicionam a eficácia da desistência ao consentimento da parte contrária: trata-se de proteger o réu contra excessos do autor no controle da oportunidade da propositura da ação e evitar a possibilidade de recuos táticos ou revisões de estratégia processual que impliquem burla ao princípio da preclusão.

A necessidade de evitar burlas a esse princípio é ainda maior na esfera processual penal, em que a condição de réu importa elevada carga de insegurança jurídica justamente sobre o jus libertatis, um dos mais valiosos bens do patrimônio jurídico de qualquer pessoa. O constitucionalismo norte-americano positivou essa garantia na forma do princípio da double jeopardy [19], que, sem impedir a desistência da ação penal pela acusação pública, veda peremptoriamente a propositura de nova ação penal em face do mesmo réu pelo mesmo fato.

Em nosso ordenamento, o princípio geral do ne bis in idem em matéria penal funciona de forma diversa da double jeopardy norte-americana, mas tem o mesmo escopo de garantia contra a dupla persecução contra o mesmo fato: tal princípio confere ao réu em ação penal pública – ressalvada a hipótese de trancamento por ausência de uma de suas condições – o direito a um julgamento de mérito, como forma de lhe propiciar segurança jurídica e abreviar-lhe a incerteza sobre seu jus libertatis. [20] O princípio da indisponibilidade da ação penal pública (bem como as regras de perempção da ação penal privada) funciona, nessa ordem de idéias, não apenas como sentinela avançada do princípio da obrigatoriedade, mas também como corolário do princípio do ne bis in idem em matéria penal: o Ministério Público, uma vez que haja intentado a ação penal pública, deve conduzi-la até o julgamento de mérito.

Se o escopo do princípio da indisponibilidade consiste em impossibilitar ao Ministério Público o recuo tático-processual (como poderia ocorrer se lhe fosse permitido desistir de ação penal em curso para, por exemplo, voltar a propô-la mais adiante, a fim de aguardar a obtenção de melhores provas pela Polícia Judiciária) e obstar-lhe a burla ao princípio da obrigatoriedade (como poderia ocorrer se lhe fosse permitido desistir de ação penal em curso cujas circunstâncias contrariassem o membro do Parquet que a tivesse proposto apenas por dever de ofício, uma vez que a propositura é obrigatória quando presente à justa causa), o âmbito de incidência do princípio da indisponibilidade não estaria em xeque na hipótese em que o Ministério Público pudesse dispor do conteúdo material do processo na forma de uma sentença de mérito favorável ao réu.

Tal é o espaço de incidência do princípio dispositivo stricto sensu no ordenamento processual penal brasileiro: se, ao dispor do conteúdo material do processo, o Ministério Público o fizer na forma da obtenção de um provimento de mérito favorável ao réu, o princípio da indisponibilidade da ação penal pública permanecerá incólume, pois o processo-crime terá chegado a termo com decisão de mérito, o que deflagrará o princípio do ne bis in idem em matéria penal e impedirá nova persecutio criminis pelo mesmo fato. O princípio dispositivo stricto sensu emergirá, nessas condições, como verdadeiro corolário lógico dos princípios da verdade real e do favor rei, além de corresponder mais fielmente às funções do Ministério Público no processo penal, as quais não deixam de ser executivas [21] nem mesmo quando deixam o campo promocional (dominus litis) e se limitam à esfera fiscalizatória da aplicação da lei (custos legis).

As interpenetrações entre os princípios acusatório e dispositivo stricto sensu são menos evidentes do que as que se verificam entre o princípio acusatório e o da demanda, ou entre o princípio acusatório e o chamado princípio de debate (princípio dispositivo na vertente da produção de provas). Geraldo Prado, como se nota no trecho acima transcrito de sua obra sobre o tema, nega essas interpenetrações: princípio acusatório e princípio dispositivo não apresentariam nenhuma correlação necessária. De um lado, a separação de partes e funções na relação processual não resultaria, ao menos prima facie, desfigurada se, por hipótese extrema, a parte acusadora fosse proibida de relaxar a imputação inicialmente formulada [22]. De outro lado, é possível cogitar de processo inquisitivo em que o inquisidor possa dispor do conteúdo material da acusação [23].

Ambas as hipóteses afiguram-se, contudo, implausíveis. Quanto à primeira, fere o bom-senso a idéia de que a parte acusadora em processo criminal não possa, de nenhum modo, manifestar-se ao menos à guisa de reconhecimento da improcedência da imputação inicial. Essa idéia poria em xeque a própria coerência técnica da função acusatória, haja vista que, na esfera criminal, a prova que subsidia a imputação não precisa ser – e amiúde não é – cabal e nem sempre será suficiente para um juízo condenatório [24]. Quanto à segunda, é pouco crível que, em processo de estrutura inquisitiva, o inquisidor, convencido da improcedência da imputação inicial, deixasse de simplesmente absolver o réu para, em vez disso, por alguma técnica processual rocambolesca, dispor do conteúdo material de processo que ele próprio iniciou e conduziu.

Excluídas essas hipóteses, porque implausíveis, observa-se que, quando o processo criminal adota estrutura de partes e permite ao acusador manifestar-se pela improcedência da imputação inicial, a negativa do ordenamento a conferir eficácia dispositiva a essa manifestação, com a conseqüente possibilidade jurídica de condenação mesmo diante de oposição do acusador, importa, necessariamente, lesão ao princípio acusatório. No momento procedimental em que o acusador impugna, ele próprio, os fundamentos materiais da imputação que deduzira inicialmente, ele deixa, ainda que apenas ontologicamente, de ser parte no processo. Se a parte acusadora deixa de acusar, e o juiz condena, condenou sem acusação, o que constitui óbvia configuração processual inquisitiva.

Fica desfeita, nessas condições, a impressão inicial de independência entre os princípios acusatório e dispositivo stricto sensu: se não há possibilidade jurídica de disposição do conteúdo material do processo pelo acusador, a relação processual perderá a configuração acusatória sempre que a parte acusadora se manifestar pela improcedência da imputação inicial, e o juiz, não obstante, proferir sentença penal condenatória. Conclui-se que, embora o princípio acusatório não inclua o princípio dispositivo stricto sensu, não pode ser considerado acusatório o sistema processual penal que permita ao juiz condenar quando o próprio acusador infirma, por revisão exegética ou pela prova dos autos, a imputação que deduzira inicialmente.

III (d) – CONCLUSÕES PRELIMINARES: A FRONTEIRA CONCEITUAL DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO

Os esforços exegéticos de parte da doutrina pátria para construir o princípio acusatório em moldes restritivos não produzem resultados coerentes. A noção de que o princípio acusatório se limita ao aspecto formal da configuração subjetiva da relação processual, bastando que o processo se desenrole com três partes e tenha sido deflagrado pelo órgão de acusação, embota a finalidade desse princípio: assegurar a repercussão, no processo penal, da desconcentração das funções de poder inerente ao Estado Democrático de Direito.

Um sistema processual somente haverá conferido densidade normativa ao princípio acusatório se a separação das funções de acusar, defender e julgar repercutir na própria dinâmica da relação processual, de molde a impedir que o juiz antecipe suas conclusões em razão de compromisso intelectual com hipóteses favoráveis a qualquer das partes, bem como impedi-lo de exercer jurisdição quando a parte acusadora reconhece a improcedência da causa que a levou a pedir jurisdição, verdadeiro paradigma de pacificação social.

O princípio acusatório não se reveste, nessa ordem de idéias, de conteúdo jurídico minimamente significativo se não for construído em correlação com o princípio dispositivo (em suas duas vertentes) e da demanda. A promessa de democracia no processo que ele encerra e que sinaliza se valor positivo depende dessas imbricações.

Nada disso significa que a inércia seja o valor deontológico máximo do juiz criminal – mas a imparcialidade inquestionavelmente o é, e tanto a independência funcional quanto à inércia jurisdicional são instrumentos e corolários indispensáveis da imparcialidade. O princípio acusatório poderia, nessas condições, conviver idealmente com o que ora se passa a chamar de princípio da inércia instrumental: quando a posição inerte do juiz criminal estiver conduzindo à formação de um conjunto probatório deficiente e desequilibrado, deverá ele produzir provas; quando a posição inerte do juiz criminal estiver conduzindo a um desfecho evidentemente contrário ao direito ou à prova dos autos, deverá ele dispor de meios para, sem exorbitar de sua função judicante, evitar que isso aconteça.

Afora essas hipóteses, é preciso ter presente que a inércia da jurisdição é garantia de sua imparcialidade. E a concretização da inércia da jurisdição na marcha do processo consiste na vedação ao juiz de chamar a si ônus que incumbam a uma das partes, sobretudo à parte acusadora, em razão do princípio do favor rei, que dá ao processo penal perfil objetivo de defesa.

Cabe ressaltar que estas considerações partem da premissa de que o impulso oficial do procedimento é inerente, nos dias de hoje, à inerente ao exercício da jurisdição e, portanto, não a desloca da inércia.


IV – POSITIVAÇÃO, CONTEÚDO JURÍDICO E EFICÁCIA NORMATIVA DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A análise segue recaindo sobre o núcleo e os limites do princípio acusatório. Mas, diversamente do capitulo anterior, o foco deixa de recair sobre o plano da teoria geral do processo, com alusão abstrata a conceitos técnico-jurídicos, e passa a recair sobre o direito positivo.

É assente na doutrina que a Constituição de 1988 elevou sobremodo o perfil institucional do Ministério Público, que adquiriu feições próprias, as quais o assimilam, no plano funcional, ao ombudsman do constitucionalismo sueco. Dentre as normas que conformam a macrodisciplina das atribuições do Ministério Público, está o art. 129, I, da Carta Política, segundo o qual o Parquet tem como função institucional promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

Essa norma é apontada pela doutrina como a sedes materiae do princípio acusatório no ordenamento jurídico pátrio. Trata-se de norma substantivamente inovadora, menos pelo conteúdo axiológico de que se reveste do que pelo dado topográfico-normativo de sua inserção no texto constitucional: nunca antes a Constituição do Estado brasileiro consagrara o princípio acusatório, não obstante o Ministério Público nela tenha assento próprio desde 1934.

O enunciado do art. 129, I, da Constituição de 1988 traz ao menos dois relevantes desafios hermenêuticos para a determinação da densidade normativa do princípio acusatório em nosso ordenamento: (i) o alcance da expressão promover, usada para descrever o núcleo da função ministerial relativamente à ação penal pública [25]; (ii) a eficácia da própria norma de atribuição, sobretudo porque o constituinte originário elegeu expressamente a interpositio legislatoris como via de seu adensamento normativo.

O primeiro desafio consiste, essencialmente, em delinear, à luz das possibilidades semânticas e contextuais da norma constitucional, o sentido nuclear e os contornos da titularidade da penal ação pública pelo Ministério Público. Trata-se de indagar, em especial, se essa norma conferiu ao Ministério Público apenas o monopólio da propositura da ação penal pública ou se promover a ação penal pública significa mais do que apenas propô-la.

O verbo promover traduz os sentidos de agenciar, fomentar, impulsionar, causar. Costuma ser empregado na linguagem forense e na legislação para designar as manifestações do Ministério Público tendentes a impulsionar o processo penal. Mas esse emprego não é único nem exclusivo: o Código de Processo Civil fala na promoção da execução, bem como na promoção da citação no processo de conhecimento, embora pudesse, no primeiro caso, falar em propositura e, no segundo, em requerimento.

Esses exemplos da legislação processual civil deixam entrever com mais clareza o conteúdo jurídico conspícuo, no ordenamento pátrio, da promoção como conduta processual: quando o ordenamento chama a parte a ‘promover’ em vez de simplesmente chamá-la a ‘propor’ ou ‘requerer’, impõe-lhe o ônus específico de co-impulsionar a relação processual, subsidiando o juiz com elementos ou diretrizes para o impulso oficial e influindo na marcha do procedimento. Se a parte deve promover determinada medida, e não apenas requerê-la ou intentá-la, a observância do princípio da inércia jurisdicional deve ser examinada em escrutínio estrito.

O constituinte originário, ao usar da expressão ‘promover’ em relação à ação penal pública, enfatizou os ônus do acusador, como a transmitir a noção de que ele não pode relaxar, após a propositura da ação, no que diz respeito ao respectivo impulso. Para além da propositura, cabe a ele, quando menos, subsidiar o juízo na citação do acusado, produzir provas capazes de sustentar a acusação e, uma vez formado o conjunto probatório, insistir na imputação inicial. Todas essas providências estão compreendidas na acepção mais elementar do conceito de promoção da ação penal.

Essas premissas sugerem que o texto constitucional pretendeu infundir elevada densidade normativa ao princípio acusatório como diretriz sistêmica de nosso ordenamento processual penal. O constituinte originário não pretendia instituir um acusador meramente formal, algo na linha de um simples deflagrador-legitimador de instruções inquisitivas; o uso do verbo promover para descrever o papel do órgão de acusação no âmbito da ação penal pública sugere, antes, a diretriz de máxima acusatoriedade de que fala Geraldo Prado.

Mas a remissão constitucional à forma da lei da atribuição ministerial para promover a ação penal pública sugere alguma medida de partilha da função disciplinadora do princípio acusatório entre o poder constituinte e o poder legislativo e enseja linha de ponderação relacionada com a eficácia das normas constitucionais. Caberia, então, perquirir se – ou em que medida – o constituinte originário pretendeu delegar ao legislador infraconstitucional as decisões essenciais sobre a concretização do princípio acusatório.

Na medida em que esse exame tem como pano-de-fundo obrigatório à eficácia das normas constitucionais, segue transcrito trecho em que Ana Paula de Barcelos compendia múltiplas teorias sobre o ponto:

"A distinção entre normas constitucionais auto-aplicáveis – isto é: capazes de produzir efeitos independentemente da atuação do legislador, tendo em vista a completude de seu conteúdo – e não auto-aplicáveis corresponde à classificação tradicional da doutrina norte-americana do início do século XX (normas constitucionais self-executing e not self-executing) e foi desenvolvida no país principalmente por Ruy Barbosa.

J.H. Meirelles Teixeira reformulou essa construção para reconhecer que mesmo as normas não auto-aplicáveis dispunham de alguma forma de aplicação, como a eficácia negativa, espécie de barreira à atuação do legislador, típica das chamadas normas programáticas. Por essa razão, o autor passou a classificar as normas constitucionais como normas de eficácia plena – que produzem, desde sua promulgação, todos os efeitos essenciais – e por normas de eficácia limitada ou reduzida subdivididas em programáticas e de legislação. As normas de eficácia limitada não apresentam normatividade suficiente para produzirem todos os seus efeitos essenciais desde a promulgação, deixando total ou parcialmente essa tarefa ao legislador ordinário, ainda que se lhes reconheça a referida eficácia negativa e que elas influenciem a aplicação de outras normas, através de sua eficácia interpretativa e integradora.

Sob orientação desse mesmo critério, José Afonso da Silva criou sua já clássica disposição tripartida das normas constitucionais, classificando-as em (i) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, (ii) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição pela atuação do legislador e (iii) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que não receberam normatividade suficiente do constituinte, de modo que dependem da intervenção legislativa para produzirem seus principais efeitos."

Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito propuseram nova classificação que, nada obstante, gravita ainda em torno do mesmo critério essencial referido inicialmente. Os autores partiram de dois elementos distintivos: o modo de incidência das normas, que as distingue em normas de mera aplicação ou inintegráveis, grupo que não compartilha seu espaço com a manifestação do legislador ordinário, e normas integráveis, que admitem a convivência com a vontade legislativa inferior. O segundo elemento distintivo diz respeito à eficácia, pelo qual as normas podem ser de eficácia parcial ou plena. [26]

A norma do art. 129, I, da Constituição reveste-se de característica específica no que diz respeito à sua eficácia: não obstante ela contenha expressa delegação de competência ao legislador infraconstitucional para disciplinar o princípio acusatório, a primeira parte de sua dicção – relativa à instituição de função institucional privativa do Ministério Público consistente em promover a ação penal pública – apresenta indiscutíveis eficácia plena e aplicabilidade imediata. A doutrina e a jurisprudência entenderam desde logo, sem dissonância, que, com a entrada em vigor do novo texto constitucional, o sistema processual penal brasileiro ficara imediatamente depurado de seus elementos inquisitivos diretamente violadores do princípio da demanda, que consistiam nas hipóteses de ação penal ex officio.

Estaria tudo mais que diz respeito ao princípio acusatório – inclusive as opções essenciais do regramento do sistema processual – delegado à discricionariedade do legislador infraconstitucional? Poderia o legislador infraconstitucional optar por um sistema acusatório meramente formal, com o Ministério Público em posição processual supletiva à iniciativa inquisitiva do juiz após exercer um monopólio restrito, nessa perspectiva, à mera deflagração da ação penal pública?

As respostas devam ser negativas. A abertura da norma em exame à integração infraconstitucional não poderia, pressuposta a coerência do constituinte originário, implicar abertura à redução de sua própria força normativa, como se o constituinte, em um verdadeiro momento de cinismo, tivesse decidido enviar por sua própria pena uma boa-nova e criar para o legislador processual penal a possibilidade jurídica de emasculá-la pela via mais discreta e insidiosa da disciplina dos meandros do procedimento.

É mais razoável supor, nessas condições, que o constituinte originário tivesse em conta, ao permitir a integração legislativa do art. 129, I, um dado da realidade: vigia – e segue vigente – o Código de Processo Penal de 1941, cuja estrutura conserva vários elementos do sistema inquisitivo; se a instituição do princípio acusatório tivesse sido mais intransigente, tenderia a sobrevir verdadeiro estado de anomia processual penal, com profunda insegurança jurídica em conseqüência.

Conclui-se, pois, que a abertura da norma constitucional instituidora do princípio acusatório à integração legislativa visava, antes de tudo, a permitir a recepção do Código de Processo Penal: daí a linguagem de compromisso em que consiste a remissão à forma da lei. A legislação processual penal subseqüente estaria, por sua vez, vinculada – tanto pela literalidade do trecho de eficácia plena do art. 129, I, quanto pela cláusula implícita de vedação do retrocesso – ao incremento da concretização do princípio acusatório. Caberia ao legislador ordinário, depois de 1988, observar, na construção do sistema processual penal, que, de um lado, o texto constitucional confere ao Ministério Público a função de promover privativamente a ação penal pública e, de outro lado, essa outorga de função privativa se insere na lógica da própria imparcialidade do juiz, o que repercute no princípio do devido processo legal.


V – AS ALEGAÇÕES FINAIS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO E A NATUREZA JURÍDICA DAS ALEGAÇÕES FINAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO

V (a) – DA ESSENCIALIDADE DAS ALEGAÇÕES FINAIS

Os procedimentos em torno dos quais se estrutura o processo penal brasileiro contemplam, como em vários outros ordenamentos jurídicos, uma vez coligidos o conjunto probatório, oportunidade para que a acusação e a defesa, emitam manifestações finais, orais ou escritas, a propósito de suas pretensões. Essas manifestações, chamadas alegações finais, tomam, no procedimento ordinário, forma escrita e, nos procedimentos sumários e sumaríissimo, bem como em alguns procedimentos especiais, forma oral. É corrente, de todo modo, entre os juízes criminais brasileiros, a prática de facultar a apresentação de memoriais (i.e. de alegações finais escritas) mesmo quando o procedimento não é o ordinário.

A doutrina e a jurisprudência tradicionais negam às alegações finais, ao menos no âmbito do procedimento ordinário, caráter de termo essencial do processo. Preferem caracterizá-las como ônus das partes, o que tornaria nula apenas a negativa da oportunidade respectiva. Sérgio Demoro Hamilton, processualista e Procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim sintetiza o dado em artigo específico sobre o tema das alegações finais:

"A posição da jurisprudência do Pretório Maior encontra apoio em nomes da expressão de Fernando da Costa Tourinho Filho e José Frederico Marques que, embora considerando úteis as alegações finais, entendem não serem elas elemento essencial do processo, não acarretando, por via de conseqüência, em caso de omissão, qualquer nulidade para o processo, inocorrendo prejuízo substancial para o direito de defesa a audiência de alegações finais..." [27]

O professor fluminense adota, contudo, entendimento diverso. Para ele, o conceito de instrução criminal abrangeria, em acepção ampla, atos postulatórios e probatórios e dentre os primeiros estariam as alegações finais. Seria, de resto, incoerente, em seu modo de ver, negar às alegações finais no procedimento ordinário o caráter de termo essencial do processo quando tal essencialidade é pacífica no procedimento sumário e, a fortiori, no procedimento perante o Tribunal do Júri, em que é inclusive sancionada com nulidade expressa (art. 564, III, "l" do Código de Processo Penal). Nas palavras do ilustre doutrinador:

"...quando vem à baila a discussão a respeito da conveniência ou da necessidade do oferecimento de alegações finais, têm-se em mira, em geral, as razões escritas, próprias do procedimento comum (art. 500 do CPP). Porém, tudo o que aqui foi ressaltado a respeito das finais, nesta última modalidade de rito, tem cabimento, mutatis mutandis, evidentemente, no procedimento em que os debates finais são orais (art. 538, 2º, do CPP). Diga-se o mesmo em relação ao rito do Júri (arts. 471 a 474 do CPP). Aliás, com base nestes últimos procedimentos, segundo penso, surge um argumento definitivo em prol da necessidade da apresentação de alegações finais em qualquer caso. Por que seria obrigatória a sustentação oral no procedimento sumário (a que estão sujeitas infrações penais de menor gravidade) e, quando o crime fosse apenado de forma mais severa, seria dispensável a derradeira manifestação das partes?

Por que haveria nulidade pela falta da acusação e da defesa na sessão de julgamento no plenário do Júri (art. 564, inciso III, letra "I" do CPP), tornando-se desnecessária a manifestação final das partes no procedimento comum dos crimes apenados com reclusão?

Averbe-se, em conclusão, que em relação ao rito sumário e ao procedimento do Júri nunca e pôs em dúvida que as razões finais orais são termo essencial do processo. Admite-se, quando muito, no procedimento sumário, a supressão os debates, substituindo-os pela apresentação de memoriais, desde que as partes assim postulem e o juiz venha a deferir o requerimento, na hipótese em que a causa apresente questões complexas de fato e de direito, tal como permitido no art. 454, § 3º do CPC, aplicável por analogia ao processo penal (art. 3º do CPP).

Constitui premissa para as conclusões do presente trabalho o entendimento, tal como acima exposto, pela essencialidade das alegações finais em todo e qualquer procedimento processual penal.

V (b) – DA NATUREZA JURÍDICA DAS ALEGAÇÕES FINAIS ABSOLUTÓRIAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A doutrina majoritária enxerga como não-vinculantes para o Juízo as alegações finais em que o Ministério Público se manifesta pela absolvição do acusado. Essa noção é norteada pelas premissas de que a ação penal pública é regida pelo princípio da indisponibilidade e de que o Ministério Público, uma vez deflagrada a ação penal, figuraria no processo penal na qualidade de fiscal da lei, o que revestiria de caráter meramente opinativo suas manifestações.

Afrânio da Silva Jardim enfrenta a questão como representante dessa corrente ao menos em dois momentos de sua obra. No estudo intitulado Reflexão Teórica sobre o Processo Penal, o tratamento do tema ainda é indireto:

"No atendimento dos postulados do sistema acusatório o Ministério Público atua inicialmente como órgão acusador, submisso ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Ao depois, diante da prova produzida, deve pugnar pela correta aplicação da lei ao caso concreto, funcionando como custos legis, já que o Estado não tem qualquer interesse de ver acolhida uma pretensão punitiva injusta, seja na sua essência, seja na sua quantidade. É o que se depreende dos arts. 257 e 385 do Cód. Proc. Penal de 1941." [28]

Já no estudo intitulado Teoria da Ação Penal Pública, o autor vai ao fulcro do problema:

"No desenvolvimento deste trabalho fizemos a distinção entre ação e mérito. No item supra, dissemos que, nada obstante o exercício da ação penal condenatória, o Ministério Público pode e deve se manifestar livremente sobre o mérito da pretensão punitiva estatal que deduziu na denúncia e eventual aditamento. A regra do art. 385 do Cód. Proc. Penal é clara neste sentido.

Quando o Ministério Público opina pela absolvição do réu não está desistindo da ação já exercitada, pois ela é indisponível (art. 42). Preciso o código quando usa a palavra "opina", pois o pedido formulado na denúncia não pode ser objeto de retração. Não se pede duas vezes e, com mais razão, não poderia o Ministério Público pedir em testilha com o seu pedido original. Desta forma, a pretensão punitiva do Estado será sempre apreciada pelo órgão jurisdicional, pois nenhum comportamento do Ministério Público poderá obstar o julgamento do mérito, quando cabível." [29]

A hipótese deste trabalho enxerga nas conclusões do renomado autor, com todas as vênias, uma premissa equivocada: a de que qualquer alternativa à atribuição de eficácia meramente opinativa à manifestação do Ministério Público em alegações finais redundaria em permitir-lhe desistir da ação penal.

Como visto antes, a proibição ao Parquet de desistir da ação penal serve a dois propósitos essenciais, que podem assim ser sintetizados: impedir recuos táticos do acusador, com os quais se poderia burlar na prática o princípio ne bis in idem em matéria penal, e vedar a retirada insidiosa de uma acusação apresentada por obediência formal ao princípio da obrigatoriedade. O princípio da indisponibilidade da ação penal não poderia nem pretende criar a figura de um acusador incansável – isso não seria compatível com as diretrizes humanistas do ordenamento jurídico brasileiro.

Não caberia, contudo, inferir desistência da ação penal de alegações finais em que o Ministério Público oficia pela absolvição porque, por exemplo, entendeu não configurado o crime de apropriação indébita inicialmente imputado, uma vez que a instrução comprovou que a hipótese constituía mero inadimplemento de contrato não-escrito de locação. Tampouco se poderia inferir desistência de manifestação final do Parquet que reconhece haver a instrução comprovado a materialidade de um crime contra o sistema financeiro, mas não a respectiva autoria, porque não foi possível identificar, na estrutura da instituição financeira, o autor das decisões criminógenas.

Essas situações lançam luz sobre o seguinte fato: quando o acusador relaxa a acusação por explícitas razões de direito material, amparadas nas provas dos autos, torna-se descabido falar em desistência da ação penal, cujo escopo é apenas processual. Se, pois, o argumento do Ministério Público é de direito material e tem amparo na prova, o princípio da indisponibilidade deixa de servir como obstáculo para a atribuição de eficácia vinculativa às alegações finais do acusador.

A natureza jurídica das alegações finais absolutórias será, então, a de uma modalidade específica e qualificada de renúncia à pretensão punitiva, propriedade ativa do jus puniendi (poder-dever de punir o criminoso) que não se confunde com o direito de ação penal (jus persequendi in judicio). O que especificaria e qualificaria essa modalidade de renúncia seria seu fundamento, que não derivaria de razões de conveniência, mas sim do reconhecimento, pelo acusador, da inviabilidade jurídica da pretensão punitiva: o Estado reconhece – diante da prova dos autos – que não tinha o direito de punir a quem acusa.

Cabe mais uma vez lembrar que o acusador terá, por força do princípio da obrigatoriedade, iniciado a ação penal no primeiro momento em que pôde formar a opinio delicti, um momento em que, possivelmente, o crime não estava provado, mas meramente indiciado.

A possibilidade jurídica de renúncia à pretensão punitiva pelo Ministério Público está claramente estabelecida em pelo menos duas situações processuais positivadas em nosso ordenamento: a promoção de arquivamento do inquérito policial pelo Chefe do Ministério Público com base no art. 43, I, do Código de Processo Penal (quando entende que o fato evidentemente não constitui crime) e a decisão do Ministério Público, pelo promotor natural do feito, de não interpor recurso de apelação de sentença absolutória, ainda que discorde dos respectivos fundamentos. A hipótese de reconstrução hermenêutica da eficácia jurídica das alegações finais absolutórias do Parquet com base na idéia de renúncia à pretensão punitiva não deve, portanto, causar estranheza, na medida em que o fundamento não é, em última análise, inédito.

A doutrina processual civil discute, com relevância para este trabalho, se, quando o autor da ação renúncia ao direito material (rectius: à pretensão que constitui sua propriedade ativa), o Juiz deve proferir sentença absolutória ou meramente homologatória da renúncia. Em qualquer hipótese, contudo, tratar-se-á de provimento de mérito, apto a impedir a renovação da demanda.

A sentença de mérito que puser fim ao processo penal em razão de renúncia ministerial in fine litis à pretensão punitiva, ainda que de teor homologatório, terá, por sua vez, efeito absolutório, com fundamento no dispositivo do art. 386 do Código de Processo Penal que houver sido invocado pelo Ministério Público em alegações finais, assim como a sentença homologatória da transação penal, cujo teor é a imposição consentida de sanção penal não-privativa de liberdade, tem efeito condenatório impróprio, segundo importante corrente jurisprudencial. O que de mais relevante para o acusado decorre dessa ordem de idéias é que, como se tratará de provimento de mérito, ficará obstruída a renovação da demanda pelo mesmo fato.

Tal exercício de reconstrução hermenêutica confere adequada densidade normativa ao princípio acusatório – que, como visto, não pode ser inteiramente destacado de nenhuma das vertentes do princípio dispositivo – no plano do desfecho do processo penal. Restaura, ademais, o equilíbrio institucional subjacente à relação jurídica processual: o Poder Judiciário retorna à posição de inércia que assegura sua efetiva imparcialidade; o Ministério Público recobra o controle das iniciativas de persecução no curso do processo; o acusado fica seguro contra nova investida do Estado pelo fato discutido no processo e desde logo pode confiar em sua absolvição, sem a vicissitude de experimentar a situação teratológica de se ver condenado em razão de imputação cujo próprio autor considerou improcedente.

Tal exercício revela, por fim, o espaço de conciliação do princípio acusatório com o favor rei: quanto maior a densidade normativa do princípio acusatório na estrutura da relação jurídica processual, mais oportunidades o acusado terá de ver-se livre da persecução estatal e maior será a distância psicológica e intelectual a separar o juiz do paradigma inquisitivo na marcha do processo.

A propósito do princípio do favor rei, a possibilidade jurídica de renúncia à pretensão punitiva in fine litis pelo Ministério Público decorre, em linha adicional, da projeção sobre a relação jurídica processual penal do princípio da igualdade, na vertente específica do tratamento desigual entre réus conforme seja privada ou pública a ação penal. O fulcro do argumento reside no art. 60, III, parte final, do Código de Processo Penal, que torna perempta a ação penal privada quando o querelante não formula (rectius: não reitera) o pedido condenatório nas alegações finais.

É cediço que as estruturas principiológicas da ação penal privada – desde que não subsidiária – e da ação penal pública são inteiramente diversas: as razões que levam o legislador a transferir para o ofendido o jus persequendi in judicio determinam que a hipótese seja regida pelas diretrizes da conveniência/oportunidade e da disponibilidade. O querelado não sai prejudicado com a perempção da ação penal privada porque o próprio Código Penal a considera causa de extinção de punibilidade (art. 107, IV), o que dá ao provimento que a reconhece natureza jurídica terminativa e, pois, o faz uma sentença de mérito.

Não escapa à observação, nessa ordem de idéias, que, pelo paradigma hermenêutico que tem por recepcionado pela Constituição de 1988 o art. 385, parte final, do Código de Processo Penal, a relação jurídica processual oferece conteúdo bastante mais amplo de garantia ao réu na ação penal privada do que na ação penal pública. O juiz simplesmente não pode, na ação penal privada, condenar o réu se o querelante – acusador privado, parcial, interessado – não reiterar o pedido condenatório nas alegações finais. Mas o mesmo juiz poderia, na ação penal pública, a prevalecer o entendimento pela constitucionalidade do referido dispositivo processual penal, condenar o réu mesmo que o Ministério Público – acusador estatal, profissional, imparcial – deixasse de reiterar, nas alegações finais, com fundamentação pertinente, a imputação inicial.

Como o princípio da verdade real sempre norteia o processo penal, a única explicação possível para essa diferença de tratamento do réu, que resulta de diferenças de estrutura principiológica das ações penais pública e privada, estaria na necessidade de controle de omissões indevidas do Ministério Público em seus deveres persecutórios. O atual perfil do Ministério Público no Brasil indica, contudo, que os controles administrativos e mesmo culturais de omissões persecutórias são suficientes – talvez o desafio mais premente esteja justamente em moderar a atuação persecutória de alguns membros do Parquet.

A desigualdade de tratamento de réus em ações penais públicas e privadas resulta, nessas condições, desproporcional em relação a seus fins normativos. Não deve, portanto, prosseguir m nosso ordenamento.

V (c) – DESFECHOS PROCESSUAIS ANÔMALOS À LUZ DA RECONSTRUÇÃO DA EFICÁCIA DAS ALEGAÇÕES FINAIS ABSOLUTÓRIAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O controle da omissão persecutória do Ministério Público

O juiz da causa poderá controlar possíveis abusos omissivos de parte do promotor natural por meio de aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal: se entender que o fundamento da renúncia ministerial à pretensão punitiva é juridicamente insubsistente ou não encontra amparo na prova, poderá provocar o Chefe do Ministério Público, para que confirme ou infirme as alegações finais absolutórias. É cediço, a propósito, que aquele dispositivo legal tem tido seu âmbito de aplicação estendido pela jurisprudência a situações processuais em que o promotor natural adota conduta que pareça omissão abusiva na perspectiva do juiz.

Remédio contra o acolhimento de imputação repudiada pelo Ministério Público

Se o art. 385, parte final, do Código de Processo Penal não foi recepcionado pela Constituição da República em razão do disposto em seu art. 129, I,a condenação do acusado a uma pena privativa de liberdade por acolhimento de imputação repudiada pelo Ministério Público em alegações finais constitui coação ilegal. Caberá, então, impetrar habeas corpus contra a sentença condenatória, com a provocação do controle de constitucionalidade na via difusa, sem prejuízo de possível apelação contra os fundamentos da sentença.

Se da sentença não resultar a imposição e pena privativa de liberdade, ainda assim caberá deduzir a questão constitucional no bojo do recurso de apelação.


VI – À GUISA DE CONCLUSÃO

O princípio acusatório goza, como norma estruturante do sistema processual penal, de superioridade democrática em relação à alternativa inquisitiva, pois concretiza, no âmbito da relação processual, a tripartição dos poderes e seus freios e contrapesos.

O Código de Processo Penal, embora declare, em sua Exposição de Motivos, preferência pelo princípio acusatório, adota, em verdade, sistema processual misto, com abertura tanto maior ao princípio inquisitivo quanto mais o procedimento esteja próximo do desfecho da relação processual.

O princípio acusatório não pode ser considerado, no plano da construção hermenêutica, estanque em relação aos princípios da demanda e dispositivo. Em perspectiva dialética, fica claro que medidas crescentes de esvaziamento, no âmbito da relação processual, do influxo normativo desses outros dois princípios acabam por obstruir a incidência do próprio princípio acusatório, que, nessa situação, vigeria apenas como diretriz formal da configuração subjetiva da relação processual.

A Constituição de 1988 conferiu densidade normativa ao princípio acusatório suficiente para determinar ao legislador ordinário a estruturação do processo penal brasileiro em conformidade material com esse princípio. A remissão da norma constitucional à forma da lei representa, nessas condições, mais uma abertura do texto constitucional à recepção do Código de Processo Penal, com a finalidade de evitar a anomia, do que uma moderação na eficácia do princípio acusatório como diretriz sistêmica para o processo penal pátrio.

A noção de que as alegações finais absolutórias do Ministério Público possam vincular o Poder Judiciário não necessariamente afronta a dogmática processual penal, desde que essa manifestação não seja interpretada como desistência da ação penal, e sim como renúncia ex post à pretensão punitiva, por reconhecimento fundamentado de sua inviabilidade jurídica. O princípio acusatório transporta essa interpretação do terreno do possível para o do imperativo e terá ensejado, por conseguinte, a não-recepção do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal.

O Poder Judiciário não ficará à mercê de renúncias abusivas de parte do promotor natural, pois poderá, por aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal, provocar as instâncias revisoras do Ministério Público. Do mesmo modo, o promotor natural poderá insurgir-se por meio de habeas corpus contra a condenação não lastreada em acusação, desde que imposta uma pena privativa de liberdade.


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Flávia de Almeida Conceição Miller


NOTAS

01 Ao menos na parte em que confere a uma única instituição a competência para a promoção da ação penal pública, reservada à lei a disciplina do desempenho daquela instituição nesse mister.

02 Nesses mesmos casos, a ação penal também podia ser iniciada por ato da própria autoridade policial, o que, contudo, não chegava a reforçar o princípio inquisitivo, na medida em que a atividade de polícia judiciária integra, em perspectiva teleológica, a persecução criminal e não é considerada imparcial.

03 Esses mecanismos de proteção institucional contra injunções externas atingiram seu paroxismo no Brasil: em nenhum outro país a independência da instituição acusatória é investida em cada um de seus membros aptos a postular em juízo.

04 A tendência essencialista do constitucionalismo norte-americano determinou, nos EUA, que os acusadores públicos de 45 do 50 estados sejam escolhidos em eleições diretas, como corolário da idéia de que esses agentes são representantes da sociedade perante o Poder Judiciário.

05 No que o exemplo estadual norte-americano deixa de emanar de essencialismo político para beirar o teratológico.

06 Não se trata de definir como necessariamente ascética ou positiva a atividade judicante – daí a ênfase na vertente intelectual em que o juiz deve lutar para expungir-se de pré-concepções. Não se exige do juiz que se dispa de seus valores e de sua circunstância, mas apenas que mantenha vigilância intelectual estrita sobre situações em que seus preconceitos – inevitáveis - tendam a manifestar-se.

07 São exemplos Portugal, Itália, França e Espanha.

08 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal.7ª edição. Rio de Janeiro: ed. Lumen Júris, 2003. p. 52.

09 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório.. Rio de Janeiro: ed. Lumen Júris, 2003. pp. 171/172.

10 Exceção digna de nota fica por conta de Paulo Rangel, a partir da 7ª Edição de seu compêndio Direito Processual Penal, Lumen Juris, Rio de Janeiro.

11 Dicionário Aurélio - Usar de argumentos falsos formulados de propósito para induzir em erro.

12 A exceção honrosa – e recente – fica por conta de Diaulas da Costa Ribeiro, que defende, com robustez teórica, a possibilidade juríica de delimitação da atividade jurisdicional no processo penal também pelo pedido, na hipótese de o Ministério Público pleitear quantum de pena mais reduzido do que o topo da escala penal cominada ao crime.

13 GRINOVER, Ada Pellegrini. A Marcha do Processo. Rio de Janeiro: ed. Forense Universitária, 2000. pp. 77/79.

14 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. Rio de Janeiro: ed. RT, 2003. p. 186.

15 PRADO, Geraldo. Sistema....pp. 118/121.

16 JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 5ª edição. Rio de Janeiro: ed. Forense. 1995. pp. 59/66.

17 O fundamento dessa característica do processo penal é encontradiço, por sua vez, no modo de ser do próprio Direito Penal, cujas normas penais incriminadoras estruturam-se como tipos fechados, em respeito ao princípio de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

18 Convém lembrar que a discussão gira em torno da aplicação do princípio dispositivo stricto sensu à ação penal pública. Como é cediço, a ação penal privada funciona com base em regras e premissas bastante distintas e comporta amplo espaço de incidência do princípio dispositivo em todas as suas vertentes.

19 Trata-se do princípio segundo o qual ninguém será submetido por duas vezes ao mesmo perigo de punição, o que permite ao Estado, no âmbito da persecução criminal, uma única oportunidade de tentar exercer o jus puniendi.

20 Esse direito pode ser excepcionado quando faltar uma das condições da ação penal, o que dará ensejo a seu trancamento. Trata-se, portanto, de um direito contra o Ministério Público, que o impede de tentar contornar o princípio da preclusão com a desistência de ação penal que haja proposto para, por exemplo, melhor organizar o conjunto probatório e, só então, voltar intentá-la.

21 Observe-se que a Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) prevê que a instituição se estrutura em torno de dois tipos de órgãos internos, os de execução e os de administração. A esse respeito, as Promotorias e Procuradorias de Justiça constituem órgãos de execução, inclusive quando exercem a função de custos legis.

22 Tratar-se-ia de disciplina antidemocrática da função acusatória, que não tem precedentes no direito comparado.

23 Forçaria o argumento falar, nessa situação, em verdadeiro processo.

24 A prova suficiente para a justa causa da ação penal nunca poderá, de resto, ser ex ante considerada suficiente para a condenação, mesmo que por razões mais ligadas à dogmática constitucional do processo penal – princípios do devido processo legal, contraditório e da ampla defesa – do que à análise probatória propriamente dita.

25 O constituinte originário também empregou o verbo promover para as demais hipóteses de legitimidade constitucional ativa do Ministério Público – inquérito civil público, ação civil pública e representação de inconstitucionalidade. Nesta última hipótese, contudo, seria mais correto o uso dos verbos intentar ou propor, pois a representação de inconstitucionalidade não exige acompanhamento ativo e influente como as outras duas espécies.

26 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. pps. 40/41.

27 HAMILTON,Sérgio Demoro. Temas de Processo Penal. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Júris, 2000. pps. 111/119.

28 JARDIM, Afrânio Silva. Direito........cap. 2

29 JARDIM, Afrânio Silva. Direito........cap.5



Informações sobre o texto

Texto apresentado como monografia de conclusão de curso de Direito, sob a orientação do professor Leandro Felipe Bueno.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MILLER, Flávia da Almeida Conceição. A densidade normativa do princípio acusatório na Constituição de 1988 e a condenação do réu sem acusação. Análise da conformidade constitucional do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 775, 17 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7162. Acesso em: 16 abr. 2024.