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Comentários sobre a nova Lei da Parceria Público-Privada

Comentários sobre a nova Lei da Parceria Público-Privada

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1-Introdução.

            Nem sempre a atuação do Estado no setor econômico foi considerada imprescindível para o desenvolvimento global estatal. No século XVIII, os maiores pensadores iluministas defenderam um modelo de Estado verdadeiramente abstencionista, inclusive em matéria econômica. A organização e atuação do setor produtivo eram orientadas pela "mão invisível" defendida por Adam Smith, ou seja, pelas forças naturais do mercado. Assim, os indivíduos podiam exercer com liberdade qualquer atividade econômica, visando exclusivamente o lucro e o próprio bem-estar, com a menor presença possível do Estado, de acordo com a expressão "laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même [01]".

            A crise do liberalismo decorreu do individualismo exacerbado, da atuação sem peias dos detentores de capital, da concentração da riqueza nas mãos desses representantes da burguesia, o que ocasionou para imensa massa da população, em especial, para os camponeses e proletariado, uma situação de miséria dantesca e intoleráveis sofrimentos. As leis naturais da economia e do mercado foram incapazes de resolver a distribuição de riqueza produzida, pelo menos em um nível suficiente para assegurar a todos uma existência digna.

            "A crise do Estado liberal transparecia do fato de que não conseguia atender às reivindicações sociais, especialmente da classe trabalhadora, nem garantir o pleno funcionamento do mercado" (TORRES, 1995, p.10).

            Nesse sentido, diante das pressões sociais e da necessidade de atuação do Estado no setor econômico, surgiu, no início do século XX, o Estado Social. Este modelo de Estado intervencionista preocupou-se em desenvolver políticas públicas ativas e prestações sociais positivas nas áreas de saúde, educação, previdência, emprego e assistência social. O Estado também passou a intensificar sua presença direta na economia, por meio da criação das empresas estatais e de vultosos investimentos na ampliação e modernização das inovações tecnológicas existentes nos mais diversos setores.

            "Assumindo amplamente o encargo de assegurar a prestação dos serviços fundamentais a todos indivíduos, o Estado vai ampliando sua esfera de ação. E a necessidade de controlar os recursos sociais e obter o máximo de proveito com o menor desperdício, para fazer face às emergências da guerra, leva a ação estatal a todos os campos da vida social, não havendo mais qualquer área interdita à intervenção do Estado" (DALLARI, 1991, p.237).

            Contudo, o modelo paternalista de Estado começa a entrar em crise. O crescimento desmesurado do Estado associado ao problema de falta de recursos públicos para financiar as ingerências estatais ocasionou, nos anos 80, o aparecimento do neoliberalismo. A idéia de redução do tamanho do Estado ou doutrina do Estado-mínimo, defendida pelos neoliberais, encontrou respaldo nas diretrizes da globalização econômica, tais como a livre movimentação de capitais por todos países, a quebra de barreiras comerciais e a eliminação de restrições a investimentos estrangeiros. No entendimento de Paulo Bonavides:

            "Globalização é um conceito sem referência a quaisquer valores, imposto ao mundo como estratégia de perpetuação do status quo de dominação pelos grupos econômicos supranacionais".

            No Brasil, as políticas neoliberais, que ocasionaram a reforma do Estado, foram implementadas no governo de Fernando Collor de Mello, mas as modificações mais significativas foram sentidas no governo de Fernando Henrique Cardoso, em especial com a adoção das Emendas Constitucionais nº 5, 6, 7, 8 e 9 de 1995.

            De uma maneira sistematizada, podemos identificar as três transformações estruturais existentes dentro do Estado brasileiro: extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro (revogação do artigo 171, modificação do artigo 176 e 178, da CF/88), flexibilização do monopólio das estatais (admitiu-se concessão de serviços de telecomunicação, de gás canalizado e petrolífero para empresas não estatais) e privatizações (programa de desestatização – Lei 9941/97).

            Nesse sentido, a reforma do Estado consolida a idéia de que a transferência da produção para o setor privado torna-a mais eficiente. Pretende-se que o Estado reduza seu papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se, entretanto, no papel de regulador, provedor ou promotor destes, tal como o preconizado pelo artigo 174 da CF/88 ("Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado").

            Assim, as parcerias público privadas surgem como marco regulatório de setores, uma nova modalidade de concessão, criadas com o objetivo de incentivar o investimento privado em obras públicas de infra-estrutura estratégica, mediante a garantia de retorno do capital investido ao parceiro privado, corrigindo as distorções provocadas com a ingerência direta do Estado no setor econômico.


2-Concessão da Lei 8.987/95.

            No Estado Moderno brasileiro, os serviços públicos podem ser prestados direta ou indiretamente. Na prestação direta ou centralizada, o serviço público é exercido diretamente pela Administração direta, sem transferência para terceiros. Verifica-se uma coincidência entre o titular de um serviço e a pessoa jurídica prestadora do serviço público.

            Contudo, na prestação indireta ou descentralizada, o serviço público é transferido para terceiros, de dentro ou de fora da Administração, podendo ser feita por outorga ou por delegação. Na descentralização por outorga ocorre a transferência da titularidade e da execução do serviço público, por lei, a terceiros de dentro da Administração, como ocorre com as entidades da Administração indireta. Na descentralização por delegação, ao contrário, há transferência apenas da execução do serviço público, por contrato ou ato, a terceiros de fora da Administração (particular), o que se dá com as concessionárias, permissionárias e autorizatárias de serviços públicos.

            "Los servicios públicos son pilares sobre los que asientan las sociedades modernas. Los transportes, las telecomunicaciones, los suministros de energía y agua, la educación y la asistencia sanitaria – junto a las infraestructuras que les sirven de suporte – son prestaciones indispensables para el normal desenvolvimiento de los individuos en la comunidad" (ROJAS, 1993, p.23).

            Com a Reforma do Estado, a Lei 8987/95 passa a regulamentar o regime de concessão de serviço público para empresas particulares, com previsão das modalidades concessão de serviço público e concessão de serviço precedida de obra pública, estabelecendo as normas gerais a serem respeitadas pelos demais entes federativos, tal como exigido pelo artigo 175, caput, da Constituição Federal ("Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos").

            Na concessão de serviço público ou concessão comum, a Administração direta, denominada Poder concedente, transfere, mediante contrato administrativo, a prestação de um determinado serviço público, para empresa privada, denominada de concessionária, que passa a ser remunerada exclusivamente mediante a cobrança de tarifa do usuário do serviço público, conforme o artigo 2º, inciso I, da Lei 8987/95. Significa dizer que na concessão comum, a empresa privada investe e depois recupera seu investimento com a cobrança de tarifas dos usuários dos serviços públicos prestados.

            "Concessão de serviço público é espécie de contrato administrativo por meio do qual o Poder Público concedente, sempre precedido de licitação, salvo as exceções legais, transfere o exercício de determinados serviços ao concessionário, pessoa jurídica privada, para que os execute em seu nome, por conta e risco" (FIGUEIREDO, Lúcia Valle, p.91).

            O artigo 2º, inciso III da Lei 8987/95 também prevê a concessão de serviço precedida de execução de obra pública, em que o Poder concedente delega, inicialmente, a construção (total ou parcial), conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de obra pública para pessoa jurídica ou consórcio de empresas, por conta e risco do concessionário, de forma que o seu investimento seja remunerado e amortizado mediante a exploração da obra pública por prazo determinado.

            Note-se que o principal objetivo da Administração é a execução da obra pública, o que não descaracteriza, em sua essência, a concessão realizada, permanecendo como de serviço público. Nesse sentido, o concessionário fica primeiro obrigado a construir, conservar, reformar, ampliar ou melhorar determinada obra pública para, em seguida, explorá-la, a fim de obter a amortização de seu investimento.


3-Concessão da Lei 11.079/04.

            Pode-se considerar a parceria público privada como nova modalidade de concessão, pois o artigo 2º da Lei 11.079/04 prevê as concessões patrocinada e administrativa ("Parceria Público Privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa").

            Na concessão patrocinada, a Administração direta transfere, mediante contrato, a prestação do serviço público para empresa particular, tal como ocorre na concessão comum, porém esta recupera seu investimento de duas maneiras, mediante a cobrança de tarifas dos usuários e através de uma contraprestação pecuniária da Administração. Em outras palavras, o Estado complementa a remuneração da concessionária através de uma contraprestação pecuniária ao parceiro privado.

            A contraprestação pecuniária, novidade nas parcerias, consiste no financiamento público do investimento realizado pelo parceiro privado, que somente ocorrerá após a prestação do serviço ou a realização da obra pública. Administração, portanto, assume a responsabilidade de repartir o risco do investimento com o parceiro privado, porém dentro do limite máximo de 1% de sua receita líquida. Isso ocorre como forma de controlar as despesas públicas, no sentido de evitar qualquer ofensa à lei de responsabilidade fiscal.

            Para garantia do cumprimento da contraprestação pecuniária, os parceiros privados têm direito ao denominado fundo de garantia, formado por recurso orçamentário, bens da União e títulos da dívida pública ou com o financiamento do BNDES ou outra instituição financeira federal. O fundo de garantia é indispensável para atrair os investimentos privados, pois garante que sejam cumpridos os compromissos financeiros do governo para com seus parceiros, reduzindo, assim, os riscos dos investimentos.

            A concessão patrocinada será muito utilizada nos setores de prestação de serviços ou construção de obras públicas, em que a concessionária não é suficientemente remunerada pelo usuário, como ocorre com a ampliação de rodovias de baixo movimento.

            Na concessão administrativa, ipso facto, há um mero contrato de prestação de serviço, em que a Administração é a usuária direta ou indireta. Na verdade, a concessão administrativa não se refere a um contrato de concessão, porque na concessão comum há uma relação jurídica triangular, estabelecida entre o poder concedente, a concessionária e usuário e na concessão administrativa, ao contrário, há uma relação jurídica apenas entre usuário e o parceiro particular. Inclusive, na concessão comum, a concessionária tem seu investimento amortizado mediante a cobrança de tarifas de seus usuários e na concessão administrativa, o parceiro privado tem seu investimento amortizado mediante a contraprestação pecuniária da própria Administração.

            Adotar-se-á a concessão administrativa na construção e administração de obras públicas, como hospitais, presídios públicos e escolas públicas, que não envolve a contraprestação do usuário, apenas do Estado.

            Importante ressaltar que as concessões patrocinadas e concessões administrativas apenas serão utilizadas para contratações acima de R$20 milhões e dentro do prazo mínimo de cinco anos e máximo de trinta e cinco anos, nele incluído o período de prorrogação. Significa dizer que se o valor do contrato for menor, aplica-se a lei de concessão de serviços públicos (Lei 8987/95), pois a lei de parceria público privada (Lei 11.079/04) não a revogou.


4-Conclusão.

            Quando o inglês Charles Dickens escreveu o romance "A Tale of Two Cities", iniciou com a seguinte frase: "Era o melhor dos tempos. Era o pior dos tempos". Embora distante dos momentos heróicos da Revolução Francesa, reproduzidos com entusiasmo na obra, os novos tempos de parcerias provocam o mesmo sentimento antagônico. Afinal, trata-se da idade da sabedoria ou da tolice, da estação da luz ou das trevas, a primavera da esperança ou inverno do desespero, o tudo ou nada?

            Neste momento de reforma do Estado, a parceria público privada representa a alternativa para substituir o modelo anacrônico do serviço público, realizado diretamente pelo Estado, na medida em que busca incentivar o investimento privado nas obras de infra-estrutura setorial, com a garantia de repartição objetiva dos riscos entre a Administração e o parceiro privado, que ocorrerá através do oferecimento de uma contraprestação pecuniária.

            Na busca de uma resposta positiva ao "conto" do Estado Moderno, o sucesso da implementação dos projetos de parcerias público privadas, definitivamente, dependerá do escorreito planejamento da atividade econômica nacional, que deverá ser realizado com a necessária segurança jurídica, com detalhamento das cláusulas do contrato de concessão e com a prestação de serviço público eficiente, no sentido de garantir um crescimento econômico sustentável e um desenvolvimento social real, para satisfação dos interesses públicos primários.


5-Referências Bibliográficas.

            DICKENS, Charles. A Tale of Two Cities. England: Longman, 1947.

            MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 9ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

            MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

            MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004.

            PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 1999.

            ROJAS, Francisco José Villar. Privatización de Servicios Públicos. Madrid: Tecnos, 1993.

            SOTO KLOSS, Eduardo. La contratación administrativa: um retorno a las fuentes clásicas del contrato, Revista de administración pública. Madri, 1978. v.2.

            TOJAL, Sebastião de Barros. Controle Judicial da Atividade Normativa das Agências Reguladoras. In: MORAES. Alexandre de (Org). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 154.

            TORRES, Ricardo Lobo. O Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995.


Nota

            01 Significa deixai fazer, deixar passar, o mundo caminha por si só.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GABRIEL, Ivana Mussi. Comentários sobre a nova Lei da Parceria Público-Privada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 782, 24 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7185. Acesso em: 19 abr. 2024.