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Coisa julgada inconstitucional

Coisa julgada inconstitucional

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A noção que temos sobre a coisa julgada não deve mais ser tida como sacramento intangível, pois os atos jurisdicionais, assim como todos os atos proferidos pelo Poder Público, encontram-se subordinados ao princípio da constitucionalidade.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO * 2 CONCEPÇÃO DA COISA JULGADA * 2.1. Conceito * 2.2.Limites objetivos e subjetivos da coisa julgada * 3.O FENÔMENO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL * 3.1.O que diz a doutrina * 4 FUNDAMENTOS PARA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA * 5PRINCÍPIOS * 5.1 O Princípio da Segurança Jurídica versus Ideal de Justiça * 6A DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA * 7DIVAGAÇÕES, EXEMPLIFICAÇÕES E CONCLUSÕES SOBRE O TEMA * 8 CONCLUSÃO FINAL * REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 6CONCLUSÃO


1.Introdução:

            A necessidade de segurança jurídica tem-se demonstrado um dos principais vetores da história do Direito. O fenômeno da institucionalização do Direito e das sociedades políticas revelou-se, desde os primórdios, como conquistas dos povos na busca pela limitação dos poderes e dos conseqüentes abusos no seu exercício.

            Assim, devido a incessante necessidade, surge o Princípio da Segurança Jurídica, como forma de garantir a cidadania e os direitos fundamentais da pessoa humana.

            Provavelmente não exista, no mundo jurídico, instituto tão intimamente relacionado à temática da segurança quanto o da coisa julgada. Sendo o Poder Judiciário a última via da qual se socorrem os indivíduos para a solução de seus dissídios, a prestação jurisdicional, diferentemente da atuação do legislador e do administrador, dota-se da qualidade fundamental da definitividade, de forma a por fim às discussões relativas à titularidade ou existência de direitos e obrigações. Dessa forma, é exatamente esta definitividade que, juntamente com a substituição das partes, peculiariza a função jurisdicional, segundo as clássicas lições que pregam os mais renomados processualistas.

            O fenômeno da coisa julgada é a abstração para o mundo dos fatos do salutar Princípio da Segurança Jurídica, que, com tamanha importância para a organização e pacificação da sociedade, foi consagrado no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República de 1988, que assim giza: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

            Baseando-se neste princípio, a pretexto de garantir a segurança e certezas nas relações jurídicas, os ordenamentos em geral, e como exemplo, o ordenamento jurídico de nosso País, não admitem a livre revogação ou alteração do que restou decidido com força de coisa julgada. No Brasil, após o trânsito em julgado da decisão que dirimiu o conflito julgando o mérito da causa, forma-se a coisa julgada, tornando aquela decisão e seus efeitos imunes a ataques, sendo vedada a reapreciação da causa, salvo nas raras hipóteses taxativamente previstas na lei processual civil ou penal em que se admite a rescindibilidade através de ações de impugnações específicas, como a Ação Rescisória e a Revisão Criminal. Esta especial estabilidade adquirida pelos atos jurisdicionais consolidou-se de tal maneira em nossa cultura jurídica que se tornou corrente em doutrina a afirmação de que nem mesmo a injustiça de uma decisão é motivo suficiente para justificar sua revisão ou, ainda, na assertiva de que o direito admite contradições lógicas. Todavia, recentemente tem-se questionado cada vez mais incisivos quanto ao valor e ao alcance do referido princípio nas relações jurídicas e da garantia da coisa julgada. Tal questionamento visa a demonstrar que nenhum dos dois traduz um valor absoluto, pois devem conviver com valores outros, também de estatura constitucional, de primeira importância no ordenamento, dentre eles o Princípio da CONSTITUCIONALIDADE e o da JUSTIÇA DAS DECISÕES JUDICIÁRIAS.

            A noção que temos sobre a coisa julgada não deve mais ser tida como sacramento intangível, pois os atos jurisdicionais, assim como todos os atos proferidos pelo Poder Público, encontram-se subordinados ao Princípio da Constitucionalidade, não prevalecendo mais a tese de que o Poder Judiciário, por ser mero reprodutor da vontade da Lei, seja incapaz de cometer atos eivados por INCONSTITUCIONALIDADES. Dessa forma, a decisão judicial que não atende aos princípios constitucionais é ATO INVÁLIDO.

            Enquanto tradicionalmente desenvolveram-se inúmeros instrumentos de controle dos atos normativos, sempre que se fala em decisão judicial, tem-se a falsa impressão de que o seu controle de constitucionalidade, em nosso direito, somente é possível enquanto não operada a coisa julgada, através do Recurso Extraordinário ou, ainda, através da via rescisória e desde que no prazo preclusivo previsto em lei. Tal concepção levaria, entretanto, a admitir-se que a coisa julgada poderia sobrepor-se à própria Constituição, de modo que aos juízes caberia, em última instância e com exclusividade, definir o que é a Constituição, estando seus atos imunizados da mácula da INCONSTITUCIONALIDADE, noção esta não concebível em um sistema onde vige o Princípio da Supremacia Constitucional.

            Feitas estas considerações, pretendo demonstrar soluções para o problema, buscando, nos mais renomados doutrinadores e estudiosos do direito, uma forma eficaz de relativizar e impugnar decisões judiciais eivadas pelo vício da insconstitucionalidade.


2.Concepção da coisa julgada.

            2.1. Conceito

            O art. 467 do Código de Processo Civil confere à coisa julgada a qualidade de fenômeno que resulta em imutabilidade relativa da decisão de mérito, não sendo possível interposição de recurso à situação jurídica objeto da demanda.

            A sentença, qualificada pela coisa julgada, semente poderá ser atacada via embargos do executado e pela via da Ação Rescisória, ambas ações de impugnação autônomas, cuja expiração do prazo decadencial implica na imutabilidade absoluta.

            A coisa julgada não é efeito da sentença, e sim, uma qualidade que a torna imutável. Ela pode ser "formal", que é a imutabilidade da sentença dentro do processo em que se deu, ou "material", que é a decisão que, enfrentando a questão de mérito, não é passível de ser impugnada por mais nenhum recurso ou o prazo para o aforamento de recursos se expira.

            2.2.Limites objetivos e subjetivos da coisa julgada.

            A res iudicata possui limites que estão fixados no dispositivo da sentença. Esses limites podem ser de ordem objetiva e subjetiva.

            Serão limites objetivos da coisa julgada a abrangência que o decisum teve em relação às questões decidida pelo prolator, assim consideradas aquelas referidas no dispositivo, decididas na motivação ou mesmo na fundamentação, desde que nestas últimas duas haja prolação de teor decisório.

            Os limites de ordem subjetiva se dão somente quanto às partes que integraram a relação jurídica processual. Vale lembrar que o Professor Cândido Rangel Dinamarco enfatiza que os limites subjetivos da coisa julgada se dão no PROCESSO, eis que este é o resultado da soma de "uma relação jurídica processual e de um procedimento".

            Ressalte-se que a coisa julgada pode vir a repercutir na esfera de índole material de terceiros que não fizeram parte desta relação jurídica, como, por exemplo, os credores das partes, como avalizados, como afiançados, como co-avalistas, terceiros com iguais direitos, mesmos pedidos e mesmos fundamentos.

            O que valerá para todos é a eficácia natural da sentença, que é denominada de eficácia erga omnes, valendo, entre as partes que integraram a relação jurídica processual, é a coisa julgada.

            Em casos excepcionais, pode haver a extensão da coisa julgada a quem não integrou a relação jurídica processual, dada a posição especial ocupada no plano das relações de direito material e de sua natureza. Entre esses casos, podem ser destacados: a situação dos sucessores das partes, que estão sujeitos à coisa julgada pelo fato de receberem direito e ações no estado de coisa julgada; o do substituído, no caso de substituição processual, em que o substituto é a parte, mas o direto material é do substituído, o qual tem sua relação jurídica decidida com força de coisa julgada; o dos legitimados concorrentes para demandar, no caso dos credores solidários.

            A coisa julgada pode e deve ser argüída em preliminar de contestação e leva à extinção do processo sem o julgamento do mérito.


3.O fenômeno da coisa julgada inconstitucional.

            A coisa julgada inconstitucional é um fenômeno que pouco foi estudado no Direito pátrio. A maior preocupação dos doutrinadores é na análise da coisa julgada sobre o aspecto da sua imutabilidade e sob o princípio da segurança jurídica.

            3.1 O que diz a doutrina.

            Paulo Otero, ilustre jurista português, na década de 90, já manifestava sua preocupação com o tema, destacando o esquecimento dos estudiosos do direito na abordagem da coisa julgada inconstitucional, conforme preleciona:

            "As questões da validade constitucional dos atos do poder judicial forma objeto de esquecimento quase total, apenas justificando a persistência do mito liberal que configura o juiz como "a boca que pronuncia as palavras da lei" e o poder judicial como "invisível e nulo" (Montesquieu)".

            Humberto Theodoro Júnior, preocupado com o esquecimento pela doutrina do fenômeno da coisa julgada inconstitucional, em brilhante e pioneiro artigo dispõe:

            "Com efeito, institucionalizou-se o mito da impermeabilidade das decisões judiciais, isto é, de sua imunidade a ataques, ainda que agasalhassem inconstitucionalidade, especialmente, após operada a coisa julgada e ultrapassado nos variados ordenamentos, o prazo para a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal Estado de Direito. Consagra-se, assim, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, visto, durante vários anos, como dotado de caráter absoluto.

            Tal é o resultado da idéia, data vênia equivocada e largamente difundida, de que o Poder Judiciário se limita a executar a lei, sendo, desta, defensor máximo dos direitos e garantias assegurados na própria Constituição. É em face do prestígio alcançado pelo postulado retro que conforme assinala Vieira de Andrade, "embora os tribunais formem um dos poderes do Estado, não há em princípio preocupação de instituir garantias contra as suas decisões"".

            O fenômeno em estudo pode ser verificado de várias formas na decisão já passada em julgado e revestida de imutabilidade. É possível destacar as decisões que ferem os princípios da legalidade, da moralidade e que são atentatórias ao texto expresso da constituição Federal. O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, José Delgado, cita algumas hipóteses:

            "Podem ser consideradas como sentenças injustas, ofensivas aos princípios da legalidade e da moralidade e atentatórias à Constituição, por exemplo, as seguintes: (...) a ofensiva à soberania estatal; a violadora dos princípios guardadores da dignidade humana (...) que obrigue a alguém a fazer alguma coisa ou deixar de fazer, de modo contrário à lei; (...)".

            Interessante forma de incidência da coisa julgada inconstitucional, ainda pouco estudada, se dá quando há uma decisão judicial transitada em julgada e que não é passível de ser impugnada por mais nenhum recurso, com base em uma lei em plena vigência (eivada pela presunção de constitucionalidade das Leis) que é, posteriormente, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (seja pelo controle de constitucionalidade concentrado, via de Ação Direta, seja pelo controle de constitucionalidade difuso, via de exceção, com efeitos inter partes e que é ratificado pelo Senado Federal, através do disposto no art. 52, X, da Constituição Federal).

            Vale ressaltar que a declaração de inconstitucionalidade possui, em regra, eficácia erga omnes em relação a todas as pessoas e produz efeitos ex tunc, ou seja, retroage no tempo, indo até a vigência da lei objeto da referida declaração.

            Os processualistas Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, indagaram o seguinte: "havendo certa decisão sobre a qual pese a autoridade da coisa julgada, decidida com base em lei que posteriormente seja tida como inconstitucional pelo controle concentrado, pelo STF, estar-se-ia diante de sentença viciada?"

            A resposta a esta indagação parece simples, mas implica em inevitável choque entre direitos e garantias constitucionalmente assegurados. Pois, de um lado deparamos com o PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA e de outro da JUSTIÇA DAS DECISÕES, que é imbuído pela necessidade de uma decisão judicial ser lastreada e baseada em uma Lei constitucionalmente válida.


4.Fundamentos para relativização da coisa julgada

            A imutabilidade da coisa julgada é o primeiro problema a ser enfrentado, pois, para a doutrina majoritária nacional, é ainda imbuída de caráter absoluto. O jurista Paulo Otero, analisando este tema, inicia sua lição pelos aspectos históricos, senão vejamos:

            "na primeira fase do direito português, não se poderia falar em coisa julgada inconstitucional, até porque o controle de constitucionalidade sobre atos administrativos ou legislativos ainda não existiam."

            Seguindo, adiciona:

            "Somente o antigo direito português, dizia-se expressamente que o monarca estava sobre a lei, daí que, " (...) somente ao Príncipe, que não conhece Superior, é outorgado por direito, que julgue segundo sua consciência, não curando de alegações, ou provas em contrário feitas pelas partes (...), acrescentando-se que "(...) o Rei é Lei animada sobre a terra, e pode fazer Lei, revoga-la, quando vir que convém fazer-se assim".

            Assim, demonstrou o referido autor português haver atos judiciais inexistentes e atos judiciais que são inconstitucionais, distinguindo: "salientando que as meras aparências de actos judiciais não são reduzíveis ao conceito de inconstitucionalidade, antes se afirmam como casos de inexistência jurídico". E, finalizando esta idéia: "apenas as decisões judiciais com o mínimo de indentificabilidade são passíveis de um juízo de inconstitucionalidade".

            A teoria de Paulo Otero sobre o caso julgado inconstitucional, ele afirma que o que tem gerado a ocorrência do fenômeno da coisa julgada inconstitucional é a falta de garantia de fiscalização das atividades produzidas pelo Poder Judiciário:

            "os actos políticos encontram sempre, ou quase sempre, mecanismos também políticos de controle, estejam eles na Assembléia da República, no Presidente da República ou no próprio eleitorado; pelo contrário, os actos jurisdicionais inconstitucionais carecem de qualquer garantia de controle de sua validade".

            Quanto a eficácia da coisa julgada consolidada com base em norma que é posteriormente declarada inconstitucional, o citado jurista apresenta uma valiosa lição:

            "a eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral deveria, em bom rigor, determinar também a destruição dos casos julgados fundados em normas desconformes com a constituição e agora formalmente banidas da ordem jurídica".

            A doutrina nacional, arrimada no posicionamento de Paulo Otero, aqui representada por Carlos Valder do Nascimento, analisa o tema, apresentando a necessidade de relativização da coisa julgada, precipuamente, quando esta ofende a Constituição, senão vejamos:

            "Sendo certo que as decisões jurisdicionais configuram atos jurídicos estatais posto reproduzir a manifestação da vontade do Estado, sua validade pressupõe estejam elas em consonância com os ditames constitucionais. Por esse motivo, não se pode convalidar sua inconstitucionalidade, visto ser improvável abrir mão de mecanismos susceptíveis de permitir a efetivação de modificações imprescindíveis ao seu ajustamento aos cânones do direito constitucional".

            Posteriormente, o mesmo autor acrescenta que "o Poder Judiciário não detém a soberania e, como tal, não pode se justificar o mito da intangibilidade da função jurisdicional, enquanto manifestação do exercício da atividade estatal".

            O Professor Cândido Rangel Dinamarco, sobre o tema, assim discorre:

            "a doutrina e os tribunais começam a despertar para a necessidade de repensar a garantia constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização das incertezas".

            Este autor apresenta a forma como a problemática é tratada no direito norte-americano, demonstrando que a destruição da coisa julgada ofensiva aos princípios constitucionalmente garantidos é facilmente conjugada com sua sistemática processual. O direito processual norte-americano tem maior proximidade com o Direito Romano antigo que com o germânico. No Brasil, a sistemática processual sobre a imutabilidade da coisa julgada é ligada ao Direito germânico, conforme assevera Pontes de Miranda:

            "sendo sabido que é deste que nos advêm as regras mais rígidas de estabilização das decisões judiciárias em razão da coisa julgada, como a da mais absoluta eficácia preclusiva desta em relação ao deduzido e ao dedutível e como a regra geral e integral sanatória de eventuais nulidades da sentença".

            Ensina Humberto Theodoro Júnior, em artigo conjunto com Juliana Cordeiro de Faria, citando Paulo Otero:

            "admitir, resignado, a insindicabilidade de decisões judiciais inconstitucionais seria conferir aos tribunais um poder absurdo e exclusivo de definir o sentido normativo da constituição: constituição não seria o direito aplicado nos tribunais, segundo resultasse de decisão definitiva e irrecorrível do Juiz".

            O constitucionalista luso Jorge Miranda nos dá uma importante lição: "o princípio da intangibilidade do caso julgado não é um princípio absoluto, devendo ser conjugado com outros e podendo sofrer restrições. Ele tem de ser percebido no contexto global".

            Não se deve eternizar uma decisão contrária aos preceitos constitucionais ao argumento de que, mesmo que seja inconstitucional, deverá prevalecer tão somente em atenção ao princípio da imutabilidade da coisa julgada, previsto no Código de Processo Civil.


5.PRINCÍPIOS.

            5.1. O Princípio da Segurança Jurídica versus o Ideal de Justiça.

            É fundamento do estado democrático de direito a segurança e estabilização das relações jurídicas por meio da imutabilidade das decisões judiciais (coisa julgada). O princípio da Segurança Jurídica tem como escopo a garantia dos direitos regularmente constituídos, que já integram a esfera patrimonial do titular da tutela judicial garantida.

            O Princípio da Segurança das relações jurídicas não pode ser visto de forma absoluta. Não é possível conceber a eternização da coisa julgada contrária à Constituição Federal, ao único argumento de que a desconstituição das decisões fundadas em Lei declarada inconstitucional vem de encontro com o referido princípio. A Segurança Jurídica, todavia, está consagrada pela Constituição Federal no art. 5º, inciso XXXXVI: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Carlos Valder do Nascimento, sobre o tema, explicita:

            "Havendo simetria entre a segurança e a justiça na perspectiva lógica da aplicação do direito, o conflito que se procura estabelecer é de mera aparência. De fato, inadmissível a segurança servir de plano de fundo para impedir a impugnação da coisa julgada, imutável, imodificável e absoluta, na percepção dos processualistas mais conservadora. Mas torna-se necessário enfrentar tais resistências, desmistificando a idéia de superação do Estado de Direito pelo Poder Judiciário".

            O Ministro José Delgado, reforçando este entendimento, enfatiza:

            "não protege a sentença judicial, mesmo transitada em julgado, que bate de frente com os princípios da moralidade e da legalidade, que espelhe única e exclusivamente vontade pessoal do julgador e que vá de encontro à realidade dos fatos".

            O já referido autor Carlos Valder do Nascimento, dispondo sobre a coisa julgada inconstitucional, demonstra a harmonia entre a sua desconstituição e o princípio da segurança jurídica, com clara possibilidade de integração dos dois institutos, em consonância com a Carta Magna:

            "Demais disso, o acatamento da coisa julgada, corolário da segurança jurídica, não é colocado em cheque pela probabilidade de uma pretensão de nulidade contra o julgamento violador de preceito constitucional. Primeiro, porque seu alcance sofre limitações no seu aspecto subjetivo, com a possibilidade de manuseio da rescisória, para desconstituição do julgado. Segundo, porque presente, nesses casos, os pressupostos da relatividade inerentes à natureza das coisas. De fato, inexiste a pretensa impermeabilidade que deseja se atribuir às decisões emanadas dos Poder Judiciário.

            Tentem, os que assim pensam, travestir a coisa julgada da argamassa de intocabilidade, tentando revelar sua faceta de cunho absoluto dentro do cenário da principiologia lastreada no constitucionalismo. Distante desse panorama, toda iniciativa objetivando reverter essa situação não tem merecido o devido acolhimento pelos regratários a qualquer esforço renovador, visando ao aperfeiçoamento da sistemática até então adotada. Apesar de tudo, a mudança há de impor-se, com a remoção dos óbices que impedem ou limitam seu avanço".

             No sentido da harmonização entre a segurança jurídica e a coisa julgada eivada de inconstitucionalidade, igualmente ensina Cândido Rangel Dinamarco:

            "A coisa julgada material, a forma e as preclusões em geral incluem-se entre os institutos com que o sistema processual busca a estabilidade das decisões e, através dela, a segurança nas relações jurídicas. Escuso-me pelo tom didático com que expus certos conceitos elementares referentes a esses institutos; assim fiz, com a intenção de apresentar a base sistemática dos raciocínios que virão, onde porei em destaque e criticarei alguns tradicionais exageros responsáveis por uma exacerbação de valor da coisa julgada e das preclusões, a dano do indispensável equilíbrio com que devem ser tratadas as duas exigências contrastantes do processo. O objetivo do estudo é demonstrar que o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluta no sistema, nem o é portanto a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciais, constitucionalmente prometido mediante a garantia do acesso à justiça (Constituição Federal, art. 5°, inciso XXXV)".

            Esta posição também foi aceita pela Egrégia Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça em voto condutor proferido pelo Ministro José Delgado, que filiou-se à "posição doutrinária no sentido de não reconhecer caráter absoluto à coisa julgada". Acrescentou, ainda, que "a corrente que entende ser impossível a coisa julgada, só pelo fundamento de impor segurança jurídica, sobrepõe-se aos princípios da moralidade pública e da razoabilidade nas obrigações assumidas pelo Estado".

            Ainda sobre o entendimento de Cândido Rangel Dinamarco sobre relativização da segurança jurídica, impõe destacar:

            "Não há uma garantia sequer, nem mesmo a da coisa julgada, que conduza invariavelmente e de modo absoluto à renegação das demais ou dos valores que elas representam. Afirmar o valor da segurança jurídica (ou certeza) não pode implicar desprezo ao da unidade federativa, ao da dignidade humana e intangibilidade do corpo etc. É imperioso equilibrar com harmonia as duas exigências divergentes, transigindo razoavelmente quanto a certos valores em nome da segurança jurídica mas abrindo-se mão desta sempre que sua prevalência seja capaz de sacrificar o insacrificável.

            Nesta perspectiva metodológica e levando em conta as impossibilidades jurídico-constitucionais acima consideradas, conclui-se que é inconstitucional a leitura clássica da garantia da coisa julgada, ou seja, sua leitura com a crença de que ela fosse algo absoluto e, como era hábito dizer, capaz de fazer do preto branco e do quadrado redondo. A irrecorribilidade daqueles resultados substanciais política ou socialmente ilegítimos, que a Constituição repudia. Daí a propriedade e a legitimidade sistemática da locução, aparentemente paradoxal, coisa julgada inconstitucional".

            Isto posto, tem-se que a segurança jurídica não deve ser vislumbrada como fonte de se eternizar injustiças, mas como um instrumento pelo qual seja possível defender-se de decisões judiciais que ferem a Carta Maior. Desta forma, deve ser observada sobre um prisma maior: a própria garantia do Estado democrático de direito que busca a efetiva garantia dos preceitos constitucionais, mesmo que para isto haja que lançar mão da imutabilidade da coisa julgada. A segurança jurídica deve, então, ser manejada como mais uma forma de se evitar a coisa julgada inconstitucional, fazendo prevalecer os demais valores que ela representa.


6.A desconstituição da coisa julgada.

            A maior preocupação da doutrina baseia-se na forma pela qual deve ser desconstituída a coisa julgada inconstitucional. Neste aspecto, existem entendimentos diversificados sobre quais instrumentos jurídicos devem ser manejados para a busca da referida desconstituição.

            De início, vale ressaltar que a matéria ainda demanda grandiosos estudos pela doutrina e de soluções pela jurisprudência, acerca do caminho mais adequado para se atingir a certeza de que as decisões judiciais de desconstituição da coisa julgada inconstitucional não feririam a sistemática processual e constitucional do Brasil.

            Os juristas Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Medina apresentam em sua obra a primeira solução (que não lhes pertence) para a desconstituição: a ação rescisória. Neste sentido, a sentença gera efeitos e é plenamente válida, sendo a rescisória o único remédio no caso de declaração posterior da inconstitucionalidade. "São dessa opinião Accioly Filho, Lúcio Bittencout e Alfredo Buzaid, que afirmam expressamente serem rescindíveis as sentenças proferidas com base em lei que, posteriormente, venha a ser declarada inconstitucional".

            Apesar de citarem o supracitado posicionamento, Teresa Wambier e José Medina discordam dos eminentes juristas e lecionam:

            "Portanto, segundo o que nos parece, seria rigorosamente desnecessária a propositura da ação rescisória, já que a decisão que seria alvo de impugnação seria unicamente inexistente, pois que baseada em ‘lei’ que não é lei (‘lei’inexistente). Portanto, em nosso entender a parte interessada deveria, sem necessidade de se submeter ao prazo do art. 495 do CPC, intentar ação de natureza declaratória, com o único objetivo de gerar maior grau de segurança jurídica à sua situação. O interesse de agir, em casos como esse, nasceria, não da necessidade, mas da utilidade da obtenção de uma decisão neste sentido, que tornaria indiscutível o assunto, sobre o qual passaria a pesar a autoridade de coisa julgada.

            O fundamento para a ação declaratória de inexistência seria a ausência de uma das condições da ação: a possibilidade jurídica do pedido. Para nós, a possibilidade de impugnação de sentenças de mérito proferidas apesar de ausentes as condições da ação não fica adstrita ao prazo do artigo 495 do CPC".

            Sendo assim, segundo a posição de Teresa Wambier e José Medina, a sentença fundada em uma lei, que posteriormente foi declarada inconstitucional, em sede de controle de constitucionalidade, é sentença inexistente, podendo ser impugnada a qualquer tempo, por meio de ação declaratória de inexistência de coisa julgada, pois a ela não se aplica o prazo preclusivo, previsto no artigo 495 do Código de Processo Civil.

            A síntese do pensamento dos autores acima é fundada no fato de faltar no processo a causa de pedir, pois esta se funda em uma norma, e não existindo a norma, por ter sido esta extraída do mundo jurídico, deve-se o Poder Judiciário garantir a eficácia ex tunc, de todas as conseqüências da norma tida como inconstitucional, em sede de controle de constitucionalidade, de forma a garantir o estado das relações jurídico-sociais anterior à vigência da norma. Neste termos, estaria em plena harmonia com a Constituição, defendendo o perfeito funcionamento do Estado Democrático de Direito, por meio do amplo acesso à justiça, determinado pelo artigo 5, Inciso XXXV.

            A inexistência da sentença sem fundamentação é afastada por Humberto Theodoro, seguindo o pensamento de Amaral Santos, já citado no presente estudo onde ensina:

            "que a falta de relatório e motivação provocam a nulidade da sentença, por se tratar de requisitos essenciais do ato decisório. Mas acrescenta o mestre, é o dispositivo ou conclusão da sentença que reside o comando que caracteriza o ato judicial em tela. Por isso, mais do que nula, sentença sem dispositivo é ato inexistente – deixou de haver sentença."

            Diante disso, observa-se que, se estamos diante de uma sentença, já acobertada com o manto da coisa julgada, consolidada com base em uma lei, que no momento do trânsito em julgado da decisão era vigente, esta decisão encontra-se em plena harmonia com o que prevê o artigo 458 do Código de Processo Civil.

            Posteriormente, vem o Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta de inconstitucionalidade, e declarar inconstitucional a lei na qual se fundou a sentença; estamos aí diante de uma sentença que não preenche os requisitos do artigo 458 do Código de Processo Civil, pois como já apresentado, em regra, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade são ex tunc, ou seja, retroativos, portando estamos diante de uma nulidade absoluta da sentença, conforme pensam Humberto Theodoro e Amaral Santos, na citação apresentada.

            Partindo de uma análise fria dos preceitos processuais que regem a ação rescisória e coisa julgada, podemos achar que a coisa julgada inconstitucional tem uma aparência de coisa julgada e que sua desconstituição deve-se dar por intermédio da ação rescisória, com base no inciso V, artigo 585 do Código de Processo Civil. O que não é verdade, pois esta coisa julgada inconstitucional encontra-se contaminada com um vício absoluto, ou seja uma nulidade absoluta, primeiro por não ter a decisão um de seus requisitos, a fundamentação e segundo por estar de encontro com a Constituição; neste sentido é grandiosa a lição apontada por Paulo Otero:

            "Admitir solução contrária, significaria reconhecer a autovinculação dos tribunais de um Estado de Direito democrático a actos inconstitucionais e a ausência de uma tutela processual eficaz contra as inconstitucionalidades do poder judicial".

            Não se pode olvidar que a coisa julgada inconstitucional é nula e atacada não por ação rescisória, mas por ação declaratória de nulidade da decisão, a chamada querela nullitati; neste sentido, ensina Carlos Valder Nascimento:

            "Não há como, pelo que se infere do exposto, convalidar sentença nula, notadamente contaminada pelo vício de inconstitucionalidade que não se subordina sua desconstituição ao manejo da rescisória. De fato, essa é a regra que prevalece no direito brasileiro, o que possibilita a reconhecer-se a ação de impugnação autonôma, tanto que a de incidentes de embargos à execução."

            Sobre a nulidade da coisa julgada inconstitucional e de sua desconstituição por meio da ação autônoma de querela nullitatis acrescenta Carlos Valder que:

            "A querela nullitatis foi concebida com o escopo de atacar a imutabilidade da sentença convertida em res iudicata, sob o fundamento, consoante Moacyr Amaral Santos, de achar-se contaminada de vícios que a inquinasse de nulidade, visando a um indicium rescinders. Este, uma vez obtido, ficava o querelante na situação de poder colher uma nova decisão sobre o mérito da causa. A decisão judicial impugnada de injustiça desse modo, posta contra expressa disposição constitucional, não pode prevalecer. Neste caso, configurando o julgado nulo de pleno direito, tem cabimento de ação própria no sentido de promover sua modificação, com vistas a restaurar o direito ofendido. Contradiz a lógica do ordenamento jurídico a sentença que, indo de encontro a Constituição, prejudica uma das partes da relação jurídico-processual.

            São por conseguintes, passíveis de ser desconstituídas as sentenças que põem termo ao processo, por ter decidido o mérito da demanda, enquadrando-se também, na hipótese, os acórdãos dos tribunais. Isso se persegue mediante ação autônoma que engendra uma prestação jurisdicional resolutória da sentença hostilizava, [sic], cujo efeitos objetiva desconstituir. Nisso é que reside sua razão fundamental: anulação de sentença de mérito que fez coisa julgada inconstitucional."

            Neste sentido, acrescentam Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro:

            "A decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. Destarte pode "a qualquer tempo ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução" (STJ, Resp 7.556/RO, 3 T., Re. Ministro Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439)".

            Ademais, vem sendo aceito pela jurisprudência pátria a ação rescisória para a desconstituição da coisa julgada inconstitucional; entretanto, não se pode ver essa aceitação como um valor absoluto, mais como uma aplicação do princípio da economia processual, uma vez que as nulidades absolutas podem ser reconhecidas de ofício pelo julgador e ser impugnadas a qualquer tempo. Também não implica de igual modo a observância do prazo de dois anos para sua impugnação (art. 495 do Código de Processo Civil).

            Dessa forma, ensinam Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro, com base na doutrina de Paulo Otero:

            "Deste modo a admissão da ação rescisória não significa a sujeição da declaração de inconstitucionalidade de coisa julgada ao prazo decadencial de dois anos, a exemplo do que se dá com a coisa julgada que contempla alguma nulidade absoluta, como é o exemplo o vício de citação".

            Mais adiante acrescentam ainda que:

            "Nada obstante e porque as nulidades podem ser decretáveis até mesmo de ofício, como é a hipótese da inconstitucionalidade, a eleição da via rescisória, ainda que inadequada, para a argüição da coisa julgada inconstitucional não importa na impossibilidade de conhecer-se do vício. O que se deve ter em mente é o fato de que a admissibilidade da rescisória, nesta hipótese, é medida extraordinária diante da gravidade do vício contido na sentença.

            Os Tribunais, com efeito, não podem se furtar de, até mesmo de ofício, reconhecer a inconstitucionalidade da coisa julgada o que pode se dar a qualquer tempo, seja em ação rescisória (não sujeita a prazo), em ação declaratória de nulidade ou em embargos à execução.

            A inconstitucionalidade direta da coisa julgada afasta o seu efeito positivo, de modo que ‘intentada uma ação que tenha como fundamento do pedido uma anterior decisão judicial transitada em julgado, o juiz só terá de decidir o novo pedido em conformidade com o caso julgado se este for conforme com a Constituição".

            Consumados assim a nulidade da coisa julgada inconstitucional e o cabimento da querela nullitatis, uma outra hipótese é a da desconstituição por meio do manejo dos Embargos à Execução, onde o fundamento encontra respaldo na inexigibilidade do título judicial, por ser o mesmo eivado de nulidade absoluta, previsto no artigo 741, II do Código de Processo Civil.

            Esta hipótese de desconstituição recentemente foi convalidada com a edição da medida provisória n. 2.180-35/2001, que acrescentou o parágrafo único ao artigo 741 do Código de Processo Civil, que apresenta a seguinte redação:

            "Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal".

            Com isso se convalida a tese de que a coisa julgada inconstitucional é nula na medida em que o legislador já decretou a inexigibilidade do título fundado em coisa julgada com base em lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

            Concluem, finalmente Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro que:

            "Dúvida não mais pode subsistir que a coisa julgada inconstitucional não se convalida, sendo nula e, portanto, o seu reconhecimento independe de ação rescisória e pode se verificar a qualquer tempo e em qualquer processo, inclusive na ação incidental de embargos à execução".

            Neste diapasão temos que a coisa julgada, com base em lei declarada inconstitucional, é nula de pleno direito. É que não está restrita ao manejo da ação rescisória e tampouco se submete ao prazo de dois anos para sua impugnação. Podendo ser desconstituída então a qualquer tempo, quer por ação autônoma, declaratória de nulidade da coisa julgada (querela nullitatis), quer em sede de embargos à execução.


7.Divagações, exemplificações e conclusões sobre o tema.

            O Código de Processo Civil adotou, quanto à Coisa Julgada, a doutrina de Enrico Túlio Liebman, sendo a coisa julgada uma qualidade que se ajunta à sentença bem como aos seus efeitos para torná-los imutáveis. Imunes a ataques processuais.

            O fundamento da coisa julgada é o princípio da estabilidade das relações jurídicas, ou seja, o princípio da Segurança Jurídica.

            A Coisa Julgada seria um "divisor de águas" entre os ideais de Justiça e de Segurança Jurídica, sendo o ideal de Justiça aquilo que o Estado diz ser, suum cuique tribuere, "dar a cada um o que é seu". O juiz deve empregar todos os meios necessários para descobrir a verdade. Há um interesse público em proferir uma decisão justa ao caso concreto. A doutrina moderna defende que no Processo Civil vige o Princípio da Verdade Real, conforme sustentam José Carlos Barbosa Moreira e Luiz Rodrigues Wambier. Sendo corolário deste paradigma o dever e não só poder de o juiz produzir provas de ofício. Seria, sim, uma forma de mitigação das regras de distribuição dos ônus da prova, mas para bem chegar ao ideal de JUSTIÇA.

            Quanto à Segurança das relações jurídicas a sua estabilidade é uma necessidade inerente à vida dos homens. É o compromisso do Estado em proteger a justiça dada ao caso concreto.

            Deste ideal exsurge a indagação doravante feita: Será que a segurança das relações jurídicas deve prevalecer mesmo se descobrirmos que a coisa julgada está eivada por erro?

            Como já foi exaustivamente discorrido, coisa julgada é a imutabilidade da decisão final.

            Ela pode ser FORMAL: que é restrita ao processo em que se deu. Podemos exemplificar pelo seguinte caso: O juiz intima o Autor a suprir um vício ou irregularidade de representação com base no art. 13 do CPC. O Autor não supre. Assim, o juiz extingue o processo sem julgamento do mérito com base no art. 267, IV, do CPC. Há coisa julgada. O Autor pode propor nova Ação com o mesmo fundamento. A coisa julgada formal não impede que o objeto possa ser discutido em outro processo. Ela é formada endoprocessualmente. Esta nova Ação deve ser proposta no mesmo juízo em que houve a coisa julgada formal. O objetivo é evitar que o Autor escolha o juiz, violando, assim, o princípio do juiz natural.

            Como pode ser MATERIAL: consistente na proteção máxima. A partir do momento em que se julga o mérito, o Estado-Juiz descobre quem tem razão, não podendo mais discutir a matéria. A justiça do cãs concreto já foi analisada, não podendo ser novamente discutida. Se após o julgamento de mérito há uma nova ação com as mesmas partes, pedido e causa de pedir, o juiz extingue o processo com base no art. 267, V, CPC, sem análise do mérito.

            Fazem coisa julgada material: a) sentenças de primeiro grau que enfrentam o mérito e transitam em julgado; b) acórdãos dos tribunais; c) decisões monocráticas do relator; d) decisão que antecipa os efeitos da tutela quanto à parte incontroversa da demanda.

            Quanto à relativização da Coisa Julgada verificamos no transcorrer do exposto que é a ponderação ou "choque" entre os princípios da segurança das relações jurídicas com o ideal e princípio da justiça das decisões.

            O jurista Alexandre Freitas Câmara diz que a coisa julgada é uma garantia constitucional, seja pelo disposto no art. 5º "caput", seja pelo art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal.

            Na realidade, não existe uma garantia constitucional absoluta, pois, em havendo choque entre interesses igualmente protegidos pela Constituição Federal, o que o intérprete ou operador do Direito deve fazer é uma PONDERAÇÃO DE INTERESSES CONSTITUCIONAIS. Vários princípios constitucionais justificam a relativização da coisa julgada, como o princípio da igualdade, dignidade da pessoa humana, etc.

            A Lei admite, expressamente, uma forma de relativizar a coisa julgada, que é a AÇÃO RESCISÓRIA. Esta Ação visa desconstituir a coisa julgada, sendo uma exceção ao princípio da segurança das relações jurídicas. O prazo para o aforamento desta Ação é de 2 (dois) anos e as hipóteses de cabimento são números clausus previstas no art. 475 do CPC.

            A doutrina nomeia como sendo COISA SOBERANAMENTE JULGADA a decisão em que não cabe mais AÇÃO RESCISÓRIA, seja pelo decurso do prazo para seu aforamento ou seja pela sua improcedência. José Frederico Marques, em interessante passagem, diz: "é quando o quadrado se torna redondo, faz aquilo que é não ser".

            A doutrina defende, além da Ação Rescisória, uma outra forma de relativização da coisa julgada, que é a chamada ACTIO QUERELLA NULITATIS ou Ação Declaratória de Inexistência Jurídica.

            Não haverá coisa julgada se durante o processo houve um vício tão grave que tem o condão de maculá-lo de tal forma que gera uma total inexistência. Neste caso pode até haver coisa julgada "de fato", mas nunca "de direito".

            A falta de um dos pressupostos processuais de existência, como a petição inicial, jurisdição e citação, há de acarretar a inexistência jurídica.

            Interessante é o exemplo dado por Egar Muniz de Aragão:

            "Autor, usando de um ardil, consegue evitar a citação do Réu. O juiz decreta revelia. Posteriormente há o julgamento procedente do mérito e forma-se a coisa julgada. Passados 3 (três) anos da formação da coisa julgada o Autor promove a Execução da Sentença. O Réu, agora Executado, é citado. Não pode ele argüir por Ação Rescisória a falta de citação por ter transcorrido o prazo de 2 anos, mas por haver nulidade de pleno iure, que jamais convalesce, sendo inexistente a própria coisa julgada, o que implica em pensar nem ser cabível a Ação Rescisória, que visa desconstituir a coisa julgada. Neste caso, a única forma de argüir este aberrante vício de inexistência é a ACTIO QUERELLA NULITATIS, que não tem prazo prescricional e a competência para apreciá-la é do mesmo juízo prolator da sentença. Poderá, também, ser utilizado, pelo Executado, com base no inciso I, do art. 741, do CPC, a via dos Embargos, em que alegará tal vício de citação, mas este tem o condão de desconstituir a coisa julgada "de fato" e não a coisa julgada "de direito", pois se é a sentença do processo de conhecimento que está maculada, mácula maior terá o processo de execução".

            Retornando ao cerne da questão proposta, foi visto que os atos oriundos do Poder Legislativo, que são inconstitucionais, devem ser controlados, pelo Poder Judiciário, através de seu órgão de cúpula, Supremo Tribunal Federal, por via da Ação Direta de Inconstitucionalidade; Ação Declaratória de Constitucionalidade; Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e pela via de exceção, através do Recurso Extraordinário, com posterior suspensão da Lei pelo Senado Federal. Vale ressaltar que não podem existir atos dos poderes constituídos que afrontem o poder constituinte.

            Não há uma unanimidade na doutrina no que tange aos casos em que há uma coisa julgada inconstitucional, mas há alguns casos que são coincidentes entre os autores que defendem a relativização. São exemplos mais comuns: a) decisões judiciais que ofendem o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal; b) sentença que viola o princípio da isonomia; c) sentença que viola a livre manifestação do pensamento; d) sentença que restringe o direito de resposta.

            Para Alexandre Freitas Câmara, qualquer meio é hábil para relativizar a coisa julgada inconstitucional. Isso gera um risco muito grande às relações jurídicas, pois os exemplos acima citados pelos autores contêm um âmbito de abrangência enorme.

            Interessante questão é o encontrado nas ações que versem sobre direito de família, com enfoque maior na investigação de paternidade. O exame de DNA é quase que uma prova obrigatória nas ações de investigação e negatória de paternidade. A evolução de uma prova técnica não implica na relativização da coisa julgada. Assim, as ações investigatórias de paternidade julgadas antes da existência do exame de DNA não podem ser impugnadas por AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE, ao argumento de que a coisa julgada existente seria infratora ao princípio da verdade real. Nestes casos, a segurança jurídica prevalece sobre a existência de novos meios de prova cabais a um juízo de certeza.

            Para Teresa Arruda Alvim Wambier, a ciência vai sempre evoluir e isso geraria uma contínua insegurança jurídica. Sendo assim, se o Poder Judiciário já descobriu a sua verdade (quanto a paternidade), não pode ser relativizada a coisa julgada.

            Porém, face a este argumento da renomada jurista, proponho-me discordar, eis que, realizando uma ponderação de interesses entre o Princípio da Segurança das Relações Jurídicas consubstanciado na coisa julgada e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana consubstanciado no direito indisponível e imprescritível de saber sobre a paternidade, creio este último suplantar o primeiro, eis que se há meios de se descobrir a verdadeira paternidade, não há justiça inviabilizar tal conhecimento com supedâneo na alegação de uma coisa julgada.

            Outra questão tormentosa é a que se dá nas Ações Civis Públicas propostas contra empresa, onde o objeto alegado é o dano ambiental. Pode ser que, em determinada época, a perícia realizada, constate que o material utilizado pela empresa não seja poluente, não agrida o meio ambiente, dando ensejo à improcedência da ação. Porém, anos mais tarde, depois de formada a coisa julgada e passado o prazo para o aforamento da Ação Rescisória, a ciência evolui, desenvolve novas técnicas para verificação do potencial danoso daquele material. Realizada, então, uma nova perícia, conclui-se que tal material é realmente danoso ao meio ambiente. Qual será a solução para este caso? Relativizar a coisa julgada?

            O douto jurista Hugo Nigro Mazzili entende que deve haver a relativização da coisa julgada por ser inconstitucional a violação ao direito difuso de ter um meio ambiente saudável, ferindo um objetivo fundamental da República, que é promover o bem estar de todos, conforme consta do art. 3º, inciso IV, da Carta Magna.

            A coisa julgada não pode servir como escudo protetor para as empresas continuarem a poluir, degradando o meio ambiente. Assim, o meio cabível seria a Ação Anulatória de Coisa Julgada Inconstitucional ou uma outra Ação Civil Pública com base em fatos novos.


8.Conclusão final.

            Por tudo o que foi exposto, a relativização da coisa julgada inconstitucional se torna, caso a caso, impositiva. Não é admissível, em um Estado Democrático de Direito, que um princípio constitucional se sobreponha a outro, mesmo que este último, seja de forma tangencial, como o é o Princípio da Segurança Jurídica versus o Princípio e ideal de Justiça, do qual emergem a dignidade da pessoa humana, boa-fé, constitucionalidade das leis, isonomia, enfim, qualquer direito ou garantia fundamental que colida com a máxima da coisa julgada.

            Assim, defendo a utilização da Actio Querela Nullitatis, para, mesmo durante o prazo para aforamento de uma Ação Rescisória, Embargos do Executado ou até Objeção de Pré-executividade, reconhecer a inconstitucionalidade daquela coisa julgada e assim, consequentemente, desconstituí-la, tudo a bem do tão nobre e salutar ideal de JUSTIÇA!


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            Wambier, Teresa Arruda Alvim. Medina, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipótese de relativização. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. Pág. 42.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRADO, Rodrigo Murad do. Coisa julgada inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 791, 2 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7233. Acesso em: 26 abr. 2024.