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Concepções de infância ao longo da história e a evolução jurídica do direito da criança

Concepções de infância ao longo da história e a evolução jurídica do direito da criança

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O direito da criança evoluiu ao longo do tempo visto que, nos dias atuais, construir uma sociedade mais justa e igualitária significa tratar dos direitos de todos os cidadãos, inclusive, da criança e do adolescente.

Resumo: O direito da criança evoluiu ao longo do tempo visto que, nos dias atuais, construir uma sociedade mais justa e igualitária significa tratar dos direitos de todos os cidadãos, inclusive, da criança e do adolescente que também são considerados pela atual Constituição Brasileira, como sujeitos de direito. A problemática consiste em averiguar se essa evolução dos direitos possibilitou, de fato, maior proteção para as crianças, especialmente por parte da família e da sociedade. Os objetivos do artigo são: analisar os conceitos de criança e os seus contextos sociais e familiares; descrever as concepções de infância no cenário histórico brasileiro – a desproteção e a evolução dos seus direitos; conhecer a legislação de proteção à infância da doutrina da Situação Irregular até a doutrina de Proteção Integral; discorrer sobre a concepção de infância na atualidade em consonância com a Constituição Federal do Brasil e Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90).

Palavras-chave: Direito da Criança; Concepções de Infância; Doutrina da Proteção Integral.


INTRODUÇÃO

Analisar a concepção de infância e a evolução jurídica do direito da criança ao longo da história remete há alguns anos atrás, quando a preocupação dos governantes era unicamente inibir a delinquência infantil, principalmente dos menores de classes pobres, como forma de proteger a sociedade. Não havia lei para proteger a criança.

Percebe-se, entretanto, que houve evolução, principalmente acerca do entendimento histórico e doutrinário da infância e também quanto aos seus direitos no âmbito jurídico.

É no sentido, de avaliar essa evolução que o presente estudo apresenta uma retrospectiva histórica e evolutiva acerca da ausência de direitos da criança até a sua configuração no momento histórico presente, buscando traçar um paralelo com as concepções de infância ao longo do tempo.

O estudo apresenta como problema, averiguar se, essa evolução dos direitos possibilitou, de fato, maior proteção para as crianças, especialmente por parte da família e da sociedade.

O artigo tem como objetivos analisar os conceitos de criança e os seus contextos sociais e familiares; descrever as concepções de infância no cenário histórico brasileiro - a desproteção e a evolução dos seus direitos; conhecer a legislação de proteção à infância da doutrina da Situação Irregular até a doutrina de Proteção Integral; discorrer sobre a concepção de infância na atualidade em consonância com a Constituição Federal do Brasil e Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90).

A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo foi a pesquisa bibliográfica, qualitativa e de natureza descritiva, realizada através da leitura de livros, revistas, periódicos, artigos e dissertações que tratam acerca do tema objeto do estudo.

A escolha deste tema se justifica por duas razões. Primeira, devido a aproximação com o contexto escolar, o trabalho realizado com crianças, o encantamento com as leituras acerca da infância. A segunda razão, é devido o interesse de pesquisar os diversos tratamentos de descaso à criança ao longo dos anos, passando pelas doutrinas da Situação Irregular e da Proteção Integral até o reconhecimento da criança como sujeito de direito.

Por descrever ao mesmo tempo o entendimento histórico e doutrinário sobre as concepções de infância e a evolução dos direitos da criança no contexto jurídico nacional, trata-se de um estudo relevante para os acadêmicos do Direito e das demais áreas do conhecimento, bem como para os profissionais que atuam ou pretendem atuar na área do Juizado da Infância e da Adolescência.

O artigo está dividido em quatro itens. No primeiro são apresentados os conceitos de criança e seus contextos sociais e familiares.

O segundo trata acerca das concepções de infância – a desproteção e a evolução histórica do direito da criança;

No terceiro item descreve-se a legislação de proteção à infância da doutrina da Situação Irregular até a doutrina de Proteção Integral;

O quarto e último item discorre sobre a concepção de infância na atualidade em consonância com a Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90).

Ao final deste, são apresentadas as considerações finais acerca do estudo e as referências.


1. Criança – Conceitos, Contextos Sociais e Familiares

Os estudos acerca da infância e o direito da criança é um tema relativamente novo, principalmente quando se considera que, desde a Antiguidade e durante muitas décadas, elas não tiveram nenhum tipo de proteção.

Para Carvalho (2010), o modo de tratar a criança ao longo do tempo se modificou e continua em processo de transformação de acordo com a sociedade que a mesma está inserida. Pode-se verificar historicamente, que o espaço no âmbito familiar e social que hoje ela ocupa, a tem valorizado um pouco mais a cada dia. Na sociedade atual, a criança ocupa um espaço bastante expressivo. Ela é sujeito de direito, é reconhecida na sua peculiar condição de ser humano em processo de desenvolvimento e tem liberdade para comunicar pensamentos, exigir, questionar.

As crianças, nos dias atuais, possuem um mercado próprio para consumo, leis específicas, espaços próprios e ciências que se debruçam sobre a infância. O encantamento das ciências, principalmente das Ciências Sociais, colaborou para que o conceito de infância sofresse alterações significativas ao longo da história.

Compreender o que foram esses conceitos, analisar a infância do ponto de vista histórico, pode revelar bastante sobre a sua atual concepção.

A concepção de infância que temos hoje foi construída ao longo do tempo. Conforme Belloni (2009), a mudança de visão sobre infância, no começo do século XX, pode ser vista dentro de duas concepções, ligadas aos significados das expressões da palavra: a primeira relacionada ao passado, ligada ao termo infante como aquele que está impossibilitado de fa­lar, aquele que não tem voz; e, posteriormente, uma concepção mais con­temporânea, sendo infante-criança aquele que está sendo criado, com voz e par­ticipação.

Este cenário no qual valoriza-se a criança, porém, não faz parte da realidade infantil desde os tempos remotos. Percorreu-se um longo caminho para que a mesma fosse valorizada, deixando de “ser objeto” e passando a “ser sujeito” de direito, sendo-lhe assegurado o direito de ter suas necessidades - físicas, cognitivas, psicológicas, emocionais e sociais - atendidas de forma integral e integrada, ficando a família, o Estado e a sociedade incumbidos desse dever.

Belloni (2009), comenta que a concepção de infância estava diretamente ligada ao fato de que as crianças eram percebidas como adultos imperfeitos, não como seres humanos em desenvolvimento. Dessa forma, essa fase da vida humana tinha pouco interesse de ser conhecida. Séculos mais tarde, surgiria um sentimento de que as crianças são especiais e diferentes dos adultos, e, portanto, merecedoras de serem estudadas por si sós.

Considerando o homem como um ser social, o conceito de infância também é determinado socialmente, isto é, está intimamente relacionado à maneira como o homem produz seu modo de existência e se organiza em sociedade. Desde modo, a infância pode ser tratada enquanto uma categoria social e historicamente construída.

Para conceituar criança, a Convenção sobre os Direitos da Criança (aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas-ONU, em 1989) afirma “criança são todas as pessoas menores de dezoito anos de idade”. Já para o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), criança é considerada a pessoa até os doze anos incompletos, enquanto entre os doze e dezoito anos, idade da maioridade civil, encontra-se a adolescência.

Etimologicamente, a palavra infância vem do latim, infantia, e refere-se ao indivíduo que ainda não é capaz de falar.

A infância é definida, por Schultz e Barros (2011), como a fase compreendida entre o nascimento e a puberdade, possui modos específicos de sentimentos, ações e compor­tamentos que devem ser compreendidos de maneira a se respeitar as diferentes culturas de determinado tempo e espaço, relacionan­do-se, ainda, com a troca de conhecimentos que se estabelecem entre crianças, adoles­centes e adultos.

Os conceitos apresentados mostram que a idade define a condição conceitual de infância e adolescência. A partir de 12 anos deixam de ser crianças e passam a ser adolescentes, após os 18 anos já são consideradas como pessoas jovens ou adultas.

No entendimento de Dias (2009), crianças e adolescentes são pessoas que se encontram em pleno desenvolvimento físico e mental, portanto, ambos são indivíduos que precisam receber cuidados de pessoas adultas.

Acredita-se, assim, que a primeira e mais significativa relação social que a criança estabelece é travada na família. As crianças nascem no seio familiar e cabe aos pais cuidarem delas até que se tornem capazes.

Dias (2009) explica que, fazer parte de uma família favorece à criança noções de segurança, poder, autoridade, hierarquia, além de lhe permitir aprender habilidades diversas, tais como: falar, organizar seus pensamentos, distinguir o que pode e o que não pode fazer, adaptar-se às diferentes circunstâncias, flexibilizar, negociar, seguindo as normas da sua família.

O autor a seguir, também conceitua da seguinte maneira

A família funciona como o primeiro e mais importante agente socializador, sendo assim, é o primeiro contexto no qual se desenvolvem padrões de socialização em que a criança constrói o seu modelo de aprendiz e se relaciona com todo o conhecimento adquirido durante sua experiência de vida primária e que vai se refletir na sua vida escolar. O contato com outros companheiros também contribui, entre tantas outras coisas, para que o aluno se acostume à rotina escolar, passando a ter interesse pelos objetos, atividades e conhecimentos escolares - isto favorece o seu desenvolvimento pessoal e intelectual (CARVALHO, 2010, p. 41).

Dessa forma, é inegável a relevância da família nos anos iniciais da vida humana, sendo assegurado no capítulo III, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito à convivência familiar e comunitária.

O mencionado Estatuto prevê ainda, no caput do artigo 4°, que

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, a profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL/ECA, 1990).

Assim, a família é a primeira responsável, a sociedade é a segunda responsável - ambas possuem responsabilidade conjunta e solidária - e o Estado é o terceiro responsável por assegurar a efetivação dos direitos acima mencionados, este último possuindo responsabilidade subsidiária. Nem sempre o formato familiar descrito funcionou (e funciona) tão perfeitamente.


2. Concepções de Infância – A desproteção e a evolução dos direitos

Para uma concepção mais ampla acerca da infância, é importante conhecer os tipos de tratamentos a que as crianças eram submetidas e a evolução jurídica dos seus direitos.

De acordo com Azambuja (2016, p. 83), “exemplos históricos de desproteção jurídica à criança são encontrados desde a Antiguidade, entre os povos egípcios e mesopotâmios, romanos, gregos, medievais e europeus”.

Para esses povos as crianças não mereciam nenhum tipo de proteção, na verdade, nunca houve nenhum tipo de proteção, era como se não existissem.

Barros (2005, p. 71) comenta que, no Oriente Médio, o Código de Hamurabi que prevaleceu de 1728 a 1686 a.C. o artigo 193 “previa o corte da língua do filho que ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram seus pais, e, a extração dos seus olhos se aspirasse voltar à casa dos pais biológicos”; o artigo 195 “caso o filho batesse no pai, sua mão era decepada”.

Por outro lado, o mesmo código em seu artigo 154, dizia que: se um homem abusasse sexualmente de sua própria filha, a pena máxima era a sua expulsão da cidade. Ou seja, a punição das crianças era muito severa e cruel enquanto a dos adultos era amena.

Ainda no contexto da desproteção,

Em Roma (449 a.C.) a Lei das XII Tábuas - 1º permitia ao pai matar o filho que nascesse disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos; 2º o pai tinha legítimo o direito de vida e de morte sobre os filhos, inclusive para vende-los. Em Roma e também na Grécia antiga, o pai como chefe da família, podia castigar, condenar e expulsar a mulher e os filhos, visto que não possuíam nenhum tipo de direito. Em Esparta, as crianças doentes ou portadoras de malformações congênitas eram sacrificadas, pois, desde cedo serviam para atender interesses políticos, sendo selecionadas, pelo porte físico, para ser guerreiros, ou seja, eram objeto de direito estatal (AZAMBUJA, 2016, P. 56).

Muito pior que o homem ser supervalorizado pelas sociedades antigas onde prevalecia o império machista com seu paternalismo, é a total falta de compaixão, o total descaso para com as crianças e principalmente a perversidade para com as portadoras de deficiência, que não tinham sequer direito à vida.

Vanuchi (2010, p. 52), cita outra situação relevante de sacrifício dos infantes, no reinado do paganismo, quando “Herodes, rei da Judeia mandou executar todas as crianças menores de dois anos, na tentativa de atingir Jesus Cristo, conhecido como rei dos judeus”.

A história antiga mostra o triste cenário da convivência das crianças com os seus pais que também eram os seus opressores e agressores permanentes.

A ótica atual sobre a infância é consequência das constantes transformações pelas quais passamos, sendo assim, é de suma importância nos darmos conta destas transformações para compreendermos o cenário que se faz presente.

Até o século XII, o índice de mortalidade infantil era muito alto devido precárias condições de higiene e saúde. Desse modo, havia nos períodos medievais uma insensível postura dos pais com relação aos filhos. Conforme Heywood (2004), “os bebês abaixo de dois anos, em particular, sofriam um descaso assustador, pois, os pais consideravam pouco aconselhável investir muito tempo ou esforço em um pobre animal suspirante, que tinha tantas probabilidades de morrer com pouca idade”.

As crianças que conseguiam sobreviver com as precárias condições e descaso não possuíam identidade própria, apenas vindo a tê-la quando conseguissem realizar atividade semelhantes àquelas feitas pelos adultos, com as quais estavam misturadas.

O tratamento social dado à criança era semelhante ao do adulto. Ser criança era viver um breve período de vida, pois logo se misturavam com os de mais idade.

Nesse sentido, o autor complementa

Adultos, jovens e crianças se misturavam em toda atividade social, ou seja, nos divertimentos, no exercício das profissões e tarefas diárias, no domínio das armas, nas festas, cultos e rituais. O cerimonial dessas celebrações não fazia muita questão em distinguir claramente as crianças dos jovens e estes dos adultos. Até porque esses grupos sociais estavam pouco claros em suas diferenciações (ÁRIES, 1981, p.156).

Não havia nessa época, atividades, objetos, vestimentas ou leis próprias para a infância. As crianças cedo entravam no universo adulto e não dependiam tanto dos seus pais. Eles sim precisavam de seus filhos, pois quanto maior o número de filhos mais pessoas teriam para trabalhar.

De acordo com Áries (1981), nas famílias pobres havia uma preocupação desde cedo para a criança trabalhar nas lavouras ou serviços domésticos. Já as crianças que pertenciam às famílias nobres aprendiam as artes de guerra ou os ofícios eclesiásticos.

A particularidade do mundo infantil que distingue a criança do adulto não existia. Igualmente não havia a percepção de que a criança precisava de cuidados e de pessoas para zelar por sua integridade.

Como explica Áries (1981), nos séculos XIV, XV e XVI, as crianças eram vistas como um adulto em miniatura. Ainda nos remetendo à situação de fome, miséria e a falta de saneamento básico pelas quais as pessoas da Idade Média viviam, a morte de uma criança não era recebida com tanta comoção. Rapidamente a tristeza passava, e aquela criança era substituída por outro recém-nascido para cumprir sua função já pré-estabelecida.

Constata-se, portanto, que a afeição pela infância, o sentimento de proteção do ser vulnerável não era inerente à época.

O mencionado autor, ainda tratando do sentimento com relação à criança, afirma que,

As pessoas se divertiam com a criança pequena como um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato. A infância foi ignorada socialmente e isso é perceptível nas Artes, pois, até o século XII, não houve sequer a tentativa de representá-la. Não há crianças caracterizadas até o final do século XVIII, por sua expressão peculiar (ÁRIES, 1981, p.10).

Dessa forma, esses indivíduos permaneceram no anonimato durante um longo período histórico que compreende a Antiguidade até a Idade Média. Num percurso histórico, o conceito de infância foi sofrendo modificações. No século XVI, ocorreram mudanças nas concepções referentes à criança e a infância. Do século XVI para o XVII, na Europa, começam a perceber a criança como um ser diferente do adulto. Surge o que diversos autores denominaram um sentimento de infância. Sentimento esse a princípio distorcido, uma vez que as crianças eram vistas como objeto lúdico dos adultos.

Houve uma época, por volta do século XVII, segundo Júnior (2012), que as crianças foram tratadas como o centro das atenções e tinham permissão para tudo até completar seis anos de idade. A partir dos sete, lhe era cobrada uma postura de responsabilidades semelhantes à de uma pessoa adulta. Em razão disso e para que atendessem aos desejos dos adultos, as crianças eram severamente castigadas, punidas fisicamente, espancadas com chicotes, ferros e paus.

Nesse momento, lembra Áries (1981), a infância estava começando a ser descoberta na Europa como uma idade específica da vida, sentimento de infância antes inexistente na Idade Moderna, coincidia com a época em que estava ocorrendo a colonização do Brasil. Assim, os europeus, enquanto colonizadores trouxeram seus valores, costumes e ideias referentes à infância para o Brasil.

Dentro dessa nova construção moderna, foram sendo soterradas concepções de criança como um adulto em tamanho reduzido e paulatinamente foi cedendo lugar para a afirmação da infância como uma construção social.

Nesse contexto, comenta Júnior (2012), com o advento da Revolução Industrial, no século XVIII, a escolarização se estendeu a todas as camadas sociais, com a missão de educar para o trabalho as crianças, impondo sobre elas uma mentalidade de obediência e disciplina. Nas indústrias, além da inserção do trabalho da mulher constata-se a presença de crianças que representava mãos-de-obra baratas, disciplinadas e com baixo poder reivindicatório. As atividades de trabalho infantil, que sempre estiveram presentes na sociedade medievais, sejam elas domésticas ou agrícolas, continuaram acontecendo.

As crianças eram submetidas a longas jornadas de trabalho nas fábricas, dispendiam bastante força física e chegavam muitas vezes ao esgotamento, o que continuava contribuindo com os altos índices de mortalidade. O trabalho infantil era visto culturalmente como forma inicial de educação doméstica e de provimento material do orçamento da família.

No Brasil, segundo Júnior (2012), o trabalho infantil é um fenômeno social presente ao longo da história, suas origens remontam à colonização portuguesa e à implantação do regime escravista. Foi a partir do século XIX, que surgiram os primeiros entendimentos sobre o significado de infância.

A criança tornou-se indivíduo central no contexto familiar, ou seja, sua casa transformou-se num espaço de afetividade. A partir de então, a criança passou a ser vista como indivíduo de investimento afetivo, econômico, educativo e existencial.

O Estado, por sua vez, assume outro papel com relação à criança

No século XIX, o Estado, que se interessa cada vez mais pela criança, vítima, delinquente ou simplesmente carente, adquire o habito de vigiar o pai. A cada carência paterna devidamente contatada, o Estado se propõe substituir o faltoso, criando novas instituições. (...) É verdade, não obstante, que a política de assumir e proteger a infância traduziu-se não apenas numa vigilância cada vez mais estreita da família, mas também na substituição do patriarcado familiar por um “patriarcado de Estado”. Até o final do século XIX, a criança foi vista como um instrumento de poder e de domínio exclusivo da Igreja (BADINTER, 1985, p.288-289).

Somente no início do século XX, a Medicina, a Psiquiatria, o Direito e a Pedagogia contribuíram para a formação de uma nova mentalidade de atendimento à criança, abrindo espaço para uma concepção de reeducação não apenas religiosa, mas também científica.

Barros (2005, p. 68), comenta que, analisando-se a história do Brasil a partir do período colonial, não há registro de direitos assegurados para a infância,

As primeiras crianças, chegadas antes do descobrimento do Brasil, vieram na condição de órfãs do rei ou como pajens, com o compromisso de casar com os súditos da Coroa. Vieram nas embarcações, em condições trágicas, as crianças eram abusadas sexualmente pelos marujos rudes e violentos, com a desculpa de que não haviam mulheres a bordo. Somente as crianças órfãs não eram violentadas porque ficavam trancafiadas nas embarcações.

Desde a chegada da Companhia de Jesus ao Brasil, no século XVI, os religiosos assumiram o papel de defensores dos direitos infanto juvenis até o início do século XX. Isso significa dizer que, durante todo esse período o amparo à infância brasileira foi exercido pela Igreja Católica.

Na Idade Contemporânea, Pereira (2008), destaca os avanços cronológicos ocorridos nas políticas de proteção social para as crianças e adolescentes, visto que, em 1919, foi criado o Comitê de Proteção da Infância, cujas manifestações trataram das obrigações coletivas com relação às crianças. Mais tarde, com a primeira Declaração dos Direitos da Criança (1959), os Estados passaram a ter suas legislações próprias em defesa desses direitos.

E posteriormente, afirma o autor:

Em 1946, foi criado o Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que declara em seu Artigo 19 – Direitos da Criança: Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado. Em dezembro de 1948, é proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em cujo texto os direitos e liberdades das crianças e adolescentes estão implicitamente incluídos, inclusive, em seu Item II, observa: a todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio é assegurado o direito a mesma proteção social (JÚNIOR, 2012, p. 16).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1948, afirmou direitos de caráter civil e político, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais de todos os seres humanos, envolvendo, por conseguinte, as crianças. Para assegurar o cumprimento dos direitos humanos às minorias (crianças) foi aprovada em 1959, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, trazendo em seu conteúdo o primeiro conjunto de valores da Doutrina da Proteção Integral

Prevê o princípio 1 desta Declaração, o seguinte: toda criança, absolutamente sem qualquer exceção, será credora destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família (ONU, 1959).

Segundo (Barros, 2005, p. 72)

Tratava-se do início de um complexo processo de transição que resultaria na superação do Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente, e consequentemente, na substituição da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral. A partir de 1985, o Direito da Infância e da Juventude se consolida em nível mundial com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, cujo marco de proteção social à infância e adolescência forneceu também as bases para a doutrina da proteção integral, que fundamentou o Estatuto da Criança e do Adolescente – que atualmente assegura os direitos das crianças e dos adolescentes do Brasil.

Vale destacar ainda registros antigos, do mesmo período histórico que envolvem crianças, no Estado do Amazonas, local onde se realiza a presente pesquisa, com relatos de lendas e fatos ocorridos no seio da floresta amazônica, durante o período áureo da borracha (1830/1860), nas obras de Ferreira de Castro “A Selva”, Álvaro Maia “Beiradão”, entre outras, cujas características são o contato e a experiência dos escritores no mundo do seringal.

Maia (1999) em suas obras, apresenta as figuras femininas, sejam velhas ou crianças, e afirma que as mesmas eram tratadas no seringal como mercadorias, objeto de disputa ou moeda de troca.

Benchimol (1992), narra alguns fatos passados, destacando como as figuras femininas eram tratadas nos seringais. Por conta da abstinência sexual prolongada, seringalistas e alguns seringueiros cometiam atos extremos de abusos contra mulheres velhas e meninas em idade precoce para o sexo, que eram possuídas através do estupro ou do aliciamento.

Ferreira de Castro (1972), por sua vez, comenta que, a escassez se transformava em excesso e cita o caso do amasiamento de um seringalista chamado José Arruda com três meninas, de nove, dez e doze anos de idade, vivendo na mesma barraca. O delegado colocou o seringalista no tronco, bateu nele, entretanto, quando conversou com as meninas elas o defenderam afirmando que ele lhes dava bóia (que significa alimentação) e roupa.

Os demais momentos históricos e a evolução dos direitos da criança no Amazonas são semelhantes aos ocorridos no Brasil, conforme se trata nos itens seguintes.


3. Da Situação Irregular a Proteção Integral

Neste item, serão expostos os momentos históricos jurídicos de proteção à criança, quecompreende desde o período da ausência de normas protetivas, perpassando pelo Direito do Menor, até o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990).

3.1. Primeiro momento de proteção à infância

Não havia norma de proteção à criança e ao adolescente, pois não havia diferenciação clara entre crianças, adolescentes e adultos.

No Brasil, durante o período pré-republicano a atenção à infância era através de ações em prol do abandono, prevalecendo um modelo caritativo-assistencial.

As crianças abandonadas eram acolhidas por famílias substitutas ou institucionalizadas nas Rodas dos Expostos. Sobre este assunto a autora explica:

As Rodas criadas conforme o modelo de acolhimento infantil, em vigor na Europa durante o período colonial brasileiro, foi reproduzido e disseminado em larga escala por aqui. Provavelmente, foi um dos modelos assistenciais que mais perdurou na história brasileira, pois a primeira Roda dos Expostos foi criada em 1750 e a última encerrada em 1950, ou seja, durante duzentos anos consolidou-se como o principal modelo de acolhimento infantil (MARCILIO,1999, p. 83).

No âmbito da educação, as práticas pedagógicas instituídas pelos jesuítas no século XVI (após a colonização) eram representadas pelo binômio amor-repressão, que aliou a educação à imposição de castigos corporais, durante vários séculos. Vale mencionar que, inicialmente este modelo educacional era restrito às crianças da classe nobre da sociedade. Até a abolição da escravatura, em 1889, a escravidão também deixou sua marca na história da infância brasileira, submetendo crianças negras à condição de absoluta exploração.

Um interesse jurídico especial pela infância surge em decorrência da abolição da escravidão, como esclarece Cústodio (2014), pois, meninos e meninas empobrecidos circulam pelos centros urbanos das pequenas cidades procurando alternativas de sobrevivência e “perturbam” a tranquilidade das elites locais. É nesse cenário que o sistema de controle penal é colocado em ação visando estabelecer um controle jurídico específico sobre a infância.

Porém, tanto o Código Criminal do Império, de 1830, quanto o Código Penal da República, de 1890, aplicam o direito penal comum aos menores de 18 anos, submetendo-os muitas vezes a trabalhos forçados, castigos corporais, prisão perpétua e pena de morte. Diante das críticas humanitárias à aplicação do Direito Penal comum aos menores de 18 anos surge o Direito do Menor.

3.2. Segundo momento de proteção à infância: Direito do Menor

Neste segundo momento de proteção à infância, com o Direito do Menor, o Estado passa a atuar nos casos de situação irregular do menor – delinquência, abandono ou ausência de representação legal. Nas demais situações o Estado continuou omisso.

Segundo Custódio (2014), em 1926, o presidente do Brasil, Washington Luís, atribuiu ao Juiz de Menores do estado do Rio de Janeiro José Candido Albuquerque de Mello Mattos, conhecido como o primeiro juiz de menores do Brasil e por sua preocupação com a menoridade, a responsabilidade de sistematizar uma proposta que atingisse os menores em situação irregular. Assim, em 12 de outubro de 1927 seria aprovado o primeiro Código de Menores Brasileiro, também conhecido como Código de Mello Mattos. É importante frisar que, este consolidou toda a legislação produzida desde a proclamação da república.

A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor foi criada pela Lei nº 4.513, em 01 de dezembro de 1964, integrando o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social, tendo por objetivo implantar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor.

A Política Nacional do Bem-Estar do Menor tinha como base os princípios da doutrina da segurança nacional, seu foco central era o atendimento dos menores marginalizados socialmente.

Desse modo, afirma Custódio (2014), no século XX, sob as vertentes da justiça e da assistência, foram criadas as primeiras leis que disciplinaram o sistema de garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes como o Código de Menores de 1927, posteriormente, em 1979, o 2º Código de Menores (lei nº 6.697/1979) que também adotava a doutrina da situação irregular. Assim classificando, em seu artigo 2º, o menor em situação irregular:

Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal. (BRASIL,1979).

Este Código de Menores foi implantado durante o regime militar, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979, proposto pela Associação Brasileira de Juízes de Menores, foi aprovado nas Comemorações relativas ao Ano Internacional da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). A nova lei possui como maiores expoentes os juristas Allyrio Cavallieri e Ubaldino Calvento.

Tratando-se dos pontos relevantes, Rizzini (2009, p. 41) afirma “o Código de Menores de 1979, foi de relevante significado para a infância brasileira, visto que a responsabilidade sobre as crianças abandonadas, institucionalizadas e delinquentes passou a ser da justiça”.

Prates (2006), por sua vez, acrescenta que, além de contribuir para a mudança da concepção de proteção e assistência, ofereceu tratamento apropriado para o ‘menor infrator’ e algumas garantias à sua situação de pessoa em desenvolvimento.

Também Martins (2006), comenta que, o Código de Menores de 1979 revogou o de 1927 e trouxe para o Brasil a “doutrina da situação irregular”, porém, com a mesma política assistencialista das legislações anteriores, com poucas modificações em relação ao código anterior, ou seja, não houveram mudanças no conceito de infância.

Baseados em estudos e sob a ótica da sociedade, o tratamento de caráter assistencialista e filantrópico desenvolvido e direcionado ao menor não foi considerado adequado para a solução do problema, pois, já existiam concepções mais complexas acerca da infância.

Durante a década de 80, um conjunto de fatores, tais com: as precárias condições de vida da maioria das crianças e dos adolescentes; as contundentes críticas às diretrizes e ao conjunto de práticas governamentais de assistência; o acentuar-se das discussões sobre direitos da criança e do adolescente; o contexto sociopolítico propício à reivindicação e reconhecimento legal de direitos; e a articulação de setores da sociedade civil, concretizada no movimento em defesa da criança e do adolescente colaborariam para uma significativa mudança neste cenário de proteção à infância.

Era o início da substituição do Direito do Menor pelo Direito da Criança e do Adolescente, e consequentemente, na substituição correspondente da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral.

3.3. Terceiro momento de proteção à infância: Direito da Criança e do Adolescente

A transição da “doutrina da situação irregular do menor” para a “doutrina da proteção integral” estabeleceu-se gradativamente no decorrer da década de oitenta, com ênfase no processo de elaboração da nova Constituição.

Como expõe o autor

“Esta doutrina (da Proteção Integral) afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade especial de respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora de continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos” (COSTA,1992, p. 19).

Isso significa dizer que, neste momento ocorre uma importante mudança na forma em que as crianças e adolescentes brasileiros são percebidos. A Doutrina da Proteção Integral foi essencial para a consolidação de um novo ramo do direito no Brasil: o Direito da Criança e do Adolescente.

Segundo Saraiva (2010), com a Constituição da República do Brasil, de 5 de outubro de 1988, revogou-se a expressão “menor” do ordenamento jurídico brasileiro, substituindo por crianças e adolescentes. Entretanto, os titulares de direitos são, agora, crianças e adolescentes, conquista esta frágil e tardia.

Ao tratar da ordem social, o texto constitucional prevê que,

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL/CF, 1988).

Nesse sentido, os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de incidência amparado pelo status de prioridade absoluta, ele requer uma hermenêutica própria comprometida com a proteção integral e o melhor interesse da criança, ficando a família, a sociedade e o Estado incumbidos de assegurá-los.

No contexto dos direitos da infância e da juventude,

A Lei 8.069/1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é um referencial do Direito Infanto-Juvenil no Brasil, em virtude da sua fundamentação na doutrina de proteção integral, que nasce por força da sua peculiar fase de desenvolvimento. Essa lei regulamenta um comando previsto nos art. 6º, 7º, 203 e 227 da Constituição Federal Brasileira de 1988, assegurando o exercício dos seus direitos fundamentais (CUSTÓDIO, 2014, p. 18).

Trata-se de direitos fundamentais que devem ser garantidos para todos as crianças e adolescentes, posto que, como medida de proteção deve abranger todos os direitos essenciais fundamentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e demais documentos de semelhante teor.

Conforme Saraiva (2010), a partir do conjunto de tratados, convenções internacionais e das determinações constitucionais, ocorre em 1990, a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), onde direitos e garantias podem ser divididos em três grandes sistemas: o primeiro, trata das políticas públicas dirigidas à infância e juventude; o segundo, elenca as medidas dirigidas a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social; e o terceiro, trata especificamente dos adolescentes em conflito com a lei.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi, portanto, um marco revolucionário no Direitos da infância e da juventude, visto a adoção da doutrina da Proteção Integral, principalmente por levar em conta os direitos próprios e especiais das crianças e dos adolescentes enquanto pessoas em fase de desenvolvimento e que necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral.


4. Concepção de infância na atualidade em consonância com a Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente

Analisar o contexto atual da infância no Brasil, significa reconhecer a sua evolução histórica, os seus significativos avanços e a mudança dos sentimentos familiares, sociais e de direito que também evoluíram, e verificar como estão sendo aplicados na prática.

Segundo Júnior (2012), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) promoveu grandes mudanças na política de atendimento às crianças e adolescentes com a criação de instrumentos jurídicos para assegurar a garantia dos direitos fundamentais, conforme citam os artigos 3º, 4º e 7º - direito à vida, à saúde, à convivência familiar e comunitária.

Com o mesmo grau de importância no contexto dos direitos fundamentais, Freire Neto (2011), cita também o artigo 5º que estabelece o seguinte - crianças e adolescentes não serão objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão ou qualquer tipo de atentado; e, o artigo 15º que trata sobre o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, enquanto direitos garantidos também na Constituição Federal.

Isso significa que, através desses dispositivos, a legislação busca defender plenamente os direitos das crianças e dos adolescentes, diante de qualquer arbitrariedade por parte do Estado, da sociedade ou da família.

Outro aspecto relevante, cita Bitencourt (2009), é que “com o ECA, foram criados os Conselhos de Direitos da Crianças e do Adolescente que atua em conjunto com o Estado e com a sociedade, e os Conselhos Tutelares que atuam no caso de violação dos direitos individuais das crianças e dos adolescentes que se encontram em situação de risco”. De acordo com o artigo 131 do ECA, o Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente; e, o artigo 132 estabelece que, em todo município brasileiro deverá haver pelo menos um Conselho Tutelar.

A criação dos Conselhos faz parte da política de atendimento às crianças e adolescentes, estabelecido no artigo 88, inc. I a VII do Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente no sentido de conclamar a sociedade civil para participar e atuar na elaboração das políticas públicas.

A concepção de infância no contexto da proteção integral, nas palavras de Trindade e Silva (2005, p. 19), considera que “a maioria das crianças e dos adolescentes está distante de seu direito em sua forma plena. Visto que a grande parcela deles se encontra em situação de carência econômica, social e familiar, o que reflete no fato de se tornarem adultos de alguma forma já violentados”.

As palavras do autor apontam uma realidade que vai de encontro ao direito da proteção integral, entretanto, é necessário que se reflita sobre os papéis desempenhados pelo Estado, pela sociedade e pela família, de maneira a fazer valer direitos e garantias que propiciem o pleno desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.

Pesquisas atuais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2014) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF/2015) acerca do cenário da infância e da adolescência no Brasil, apontam que

No Brasil há 63 milhões de crianças e adolescentes. Desse total, 46% são menores de 14 anos, e vivem em domicílios com renda per capta de até meio salário mínimo. 132. mil famílias são chefiadas por crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos, que cuidam de outras crianças de idades ainda menores. Em 2014, foram mais de 91 mil denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes. Em 2015, foram registradas 17.588 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, um total superior a 23 mil vítimas, 70% delas meninas. Há ainda que citar os recentes casos de estupros coletivos como os ocorridos em 2015, com adolescentes no Rio de Janeiro e no Piauí, como graves violações de direitos humanos que se somam às estatísticas de violências registradas no país (2015).

Os casos de abusos contra crianças e adolescentes fazem refletir sobre a banalidade que se tornou a violência e o descaso com os direitos de proteção integral estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Outro fato de indignação popular e alarmante é a divulgação, a exposição e o julgamento moral nas redes sociais a que foram submetidas as adolescentes vítimas de estupros coletivos.

Quanto aos tipos de violências praticados no Brasil contra crianças e adolescentes, temos o seguinte: Em 2013 ocorreram 73% de negligência, 50% de violência psicológica, 43% de violência física e 28% de violência sexual. Em 2014 ocorreram 74% de negligência, 49% de violência psicológica, 43% de violência física e 25% de violência sexual (UNICEF, 2013).

A pesquisa aponta a negligência como o tipo de violência de maior incidência contra as crianças e adolescentes, que por sinal, até evoluiu. Isso significa que os responsáveis – Estado, sociedade e família – estão falhando com o compromisso de zelar e garantir os direitos. Muito embora a violência sexual apresente menor percentual, ela não ocorre sem que a criança ou o adolescente tenha sofrido junto violência física e psicológica.

O Brasil foi referência mundial na redução de mortalidade infantil no período de 1990 a 2012, com a redução de 68% da taxa de óbitos de crianças menores de 1 ano. Entretanto, conforme a DATASUS (2011), hoje ainda morrem muitas crianças e as maiores vítimas da mortalidade infantil são as crianças indígenas. No quesito educação, há mais de 3 milhões de crianças fora da escola, a maioria delas são pobres, negras, indígenas, ou possuem algum tipo de deficiência. São crianças e adolescentes que vivem nas periferias das grandes cidades, na Amazônia e na área rural. A maioria delas deixa de estudar para trabalhar e ajudar no sustento da família (IBGE-PNAD/2013).

Aqueles que deixam de estudar para trabalhar, representam outro grave problema que afeta crianças e adolescentes no Brasil, visto que, as pesquisas apontam que quase 2 milhões deles, de 5 a 15 anos de idade trabalham e que esse índice tem crescido nos últimos quatro anos.

Os dados atuais mostram a face mais trágica da violação dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil com o elevado número de homicídios de meninos e meninas até 19 anos que de 1990 a 2014 passou de 5 para 11,1 mil casos ao ano. Isso significa que, em 2014, trinta crianças e adolescentes foram assassinados a cada dia. Dos adolescentes que morrem no Brasil, 36,5% são assassinados. Esse número coloca o país em segundo lugar no ranking dos mais violentos com o público infanto-juvenil, perdendo apenas para a Nigéria (UNICEF, 2015).

O cenário de violências se torna ainda mais sombrio quando se verifica que esses índices aumentam a cada dia e nenhuma ação consistente está sendo tomada pelos responsáveis, para eliminar ou pelo menos minimizar essa problemática.

De uma maneira simples, as palavras de Tossato (2009), para os dias atuais, considerando às mudanças de concepção e respeito a situação peculiar de desenvolvimento biopsicossocial, ser criança significa “ter na cabeça, fantasias; nos olhos, o brilho da poesia; no corpo, o movimento e a música do mundo... É ter curiosidade, fazer muitas perguntas, investigar! É transformar e ser transformada por meio das brincadeiras e de suas infinitas possibilidades de criação, invenção e aprendizagens”.

Embora o Brasil possua uma das legislações mais avançadas do mundo no quesito proteção da infância e da adolescência, ainda não conseguiu combater a violência e as desigualdades sociais, étnicas e geográficas - principais razões para que as políticas públicas não consigam atingir a todos os brasileiros. Como se pode ver, apesar dos avanços, ainda há muito a ser feito, ainda não é possível festejar a diversidade. O Brasil ainda não possui política pública consistente que vá ao encontro do direito da proteção integral, que seja capaz de tornar visíveis suas crianças e adolescentes.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A elaboração do presente estudo permitiu realizar uma retrospectiva histórica e evolutiva acerca da concepção de infância, traçar um paralelo com a evolução jurídica do direito da criança desde a inexistência de leis protetivas até a sua configuração de proteção integral do momento histórico presente.

Verificou-se que a criança, no contexto social e familiar dos povos da Antiguidade, não era considerada como sujeito de direito, na verdade era como se já nascesse adulta, ou considerada como um ser inerte. No período da Modernidade, houve uma tímida evolução com o sentimento da infância em alta, passaram a ter participação social na vida familiar, escolar com um profundo ideal religioso.

Somente a partir da Constituição Federal Brasileira de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, que criança e adolescente deixaram de ser vistas como objetos e foram reconhecidos como pessoas que têm direito de suprir suas necessidades físicas, cognitivas, psicológicas, intelectuais, emocionais e sociais de forma integral e integrada.

O Estatuto da Criança e do Adolescente em consonância com a Constituição Federal, elegem a família, a sociedade e o Estado como os responsáveis para assegurar a garantia dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes brasileiros, nos artigos 3º, 4º e 7º - direito à vida, à saúde, à convivência familiar e comunitária; o artigo 5º quando menciona que crianças e adolescentes não serão objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão ou qualquer tipo de atentado; e, o artigo 15º que trata sobre o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade.

Hoje, a concepção de infância no contexto da proteção integral, evidencia uma realidade trágica que vai de encontro ao que está escrito nos artigos e nas leis, em vista do alarmante e crescente índice de criminalidade e violência contra crianças e adolescentes. A violência é praticada em grande escala, porém, não se reconhece nenhum tipo de dispositivo legal, manifestação ou políticas públicas em defesa da infância e da juventude brasileira.

Diante do descaso para com as crianças e os adolescentes, pode-se concluir que o Brasil se encontra em um período de retrocesso evolutivo e de desproteção dos direitos da infância.

Acredita-se que os objetivos deste estudo foram alcançados, tendo em vista o conhecimento acerca das concepções de infância ao longo do tempo, sua evolução histórica e jurídica, com abordagens que demonstram desde a situação de desproteção a posterior concepção de proteção integral, estabelecida pela Constituição Federal (1988) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), vigentes até o momento presente.

Por fim, a análise do momento histórico presente, permitiu constatar a crescente condição de miséria, de desigualdade e violência a que são submetidas as crianças e os adolescentes atualmente, no Brasil. Tamanha negligência, omissão e descaso colocam em xeque a responsabilidade e competência do Estado, da sociedade e da família.


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