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Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto

Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto

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Sumário: introdução; 1. facetas da socidade: o homem como ser social; 1.1. O homem na sociedade de constituição simples; 1.2. O homem na sociedade de constituição complexa; 2. direito (penal) e sua operacionalidade; 2.1. Direito contemporâneo: uma visão crítica; 2.1.1. Breves considerações históricas; 2.2. O direito hodierno operacionalmente; 2.3. O direito penal e a insegurança; 3. O Direito Penal e o Individualismo; 3.1. O eu, o outro e o nós; 3.2. A violência e sua origem no individualismo; 3.3. Direito penal repressivista: movimento lei e ordem; CONCLUSÃO; BIBLIOGRÁFICA.


Introdução

A difícil compreensão dos problemas que envolvem a violência humana passa pela condição do Homem como animal sociável que engloba uma tridimensionalidade do eu, do outro e do nós. O isolamento não é inerente ao Humano, pois sua racionalidade, característica fundadora deste ser, somente se desenvolve com a participação do outro. Constata-se, ainda, a presença do outro no mundo pelo fato destes seres, do eu e o(s) outro(s) constituírem-se em múltiplos. Como radicalização da problemática, advém a imperfeição do Homem, destacada no dizer de Herder (1995), que expressa a condição humana: O homem é um vaso em que não cabe a perfeição... Para avançar tem sempre que perder qualquer coisa; [01] de outra forma, a violência do homem com seu semelhante é assunto que percorre, desde os tempos idos até o hodierno, labirintos cheios de mistérios e obscuridade; covas que guardam os vícios de torpezas e traços largos de indignidades. A história aprofunda o passado, fator que, por momentos, não permite observar a sujeira. Mas não só de obscuridades e de atrocidades é composto o Humano, mas, também, de luz e sabedoria quando se empenha para resolver problemas que o incomodam de fato e quando estes problemas, imperiosamente, dele exigem, politicamente, soluções. Nem tudo perdido está. A busca do conhecimento é um indicativo de esperanças de resoluções de problemas. Mas, o outro lado da moeda apresenta-se, as profundezas ganham novas dimensões em todo momento em que o conhecimento se embrenha, há um aumento de complexidade, contingências e expectativas. [02] Por isto uma visão que abranja alguns dos inúmeros fatores incidentes no objeto se faz imprescindível.

O tema, além de complexo e amealhado de detalhes, que são viáveis à discussão, suscita, nesta atualidade de repressão penal máxima como única alternativa de resolução dos conflitos, a inversão do papel principal do Penal; melhor dizendo, busca atribuir ao indivíduo – à sociedade – em seu dinamismo, a responsabilidade pelo fenômeno da violência, fato que deixa ao Direito Penal uma função de auxílio na redução e resoluções dos conflitos, melhor denominado de Direito Penal Mínimo. O resgate da responsabilidade [03], nos termos de assumir as conseqüências, é fundamental na resolução dos problemas sociais. Atribuir ao Direito, ou a outra esfera da cultura humana, problemas que não competem a ele, somente, resolver, é deslocar a responsabilidade de sua origem e desviar da possibilidade concreta de uma busca de solução. É necessário ir à raiz do problema para debelá-lo. Do contrário, intermediando-o, os focos continuarão a existir.

Desta forma, a proposição deste texto foi estimulada pela perspectiva de situar responsabilidades. Isso devido a uma perda de paradigmas de localização de origem de causa na contemporaneidade, ou seja, a responsabilização tornou-se, por vezes, complexa devida à rede a que cada ato/fato está conectado. Nem por isso deve-se deixar de lado a busca do agente causador do distúrbio. Com isso, podemos traçar a seguinte distinção de responsabilização: eu quando o eu tem responsabilidades para consigo, para com o outro e para com o nós; o outro para consigo, para com o eu e para com o nós também tem suas responsabilidades; e o nós tem responsabilidades para consigo, pois engloba o eu e o outro. Desta maneira, nota-se a generalidade que se tornou a participação e responsabilização do Homem na sociedade. Logo, reduzir a problemática da violência à esfera Penal é hiper-responsabilizá-la e hipo-responsabilizar os demais fatores.

As tensões existentes nestas esferas do Homem (eu, outro e nós) são, basicamente, ocasionadas por uma intolerância de aceitação e estranheza do outro. Neste momento, vários motivos são exaltados, dentre os quais a dinâmica de competição que tende a negar o outro e excluir o nós, assim prevalecendo o eu. Com esse procedimento, destaca-se o individualismo que concentras atenções no eu. A busca de sucesso, ascensão social, importa que o outro não esteja em evidência ou, pelo menos, não se destaque quanto o eu.

Traz-se, destarte, a lei da física da ação e reação transfundida no social. Embora na física haja imediatidade, na esfera humana há imediatidade, mas, também, mediatidade. Logo, a negação, o afastamento e a hostilidade com o outro acarreta conseqüências conflituais; tensões radicalizadas que se exteriorizam e se materializam na forma da violência, em seus vários aspectos, nada mais que a exasperação de uma reação. Assim, as dinâmicas, de logo, influenciam o comportamento e a constituição moral (sentido amplo) do indivíduo. Retira-se daí a importância do individualismo competitivo no que tange à violência e ao Direito Penal.

A racionalidade ao buscar explicações a estes fenômenos tende a fragmentar-se em áreas de conhecimento, ou seja, buscam-se as respostas, por exemplo, na antropologia, ou na sociologia, ou no direito, ou na biologia etc. Isto, de imediato deixa descoberta vasta gama de áreas a serem investigadas; mas por outro lado, se todas as áreas fossem abrangidas, por conseqüência, o trabalho seria infindável. Logo, a transdisciplinariedade [04], buscada, holisticamente, neste texto, não perpassa todas as áreas possíveis, mas percorre as áreas basilares ao assunto decorrente.

Na busca de um sentido interdisciplinar do fenômeno ora analisado, o trabalho enfocará uma visão do Homem na sociedade e as relações intersubjetivas, que... que são a base da interação e da maior ou menor coesão social. Ainda, sustentam a ordem jurídica juntamente com a coação. No entanto, cabe destacar que se não houvesse nem um tipo de coesão, a força – coercitiva e coativa – jurídica não bastaria para manter a ordem, e sem o jurídico a coesão estaria comprometida. Logo, a integração num ambiente social deve ser de maneira coesa. Isso não afasta a idéia de conflito, pois esta idéia deve coexistir com a do consenso; o consenso dará a estabilidade necessária para o convívio e o conflito será o impulso para o progresso civilizacional. Dessa forma, há um paradoxo aparente entre esses dois paradigmas, mas a ontologia humano-social comporta esta coexistência, uma adjetiva a outra.

O problema focaliza-se no exacerbamento do consenso ou do conflito. Quando o primeiro se sobrepõe, a sociedade estagna-se; quando o conflito destaca-se há um descontrole. Como de regra, o equilíbrio é o melhor estado, nem a estagnação e nem o descontrole são benéficos. O vivenciado na atualidade é um descontrole, mas que poderá ser controlável por medidas certas e corretas aplicações.

Neste cenário, o Direito, principalmente o Penal, cumpre um papel estratégico. Destarte, no segundo capítulo aborda-se a operacionalidade do Direito (Penal). É mister este tópico para focalizar a atuação, como poder institucionalizado, – penal – na sociedade e a contribuição que esta esfera cultural cumpre na realidade hodierna.

O papel estratégico do Direito Penal deve-se ao seu âmbito prático, pois ele é o último (ultima ratio) mecanismo estatal a entrar em ação para dirimir o conflito; além do mais, o Penal regula os conflitos que envolvem valores, considerados primaciais para o social. Logo, ele defronta-se com as mazelas sociais, tentando resolvê-las ou aplicar, exemplarmente, sanções bruscas para manter a ordem. Deveria ser o Direito Penal o último caminho que o Estado deveria procurar para ordenar seus jurisdicionados, mas, no entanto, como adiante se verá, constitui-se no (ou num dos) primeiro(s) instrumento(s) ordenatório-coativo. Com esta perspectiva o segundo capítulo é desenvolvido. Busca-se uma visão do modelo jurídico usado na contemporaneidade e desenfronhar a atuação penalística, arraigada por uma ideologia econômica e tecnológica. [05]

Ao percorrer este caminho, defrontar-se-á com o terceiro capítulo que procura a junção do individualismo (competitivo) a uma visão do Direito Penal. Na intenção de destacar de uma das origens – ou focos de incentivo – da violência, buscar-se-á o Penal como um dos fatores contributivos dos conflitos, ou seja, o Penal está agindo de forma inversa ao seu escopo. Melhor dizendo, a função Penal está invertida, eis que acredita-se que a máxima repressão é a forma mais eficiente de apaziguar os ânimos. Seguindo-se essa política enganosa, estar-se-ia em erro pela falta de visão das conseqüências destrutivas do bem viver em comunidade. Com efeito uma marca do sistema penal no currículo de alguém é, sem dúvida, uma mácula na sua relação com o mundo (os outros); ainda, a experiência de passar pelas malhas do sistema não é irrelevante, ou seja, influenciará seu psíquico. Nesse caso, penal, a violência só serve para tornar ainda mais aguda a conjuntura problemática do sistema.

Será que o Direito Penal é um instrumento que age imediatamente nos conflitos sociais relevantes, que envolvem valores estimados? Ou poderia ser, se mudasse de postura, um mecanismo de conversão de dinâmicas competitivas [06]-individualistas para dinâmicas cooperativistas, de ajuda mútua? Essas interrogações são pertinentes no momento em que se admitir que só o Penal não basta, por si só; é preciso reconstruir, também, as bases mais profundas da sociedade. Por isso, a divisão em sociedade de constituição simples (solidariedade mecânica) e de constituição complexa (solidariedade orgânica), para a discussão destas dinâmicas sociais. E, por conseqüência, diferenciar a competitividade da cooperatividade. A complexidade de um assunto como este é enorme para o curto tempo-espaço. Por óbvio que as respostas a todos os anseios que se tem sobre a violência Humana não se baseiam, somente, no individualismo-competitivo. Mas o repensar do comportamento Humano, e jurídico, é fundamento para o progresso civilizacional.

Abre-se o seguinte parêntese: este trabalho parte do princípio da inerência da violência no ambiente social, ou seja, a violência é natural no que tange às relações humanas; no entanto, o que se ressalta é justamente a contribuição do individualismo, potencializado pela competição, no acirramento do conflito. Fecha-se parêntese.


1. Facetas da Sociedade: O Homem Como Ser Social

A percepção da influência que o individualismo causa nas ações do homem social é latente quando comparamos os fenômenos de integração no decorrer de um período histórico longo. O comportamento, primeiramente interpessoal e após interindividual, em relação à conduta associativa, demonstra dinâmicas que passaram da cooperação à competição. Dessa forma, o liame entre os indivíduos constitui-se na competição e no raciocínio binário – inimigo ou amigo, bom ou mau. Ocorre, com isto, o afastamento do eu em relação outro e ainda causa a estranheza, ou seja, o não reconhecimento do outro e, por conseqüência, a intolerância. Essas considerações serão norteadoras deste trabalho. A mudança de formatação do ambiente social e do jurídico penal poderá responder aos fortes apelos sociais de humanização dos aparelhos de Estado.

Destarte, a cosmovisão a ser abordada tem seu azo na contemporaneidade [07], eis que a questão da violência num dos seus diversos aspectos causadores, construída por um corte transversal da história. Ou seja, tratar-se-á da pessoa tribal (sociedades de constituição simples) e passar-se-á para a sociedade de constituição complexa. O corte histórico ocorre é em conseqüência do fôlego do trabalho, já que a passagem do enfoque de pessoa para indivíduo apresenta sua transição nos movimentos de secularização e na racionalização.

O encaixe do Homem e sua cultura nestes ambientes societários – bem distintos – proporciona uma cosmovisão temporalmente fragmentada; no entanto, que auxilia no entendimento e precisão do enfoque tangenciador do individualismo e violência no intuito de destacá-los robustecendo a ênfase à qual o trabalho pretende se ater.

1.1 O homem na sociedade de constituição simples

O Ser Humano é muito distinto dos demais animais, diferenciando-se por portar uma racionalidade e por ser dotado de uma linguagem articulada. Outro aspecto intrínseco ao Homem, mas que encontramos em algumas outras classes de seres vivos, [08] é a necessidade de pertencer a um meio social, ou seja, conviver com os seus semelhantes, numa sociedade. [09]

A solidão, o isolamento de seus pares, torna o homem vulnerável inviabilizando a, em longo prazo, sobrevivência. A própria subsistência da espécie humana necessita de um contato interpessoal, haja vista a relação sexual entre o homem e a mulher. Ainda, o recém-nascido sem o apoio de, pelo menos um ser humano adulto, inviabilizará a criança. A partir daí, marca-se a importância das relações sociais na vida humana, conforme assinala Ortega y Gasset (1973):

Isso significa que a aparição do Outro é um fato que fica sempre como nas costas da nossa vida, porque, quando nos surpreendemos pela primeira vez vivendo, já nos achamos, não somente com os outros e no meio dos outros, mas habituados a eles. Isso nos leva a formular este primeiro teorema social: o homem está a natividade aberto ao outro que não é ele, ao ser estranho; ou, com outras palavras: antes de que cada um de nós percebesse a si mesmo, já havia tido a experiência básica de que existe aqueles que não são ‘eu’, os Outros; isto é, o Homem ao estar a natividade aberto ao outro, ao alter que não é ele, é a natividade, queira ou não, goste ou não goste, altruísta. É mister, porém, entender essa palavra e toda essa sentença sem acrescentar-lhes o que nelas está dito. Quando se afirma que o homem está a natividade e, portanto, sempre aberto ao Outro, a saber, disposto no seu fazer, a contar com o Outro, enquanto estranho e diferente dele, não se determina se está aberto favorável ou desfavoravelmente. Trata-se de algo prévio ao bom ou mau talante em relação ao outro. O roubar ou assassinar o outro implica estar previamente aberto a ele, não mais nem menos do que para beijá-lo ou por ele sacrificar-se. [10]

Desde os primórdios dos grupos humanos, o homem viveu em sociedade, ou seja, agregado aos seus pares; embora, no entanto, a solidariedade, a coesão grupal fossem, por vezes, mais fracas ou/e mais fortes, conforme a situação vivida pelo coletivo. Isso decorre desde a sociedade nômade, na qual todo o grupo se deslocava pelos campos desérticos à procura de um lugar que suprisse sua necessidade de alimentação. Após algum tempo, quando determinado local apresentava escassez de alimentos, o grupo migrava à procura de outra paragem. Note-se, que, geralmente, esses grupos eram guiados por algum líder, que organizava a formação da sociedade e determinava o momento de começar nova peregrinação em busca de alimentos. [11] Quando o homem percebeu que poderia, fixo em determinado local, produzir seu alimento, começou a estabelecer-se em comunidades fixas, ocupando certo espaço. A partir de então não havia a necessidade de deslocamento em busca de alimento, conforme destaca Herder (1995):

No Egipto não havia pastagens nem pastoreio. Perdeu-se pois o espírito patriarcal que reinava nas tendas dos primitivos nómades. Mas havia, quase com a mesma facilidade, a possibilidade de uma riquíssima vida agrícola, proporcionada pelas lamas do Nilo e fertilizada pelas suas águas. E assim se transformou o mundo pastoril – e com ele os respectivos costumes, inclinações e conhecimentos – num território de agricultores. Extinguiu-se o nomadismo e surgiram as habitações fixas e a propriedade fundiária. Foi preciso medir as terras, determinar o que pertencia a cada um, proteger os bens de cada um. Passou portanto a ser também possível encontrar cada um junto dos bens que lhe pertenciam. E passou então haver segurança do território, administração da justiça, ordem, polícia, tudo o que nunca teria sido possível na vida nómada do Oriente. Surgiu assim um novo mundo. [12]

Da constatação das conseqüências da produção do seu alimento, começa a surgir o excedente e, por conseqüência, o comércio vem à tona.

Além dos nômades, havia outras sociedades com suas organizações sociais de constituição simples, que se mantinham coesas, como tribo, clã, famílias, etc. [13]. Cada indivíduo, detinha, perante o grupo, uma função. A junção de todos exercendo suas funções possibilitava a manutenção do grupo. A cooperação de cada um no meio social era direcionada para o bem da totalidade e sua manutenção, pois a necessidade de manter o organismo social vivo garantia-lhes sua própria sobrevivência. Isto porque essas organizações eram restritas, ou seja, pequenas no seu tamanho, tendo a premência de uma maior solidificação da solidariedade mecânica [14], em todos os sentidos, para a não extinção. É importante ressaltar que nestes grupos também havia "chefes", líderes que organizavam e coordenavam o funcionamento da tribo. Sua dominação, de regra, advinha de alguma qualidade que o grupo reconhecia nele. Não advinha do Direito, embora houvesse regras, mas de costumes ou crenças. Conforme Weber, essa dominação era exercida através da tradição ou do carisma do líder. [15] Cohn (1997) aborda da seguinte maneira:

Dominação tradicional em virtude da crença na santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de há muito existentes. Seu tipo puro é a dominação patriarcal. A associação dominante é de caráter comunitário. (p.131) Dominação carismática em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: as faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória... A associação dominante é de caráter comunitário na comunidade ou no séqüito. (p. 134-135)

Ao longo da cronologia histórica encontramos sociedades avançadas, aparentadas com o grande Estado de hoje, ou como sociedade de constituição complexa. Os Gregos, [16] os Egípcios [17] e, antes da formação do Estado Moderno, o Império Romano. Nota-se que essas sociedades evoluídas existiram concomitante com sociedades tribais.

O importante, no entanto, é destacar a imprescindível necessidade do homem de viver em grupo e, além do mais, a constatação que no interior das sociedades de constituição simples havia uma diferenciação de funções. Embora, ao tempo, essa divisão de funções, intra-sociedade, tivesse a mesma importância para todos, ou seja, todos se encontravam no mesmo patamar de importância. Era, praticamente, um cooperativismo; apenas havia um(ns) líder(es). É mister ressaltar a valorização do grupo, ou melhor, do nós.

Os alicerces sociais garantiam a vida do indivíduo. Tanto isso era essencial que o direito nas sociedades de constituição simples caracterizava-se por um sistema de complexidade reduzida sem a vigente na contemporaneidade. Além do mais, conforme os costumes da sociedade, o direito era metafísico, manifestava-se através de poderes sobrenaturais; castigos advindo dos deuses. A crendice e o procedimento ritualístico na evocação das forças ocultas, com a palavra certa, com os gestos e todo o ambiente que envolve o sobrenatural. Destaca Luhmann (1983):

Correspondentemente, o procedimento jurídico parece um ritual, como procedimento presente, como presença concreta da afirmação do direito - e não como esclarecimento de um passado em disputa, ou como seleção de um futuro preferido. É óbvio que mesmo no mundo arcaico a ação humana se orienta na dimensão temporal, mas o direito não é institucionalizado tendo em vista o tempo enquanto dimensão. Para tanto aquele segundo plano da observação, a partir do qual poderia ser concluído, no presente, o que o passado foi e que o futuro deverá ser; para tanto falta o processo que poderia esclarecer o passado e assegurar a persistência no futuro das seleções atualmente executadas. Dessa forma também o juramento divino é experimentado não como um prejulgado para casos futuros ou até mesmo como revelação de uma regra geral. E a obrigatoriedade do direito (obligatio) transparece no rompimento de uma expectativa justificada no presente; ela não é concebida como uma obrigação futura. [18]

O plano metafísico, nestas sociedades, era o plano de intervenção social, ou seja, todo os fatos ocorridos intragrupos eram atribuídos a espíritos que se "comunicavam". A partir da "comunicação", havia um esforço de compreensão do malefício ou do benefício do fato. Quando os resultados dos rituais não correspondiam às expectativas, logo se concluía que algo de errado foi realizado no processo ritualístico. O Direito, portanto, nada mais era que uma aplicação da lei divina. A divindade devia, diretamente, punir o transgressor. Ainda neste âmbito, pode-se cogitar de normas gerais que norteavam a aplicação jurídica como a vingança. Esta constituía-se num meio de satisfazer, ou melhor, equilibrar uma situação balanceada de perda e ganho; isto quer dizer, se um grupo por ato de outra(s) pessoa(s) de outro grupo causar algum prejuízo, de qualquer monta, o grupo lesado tem o direito de lesar o causador da lesão e na sua medida.

Nestas sociedades, tínhamos um quadro de integração social entre os indivíduos. Vivia-se e trabalhava-se para a subsistência do grupo como um todo e, de maneira reflexa, o indivíduo acabava preservando a sua vida. Pode-se destacar os ritos de passagem tribais em que se mobilizava toda a tribo e, até mesmo, tribos vizinhas a participarem destas cerimônias, delimitadoras da posição do membro tribal no desenvolvimento da vida e na tribo. O indivíduo não tinha a total consciência de que sua sobrevivência dependia da manutenção do grupo e que a manutenção do grupo dependia de sua cooperação, mas, sim, que ele deveria trabalhar por sua tribo, ainda que aquela era a sua vida. Dava-se maior importância ao coletivo do que ao indivíduo. A dinâmica preponderante era a cooperativa – recíproca ajuda – ou seja, o outro não era negado em detrimento do eu, mas fundia-se, formando um sólido nós. O bem do outro era o bem do eu e, por conseqüência, do nós.

Essa visão fundamenta e justifica as bases sólidas e unificadoras da cultura de pequenos grupos (comparando com o hodiernamente apresentado). A dicotomia do eu do nós não era vislumbrada; a essência consistia no bem comum, no bem do outro e do eu, o nós. Esse aspecto significa um mútuo respeito pela função exercida pelo outro na tribo. Embora na esfera das sociedades de constituição simples se verificasse uma uniformidade de costumes, não havia pluralidade cultural.

Em suma, embora hodiernamente ainda hajam sociedades tribais espalhadas pelo globo, estas não se fazem representar devidamente, com seus costumes, na sociedade contemporânea. Estas tribos sofrem um processo degenerativo da própria cultura, logo porque os valores e bens contemporâneos estão penetrando no espaço tribal o que, por sua vez, está a absorver os novos e dissolver os antigos costumes. Um exemplo claro a ser citado é em relação aos hábitos alimentares e às doenças que trazem. Com a absorção dos costumes endógenos, as tribos acabam assimilando a habitualidade exterior, que traz consigo os benefícios e os malefícios, em regra desproporcionalmente pendendo para os malefícios, que carregam em si a desestabilização social. [19]

É importante ressaltar que a solidariedade cooperativa não é exclusiva do ambiente tribal, mas rendeu frutos em outras épocas, até mesmo na Idade Média, como por exemplo, as corporações; os estratos sociais, neste tempo, não permitiam mudanças, ou seja, as pessoas não podiam mudar de classe social. A divinização da mundaneidade, com suas regras, vedava a fuga do Homem ao seu próprio destino divinamente traçado e naturalmente imposto. O filho de artesão, artesão será e aprenderá com o pai ou com quem o cria os segredos do ofício. Da mesma forma acontecia com o nobre, por essa razão as famílias permaneceram com status de nobreza durante séculos até os movimentos de extinção das regalias nobiliárquicas. Portanto, o estrato pessoal era definido no momento do nascimento. Forma-se no interior das classes fortes laços unindo uns aos outros, geralmente estimulados pela opressão e o reconhecimento de classe. Como tudo girava em torno da Divindade, e esta é um ente metafísico que se expressava pela condição mundanal, inferia-se, desde logo, como um consolo condicionante, da situação vivenciada. A tentativa de fuga desta imposição tornava-se motivo para castigos divinos, que temporalmente eram ameaçados de durarem a eternidade. A Idade Média marco de épocas de transcendentalidade da matéria, acabou por nos legar muitos instrumentos, mas tem uma função ainda mais relevante; com o conhecimento de sua história é possível se precaver de futuras repetições, de formas diferentes, de essências recuperadas de fundamentalismos conhecidos.

Nesta época, a economia começa a influenciar o comportamento humano e a ditar o caminho a ser percorrido. O comércio dá seus primeiros passos em direção ao mercantilismo; o fortalecimento da importação e exportação de bens comerciáveis começa a ser traçado e a economia de muitos países liga-se a este tipo de estruturação. Os descobrimentos são conseqüências, ou precipitados – variará conforme a teoria histórica adotada –, pela ânsia de domínio que era produzida pelo furor da comercialização. As cidades ricas e desenvolvidas da época são, justamente, aquelas que têm suas portas voltadas para o mar, meio de locomoção pouco oneroso, rápido e seguro. Pelo meio terrestre havia pedágios entre feudos e o risco de ser alvo de algum tipo de violência, como o roubo e ter as mercadorias perdidas. Em decorrência disso a disputa agigantava-se, também no mar. Ressalta-se o conflito entre Portugal e Holanda em que um navio holandês interceptou e afundou em alto mar uma embarcação portuguesa carregada de especiarias Orientais; desse conflito, originaram-se célebres livros que tratavam do Direito de navegação e, também, do confronto jurídico entre Grócio e Serafim de Freitas. [20]

Vislumbram-se, na Idade Média, embora envolta no misticismo divino, traços competitivos de potencialidade enorme, pois não havia especificidades de normas jurídicas, mas o Direito romano, canônico (para alguns assuntos) e opiniões de Doutores, que por certo penderiam, ad argumentum, para seus interesses, se estes não destoassem de uma realidade assentada no Direito vigente, como se verá em capítulo próximo.

A partir do começo da racionalização, de percepção da realidade de um mundo desvinculado com a Divina interferência determinista, ao antropocentrismo começa a desenrrolar-se o processo de passagem do foco da pessoa para o indivíduo, dinâmica de individualização. O processo civilizador trará o Homem até a contemporaneidade como indivíduo e não mais como pessoa. O processo secularizador tratará de configurar a nova realidade de ruptura do presente surgido com o passado superado e o futuro racionalizado.

1.2 O homem na sociedade de constituição complexa

A partir do momento em que começou a dilatação do círculo social [21] (descaracterização com o aumento do clã, tribo etc.), até o advento do Estado Moderno, embora o ser humano dependesse do grupo, vivia em constante disputa de poder com seus pares intergrupais. Esta disputa concentrava-se diretamente na lei do mais forte, ou seja, na violência física. O vencedor era aquele que, pela sua força e astúcia, acabava derrotando seu oponente, matando-o ou escravizando-o, quando não o expulsava de determinado local. Por esse meio, conquistava-se o bem cobiçado da época, o espaço territorial. O território era de vital importância, pois neste espaço se produziria o alimento necessário, no primeiro momento, para auto-sustentar-se e num segundo momento para subsistir e comercializar.

Foi, então, após séculos, formando-se feudos que se constituíam pelo trabalho de vassalos e de pessoas que se vinculavam ao senhor feudal, trocando seu trabalho pela segurança e um pedaço de terra para alimentar-se. Ainda, os vassalos formavam, além de produzir para o senhor, o exército do feudo, que detinha a função de defender e de conquistar outros territórios. [22]

Na generalidade, os senhores de terras eram guerreiros bem sucedidos, vistos pelo seu grupo como os mais fortes e, de vez em quando, "invencíveis". Coordenam, pelo seu poder, a administração do território e mantêm os seus vassalos coesos. No entanto, conforme as conquistas do exército (do feudo), o território ganhava em extensão, tornando o domínio do Senhor difícil. Assim, como incentivo e para facilitar o controle do dono da casa grande, este divide seu vasto território em regiões, delegando seu controle aos melhores soldados e a seus próprios familiares. [23] Deu-se a fragmentação do território em feudos.

Outrossim, com a dinâmica de conquista por mais espaço territorial foram formando-se, séculos mais tarde, vastos territórios. Para o controle e gestão do Império, o soberano criava e distribuía cargos administrativos (a burocratização) criando-se, assim, a divisão do trabalho. Neste estágio, o Senhor Feudal já constitui-se em Rei. O feudo mais "poderoso" (em capital monetário e força bélica), constitui-se em Estado, advindo, desta forma, o Estado Moderno. [24]

O Estado Moderno, mesmo no seu início, concentrado na figura do Rei, caracteriza-se pela divisão do trabalho e pela monopolização da tributação e força física (exército), Direito. Da divisão do trabalho, surge uma nova maneira de relacionamento entre os indivíduos. Passa-se da disputa de poder por meio da violência para a disputa de poder pelo viés da competência, conhecimento (inteligência). O autocontrole [25] tende a ser exigido das pessoas, e torna-se uma condição sine qua non para o convívio social. A violência física torna-se uma conduta anti-social. [26] Com isso, o relacionamento começa a ser considerado civilizado e a diferenciação em classes dá-se de maneira, principalmente, econômica, mas, também, comportamental. [27] A moral, nesse estágio, é fator de forte influência.

É preciso explicar essas determinações da moral. A essência da consciência moral é aprovar. Esse sentimento que nos faz louvar ou repreender, essa dor e esse prazer que determinam o vício e a virtude, têm uma natureza original: são produzidos pela consideração de um caráter em geral, sem referência ao nosso interesse particular. Mas, o que é que pode fazer-nos abandonar sem inferência um ponto de vista que nos é próprio e, ‘a uma simples inspeção’, fazer-nos considerar um caráter em geral ou, dito de outra maneira, fazer-nos apreendê-lo e vivê-lo como sendo útil a outrem ou à própria pessoa, agradável a outrem ou à própria pessoa? A resposta de Hume é simples: é a simpatia. [28]

Embora, nesta fase, as pessoas co-habitem cidades, demonstrando uma tolerância no convívio com seus semelhantes de localidades diversas, com costumes diversos, profissões distintas e, ainda, demonstrando maior interdependência dos seus pares, acabam acirrando suas diferenças. Melhor dizendo, com as cidades e a divisão do trabalho, cada qual exerce uma função; no entanto, não é apenas um a exercer uma única tarefa, mas vários a exercer a mesma tarefa. O grupo, assim, não depende mais daquele indivíduo, que trabalhava em prol do bem coletivo, mas de indivíduos que laboram pelo seu próprio bem. A solidariedade do grupo passa para a preocupação consigo (o eu) mesmo e no máximo com sua família, que é, hodiernamente, considerada uma formação reduzida, nuclear, distinta do passado.

As alterações sofridas pelo Estado, através da Revolução Francesa, [29] logo após com a Revolução Industrial (marcos históricos), ou seja, sua limitação de poder e modificação em suas estruturas, principalmente na seara da economia, iniciaram as transformações das relações entre os sujeitos que passaram de um cooperativismo tribal para o individualismo-competitivo feroz da "aldeia mundial" globalizada [30]. Reforçado pela revolução técno-científica.

Destarte, a coesão do corpo social é traçada pela competição intragrupo. A base econômica constitui-se, desta forma, no parâmetro entre o bem e mal sucedidos. Daí, também, decorre a divisão de classes e a exclusão social. Dá-se num ambiente próximo fisicamente, maior distanciamento entre as pessoas, no aspecto da solidariedade. Com isso, temos um individualismo, no qual o indivíduo tem apenas compromisso consigo, deixando de lado os seus pares e apenas se aproximará, na maior parte das vezes, de outro indivíduo com a intenção de beneficiar-se através da competição. Contrapõe-se a essa situação com o passado – sociedades de constituição simples – de solidariedade (a preponderância do nós) pela dinâmica de cooperação das pessoas nas sociedades de constituição simples, tribos, clãs...

A Revolução Francesa [31] implantou uma nova ordem, ou seja, retira-se a obrigação das mãos de um homem (Rei) transferindo o controle para as mãos de todos cidadãos. No entanto, isso é somente aparência. O controle do poder fica nas mãos de uma elite econômica-política-moral que detém, por meio de uma dita democracia, o aparelho estatal, governando os jurisdicionados. Destaca Elias (1993) o seguinte:

Aumentando a divisão de funções, e com ela a interdependência mútua de todas, esse tipo de mudança no equilíbrio de poder não se expressou mais pela tendência de dispensar oportunidades monopolizadas entre numerosos indivíduos, mas pela tendência de controlar os centros monopolistas e as oportunidades que eles distribuíam de maneira diferente. A primeira grande fase de transição desse tipo, a luta das classes burguesas pelo controle dos velhos centros monopolistas, controlados pelos reis e, em parte, pela aristocracia – como propriedade hereditária – os primeiros monopólios completos dos tempos modernos – mostram isso com grande clareza. Por muitas razões, é mais complexo em nossos dias o modelo de classes em ascensão. Uma das razões é que hoje se tornou necessário lutar não só pelos velhos centros monopolistas de tributação e violência física, ou apenas pelos monopólios econômicos recentes ainda em processo de formação, mas pelo controle simultâneo de ambos. O tipo elementar de forças em ação neste particular, porém, é muito simples, mesmo neste caso: toda a oportunidade de criação de monopólios limitada pela hereditariedade a certas famílias gera tensões e desproporções específicas na sociedade interessada. Tensões desse tipo tendem para uma mudança de relações e, por isso, de instituições em todas as sociedades, embora, quando a diferenciação é baixa e, especialmente, quando a classe superior consiste de guerreiros, elas freqüentemente permaneçam sem solução. Sociedades com uma divisão de funções altamente desenvolvida são muito mais sensíveis às desproporções e disfunções ocasionados por essas tensões, cujos efeitos são permanentemente sentidos em todo a sociedade. Embora, nestas sociedades, possa haver mais de uma maneira pelas quais as tensões podem ser conciliadas e removidas, a direção a que tendem para se transcenderem é predeterminada pelo modo como vieram a surgir, por sua gênese. As tensões, desproporções e disfunções do controle monopolistas de oportunidades, no interesse de alguns, só podem ser resolvidos pela destruição desse controle. O que não se pode saber de antemão, porém, é quanto tempo vai durar a luta que se seguirá. [32]

A classe dominante, através de um recurso de retórica e da formação e da endoculturação [33] dos cidadãos, consegue difundir na consciência de todos, consciente ou inconscientemente, a pseudo-responsabilidade da sociedade pela conduta do Estado, por uma dita democracia. Portanto, a direção do Estado concentra-se nas mãos de cada um, desde já ficam justificados os sucessos e fracassos do Estado, que encontra no conceito abstrato de sociedade a responsabilidade pelas políticas infrutíferas.

Com a passagem da pseudo-responsabilidade do destino do Estado aos indivíduos, como sociedade, exacerba-se o individualismo e a economia de mercado fortalece a competição entre os indivíduos sedentos para usufruir a máxima liberdade que lhes cabe. Dessa forma, acham no outro um limite negativo, pois se a minha liberdade termina onde a do outro começa, se coloca nesta senda uma limitação à liberdade, justamente em detrimento do outro; logo o outro torna-se um obstáculo à liberdade e usa este limite para exercer a sua; a recíproca é verdadeira. Essa questão pode ser interpretada, desta forma, devido ao individualismo e, ainda, a hermenêutica exercida neste momento é restritiva, no entanto, a interpretação de uma sociedade solidária/cooperativa consideraria, em tese, à liberdade do outro como uma extensão da liberdade restringida. A interpretação, ao contrário do ambiente competitivo, daria um sentido de positividade à liberdade do outro, uma extensão, ou melhor, uma possibilidade de exercer a liberdade numa esfera, de maneira indireta, sem prejudicar a ação do semelhante.

No entanto, o Estado, hodiernamente, apenas garante o mínimo aos seus súditos, que acabam competindo entre si, num jogo de poder, em que os "melhores" conseguirão os louros do sucesso, o respeito e admiração dos demais. Os "fracassados", e só serão "fracassados", pois não tiveram competência para o alcance do sucesso, serão excluídos do convívio dos bem sucedidos da sociedade, sendo isolados e estigmatizados (rotulados).

No tocante à esfera econômica, houve a reestruturação do Estado, o que favoreceu a burguesia, que reivindicava melhores condições para seu desenvolvimento, advindo assim o liberalismo. O caminho foi aberto para a burguesia da época imprimir seus objetivos mercadológicos; o sistema do Estado liberal-econômico proporciona uma acirrada competição entre os indivíduos, deixando que um se sobreponha aos outros conforme as próprias "competências". Era um sistema desigual, pois pressupunha a igualdade material de cada um sob a égide da liberdade e igualdade formais que todos gozavam. Em meio à fugacidade do sistema econômico, houve em 1929, a quebra da bolsa de valores, advindo a grande depressão. [34] Com as crises e com o crescimento da miséria, o socialismo [35] constitui-se em paradoxo-paradigmático ameaçador do liberalismo-capitalista. Aquele ao contrário do liberalismo, procurava incluir os indivíduos no ambiente social, favorecendo o desenvolvimento igualitário, material, de todos.

Tendo como ameaça o socialismo, os liberais começaram a sofrer pressões sociais, revoltas, greves, protestos para uma melhor distribuição de oportunidades a todos. Acolhendo as exigências das classes trabalhadoras, que, em épocas passadas, não detinham os direitos de segunda dimensão (os sociais). Surge, desta forma, o Estado de Bem-Estar Social – "Sistema econômico baseado na livre-empresa, mas com acentuada participação do Estado na promoção de benefícios sociais. Seu objetivo é proporcionar ao conjunto dos cidadãos padrões de vida mínimos, desenvolver a produção de bens e serviços sociais, controlar o ciclo econômico e ajustar o total da produção, considerando os custos e as rendas sociais" [36] – que procurava auxiliar os pobres (acalmando-os), ao montar mecanismos de assistência social. Doravante, seu intuito principal era afastar a ameaça da dominação do sistema socialista.

Com a dissolução da União Soviética, uma das poucas nações – podemos dizer assim – que durante a depressão cresceu economicamente, tem fim a ameaça socialista. A partir deste fato reinicia uma reestruturação na política estatal-econômica, surgindo o neoliberalismo, juntamente com a globalização (e seu mercado de capitais, que relativizou a certeza do tempo e espaço na auferição de capital). Inicia então, um forte controle de supostas forças que prejudicarão o sistema e o impedimento de liberar as conspirações que, da mesma forma, auxiliarão o sistema na consecução dos seus objetivos.

De fato, agora o grupo é apenas uma forma de ascensão ou referência da localização de classe. A sobrevivência não mais depende do aspecto coletivo, mas passa para as próprias forças econômicas individuais no ambiente em viés de globalização. [37] Prepondera o aspecto individualista do eu sobre o coletivo do nós. Por meio desta força-econômica compra-se os meios essenciais à vida. No entanto, esses meios essenciais à vida serão fornecidos por outros humanos. Dessa forma, o contato com seu semelhante não cessa por completo. Logo, a radicalização do paradoxo cresce a cada momento.

No mais, é imprescindível destacar as atuais conjunturas pelas quais passa a sociedade, já denominada de Sociedade de Risco. Não por mero deleite filosófico, mas por questões condizentes às dinâmicas de que estamos tratando. Por isso, apenas se pincelará alguns aspectos da insegurança hodiernamente difundida, devido à proposta de atualidade enfocada no trabalho.

De acordo com a digressão acima realizada, a sociedade sempre limitou-se a questões espaciais-econômicas que atualmente viraram temporais-econômicas. Abro o seguinte parêntese: a questão espaço-tempo tem significado histórico de suma importância, então giza-se: no passado, por exemplo, na época das navegações, o espaço era o fator preponderante, curial era superá-lo não importando o tempo para isso; após o invento de tipos de impulsão (vapor) o espaço e o tempo passaram a ser equivalentes em sua importância, a necessidade era percorrer o certo espaço em determinado tempo, dentro de determinado estimativa; no entanto, contemporaneamente, o tempo sobrepõe-se ao espaço, pela premência de utilizar um reduzido tempo para percorrer "espaço nenhum", ou seja, não há mais espaço no mundo "virtualizado". A quebra deste binômio, considerado indissociável, é patente e recorrente no mundo econômico, até mesmo no criminal. Fecha-se o parêntese.

O Planeta Terra virou uma grande aldeia – devido aos meios de comunicação-transporte que possibilitam, a um indivíduo "estar em vários locais" ao mesmo tempo ou em curto período de tempo e, ainda, pela globalização das conseqüências maléficas de tragédias ambientais... Denota-se daí a quebra de barreiras espaciais, ou seja, através da interconexão entre tudo e todos é possível, simultaneamente, interferir, influenciar o outro lado do globo. Com a grande expansão do conhecimento, da técnica, e da ciência, conquistou-se avanços, velozmente, relevantes e de singularidade histórica, em todas as áreas. Vem-se progredindo de forma ascendente de maneira a beneficiar a humanidade. O inverso é verdadeiro. O progredir acarreta conseqüências nefastas. Se por um lado o benefício é relevante, o malefício, com os novos conhecimentos, é proporcionalmente igual. O perigo representado por certos conhecimentos é a demonstração da atual adjetivação da sociedade de constituição complexa, de risco. [38]

Infere-se, desde já, a condição de insegurança em que a coletividade está imersa. Não há fronteiras para os malefícios, haja vista as conseqüências de tragédias ambientais e de crimes econômicos – se assim pode-se, desde já, antecipar algumas considerações de tópico subseqüente. Estas transpassam as fronteiras políticas, econômicas e temporais; melhor dizendo, não há como prever e impedir resultados dentro de limites desejados pelo Homem. O desconhecido paira no ar social. Nem mesmo os detentores do conhecimento conseguem predizer as implicações de seus labores. Descobre-se agora a falibilidade da Ciência, pois nem tudo para ela é possível, muito menos as soluções dos problemas criados. [39] Para legitimarem seus "inventos" e ganhos econômicos, sem alarme social, divulgam (ou omitem) a parcialidade de resultados ou mesmo apresentam resultados falsos de pesquisas. Por vezes, encontram guarida do Estado. No entanto, ao mesmo em que o risco paira sobre a sociedade, a mentira e a aparência também estão presentes.

A promessa da modernidade da segurança e ordem está se esvaindo (ou se esvaiu). Não se pode mais, pelo menos na contemporaneidade, acreditar na segurança, no risco controlado; o descontrole no domínio do meio ambiente, no mercado econômico, na política, na tecno-ciência, na possibilidade de uma guerra nuclear... As ocorrências de conseqüências maléficas nunca foram afastar da sociedade, no entanto, nem tão radicalizada e globalizada quando na atualidade. Melhor dizendo, ninguém, no globo terrestre está imune de sofrer distúrbios provocados por fatores da globalização.

Não se quer atribuir ao Homem uma atitude de profilaxia e nem de sentimento de desespero. Ao contrário, a tendência é de buscar soluções. Para tal objetivo é saliente a procura de resposta no Direito, pois este sempre foi o "porto seguro" da sociedade; eis que é tido como paradigma da ordem e segurança. No entanto, é perceptível aos indivíduos de "boa vontade" a crise pela qual está a passar o Direito.

Não há dimensões paralelas entre o Direito e a sociedade; é ilusão não associar o Direito às dinâmicas sociais, já que este é produzido (criado) pela cultura humana. A neutralidade axiológica não é mais o estandarte do jurídico, é necessário assumir uma posição de aceitação de influências de valores. Com este mecanismo pode-se relevar a autonomia do Direito no aspecto de escolha, partindo-se da seleção em direção à intervenção na realidade social; o Direito escolhe seus valores e assume o seu papel institucional e institucionalizador.

O risco é uma condição criada pelo ser humano, [40] dessa forma, deve ele olhar para si e encontrar, em si, as causas dos problemas e as suas soluções. Para a resolução – ou redução – dos riscos, o Homem deve se valer dos institutos por ele criados, seja o Direito, a Economia, o Estado, a Política, etc. Atribuir a total responsabilidade dos problemas a estas – ou a uma das – esferas da cultura é afastar a responsabilidade do eu, dos outros e do nós. Tem-se, neste desígnio, a claudicante estruturação do ser social devido ao fato da convivência com os demais exigir a responsabilização do indivíduo.

Em suma, a sociedade de constituição complexa oferece um ambiente de risco globalizado, sem fronteiras, sem previsões quanto ao seu resultado. O caminho, nesta tortuosa situação, se perfaz com atitude reflexiva da própria condição humana. A fuga dos problemas atribuindo ao outro (seja concreto ou abstrato) não é mais do que fugir da sua própria consciência. É imanente ao civilitas a responsabilidade do conviver, da alteridade. Ensimesmar-se é um atributo Humano, mas exteriorizar-se, expressar a própria vontade, também; se a primeira demonstra uma atitude reflexiva, racional, expressar, agir, de acordo com esta condição denota, ao exterior, a socialização racional. A sociedade vive o afloramento das extremidades, ou seja o extremismo de todos os seus atos e fatos conectados numa rede de causas e conseqüências regidas pelo princípio da causalidade, não mais metafísico, racional-físico, que é disparado pela mão humana e calculadas pela razão, mas impulsionadas, volitivamente, pelo interesse material e funcionalizadas pela amoralidade valorativa.

Sociedade do risco, também, dos extremos, inevitavelmente, influência o Direito e, principalmente, no ramo Penal. A última ratio se torna, hodiernamente, equivocadamente, a única solutio, ou seja, o apelo ao Direito Penal é imediato e considerado como único meio possível de assegurar a estabilidade, afastando o risco. O ilusionismo criado pela massificação da informação apelante ao fortalecimento da repressão, o apoio do ius puniendi, pelo do viés da opressão penal, [41] pensa solucionar os problemas de raiz ontologicamente sócio-individual.


2. Direito (Penal) e Sua Operacionalidade

É curial destacar a relevância da operacionalidade do Direito como sistema e, também, principalmente, o ramo do penal como microssistema que se interligam cambiando influências. Mas, ainda, deve-se ter em destaque que esse cosmos está inserido no macrossistema social que engloba, na sua interdisciplinariedade, as diversas facetas da "vida real". Dessa forma, o trânsito por peculiaridades do penal, no tangenciador de uma visão holística, é teleologicamente guiado para a percepção do âmago do penal.

Logo, a conformação sistêmica do penal em decorrência do individualismo, como acirrador de conflitos, torna-se desvirtuada das proposições metafóricas dos contratualistas. Melhor dizendo, o indivíduo não cede seus direitos ao Estado e este os protege; agora a metáfora pode ser invertida O Estado – ente supremo – concede, conforme sua "vontade", direitos aos seus súditos, ou jurisdicionados.

Frisa-se, também, a confusão que se criou entre Estado e Direito. [42] Isso, devido à relação de origem entre o ente institucionalizador-garantidor da normatividade e os comandos normativos. No entanto, as esferas do Estado e do Direito não devem ser confundidas, pois o Estado é destinatário de comandos normativos, que pelo princípio da legalidade, deve observar estritamente; logo sua inobservância acarreta conseqüências jurídicas. Além do mais, nem todo o Direito teve sua origem ou reflete no aparelho estatal. Este tema é complexo e foge ao fôlego deste trabalho, no entanto, esta confusão será usada de maneira incontestavelmente aceita na esfera "não-técnica", Política, do Direito. Isso devido à problemática posta entre a política penal, que emana do Estado, e o individualismo que emana, basicamente, do homem influenciado por valores que serão discutidos mais adiante.

2.1 Direito contemporâneo: uma visão crítica

2.1.1. Breves considerações históricas

O Direito não pode mais ser tratado como elemento a parte das dinâmicas sociais, ou seja, dotado de autonomia [43] plena e irrestrita, sem qualquer contato com os demais ramos do saber. Sua função não se reduz a, simplesmente, ditar normas axiologicamente neutras ou com pouca significância valorativa. [44] Concebe-se que esta visão ascética do positivismo ortodoxo não é mais aceita sem críticas, embora haja vozes isoladas que insistem em atribuir esta (a) valoração ao Direito. Como se esta posição fosse neutra ideologicamente.

O Direito, como elemento prático-normativo, tem imbricações profundas na sociedade, pois ele é concebido sobre a regra do dever-ser, ou melhor, sobre uma perspectiva hipotética de se tornar de fato um ser ou, pelo menos, através da sua força coativa, a transformar a esfera do dever-ser em ser, o hipotético no real. Isto implica, imediatamente, sua normatividade como uma força coativa; [45] logo, este é guiado por posições políticas que afetam as estruturas sociais. A informação recolhida do jurídico acaba, diretamente, a interagir e imiscuir-se na realidade social.

Assim, o Direito é uma entidade humano-cultural. É que tanto basta para sabermos que ele se projecta em múltiplos planos – em todos os planos em que participa a realidade humana, histórico, social, cultural... [46] Isso dota o campo do jurídico de complexidade ímpar e possibilita que haja, nos meandros obscuros do jurídico, explicações esclarecedoras da postura política adotada.

O sistema jurídico começa por ser reconhecido como tal através da construção romana do Direito. Embora os gregos houvessem lidado com a idéia de Justiça, eles não distinguiam o direito, a justiça, a ética, a política; tudo se encontrava no âmbito da filosofia. Como marco histórico de suma importância, o Corpus Iuris Civilis foi o legado deixado pelo Império do Oriente. É destacável o Corpus Iuris Civilis, confeccionado no Império Romano (justinianeo) a mando do Imperador Justiniano e recepcionado pela Escola dos Glosadores de Bolonha, [47] na Itália, no século XI. É um marco histórico-jurídico sem precedentes, pois influenciou cabalmente a metodologia, em sentido amplo, do Direito e que mesmo hodiernamente, séculos mais tarde, sente reflexos desta "coletânea" de normas [48] – haja vista o Código Civil Francês –. Além do mais, sobre os alicerces do direito romano justineaneu surge o ius commune [49] que, sem ser imposto autoritariamente, ou seja, por um poder constituído, foi se difundindo, por mérito próprio, a unificar princípios pela Europa. O que na atualidade está a se tentar construir em termos de União Européia, uniformizando as nações em princípios comuns (principalmente no que se refere à economia); na época se concretizou, ou seja, um ordenamento jurídico unívoco e com um idioma corrente comum; com isso os doutores e operadores do Direito, imprescindivelmente deveriam manipular o latim, mas não serviu, apenas, como um meio comunicação; serviu, também, como critica combativa entre dois segmentos de juristas: os Humanistas e os do mos italicus. Os primeiros polemizaram o mau uso do latim, ou melhor, o latim dos juristas do mos italicus não expressava o latim "puro" da época de Justiniano; por isso, a malta do mos italicus era acusada de laborar sobre textos alterados que não mais refletiam a fidedignidade da letra do texto [50]. A crítica humanista se estende, no sentido de afastamento dos textos clássicos, pois os juristas do mos italicus interpretavam as interpretações e comentavam comentários, se auto-referenciavam. Os humanistas, juristas cultos, estudavam filologia, história, latim, grego, etc. e procuravam beber na fonte clássica dos textos romanos; percebiam, assim, que o Corpus Iuris Civilis refletia parte da História do Direito Romano. Esses estudos revelam uma desfiguração no direito puro ocasionada pela compilação justinianea feita por Tribuniano [51] e pelos juristas que o acompanhavam.

É importante sublinhar, ainda, que o ius commune conseguiu relacionar-se de maneira a se enquadrar com o ius proprium, de cada Estado – região –, dando-lhe parâmetros gerais em sua operacionalidade; esta, guiada pela força dos textos do ius commune e da opinium doctorum. Conforme o direito de cada Estado se destacava, o direito comum cumpria a função de fonte subsidiária. Marques (2003) destaca desta forma:

No período do ius commune não existe a ideia de sistema jurídico auto-suficiente, tal como será defendido mais tarde pelo pensamento jurídico positivista do século XIX. O direito nacional encontra o seu prolongamento natural nos direitos romano e canónico. São estes dois direitos que fecham a cúpula do ordenamento jurídico. A relação do ius commune com o direito dos reinos particulares (ius proprium) é de intimidade. [52]

Então, com o correr do processo secularizador, [53] civilizatório e pelas novas exigências sociais o direito romano, no que toca ao direito comum, torna-se insuficiente, deixando desprotegidos vários aspectos que surgem da vida cotidiana. A escola dos comentadores conseguem estender o estudo dos textos justinianeo com comentários e interpretações que possibilitavam uma espécie de atualização ao modus operandis societatis. Com o decorrer do tempo a evolução social impulsionada pelo comércio e o avanço científico desvelam uma crise em todas as bases institucionais da sociedade surgindo, então uma nova concepção, secularizada, de Mundo e de Homem. Inicia-se um período de crise do ius commune e começa a florescer o jusnaturalismo racionalista. Assim escreve Marques (2003):

A crise do ius commune, visível, já no século XV, irá acentuar-se com a emergência do jusnaturalismo racionalista. Ao refutar a tradição, esta corrente mostra os seus intuitos destruidores no que respeita aos princípios nucleares que constituem o cimento da formação organizacional da ordem instituída. Começam a perfilar-se os pressupostos que irão conduzir à ideia de código como um conjunto de normas simples, claras e autossuficientes, impostas pelo Estado. A crença na capacidade intrínseca do homem põe em causa a credibilidade dos velhos instrumentos metodológicos de obtenção da verdade. (...) Os modernos, invocando novos paradigmas e novas positividades, olham para o direito vigente como um conjunto transformável. Surge então uma vasta bibliografia cujo objectivo é o de dar resposta às novas exigências de reordenamento racional do direito positivo. Estas obras, ostentando uma concepção racionalista da ética, ou, em termos mais gerais, uma concepção racionalista da filosofia, apontam as virtualidades da razão humana como fonte autêntica da justiça natural. (...) A produção de um corpo de direito ordenado segundo os novos princípios pressupõe uma recolha de critérios normativos que sejam a expressão da razão natural. Na expressão de Domat, «as leis do homem são as regras da sua conduta». Ora, dadas as limitações do direito canónico no foro secular, o Corpus Iuris surge ainda aos olhos de muitos juristas como único corpo de leis onde se encontram depositadas muitas das verdadeiras regras do direito civil. [54]

A História mostra a progressiva complexidade dos ramos do conhecimento. A revolução científica do século XVI, o Homem passa da visão teocêntrica para a antropocêntrica abalando o suporte do saber medieval que tinha por base o critério da fé e da revelação. [55]

Continua Gauer (1996):

O homem moderno deixou de admitir uma concepção puramente contemplativa de ciência, desligada da tecnologia. A nova cosmovisão da ciência moderna criou um novo homem, cujo valor se encontrava não mais na linhagem familiar, mas no prestígio resultante do seu esforço e capacidade de produzir. Esse novo homem – indivíduo – rompeu com a visão holística da sociedade. A concepção da ciência moderna ligava a investigação das forças da natureza à utilidade das mesmas para beneficiar a humanidade. A ciência deixava de ser serva da teologia. Nesse sentido, a contemplação formal e finalista foi substituída por um saber que produzia uma técnica capaz de auxiliar o homem. As inovações científicas forma expressão do esfacelamento do mundo feudal. O racionalismo, poder exclusivo da razão de discernir, distinguir e comparar, substituiu o dogmatismo medieval, assumindo uma atitude crítica e polêmica perante a tradição. O antopocentrismo eliminou o pensamento teocêntrico (centrado na figura de Deus), possibilitando ao homem moderno colocar-se a si próprio no centro alterando, assim, a visão de mundo. [56]

Envolto nesta nova complexidade, que ocorre com a revolução científica, o Direito ganha novas configurações (complexidades), como ocorre com todo o saber humano; não pode mais ser simplificado como um elemento tridimensional, como Reale (1975) [57] acentua, fato, valor e norma, mas pode-se acrescentar, atualmente, outros fatores incidentes, tornando-o multi-dimensional; logo, o Direito é formado por uma pluralidade de fatores. Pode-se pensar, ainda, em outras dimensões, pois, com o percorrer evolutivo do conhecimento jurídico, descortina-se novas "verdades" [58], novos horizontes das inúmeras dimensões que formam a racionalidade hodierna. Como o tempo e o espaço.

A partir de novos paradigmas o Direito contemporâneo começou a se estruturar através do jusnaturalismo, como nos informa Gauer (1996):

O jusnaturalismo cortou por completo os dogmas doutrinários do velho direito contido no corpus iuris civilis. O novo direito partia de um novo paradigma, o paradigma da razão, da lógica racional. O racionalismo, poder exclusivo da razão, substituiu o dogmatismo do velho direito medieval, desenvolvendo a mentalidade crítica e assumindo uma atitude polêmica perante a tradição. O corpo teórico do direito natural criou uma nova concepção antropológica. A concepção antropocêntrica libertou o homem do teocentrismo aristotélico-escolástico, criando um modo particular de encarar a realidade. [59]

Como se denota das considerações acima, começa a aflorar, pelo predomínio da razão uma concepção de Estado e de Direito na direção de contrapor-se à ordem instituída do jusnaturalismo-religioso. O jusnaturalismo-racionalista ganha volume, não apenas em adeptos, mas na formação e fundamentação de um movimento que pende a cambiar a ordem vigente. O Homem desvincula-se da crença de um Deus manipulador e passa a crer nas aptidões racionais de si próprio. O destino do ser humano adquire ares de independência, autonomia, liberdade-igualdade, frente à posição teocêntrica. O antropocentrismo eleva-se, localizando-se na posição de preponderância e no mesmo talante o Estado e, por conseqüência, o Direito se conformara a nova visão. São, agora, produções da racionalidade humana.

Para a afirmação desta nova visualização do mundo, surgem teorias justificadoras da estruturação do aparelho de estado. Isso para legitimar a monopolização, acima abordada da força física, da arrecadação de tributos e da produção do Direito. Nesta fase, o Estado concentra todo o poder de normatização e, portanto, de controle social. Estas teorias emergem para consolidar o Estado-de-Direito e foram impulsionadas e impulsionadoras da Revolução Francesa [60]; movimento símbolo da mudança de status entre a burguesia, querendo seu espaço, e a nobreza, desejando manter suas prerrogativas.

A Revolução Francesa veio no sentido de inovar, acabar com as instituições então vigentes e implantar outra ordem, que aniquilar os privilégios estamentais, vigorantes no regime feudal; possibilitou uma proteção a todos os cidadãos franceses, principalmente aos burgueses. Destaca-se, ainda, que os legisladores franceses, revolucionários, pretendiam legar ao Mundo, ou seja, para o gênero humano neste empreendimento revolucionário, importante foi a idéia geral e abstrata tida de Homem, individualizado, [61] levando, não só à França, mas ao mundo, a intenção da valorização, em relação à antiga concepção, e resguardo de direitos. Prerrogativas adquiridas apenas pela condição natural de ser racional [62] (deu-se o inicio de uma caminhada, ainda longe de alcançar seu destino, a um maior respeito à dignidade humana).

Deste confronto, pode-se dizer, vencido pela força revolucionária, traz-se à tona o jusnaturalismo e, juntamente, as teorias contratualistas. Estas matizaram, através de um mito, a funcionalidade do aparelho jurídico. Podem ser resumidas do seguinte modo: - os autores que aderem a esta corrente elocubraram teorias que estruturam e explicam, em parte, a conformação burguesa do Estado – em um determinado momento sócio-histórico, cogitou-se a necessidade de um acordo entre os homens, por não suportarem mais a insegurança do estado de natureza, beligerante – estado em que a liberdade é delimitada pela força física, ou melhor, estado de desordem. Assim, resolveram pactuar para a criação de órgão que tivesse poder soberano, com limites, sobre cada indivíduo. Dessa forma, cada pessoa cedeu parte de seu direito natural. Com a soma do direito de todos, foi instituído um ente superior com a função de garantir os gozos dos direitos naturais, civis e da segurança (advindos do pacto) dos Homens, surgidos deste acordo.

O Estado [63] encontra sua justificação no mútuo consentimento de seus integrantes. É notório que as teorias contratualistas explicam o que está posto, ou seja, legitimam, pelo viés do consenso, o Estado burguês e o poder deste sobre os jurisdicionados. Cabe sublinhar que a maioria dos contratualistas tem a consciência de estarem a teorizar sobre um mito. Em "determinado momento houve a reunião de todos e a criação do Estado através do contrato", usam essa metáfora, para expressar o consentimento e a adesão de todos em relação à legitimidade do poder soberano do Estado. Ainda, para reafirmarem o monismo estatal da produção do Direito. Com isto, o Estado adquire o respeito necessário para sua operacionalidade no âmbito interno e externo; através da passagem da responsabilização de cada Homem, contratante, pelo consentimento firmado – surge, logo, o princípio do pacta sunt servanda.

A partir daí, pode-se citar alguns autores que colaboraram com o fortalecimento deste mito, como: Suarez, Grócio, Hobbes, Spinoza, Leibniz, Pufendorf, Thomasius, Wolf, Locke, Montesquieu, Beccaria, Rousseau, Kant, etc. [64] Cada um destes autores problematiza o status libertatis, a autonomia do Homem sobre enfoques diferentes. No entanto, o ponto fulcral do jusnaturalismo baseia-se no corte do mundo teocêntrico, dado construído e determinado por uma entidade metafísica, para uma nova realidade em que o Homem assume a responsabilidade pela construção e direção do cosmos mundanal. Partem duma situação de desordem e perigo para inserir racionalmente estruturas de fornecimento de ordem e segurança.

O jusnaturalismo-racionalista, em suma, busca na natureza racional do Homem leis naturais captáveis pela razão intrínsecas a sua condição humana. Os autores acima citados foram cabais para projetar o que chamamos de Estado demo-liberal. Partindo de suas concepções, modelaram-se institutos formadores do aparelho estatal [65]. Por lógico que o mundo jurídico sofreu modificações bruscas em sua funcionalidade. Em decorrência disso, é difícil delimitar em que instância começa o Direito e em que medida finda o Estado. A confusão entre estas duas esferas de poder se deve pelo monopólio do Estado frente à produção de normas jurídicas e pela inadmissibilidade de qualquer outra fonte produtora de Direito além do Estado (legalismo) – apenas subsidiariamente. Assim acentua Marques (2003):

O jusnaturalismo é potencialmente destruidor porque refuta a tradição e as velhas autoridades e defende um direito assente sobre regras de carácter intemporal válidas para todos os homens. O Estado que se forjou a partir do contrato social só reconhece o direito criado nas instâncias oficiais, «a obrigatoriedade deixa de ser uma noção própria da Filosofia prática e passa a ser considerada exclusivamente como uma peculiaridade da actividade do Estado, quer dizer, da Autoridade pública». (1488 Cfr. Francisco Carpintero, Los inicios del positivismo jurídico cit., 93.) O direito que antecede o Estado constitucional e o que se lhe seguiu é ainda muito marcado pelo diálogo entre os desacreditados quadros mentais do ius commune e os princípios impostos pelo jusnaturalismo racionalista. Devido à feição mais abstracta destes princípios, o predomínio das idéias sobre aqueles quadros que se forjaram a partir das realidades da vida é cada vez mais evidente. Dada a feição racionalista deste movimento cria-se o ambiente propício para a afirmação das grandes construções lógicas e para o domínio de todo o direito a partir daquela fonte que se entende ser a única adequada para se exprimirem os ditames da razão: a lei. Esta passa a unificar a razão e o poder, isto é, passa a encerrar em si as propriedades que a tradição teológica medieval extraída do vértice de como figura divinizada (voluntas legislatoris). Esta simbiose (poder-razão) tem como consequências metodológicas o reforço do método lógico-dedutivo e a superação da tópica casuística. A lei, como fonte da voluntas estadual e como prescrição universal, harmónica, aureolada de plenitude, vê estreitar-se o seu potencial de sentido. Está em marcha a instauração da figura do legislador racional. [66]

Com isso, a política do Estado era orientada pelos preceitos do direito natural, devendo segui-lo, não ultrapassando-o em seus preceitos, ou melhor, o direito natural constituía-se em paradigma do direito estatal, a esta altura o legislador interpretava e especificava o direito positivo em face delimitadamente do direito natural. A razão explicitava o naturalmente implícito.

A racionalidade capta o direito natural, localizando os preceitos abstraídos na esfera da cultura humana, ou seja, como produto exclusivo do ser humano. O movimento de codificação aflora, marcado pelo Code Civil (1804) francês, para reduzir complexidades e pela superação do mundo das legitimidades espontâneas e tradicionais que caracterizam o sistema do ius commune. [67] Nas condições para o direito positivo codificado, como orientação legislativa já com a preponderância dos ditames do direito positivo-legalista os limites naturais passam a não existir, sendo assim, o poder do Estado e sua política, determinam amplamente os preceitos-valorativos merecedores de figurarem no rol de leis jurídicas. [68]

No entanto, a distinção entre Direito e Estado, anteriormente à total monopolização do Direito pelo Estado, era clara, se, tomar-se exemplo do ius commune com seus costumes tradicionalmente aceitos. Esta confusão é divida pela tal assunção estatal na condução e produção jurídica; ao contrário, se houvesse divisão nesta produção, o Direito havia de ser distinguido como uma instituição à parte do Estado. Por exemplo: se costume, de fato, fosse colocado no mesmo patamar jurídico que a lei (legislativa), ou seja, se a lei originasse-se de outras fontes que não, somente, pelo meio legislativo do Estado; isto fortaleceria a idéia de que o jurídico é composto por outros fatores normatizantes que não somente a lei e, além do mais, em relação ao costume que é produzido pelo movimento societário e não por um corpo de legisladores, legitimaria, desde o início, muitas vezes imperceptível, a norma.

Dessa forma, o Direito, em sua amplitude metodológica, constituiria-se de fontes distintas pela lei, a legislação estatal e o costume, numa adaptativa dinâmica social. Pode-se remeter a duas escolas representativas do costume e da lei respectivamente, a escola histórica e a escola da exegese. Esses dois filões do pensamento jurídico ditaram as regras metodológicas do direito em seus países, em épocas – praticamente – concomitantes, a influenciar o Direito. A reivindicação, baseada sobre no exaurimento do atual modelo predominante de ciência jurídica, metafísico-idealista ou, ainda, formal-positivista, está a forçar o sistema a superações institucionalizantes que estão a ocasionar colapsos no seu núcleo base, a lei e seus princípios moderno-iluministas. A força, movida por imperativos pluralistas, pende à radical democratização do processo centralizado, ou seja, a uma descentralização monopolista do poder para a participação da comunidade com suas estratégias, como Wolkmer (2001) destaca:

Vêem-se pois, os traços demarcadores dessas condições que se incorporam e se reproduzem, funcionando como "fundamentos" de eficácia "material" e "formal", no agir dessa proposta de alargamento do poder societário frente ao poder do Estado, do poder público ao privado, do poder local ou periférico ao poder global ou central etc. Mais atentamente, e procurando sistematizar, dir-se-ia que a articulação deste projeto cultural pluralista e emancipatório que permite aduzir um "novo" Direito - um Direito produzido pelo poder da comunidade e não mais unicamente pelo Estado - envolverá o desenvolvimento de duas condições básicas:

a) fundamentos de efetividade material: engloba o conteúdo, os elementos constitutivos etc.;

b) fundamentos de efetividade formal: refere-se à ordenação prático-procedimental etc. [69]

O movimento jurídico, no percorrer da carruagem histórica, não foi retilíneo e nem uniforme, mas de desuniformidade, de traçados sinuosos. Ao olhar para o período do ius commune, repleto de complexidades (também pluralista) em suas regras jurídicas-sociais, reconhece-se uma coletividade pluralista, mas desigual, tanto na formalidade como na materialidade; o processo civilizatório leva a uma exigência de redução de complexidades, a uma igualdade formal, e uma pretensa-hipotética igualdade material; contemporaneamente ressurge o significante da pluralidade com exigências de igualdade formal e material. Sem dúvida, a complexidade social atual é mais densa em seus imensos problemas, até mesmo pela condição de igualdade material, formal e de liberdade, que compõem a dignidade humana, fim último do mecanismo jurídico.

2.2 O direito hodierno operacionalmente

Ao abordar, de maneira ampla uma parte da história do Direito, encontram-se diferentes tratamentos da normatividade. Não se trata de exaurir algo amplo como o Direito, mas de demonstrar o elo entre épocas determinantes à formação do que encontramos hoje em dia. Logo, a visão que se procura descortinar é a conexão entre o individualismo, o Direito Penal e a violência. Para tal, o Direito como um todo, e o Direito Penal como parte, se inserem nas dinâmicas a serem levadas em consideração.

A estruturação do mecanismo jurídico, a partir do jusnaturalismo-racionalista, implica uma valoração, ou seja, é influenciado por fatores ideológico-valorativos – que não retiram, por vezes, sua autonomia. Como acima abordado, a história demonstra o deslocamento do pensamento jurídico referente a sua construção metodológica implicando imediatamente condições a um condicionado condicionante ao Direito (NEVES, 2003). Logo, a funcionalidade [70] do sistema jurídico é condicionada e condiciona, ao mesmo tempo, o seu interior e o exterior acarretando implicações de duplo sentido em sua operacionalidade. No entanto, essas "condicionantes" variaram conforme o predomínio original da fonte do Direito. Ora, em épocas do ius commune poder-se-ia concluir – parcialmente, pelo menos, – que as condicionantes derivavam, em maior parte, de uma pluralidade de fontes como costume, a opinium doctorum, o ius proprium e etc.; com o advento da legislação normatizadora - ius leges - pode-se indagar que o predomínio de condicionantes advém dos valores do próprio sistema jurídico-político e sua hierarquia coativa. No primeiro, tem-se um movimento de forças centrípetas, que dimanam de fora em direção ao centro de poder; no segundo, o movimento é centrífugo, pois o sentido é do centro monopolista do poder (Estado-Direito) para fora. Essas forças são as principais, no entanto, há sempre movimentos de forças resistentes na direção contrária.

Levando em consideração essas perspectivas, o Estado, através do positivismo jurídico, assume uma posição monista, de monopolizador da força. Não mais uma força arbitrária e ilegítima, capaz de causar sérios danos à imagem e deslegitimar o detentor do poder, anteriormente na figura do Rei, hodiernamente na figura do Presidente, Chefe-de-Estado e Legisladores, etc. Para a legitimação do poder soberano, com o jusnaturalismo, os aparelhos de Estado sofrem profundas alterações. Concebem-se artifícios de controle da arbitrariedade e montam, discursivamente, um ambiente de responsabilização dos cidadãos, frente aos desígnios da societas; e uma neutralidade da norma jurídica. A democracia (re)surge. O Estado Constitucional de Direito toma vigor. Assim, torna-se Estado-Constitucional-Democrático-de-Direito. Isso, de fato, altera a condição do jurídico frente à sociedade. O Direito tem sua operacionalidade alterada pela codificação, pela imposição da lei estatal.

Com efeito impõe-se ao sistema uma racionalidade resultante de uma atmosfera de liberdade, de igualdade e segurança – fundamentos da modernidade [71] –, pelo menos em discurso. Para aparentar a consecução destes princípios, que guarnecem o indivíduo frente ao Estado, a lei é concebida como: a) uma construção hipotético-condicional – ou seja, baseada numa previsibilidade, anteriormente descrita (princípio da Legalidade), se ocorrerem determinados acontecimentos numa realidade prática, condicionalmente, então a resposta para o hipotético-concretizado deverá ser um hipotético-condicionado (a concretização no mundo dos fatos de um postulado hipotético-condicionado pelo hipotético-concretizado); b) formulações universais respeitando a generalidade, a abstração e formalidade: a generalidade trata de atos em geral – sem distinção alguma; a abstração abrange matéria comum a todos; a formalidade é um processo regular pelo qual a lei, para ser considerada preceito jurídico positivo, deve passar – de regra – por um processo legislativo; c) a fundamentação imanente de um sistema de normas (uma unidade coerente); d) a imperatividade, condição essencial para transformar o plano hipotético ao real-concreto – comando, prescrição normativa impositiva originária do poder soberano; e) a perenidade significa a estabilidade da norma frente a contingência da dinâmica relativa histórico individual da concretude humana. Esses requisitos são prementes na configuração do legalismo. Os Códigos, como as leis, devem ser estruturadas pelos alicerces base do Direito.

Com isso, a operacionalidade do Direito com o pensamento moderno-iluminista jogou nas mãos do Estado – monopolista – a tarefa de produção e legitimação da normatização. Conforme destaca Wolkmer (2001):

Em semelhante contexto, o Direito moderno não só se revela como produção de uma dada formação social e econômica, como, principalmente, edifica-se na dinâmica da junção histórica entre a legalidade estatal e a centralização burocrática. O Estado moderno atribui a seus órgãos, legalmente constituídos, a decisão de legislar (Poder Legislativo) e de julgar (Poder Judiciário) através de leis gerais e abstratas, sistematizadas formalmente num corpo denominado Direito Positivo. A validade dessas normas se dá não pela eficácia e aceitação espontâneas da comunidade de indivíduos, mas por terem sido produzidas em conformidade com os mecanismos processuais oficiais, revestidos de coação punitiva, provenientes do poder público. Distintamente das formas pré-modernas e pré-capitalistas, dominadas pela legitimidade tradicional e legitimidade carismática, o Estado Moderno consagra agora a legitimidade jurídico-racional, calcada na despersonalização do poder, na racionalização dos procedimentos normativos e na convicção de uma ‘obediência moralmente motivada’, associada a uma conduta correta. Neste processo de legitimação, a ordem jurídica, além de seu caráter de generalização e abstração, adquire representação formal mediante a legalidade escrita. A lei projeta-se como o limite de um espaço privilegiado, onde se materializa o controle, a defesa dos interesses e os acordos entre os segmentos sociais hegemônicos. Ocorre que, ao criar as leis, o Estado obriga-se, diante da comunidade, a aplicar e a resguardar tais preceituações. Ao respeitar certos direitos dos indivíduos e ao limitar-se à sua própria legislação, o Estado Moderno oficializa uma de suas retóricas mais aclamadas: o ‘Estado de Direito’. A permanente condição do ‘Estado de Direito’ permite e justifica uma certa administração, fundada na pretensa neutralidade de legalidade. O Estado que se legitima na situação de ‘Estado de Direito’ garante-se como um poder soberano máximo, controlado e regulado pelo Direito. Naturalmente, o moderno Direito Capitalista, enquanto produção normativa de uma estrutura política unitária, tende a ocultar o comprometimento e os interesses econômicos da burguesia enriquecida, através de suas características de generalização, abstração e impessoalidade. Sua estrutura formalista e suas regras técnicas dissimulam as contradições sociais e as condições materiais concretas. Em consonância com tais premissas, De la Torre Rangel adverte que esse Direito Moderno, ‘pretendendo ser um Direito igual e supondo igualdade dos homens sem ter em conta os condicionamentos sociais concretos, produz uma lei abstrata, geral e impessoal. ‘Ao estabelecer uma norma igual e um igual tratamento para uns e outros, o Direito Positivo Capitalista, em nome da igualdade abstrata de todos os homens, consagra na realidade as desigualdades concretas’. [72]

Logo, a política, que vigora no Estado produtor e legitimador, impõe suas diretrizes no campo da norma que guiará a ação social. O comportamento normativamente irregular será corrigido pela coação. No entanto, essa questão de relações de poder não reduz o Direito a mero coadjuvante das orientações políticas estatais. Pelo contrário, as normas jurídicas devem ser baseadas em critérios de valores (quais os valores?) benéficos à sociedade, senão o Direito perde seu sentido. Por isso, o campo jurídico, como outras esferas da cultura, atualmente, está a passar por uma crise de paradigmas; é mister observar a pluralidade de valores que se encontram a co-habitar numa mesma sociedade, que apresenta aspectos latentes de insegurança – denominada, por muitos, de sociedade de risco. Perde-se, assim, na contemporaneidade, um dos aspectos da modernidade que é a segurança e o controle. Com isto, o Direito encontra-se no meio de um paradoxo crítico radicalizado, ou seja, o Direito estruturado por princípios perenes, uniformes e que dimanam segurança depara-se, hodiernamente, com uma sociedade insegura, pluralista e com velozes mudanças. Como se denota, há instalada uma crise no modelo de Direito vigente, que insatisfatoriamente vem resistindo às mudanças, como destaca Neves (1976):

Para que uma ordem jurídica possa cumprir a sua função de critério prático-normativo da vida social, substituindo e realizando-se historicamente no cumprimento dessa função, é evidentemente necessário que as suas determinações afirmem um conjunto de intenções, de sentidos e de valorações susceptíveis de, ao mesmo tempo que orientam materialmente a acção social, provocarem e garantirem a adesão prático-comunitária que sustenta a sua vigência e portanto e sua própria existência socialmente histórica. É conteúdo normativo da ordem jurídica que pode fazer dela um critério prático de acção social e são os valores que esse conteúdo normativo implica e manifeita que determinam a adesão prática da vida social de comunidade que se considere. Nenhuma ordem jurídica impõe indiferentemente o que quer que seja, antes prescreve sempre algo que pretende justificar-se pelos fundamentos (materialmente intencionais) que pressupõe e em que se louve. É esta dimensão normativa – i. é, a referência aos valores que fundamentam a sua validade normativa – que uma consideração meramente analítica (descritiva e teorética) da ordem estruturada, que o direito implanta na vida social, não chega a considerar, mas é ela que ùnicamente nos permite compreender o direito naquela função normativa que sua consideração prática (como é decerto a do jurista) não pode ignorar, sem se negar a si própria. [73]

A realização prática do hipotético, dever-ser em ser, é o objetivo do Direito em sua razão prática. A motivação que conduz a coagir, a usar a força na realização dos desígnios marcados, no caso do positivismo, na letra da lei. Isso fica destacado na esfera do Direito Penal. Como última ratio de "controle" o comando deve ser enérgico, conciso e claro em comparação aos demais ramos jurídicos. No entanto, há um contra-senso, o ius puniendi, pois além de usar todos os seus mecanismos, não deve ultrapassar os limites garantidores do indivíduo. Então, a força a ser empregada é mesurada pelos limites e ditames legais. O princípio da legalidade assume a posição máxima da garantia do cidadão frente ao poder estatal.

No entanto, com esta complexa-problemática que atravessa o Direito Penal, destacadamente, a legalidade sofre a força do fluxo social mutacional; resta para ela o centro adaptativo à funcionalidade jurídica. O nullum crimen, nulla poena sine lege, se amplia, ou melhor, funcionaliza-se na materialidade condicionante que deve abarcar as transformações sociais e conseguir satisfazer a política da eficiência penal, numa tentativa de afastar o colapso jurídico-penal. Busca-se, para além do horizonte da segurança e igualdade, um sentido de justiça material – ou jurídica. [74]

Com o deslocamento de horizontes e a agudização das crises do modelo jurídico, procura-se estruturar numa base funcionalista, prática, com variações de valoração, tendo como meta teleológica o alcance de resultados almejados; sem com isso, perceber os fins-valores encetados no mundo social. A super-inflação de legislação nada mais busca do que a consecução dos objetivos; estes, por sua vez, orientados pela pluralidade axiomática indeterminada pelos critérios subjetivos, mas determinados pelos objetivos materiais e processuais. Processo moldado para a concretização do resultado almejado teleologicamente variável. A culpa imunizada de um fundamento ético e de expressão puramente pragmática de um quadro de imputação e punição, na tentativa de imunizar o sistema das suas contradições, implica no princípio da legalidade, que, por sua vez, só terá operacionalidade no momento em que a culpa for sustentável penalmente.

No que tange ao direito criminal tradicional e especial (direito criminal econômico, do ambiente…): coloca-se em voga a questão de tipos-legais – legalidade expandida, pseudo-legalidade – genéricos, abrangentes, que revigorem a eficácia do penal. Levando em consideração que esta condição normativa terá um efeito de maior eficácia (punitiva), em decorrência da maior esfera em que o poder estatal poderá atuar; ainda, no mesmo sentido de eficácia (preventiva), na maior generalidade da norma, na falta de parâmetros que cada indivíduo terá, no hipotético, o receio de agir, sob o medo de ser enquadrado num tipo-legal-penal. Isso tudo sob os auspícios de uma "ética social", de dignidade humana. Destas perquirições, levantam-se diversos problemas de ordem antropo-sócio-jurídicas: Com razão, esta argumentação se coloca. Mas a reta razão a este argumentum somente é encontrada num ambiente de baixo espectro conflitivo, ou seja, em sociedades de pouca complexidade, em que todos, não somente uma classe, tenham oportunidades correlatas de desenvolvimento sócio-cultural, e possam, com seu desenvolvimento sócio-cultural, buscarem subsídios na suas experiências, e assumam a responsabilidade de seus atos, a que tenham um sentimento de solidariedade-cooperativa, além de aceitar o outro, defender o nós, democraticamente igualitária – material e formalmente –, etc.: então, nota-se, que para a generalidade do tipo-penal indefinido – mesmo com o auxílio de uma norma ordenadora que defina a indefinição –, ou amplamente descrito, não descambe – na pena sem previsão legal e no crime sem lei anterior que o defina – na desigualdade (também formal), sócio-individual, e não ressurja o totalitarismo vilipendiador da dignidade humana.

O penal, ao que se percebe da condição humana exposta neste trabalho, deve arranjar outras soluções, do que esta, para a contemporaneidade. Visiona-se, corretamente quando, sob uma base "ético social" houvesse um sentido agregador e cooperador entre indivíduos e entre indivíduo e Estado. No entanto, não há. O que há é a diferença-depreciativa e a competição entre indivíduos e indivíduo e Estado. Pode-se, no continuum tracejar, trazer à baila o seguinte: se o ambiente ético social fosse favorável à integração, cooperação, não haveria necessidade de generalização do tipo-penal e sua maior eficácia (punitiva e preventiva). O problema, embora nestes termos metodologicamente pensados, não se concentra no direito; ressalva-se que a problemática da violência não se encontra no Penal, em si mesmo, pelo menos na sua totalidade, mas na dinâmica humana impulsionada pela claudicante estrutura jurídica. Destaca-se a necessidade de uma ética social pluralista, englobante do todo e a reformulação do jurídico na direção de abarcar e facilitar as condições de adoção das medidas "revolucionárias" em direção a uma nova ética-humana.

O aporte do acima exposto encontra-se nas fórmulas rígidas e no seu processo legitimador que não estão a suportar a velocidade das mudanças e a quebra do paradigma espaço-tempo. Urge a necessidade de reordenar, reformulando-o, o que no passado foi modelo de estabilidade e segurança, não deixando de lado, porém, as conquistas axiológicas do ser humano durante este processo civilizatório, eis que tal procimento representaria um grande retrocesso em termos de humanização. Por isto, a pura funcionalidade do jurídico perseguida é, neste momento, posta em dúvida em relação aos seus valores, tornar a condição da dignidade humana em mero meio recoloca a questão da importância representativa da vida humana em toda a sua amplitude. É correr o risco – insegurança – do regresso de políticas juridiscizadas, impregnadas de uma monoculturalização, de negação da pluralidade.

O positivismo-legalista, também o funcionalista, [75] não corresponde mais aos desígnios formados pela modernidade de organização, de pureza. A globalização e o futuro incerto fogem ao controle do Direito. A crise se robustece pela insistência do Homem em buscar segurança num modelo de ordenamento esgotado, que não responde aos anseios produzidos de pluralismo reconhecidamente axiológico. A descomplexidade da codificação gera, atualmente, o efeito de contrário da segurança num ambiente malheável-pluralista.

2.3 O direito penal e a insegurança

Ao adentrar este tópico foi percorrido um caminho que pretendeu demonstrar o fundamento da operacionalidade do Direito de uma forma geral. Importa, no entanto, a especificação do tema no âmbito Penal. Da mesma forma que o Direito – in genus –, a discussão do Penal [76] será centralizada na sua operacionalidade em meio ao ambiente de risco, pois o capítulo seqüente será restringido à abordagem do movimento lei e ordem. Isso pelo fato deste movimento representar uma ideologia representativa da nova ordem, corrente, mundialmente crescente. Uma ordem seletiva de exclusão, de risco e mal-estar indesejados, juntamente com a tentativa de reafirmação da política neoliberal e resgate do monismo jurídico. O sonho de um ambiente público sem impureza e perigo, sem incômodos ao exercício da liberdade – em seu sentido amplo – daqueles que por razões econômicas-políticas-sociais ostentam seus nomes no rol de homens livres. A dissimetria entre a promessa moderna e a realidade destoa da ação dos institutos promovedores da modernidade, logo isso não deixa de ser um sintoma de esgotamento e, por isso, a necessidade de revitalização do (quase) irrealizado sonho.

O Direito, e inclusivamente o Penal, é constituído pelo formato de um sistema [77] positivista em que opera de forma peculiar e diferenciada das demais instituições culturais. Este operacionalizar é, de alguma forma, jungido de elementos referenciais, captados de uma realidade, filtrado e transformado pela política criminal, pois a perenidade do Direito não pode, com a possibilidade de esclerosar, deixar de acolher as modificações do mundo-cultural-atual, ou seja, suprir de certa forma as expectativas e amenizar as frustrações. Destarte, estabiliza a instabilidade das relações sociais que estão sempre a cambiar. Decorre, desta feita, uma contraposição com o hodierno, devido à contigência de estar, vertiginosamente, a mudar; logo, o instável mundo social não mais obedeça a uma lógica previsível, em que florescem crises dentro do sistema jurídico – principalmente na esfera Penal. A perenidade do Direito não absorve as mudanças com a mesma velocidade com que elas se produzem e, ainda mais, engessa o aparelho jurídico imobilizando-o diante das novas realidades. O dogma Penal e sua estruturação estática tornam, por exemplo, a teoria finalista [78] de Welzel (2001), um ultrapassado teórico, de forma a colapsar a construção penalística calcada a partir desta base teorética. Não se quer reavivar algo arrefecido e insuficiente para lidar com a problemática da contemporaneidade, mas destacar as diferenças de complexidade da época da concepção da teoria de Welzel (2001), por exemplo, e a inadequada resposta que este plano teorético impõe à práxis atual.

O trabalho, envolto num modelo de sistema, proporciona a segurança a que o Direito, classicamente, se propõe a fornecer, no entanto, não é suficiente uma segurança jurídica que cause a insegurança social. A presença do risco, da insegurança, da instabilidade é rotineira a partir do escopo do tudo ou nada de ganhos. Há a finalidade, inconseqüente de buscar resultados – ganhos, seja pecuniários ou científicos, industriais, etc. – sem escandir os resultados danosos, o fato se concentra na atitude a ser tomada. O Penal, por não responder adequadamente com sua tipificação, e com sua força punitiva – individualizadora, para conter abusos, está a sofrer uma hipertrofia em sua legislação e uma super exigência de sua operacionalidade em se adequar à rapidez das mudanças sociais. Como o agravamento da esfera Penal, aquele não pode antecipar-se a atos que ainda não se produziram no mundo dos fatos, melhor dizendo, é preciso da concretude do dano na real dimensão humana para a ação do penal como poder, embora, existam movimentos que estão procurando a penalidade por meio de vaticínios, imputando a meras ações status de penalmente relevantes, antes mesmo que o dano ocorra.

Políticas de reduzir risco e proporcionar segurança são voltadas para a área Penal, como se essa esfera fosse solucionar os problemas com a simples repressão. [79] Ainda, envolto por normas fundantes do sistema Penal, embora com todo o apelo da mídia, não pode sorrateira e despoticamente atuar numa ilegítima repressividade. Não há de ultrapassar o princípio da legalidade, pois caso ocorra o retrocesso, o dano será incalculável; e, ainda, embora haja o princípio da legalidade, que limita o agir penalístico à infração legislativa, é a demonstração da tentativa de contornar este preceito moderno-racional-iluminista.

Em face disso, a operacionalidade Penal encontra-se aturdida de normas específicas a serem postas em práticas, isso em decorrência da insuficiência dos códigos (tipificação comum). Tal realidade não leva a uma redução da complexidade e de risco – insegurança – na qual a esfera jurídica trabalha, mas, pelo contrário, proporciona um aumento de complexidade sem igual, em face de novas exigências legais que especificam, radicalmente, a funcionalidade do sistema Penal, criando, muitas vezes, novas modalidades de delitos e sendo responsáveis por influenciar a criação de novos meios de burlar o Direito. A inventividade é adjetivo próprio da espécie humana. Em decorrência de a norma jurídica impor-se ao futuro, destarte, sempre estará "defasada" a atividade Humana. Vaticínios não cabem ao jurídico, principalmente no campo penal, [80] sob o perigo de causar sérios danos sociais, levando, inclusive, ao caos. O cosmos jurídico trilha uma ordem independente das demais instituições culturais, mas não se pode concluir pela total abstração de influências da experiência das demais.

A onda deste movimento penalizador ocasiona abalos na estrutura social, seja em relação à vítima, ao autor e, também, agudamente, ao grupo específico que a lei penal especializada se dirige, por exemplo: leis ambientais, econômicas, etc. Logo na tentativa de reduzir o risco, acaba-se por criar hipercomplexidades, em decorrência da atuação reducionista, na sua maioria das vezes, simplória de jogar nas redes penais problemas transcendentes a sua operacionalidade e alcance coativo.

Embora as ações de risco hodiernas impliquem, não mais, somente, as conseqüências aos outros [81] do presente, mas, agora, o prejuízo é do nós do presente e do futuro [82]. Panorama este ignorado pela falta de perspectivação coletiva, quer dizer, o interesse individual(izado) não alcança uma perspectiva coletiva (social). O sistema referencial, não só da economia, mas de todas as áreas culturais básicas, é fundado no eu; o Direito, Penal, também, é constituído por uma construção teórica fundamentada na individualização. O filtro pelo qual a conduta humana é usado é, basicamente, montado sobre bases individualista, o que vislumbram o Homem como um ser axiológico auto-constitutivo, ou seja, admite, apenas, que os valores são livremente escolhidos e que as ações são, incondicionalmente – salvo as hipóteses previstas em lei –, reflexo dos valores.

Coloca-se, diante do penal uma problemática em que a solução não pode partir do próprio, deve ter-se como um ponto de auxílio, de apoio na redução ou, até mesmo, dependendo, a aceitação do problema – logo a desproblematização. Embora haja uma criação fecunda de diversas teorias que buscam adaptar o sistema penal aos parâmetros contemporâneos, a resposta – baseando-se neste trabalho – encontra-se no universo social-individual. A inflação de Leis transborda a capacidade de absorção do aparelho administrativo. Volta-se à questão da diferença entre a realidade e a teoria, do ser e dever-ser, da concretização e da abstração. No mundo hipotético há, ontologicamente, diferenças do prático, são dimensões díspares da formação do ser humano. Logo o imaginado não é, necessariamente, concretizado, sendo imprescindíveis reavaliações periódicas até a consecução do almejado. Isto não implica na desvalorização destas duas dimensões, pelo contrário, o reconhecimento das diferenças possibilitará a busca de soluções de maneira eficaz e rápida.

Com efeito, desloca-se a responsabilidade, parcialmente, para o produtor e concretizador de "sonhos", o Homem. O mundo cultural é criado, moldado e mantido pelo Homem; os instrumentos, produtos do meio, são pontos de auxílio para tornar o abstrato em concreto. Fruto de uma realidade problemática a Lei mais política do que jurídica acarreta diversas conseqüências no mundo real. [83] Não cabe a discussão deste tema mas é curial, desde logo, destacar que a má política legislativa acarreta, invariavelmente, distúrbios sociais, abalos no sistema jurídico construído e que por sua operacionalidade positivista-legalista-funcionalizada necessita, conforme a ordem constituída, recepcionar Leis anacrônicas, [84] que acabam por prejudicar, no final ou início, a cadeia jurídica o sistema de garantias do indivíduo em face do poder do Estado. [85] Com reflexos no respeito aos Direito Humanos, incluindo os de primeira [86] e segunda geração. [87] Não obstante, fica firmado o surgimento de demais gerações, sendo uma conseqüência da desatenção prestadas a estas duas gerações de Direitos, frutos de disputas de poder, primeiro do burguês e, na segunda, do proletário.

A busca de horizonte seguro sem diálogo, sem a participação esclarecida de todos (o nós), representa extravio na democracia. Impor Leis Penais, impor uma justiça penal com máxima repressão nada mais significa do que um despotismo travestido e formalizado de democracia. O Penal surge e desenvolve-se no meio de lutas objetivadas para a sua democratização, para a efetivação de propostas demo-liberais, que passam, neste momento, a serem neoliberais. No entanto, ao se encontrar com esta atual conjuntura, de crise, de insegurança, de risco, regride a uma operacionalidade de repressão, anti-garantista, [88] despótica. A assombrosa proliferação Penal, em todos os cantos sociais, e a crescente perda de garantias processuais, na busca de velocidade, apanha um nós desestruturado para suportar o ambiente criado de alto risco, ou seja, se por um lado o eu deve proteger-se de perigos sociais (como o advindo do outro: por exemplo: ambientais, químicos, bélicos, econômicos, etc.), não pode descuidar-se dos desmandos do Estado-poder. Estado que usa desmesuradamente suas prerrogativas em detrimento do risco iminente e, principalmente, na intenção de manter o seu poder em face da ascensão de uma sociedade pluralista, uma sociedade reivindicante no sentido de desmonopolização da produção de Direito.

O Penal não deve e nem suporta abraçar todos os problemas da contemporaneidade. Destaca desta forma Faria Costa (1998):

Por outras palavras: sem direito penal não se pode lutar contra o crime – onto-antropologicamente ele afirma-se irremediavelmente ligado à natureza humana – mas, paradoxalmente, não é ele a arma mais eficaz. Da mesma forma que sem remédios não podemos lutar contra a doença, é evidente que a luta mais eficaz contra esta se faz antes sem, é obvio, a utilização de fármacos. A panóplia da eficácia está fora dele. Está na diminuição da pobreza e da exclusão social. Está na afirmação da material igualdade social. Está na procura de soluções sociais que afastem, na medida do possível, a injustiça do nosso quotidiano. Por isso, o direito penal não é só ultima et extrema ratio quando cotejado com os outros ramos do direito: ele é outrossim razão vicariante na definição e encaminhamento dos comportamentos estadualmente legítimos Ao lado dele e com ele jogam outras instâncias formais de controlo. De certa maneira é porque não funcionaram aquelas outras instâncias que intervem o direito penal. [89]

Portanto, seu escopo deveria concentrar-se na regulamentação da proteção dos valores e bens relevantes socialmente. Implica, ainda, essa conduta acautelatória diante do risco desconhecido, manutenção da insegurança, ou melhor, seu não agravamento. Por isso, o diálogo, a discussão e uma análise fundada em pesquisas e reflexões são de fundamental importância na efetiva operacionalidade do sistema penalístico.


3. O Direito Penal e o Individualismo

Este tópico procura desvendar a relação entre o individualismo-competitivo, a violência e o Direito Penal. Parte do pressuposto de que o foco da violência é dimanado pelo Homem social, ou seja, em que as dimensões do eu, outro e nós estão impregnadas de aspectos individuais e sociais predominando a dinâmica competitiva. Logo, o âmago do fluxo da violência localiza-se no modus vivendi e operandi do ser humano, constituindo o Direito Penal como mecanismo controlador da violência. Desde logo, e partindo do Direito como sistema referencial, é preciso deslocar, dividindo, o problema da violência; primeiramente, focalize a ação social do Homem e, também, identificar no Penal a dinâmica incentivadora da violência. O isolamento destes dois fatores causa uma redução de complexidade, mas que, no entanto, parcializa e possibilita uma visão, apenas, periférica do intricado emaranhado de valores e fatos sociais nos quais o Direito e especificamente o Direito Penal está envolto.

Ademais, invocando esta perspectiva, das inumeráveis possibilidades de análise da violência, a discussão deste último capítulo centrar-se-á na obscura relação entre a tridimensão social: o eu, o tu e o nós, no afloramento da violência em meio ao individualismo e no movimento repressivista lei e ordem. Procura-se um liame entre estas três peculiaridades da contemporaneidade.

3.1 O eu, o outro e o nós

Com o deslocamento do foco de atenção da pessoa, como pertencente ao um estamento imutável, para a concepção de indivíduo, ser dinâmico que pode, através de sua competência mudar de condição, status social, há uma ruptura de paradigmas. Por um lado, a pessoa nascida, principalmente no período medieval, em determinado estamento estava fadada a permanecer nele por toda a vida; no entanto, com as mudanças o indivíduo ganhou mobilidade social através das idéias iluministas de liberdade. Esse novo modo de ver o mundo e o homem provocou a possibilidade de ultrapassar barreiras de classes. Viu-se uma concentração de poderes no indivíduo e uma desconexão deste com a coletividade. A disputa por poder passa a ser através da competência e não mais pela força física, nisto o ensimesmamento se torna radical, atinge a raiz; dilui o nós em outro e em eu, ficando este último isolado em si mesmo, afastando-se de maneira progressiva do sentido coletivo. Como acima abordado, o início – para marcar um ponto referencial – dá-se ou ocorre com a divisão do trabalho. Cada um, neste momento, sobrevive, apenas, com sua força de trabalho e não mais com o auxílio dos demais. Hodiernamente, com a tecnologia e as relações humanas concentradas, basicamente, no econômico-consumista, ocasiona um distanciamento do eu do outro e o enfraquecimento do nós.

Na primeira parte do trabalho procurou-se ressaltar a importância do ambiente social para o Homem e o progressivo afastamento deste da sociedade, embora haja, de fato, a impossibilidade de abandono total, ou seja, de absoluta ruptura de relação do eu com o outro. No mais, faz-se relevante a importância do nós, eis que sem esta conjugação coletiva há um esvaziamento de todo e qualquer conceito de Direito e quiçá de vida. Tentar-se-á deixar assente esta visão conectiva da tridimencionalidade do social eu, outro e nós.

O Homem, como de logo pode-se notar, é, inegavelmente, o ser de maior complexidade deste mundo cognoscente. Sua constituição psíquica-física – racional – transporta-o para a esfera do indefinido, do mutável, da interação com o ambiente, etc; logo, só a morte, ao impedir uma nova mudança, torna o homem no definitivo e imutável si mesmo (...) liberta-o da mudança e o eterniza [90] Tal condição faz com que a especificidade humana consiga, diferente de outros animais, interferir no seu meio de maneira consciente, de tal forma que possa modificar a natureza existente e construir o mundo cultural ao seu redor. Por isso, quando se fala em ser humano pode-se, de maneira abrangente, dividi-lo ser-instinto e ser-razão. A questão, neste momento, não é tornar complexa, mas alertar para a constituição do indivíduo, que ao nascer é só instinto «Id», no decorrer do desenvolvimento aflora-se o «Ego» e o «Superego». [91] Estes fatores o distinguirão, individualizando-o dos demais seres animis. Observa-se que as relações intersubjetivas tornam-se a essência do Homem e a má constituição delas provoca uma hipertrofia tensionadora destas relações, incentivando o conflito. Elias (1994) tece as seguintes observações:

Já enfatizamos que essa noção de individualidade como expressão de um núcleo natural extra-social dentro do indivíduo, em torno do qual os traços "típicos" ou "sociais" se depositam como uma concha, está ligada, por sua vez, a uma vida íntima específica e historicamente determinada. Essa noção está ligada à tensão entre as funções egóicas e superegóicas, de um lado, e as funções instintivas, de outro – uma tensão que jamais, em nenhuma sociedade, está completamente ausente, mas se mostra especialmente intensa e difusa quando o processo civilizador atinge um estágio avançado. Essa tensão – as contradições entre os desejos do indivíduo parcialmente controlados pelo inconsciente e as exigências sociais representadas por seu superego – é o que alimenta constantemente a idéia de um núcleo individual natural, na concha condicionada pela sociedade ou pelo ambiente. Essas contradições fazem parecer evidente ao indivíduo que ele é algo distinto "internamente", enquanto a "sociedade" e as outras pessoas são "externas" e "alheias". Essa forma específica de superego, esse cerceamento especialmente vigoroso e semi-automático de todos os impulsos e afetos direcionados para outrem, foi o que permitiu ao indivíduo – de maneira cada vez mais perceptível à partir do Renascimento – perceber-se como "sujeito" e perceber o mundo como uma coisa separada dele por um abismo, como o "objeto". Isso facultou-lhe ver-se como um observador externo ao restante da natureza, enquanto a natureza o confrontava com uma "paisagem"; facultou-lhe a sentir-se um indivíduo independente de todas as outras pessoas e ver as outras pessoas como um campo "estranho" que originalmente nada tivera a ver com seu ser "interior", como um "ambiente", um "meio", Uma "sociedade". Somente quando o indivíduo pára de tomar a si mesmo como ponto de partida de seu pensamento, pára de fitar o mundo como alguém que olha de "dentro" de sua casa para a rua "lá fora", para as casas "do outro lado", e quando é capaz – por uma nova revolução copernicana em seus pensamentos e sentimentos – de ver a si e a sua concha como parte da rua, de vê-los em relação a toda a rede humana móvel, só então se desfaz, pouco a pouco, seu sentimento de ser uma coisa isolada e contida "do lado de dentro", enquanto os outros são algo separado dele por um abismo, são uma "paisagem", um "ambiente", uma "sociedade". [92]

O aspecto valorativo relevante a ser considerado é o ser-humano, a condição de mortalidade, a vida; põe-se como fim último (Kant, s.d.) como valor máximo a ser curado e exaltado. Há na contemporaneidade uma inversão deste postulado moral kantiano, logo, o que se encontra como o fim não mais são que coisas [93] (acima exposto). Em decorrência disto há uma inversão de valoração do respeitante ao valor do ser humano. Para a percepção do que se está a falar basta evocar Recaséns Siches (1973):

A vida é sempre pessoal, circunstancial, intransferível e responsável. Se mais adiante nos encontramos com vida, nossa ou de outros, que não possua esses atributos, deve dizer-se, (sem atenuação nem dúvida), que não é vida humana no sentido próprio e originário, isto é, vida como realidade radical; será vida, e se se quiser, vida humana, em outro sentido, será outra classe de realidade diferente daquela e, ademais, secundária, derivada, mais ou menos problemática. Tropeçaremos com formas de vida nossa que, por ser nossa, teríamos de chamar de vida humana mas que, por lhe faltarem aqueles atributos, teríamos de chamar, também e ao mesmo tempo não humana ou inumana. Só é propriamente humano em mim o que penso, quero, sinto e executo com meu corpo, sendo eu o sujeito criador disso, ou então: aquilo que a mim mesmo, como tal mim mesmo, me acontece. [94]

O ser humano, está intimamente ligado, na natividade, ao outro (ORTEGA Y GASSET, 1973). Sua existência, necessariamente, se deve à presença ativa do outro, sem a qual inviabiliza-se a existência do eu. Logo, isso implica irredutivelmente uma realidade posta, uma realidade já existente quando da aparição no mundo do indivíduo – eu. Sendo assim, a primeira percepção do eu encontra-se focalizada no outro e no a priori da realidade transcendente do eu. A realidade mundanal e o outro, constituem-se, destarte, numa base concreta do mundo, nos primeiros contatos, constituidores do ser-eu; o alter, portanto, existe, constitui-se, é perceptível prima facie do unus. O ser humano – como eu – apercebe o corpo, a ação, a constituição em ser materialmente objetivado do outro. Assim, infere-se que início da existência do eu só ocorre quando há a percepção do outro, ficando a constituição perceptiva do eu, como eu, para o processo de endoculturação. Daí emergirá do unus e suas peculiaridades. Enquanto esse processo não ocorre é de destacar a imprescindibilidade da existência do outro para o eu. Este é, nestes primeiros momentos de existência, extensão do outro, embora autônomo nos seus desejos instintivos-culturalizantes.

Nesta condição de ser-eu no mundo, como ser humano, diferenciado em relação aos outros animais, percebe-se, de maneira latente, a peculiaridade humana de introspecção, de volver-se a si mesmo e libertar-se das coisas mundanas materiais. A ocorrência desta capacidade, ensimesmamento, demonstra o reconhecimento do eu como eu e a diferenciação do outro, como ser distinto do eu. Nessas condições vislumbra-se a condição de distinguir duas realidades: a do eu, na dimensão de intus, e do outro, alter ego na condição de estranho. Essas realidades distintas guiaram e guiarão a relação inter-subjetiva. O reconhecimento ou o desconhecimento do eu com o outro e do outro com o eu, provoca a tensão, tema do trabalho, inviabilizando a constituição do nós.

Ao vir ao mundo, o eu [95] não se percebe, não consegue distinguir-se como indivíduo capaz de se ensimesmar. Encontra-se aberto a toda influência do outro, até o momento da percepção da possibilidade-condicionadora de isolar-se em si mesmo. A partir dessa faculdade (poder) descobre um mundo próprio, uma realidade que só o próprio eu [96] tangenciona e, ainda, consegue projetar no outro esta mesma capacidade. Não só, o fato de ver no outro características semelhantes – identificantes – o possibilita a considerar o alter como ser humano, como o eu, no entanto, consegue manter a cisão entre estas duas realidade, distintas, pois constituem-se em vivências dissonantes. Dessa forma, pode-se inferir que vida humana, em sua radicalidade, é a do eu. Deve-se isto à impossibilidade de captar o sentir-íntimo do outro, ou seja, à falta de condições de sentir com a mesma intensidade, com as mesmas características as dores e prazeres do outro e o outro do eu. Pode-se presumir, imaginar, questionar a dor, alegria, etc. do outro, mas a do eu é inquestionável e, além do mais, é só o eu (ou o outro em si) que apresenta a real avaliação do que se passa intimamente, [97] no ensimesmamento. Haverá, através das expressões, da comunicação uma suposição, uma hipótese do que ocorre intimamente no outro, no entanto, só estar-se-á perante a aparência; mera presunção.

Há a aparição do outro. Inicia-se o contato e a avaliação do outro. O outro ser distinto do eu distinguem-se-á como "ser humano", ou seja, com semelhanças que o caracterizam como tal, desde o momento aparente da identificação. O outro ser indeterminado ou determinado (individualmente conhecido). [98] Isso revela a relação de não intimidade e de intimidade com o outro. Além do mais, o surgimento do outro implica diversas considerações; considerações influenciadoras e influenciadas de por dinâmicas sócio-individuais.

O horizonte a ser vislumbrado com o surgimento de um ser que o eu identifica como sendo semelhante a si ocasiona tensões, pois este outro interfere diretamente no eu em sua existencialidade, tem opiniões sobre o eu, age de forma cooperativa ou competitiva com o eu, existe no mundo e interfere nele como o/e com o eu e tudo o mais que se pode elucubrar sobre a interação entre as dimensões – eu e outro. Neste peculiar conjuntivo encontra-se o nós. Seja para o bem ou para o mal, a junção constituidora do nós localiza-se na troca de experiências da intersubjetividade. Deste fato retira-se a sociabilidade formativa da coletividade. O relacionamento entre o eu e o outro, é caracterizado pela afeição de afirmação ou negação, seja no sentido de reconhecimento ou do estranhamento. Nestes dois sentidos, há uma atitude do unus em relação ao alter; verifica-se, de qualquer forma, uma realidade constitutiva do unus et alter. Encontra-se, neste momento, a marca da coexistência no mundo e da formação cultural.

Sobrepuja, nesta relação subjetiva, a constituição da coletividade do nós - o eu e o outro somos o nós, no qual nasce a relação social, devido à resposta de uma realidade que o eu enfrenta, a resposta do nós. Destaca-se: isto envolve ações boas ou más; a troca de experiências interacionistas revela tão-só a interação, o envolvimento destas duas realidades. Logicamente que esta condição levará ao ponto fulcral da violência ou da não-violência. Esta interação [99] revelará o que o outro significa para o eu. A compresença desentranha a expectativa do conhecimento do outro, de uma hipotética intimidade do outro, pois a única intimidade real para o eu é a de si próprio. Porém, nesta mesma senda, o outro gera uma expectativa no eu, pelo fato de se mostrar intimamente compresente e, por isso, deixa ansioso o eu, pois não sabe este como o outro agirá. É uma incógnita. Diante, então, do desconhecido, o eu interiorizado esperando a atitude do outro; da mesma maneira o outro age, causando um afastamento de duas realidades, distintas, mas conexas socialmente. Nada mais instintivo, instintivo do homem do que a auto-proteção e o ensimesmamento, pois favorece a criação de um escudo" protetor que é a intimidade; [100] como foi visto, uma realidade que só é realidade para o eu.

Neste momento, localiza-se a conjuntura do individualismo e a negação do nós, ou a falsa constituição do nós. Um não é decorrente do outro, mas a conjuntura sócio-cultural reforça e pontencializa o distanciamento natural pondo obstáculos na tentativa de reaproximação intersubjetiva e conjunção do nós cooperativo. Quando ocorre uma manifestação de junção de eu e outros na perseguição de objetivos comuns desvela-se a junção de propostas individualizadas que se encontram jungidas por um fim comum; entretanto, em nada estão para cooperar entre si além da concretização do pleiteado. Nada além do que uma simples coletivização de eu e outros competindo com outros de interesses antagônicos. A junção de forças, neste caso, significa, tão-somente, o uso da coletividade para o desígnio do próprio eu. Emerge, assim a instrumentalização do humano, usado como suporte para o confronto e conquistas de crétidos – de qualquer natureza [101]. Daí retiram-se, muitos exemplos de fracassos de lutas para o reconhecimento de prerrogativas oficialmente marginalizadas. Destaca Neves (s.d.) da seguinte forma:

Com efeito, não habitamos ou usufruímos o mundo sem a mediação dos outros. Já porque os outros se nos impõem numa interferência, ao manifestarem-se como "obstáculo" na concorrência sobre o mesmo bem-objecto referido no mundo; já porque os outros podem revelar-se como coadjuvantes, nas múltiplas formas de conjugação de esforços, no trabalho, na produção, na inter-acção. No primeiro caso, podemos falar de uma mediação negativa – só se atingem os bens possibilitados pelo mundo numa relação exclusiva com os outros –; No segundo caso, estaremos perante uma mediação positiva – só se atingem os bens possibilitados pelo mundo numa relação inclusiva com os outros.. [102]

O significante da relação inter-individual encontra-se na ameaça representada pelo outro para o eu; na dinâmica de competição o descuido, a abertura para o outro – como ocorre na natividade – pode significar o fracasso ou prejuízo social. A racionalidade econômica de perda e ganho é constante na previsão comportamental no mundanal. E nisto o Direito, instrumento – hodiernamente – de ordenação comportamental, nada mais se tornou que uma extensão do processo de codificação, num meio de operar a funcionalidade ao objetivo a ser concretizado, não valores significativamente importantes para a dignidade do humano, valores condizentes ao prazer materialmente expressivo do/de (alguns) humano(s), politicamente impostos por condições eticamente inversas à dignidade do ser humano; a ideologia, se não absolutiza todo o processo de conhecimento, causa graves distorções num ambiente não-pluralista [103] (no passado, a sacralização do mundano; no contemporâneo, racionalidade econômica do Homem). Indelevelmente a condição vigente influência na interação entre o eu e o outro.

O estranhamento do outro não significa uma ruptura total, mas a construção de uma ligação negativa com o outro. A negação da existência fática do outro continua a existir, entretanto, é baseada numa visão negativa, depreciativa e conflitiva; Ser em si mesmo, é natural, não é basicamente o problema se resultassem numa interação positiva, de tolerância do diferente que não é o eu e está além dele como uma realidade desconhecida. Foi abordada a insegurança que causa o desconhecido, da mesma forma, causa insegurança o desconhecimento do outro.

Emerge, dessa vênia, a relação intersubjetiva do ser dotado de razão. Se a sociedade influencia diretamente ou indiretamente, não cabe aqui a discussão, no entanto, não se pode responsabilizá-la pelos traumas da contemporaneidade, seria responsabilizar o indeterminável e indelimitável. Atribuir a responsabilidade aquém não pode se responsabilizar, pois não subsiste por si própria, nem tem a capacidade de perceber o certo ou errado, a não ser aqueles que a compõem, o Homem, é não responsabilizar ninguém. Coloca-se a problemática da assunção da responsabilidade e liberdade, da autonomia humana em suas determinações. Herança do jusnaturalismo racionalista e vigorada no jusracionalismo, em termos jurídicos. O status libertatis, embora suas restrições, proporciona a legitimação de condutas, ações no espaço social; frisa-se que tal possibilidade denota uma responsabilização do eu, do outro e do nós. Não é possível adentrar a esfera da liberdade, devido à complexidade deste assunto no âmbito deste trabalho. Fica, no entanto, registrado que é na liberdade-racionalista que o Homem cria o mundo, traz a lume o seu mundo de acordo com seus desígnios [104] e, sem dúvida alguma, deve, por isto, ser responsabilizado, pelos resultados sociais, levando em consideração a sua tripartição no eu, no outro e no nós.

3.2 A violência e sua origem no individualismo

As solidariedades da sociedade de constituição simples já se extinguiram ou estão em vias de se extinguirem. Isto em decorrência da ampliação do circulo social das tribos ainda existentes; e ainda, pela introdução e absorção nestes grupos de elementos endógenas à sua cultura. Logo, com o desenvolvimento social, o agrupamento de diversas etnias em regiões próximas e a formação da cidade, perde-se a referência familiar que havia de um grupo inteiro. A família restringe-se, dessa forma, ao um pequeno conjunto ligado, seja por causas oriundas do sangue, seja por afetividade ou até mesmo por questões econômicas. É cabal destacar que há concepções hodiernas que classificam a família como aquela constituída apenas pelo casal heterossexual, também, se discute a questão dos direitos dos homossexuais. [105]

Essa agregação de etnias diversas deu-se de maneira civilizadora voltada a aspectos econômicos. Após o homem descobrir uma função para o excedente da produção; primeiramente a troca, logo a comercialização, as relações entre as pessoas começam a basear-se pelo vínculo econômico. [106] Essa ligação é frágil e tênue, eis que deixa um espaço vazio de afeto entre os indivíduos. Neste momento, inverte-se o postulado kantiano, que se constituem as coisas serem consideradas como o fim e as pessoas como o meio. [107] Para acirrar o ambiente social, advém a divisão do trabalho – decorrência da modernização estatal; com isso, há uma maior especificidade em cada função; a diferenciação dos indivíduos exacerba-se, não há mais semelhanças, mas diferenças. A coesão só se mantém pela solidariedade orgânica, ou seja, pela dependência do outro, que, pela sua função, suprirá, mediante retribuição (troca de bens), as necessidades do eu.

A conexão forte que ligava o indivíduo ao grupo extingue-se, cedendo lugar ao espírito de individualismo [108], ou melhor, o sujeito percebe que sua existência não depende da conjunção de forças do grupo, mas de sua própria força, interagindo com os outros para o suprimento de suas necessidades, como sociais, econômicas, biológicas e psicológicas. Com isso, Gauer (1996) expõe o seguinte:

A última etapa do processo da relação conceptual entre o indivíduo, a Igreja e o mundo é, para Dumont, a Reforma de Calvino sobre Lutero. O autor coloca que "(...) o elemento mundano antagônico, ao qual o indivíduo devia ‘faire place’, desapareceu internamente na teocracia de Calvino. O campo é absolutamente unificado. O indivíduo é agora o mundo, e o valor individualista reina sem restrição nem limitação. Temos diante de nós o indivíduo-no-mundo, na opinião do autor (Dumont, Louis. op. cit. p. 60.). Podemos dizer que os indivíduos passaram a encarnar o outro mundo em sua ação neste mundo; sua legitimação é a participação neste mundo e não o refúgio em outro mundo. [109]

As sociedades de constituição complexas apresentam sua base construída pela visão individualista que força a um isolamento, eis que nas sociedades de constituição simples não havia. Neste ponto, encontra-se o contra-senso. Fazem parte de uma sociedade mais extensa e pluralista que ao mesmo tempo as pessoas são localizadas e encaixadas numa posição rotuladora atribuidora de um status de estranho [110], para os demais indivíduos. Coloca-se no meio deste discurso a divisão de classes, ou melhor, dizendo há fatores de diferenciação mais agudos. No entanto, a abordagem deste tema afetaria o escopo do trabalho. Mas é de se levar em conta questões implícitas nos meandros sociais.

Nesta toada de relações superficiais o indivíduo, alienado ao sub-sistema, interioriza-se, ensimesma-se, concentra-se na sua individualidade. [111] Simplesmente coabita no meio social, fisicamente e permanece psiquicamente isolado, imerso na sua própria individualidade. Individualidade reforçada pela cultura narcisista da atualidade, em que a aparência, a estética é mais valorada do que a própria essência. A sociedade do espetáculo, [112] do glamour do consumismo, [113] da superficialidade e, além disto, com o enfraquecimento da alteridade compõe a estruturação e fortalecimento do eu.

Essa onda de "choque" começa atuando desde a tenra idade do indivíduo seja pelo tratamento usado pelos pais ou a educação recebida para enfrentar um mundo no isolamento do individualismo. O eu prevalece sobre o nós. Precocemente a criança vai entronizando, no processo de adaptação, uma idéia de máxima valoração da competição. E recebe, ainda, para potencializar seu espírito competitivo, a instrução de rejeitar qualquer aproximação do estranho – outro –, "inimigo", segundo um modelo pré-formatado em sua concepção pela observação na sociedade da insegurança.

Além disso, com as transformações sociais, os indivíduos são instados a controlar e a esconder seus afetos instintivos, intensifica-se o autocontrole como um meio de esconder-se dos demais. A tentativa de cada um volta-se para seguir um padrão básico de conduta. É tentar se socializar sem, ao mesmo tempo, expor-se, ou seja, continuar fechado na sua própria armadura. O comportamento exigido levará o sujeito a tornar-se um igual dentro das suas peculiaridades exteriorizadas. Caso não haja a observância da conduta imposta é taxado de marginal.

O paradigma transforma-se num paradoxo enlouquecedor. Exige-se de um ser humano posições antagônicas. O Homem, como um ser social, precisa interagir com seus pares, – o contato é fundamental para uma saúde e desenvolvimento sadio – no entanto, a contemporaneidade, com seu autocontrole e a divisão de classes, impõem comportamentos individualizadores e competitivos, direção oposta ao comportamento cooperativo. Mas é preciso que se sigam os ditames sociais vigentes para não ser tratado como estranho, e ser, definitivamente, excluído. [114]

A repressão de seus impulsos, como autocontrole é via de individualização, ocasiona, numa pessoa desestruturada – econômica-social-educacionalmente – um distúrbio psicológico. O indivíduo, anteriormente ser sociável, transforma-se num indivíduo que deve autodeterminar-se sobre os freios do autocontrole, fechando-se em si mesmo, sem deixar uma brecha para o mundo exterior. Faltando-lhe todo o aporte afetivo, muitas vezes negado pela vida social (de maneira consciente ou inconsciente) causando-lhe conseqüências graves de caráter e personalidade. Isso significa moldar uma personalidade anti-social, chegando a radicalidade da significação psiquiátrica.

No entanto, o autocontrole, exigido por fatores exógenos, principalmente a sociedade e seus padrões estéticos/éticos (morais), têm, atualmente uma força descomunal na criação e desenvolvimento do caráter e, por isso, é influenciador do comportamento individualista do eu, que nega o nós e afasta o outro. O planeamento do autocontrole é equivocado e deve ser revisto no comportamento do outro que recebe o eu ao nascer. Isso pode ser transportado ao nós, em decorrência de influências sociais, é merecidamente sublinhável que a responsabilidade começa pelo ser individualizado. O começo e o término de uma coletividade são os Homens, como valor totalizante e único. A condição humana é perene, universal e imensurável na materialidade do contidiano. A sua negação é afirmação da mera instrumentalidade do ser humano. [115]

Dessa forma, com essa "opção" de vida, surgem as personalidades anti-sociais que representam, sintomaticamente, a falência de uma sociedade que deveria ser fraterna e tolerante com seu próximo, mas que na verdade é autodestrutiva. Causa mal a si própria, pois além de produzir em larga escala um ambiente inóspito ao desenvolvimento sadio do ser humano, marginaliza, de forma cruel, aqueles que, por circunstâncias impostas pelo próprio meio, acabam sendo condenados duas vezes, um bis in idem; ou melhor, geralmente, nascem num grupo que sobrevive em condições precárias, sendo vítimas de uma parca educação e de uma condição econômica abaixo do nível da pobreza (miserabilidade) e, como se não bastasse, sofrem a perseguição do Estado através do Direito Penal e sua persecução, que procurará excluí-los do sistema ao invés de fornecer o tratamento e as condições necessárias a uma vida digna.

De fato revela-se uma faceta da sociedade, hodiernamente de consumo, anti-humanista. [116] A preponderância valorativa do bem de consumo sobre o indivíduo desloca-o para uma interiorização no eu hermeticamente fechado sem dar azo ao nós (sentido coletivo), fato que causa um acirramento das relações interpessoais, e que determina o afastamento entre os indivíduos, que, inevitavelmente, acarreta atribulações no convívio social.

Os conflitos e a competição inviabilizam o fornecimento do devido afeto e atenção que cada indivíduo deveria receber do meio social, diga-se do outro(s). Sua imprescindibilidade da relação com os seus pares e o seu distanciamento, constrói o ambiente fecundador de distúrbios anti-sociais. Sendo a classe pobre a mais atingida, eis que as parcas condições econômicas, juntamente com a precária educação e a falta de assistência do Estado são cabais para a desconstituição ou má formação do caráter dos indivíduos.

A pior constatação, ainda, que pode ser trazida à tona, é a reprodução deste ambiente inóspito através das crianças que nascem em tal meio. A inação do Estado, que deveria prestar auxílio, só piora a situação posta. A miserabilidade, além de causar distúrbios desviantes, ocasiona outras implicações e reflexos na vida social. [117]

A perfunctoriedade dos laços sociais é a mais veemente expressão do que ocorre na atualidade. A sociedade espetáculo (estética) só exaltará aqueles atores que souberem "dançar no ritmo da música". O descompasso acarretará sérias conseqüências psicossociais, como depressões ou síndromes e pânicos. A alteridade cedeu terreno em detrimento do individualismo narcisita-consumista desconectado de qualquer consistência de laços afetivos.

A imagem negativa, [118] perante o grupo, muitas vezes, é determinante da interação/integração social. Dessa forma, a fragilidade da moldura comportamental não suporta o conteúdo, a essência contida no seu interior. Por isso, qualquer abalo na estrutura modeladora desencadeia uma seqüência de atitudes de libertação que vai de encontro com o comportamento social comum. Corolariamente haverá uma reação social, na intenção da manutenção do status, ou melhor, da estabilidade social.

Dessa forma, pode-se concluir que há várias forças agindo sobre a psique de cada um de nós. Forças de libertação e de contenção, exógenas e endógenas, e que só se definirá o comportamento conforme a intensidade de cada força em determinados momentos. Ainda, as circunstância de cada eu (ORTEGA Y GASSET, 1973) determinam o ser em si mesmo e o ser no meio exterior. Se o humano encontra no outro o aporte fundante do desenvolvimento, encontra em si o casulo de proteção de autodefesa. Como acima foi exposto, a tríade formadora do Homem não é mais do que sua condição natural, mas tem, na atual contingência dos fatos, destacado no eu. Enquanto o reconhecimento do outro é a primeira racionalização do mundo, o despertar para o eu torna-se latente e perene atualmente.

Esta condição é rompida pela esfera penal que por escopo inicial, de sua existência, seria o mecanismo do Direito mantenedor do Humano como valor absoluto.

3.3 Direito penal repressivista: movimento lei e ordem [119]

Este tópico terá por base o pensamento de Loïc Wacquant (2001), exposto nos livros: As Prisões da Miséria e Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. É importante salientar que o primeiro livro citado refere-se a uma globalização do movimento Lei e Ordem e que o segundo tem seu foco voltado à análise norte-americana da política penal.

O esclarecimento do escopo do Direito Penal, que se encontra sob as rédeas firmes do movimento da lei e da ordem, fornece as bases do entendimento operativo e a ratio do legislador condizente à esfera penal.

O Estado liberal, e de maneira atualizada e fortalecida, o neoliberal, tem seu enfoque de preocupação com o livre mercado econômico, deixando de implementar medidas assistencialistas que porventura possam impedir o aumento da criminalidade. [120] Melhor dizendo, a política criminal, através do Direito Penal, sob a égide da epígrafe de defesa social, [121] cria diretrizes para o controle delitivo que o Estado implementa porque é, apenas, policial-penitenciário, eis que faltando com ações no campo socioeconômico, [122] concentra-se, então, mais na repressão que na prevenção.

Esta teoria advém da lógica econômica, como observa Buchholz (1989):

Por enquanto nós vimos como os economistas examinaram a lei do agravo e de propriedade, mas não há área do direito que os vorazes economistas tenham deixado intacta. O economista Gray Becker aplicou os princípios de Marshall ao direito de família e ao direito criminal. As questões são fascinantes. O modelo criminal de Becker postula que há criminosos que aparentemente pesam os custos e os benefícios de cometer delitos. Se o crime é um problema, sugere Becker, é porque o crime ‘compensa’. Então os economistas começaram a querer determinar o que é que impede um criminoso. Há duas variáveis que parecem ser mais importantes: (1) taxa de detenções e (2) rigor das penas. O efeito de impedimentos difere dependendo do tipo do crime. Em alguns tipos de crime, a polícia deveria se concentrar em prender o criminoso. Em outros casos, a taxa de detenções não amedronta os marginais. Entretanto, penas severas são capazes de assustá-los e desencorajá-los. [123]

Hodiernamente, o econômico tomou o lugar do ser humano de destaque, tornando-se o centro do mundo, o fim último. Como o trecho citado acima, segundo os economistas, os criminosos raciocinam numa perspectiva econômica, de perda e ganho. Através deste disparate reducionista ao pensamento mercadológico em que há preponderância do capital sobre o social, política que descura da esfera humana da sociedade, torna-se necessário reforçar as atividades que procuram garantir a segurança dos consumidores.

Neste sistema, racionalizado sobre bases mercadológicas-econômicas, os excluídos do mercado de trabalho tornam-se visões indesejadas, grotescas, para aqueles que usufruem do espaço público, que defendem políticas neoliberais vigentes e desprezam o assistencialismo estatal. Logo, as oportunidades aos marginais sociais se extinguem, inviabilizando uma melhor, ascensão social. Esta pode perfazer-se em dois caminhos o lícito – que lhe é dificultado – e o ilícito – que sempre lhe é oferecido.

Quando a opção para ascensão social é pelos caminhos ilícitos, recai imediatamente a força do Estado, que está sedento para afastar os delinqüentes da convivência dos ditos cidadãos "impolutos". Estes, para o aparelho estatal, devem usufruir os espaços públicos sem o incômodo de ter ao seu redor a pobreza.

Essa ideologia política constitui o programa de "tolerância zero", aplicada em Nova Iorque. [124] Com uma espécie de dogmatização da criminalidade e suas causas, as autoridades norte-americanas foram doutrinando a população a não mais tolerar sua própria miséria, sua delinqüência, seu fracasso, salienta Bauman (1999) o seguinte:

A experiência das cidades americanas analisadas por Sennett aponta para uma regularidade quase universal: a suspeita em relação aos outros, a intolerância face à diferença, o ressentimento com estranhos e a exigência de isolá-los e bani-los, assim como a preocupação histérica, paranóica com a ‘lei e a ordem’, tudo isso tende a atingir o mais alto grau nas comunidades locais mais uniformes, mais segregadas dos pontos de vista racial, étnico e de classe. [125]

Então, a partir dessa postura, desta forma, criou-se um ambiente de intolerância com os criminosos na cidade de Nova Iorque (também no resto do país, até mesmo no mundo) de intolerância com os criminosos, começando pelos bagatelares, (na sua maior parte oriundo de países pobres, principalmente africanos e latino-americanos) que, por qualquer desvio, ou suspeita de desvio na ordem pública, são isolados, excluídos do ambiente social. A total observação, o domínio dos desviantes e prováveis delinqüentes proporciona uma sensação de segurança na parte "nobre" da comunidade.

A repressão tornou-se, destarte, intensa, abrindo o ensejo até mesmo para o arbítrio despótico das autoridades no seio do grande orgulho norte-americano em relação a democracia. A guerra "para limpar o espaço público da sujeira" é defendida por divulgações de estudos, publicações de livros, defesa de opiniões apaixonadas, programas midiáticos massivos, discursos raivosos, que levam a um ódio da pobreza; isso tudo patrocinado por autoridades públicas e organismos criados para tal finalidade. [126]

A difusão da política norte-americana tomou proporções globais, concomitantemente com a propagação da economia de mercado, foi anexada, destarte, a política de maximização do direito penal, a repulsa e a estranheza contra os pobres. A mudança do paradigma de Estado está ocasionando, também na Europa, uma elevação nos índices de criminalização, na mesma direção norte-americana. O Estado está sofrendo uma guinada na sua imagem como observa Bauman (1999):

Max Weber definiu o Estado como agente que reivindica o monopólio dos meios de coerção e do uso deles em seu território soberano. Cornelius Castoriadis alerta contra o hábito muito difundido de confundir o Estado com o poder social enquanto tal: ‘Estado’, insiste ele, refere-se a uma forma específica de distribuir e condensar o poder social, precisamente tendo em mente a capacidade reforçada de ‘ordenar’. ‘O Estado’, diz Castoriadis. ‘é uma entidade separada da coletividade e instituída de modo tal a garantir a permanência dessa separação’. Deveríamos reservar o nome de Aparelho de Estado – o que implica uma ‘burocracia’ separada, civil, clerical ou militar, ainda que rudimentar: em outras palavras, uma organização hierárquica com área de competência delimitada. [127]

Desta forma, há uma migração da população, já oprimida no gueto para os presídios. Nada mais que um ostracismo social causado por uma xenofobia caracterizada pela cor da pele e descendência latina e africana.

Os Estados Unidos recorrem, no curso de sua história, não a uma, mas a muitas ‘instituições peculiares’ para definir, confinar e controlar os afro-americanos. A primeira é a escravidão como pivô da economia das plantações e matriz original da divisão racial da época colonial até a Guerra Civil. A segunda é o chamado ‘sistema de Jim Crow’, sistema legal de discriminação e de segregação do berço à tumba que ancorava a sociedade agrária do Sul do fim da Reconstrução até a Revolução dos Direitos Civis, que o derrubou um longo século depois da abolição da escravatura (Woodward, 1957; Litwack, 1998). O terceiro dispositivo especial graças ao qual a América conteve os descendentes de escravos nas metrópoles do norte industrial é o gueto, produto do cruzamento da urbanização e da proletarização dos afro-americanos da Grande Migração de 1914 – 1930 até os anos 60, quando a transformação conjunta da economia e do Estado e a mobilização crescente dos negros contra a exclusão de casta, que culminou com a vaga de confrontos urbanos reportados pelo Relatório da Comissão Kerner (Spear, 1968; Kerner Commission, 1988), tornaram-no parcialmente obsoleto. Argumentei aqui que a quarta ‘instituição peculiar’ da América é o novo complexo institucional composto por vestígios do gueto negro e pelo qual aparato carcerário, ao qual o gueto ligou-se por uma relação estreita de simbiose estrutural e de suplência funcional. [128]

Logo, com essa política inflacionando as penitenciárias, os aparatos penitenciários orgulham aqueles defensores da reclusão nas instituições totais.

Com a insuficiência do aparelho estatal de perseguição dos criminosos e na imposição de uma ideologia penalizante, foi se estruturando a autovigilância social, [129] que constitui de mecanismos difusores que implicam a publicação, pelos órgãos de comunicação (públicos ou privados), de todos os dados referentes aos condenados ou, por vezes, apenas, acusados, pelo cometimento de um crime; ou seja, os dados dos criminosos ou, por vezes suspeitos, são tornados públicos, uma forma ultrajante de controle societário. O importante a ser destacado, ainda, é que a manutenção destas informações, quando feita, é com desdém, pois muitos dos "fichados" já cumpriram sua pena e continuam, por causa destes arquivos, sendo marginalizados e, como se não bastasse, há, ainda, informações equivocadas, pessoas que nunca cometeram ato delituoso e constam no rol. [130]

Desta forma, o controle é exercido pela própria população, fato que causa, desde o primeiro momento, um mal-estar e um afastamento do delinqüente do convívio social. A procura pelos cidadãos por esse banco de dados é intensa, pois todos, têm a intenção de se precaver contra seus vizinhos de rua ou até mesmo de bairro. Estas medidas vêm com a proposta de uma efetivação da segurança pelo panopticismo. Bauman (999) destaca o seguinte:

Há poucas imagens alegóricas no pensamento social que se equiparem em poder persuasivo à do Panóptico. Michel Foucault usou o projeto abortado de Jeremy Bentham com grande efeito: como uma metáfora da transformação moderna, da moderna contribuição dos poderes de controle. Com mais discernimento que muitos dos seus contemporâneos, Bentham viu diretamente através dos variegados invólucros dos poderes controladores a ameaça constante, real e palpável de punição; e, através dos muitos nomes dados às maneiras pelas quais se exercia o poder, a sua estratégia básica e central, que era fazer os súditos acretitarem que nenhum momento poderiam se esconder do olhar onipresente dos seus superiores, de modo que nenhum desvio de seu "tipo ideal", o Panóptico não permitiria qualquer espaço privado, pelo menos nenhum espaço privado opaco, nenhum sem supervisão ou, pior ainda, não passível de supervisão. Na cidade descrita por Zamiatin em Nós, todo mundo tinha um lar privado, mas as paredes das casas eram de vidro. Na cidade de Orwell em 1984, todo mundo tinha um aparelho de TV particular, mas ninguém jamais tinha permissão para desligá-lo e ninguém podia saber em que momento o aparelho era usado como câmera pela emissora.... [131]

Destarte, delega-se ao cidadão a tarefa de observação dos movimentos do desviante, ficando na espreita, à espera da primeira oportunidade de denunciá-lo, por algum ato que se considere impróprio a sua condição, ou ao Estado. Este, por sua vez, vislumbra a oportunidade de trancafiá-lo numa cela. Política de concorrências conducentes a uma co-vigilância entre os próprios comunitários, numa mútua desconfiança do vizinho.

O movimento lei e ordem, como a tolerância zero, abrange aspectos da funcionalidade do Direito Penal – legitimidade e legalidade –, que estão intimamente interligados a uma doutrina econômica. Nota-se escopos na atuação de um Estado contra-contratualista, ou melhor, de um Estado que de fim último de proteção do bem comum de seus membros tem como finalidade a seleção de seus cidadãos; os demais (os que sobram), não conseguem auferir de seu Estado "protetor" mais do que míseras ofertas assistencialistas.

O Direito Penal tem suas normas diretamente voltadas a uma maximização de condutas incriminadoras e, além do mais, encontra-se na perspectiva de aumento da pena máxima dos tipos penais comuns, ou seja, tipos que aos olhos míopes do legislador-midiático são corriqueiros. Destaca-se, deste modo, um apelo midiático [132] à penalização máxima. Com bases construídas por estes paradigmas a esfera penal transforma-se num mecanismo perseguidor dos desorientados socioeconomicamente. Pois suas proposições políticas voltam-se à criminalidade comum, ou seja, à exascerbadamente tipificada. No entanto, que toca à criminalidade chamada do "colarinho branco" há uma desídia do legislador. [133]

Sobre este aspecto, o trato legislativo é colocado em segundo plano e a persecução penal com sua violência é abrandada, procedimento que cria um espaço vazio entre estes paradigmas criminais. Em suma, há dois tipos de criminosos; os que atuam sobre a pecha de marginais, estranhos, excluídos e os que são idolatrados como espertos, audazes, astuciosos etc. Essa cultura é estimulada pelo próprio sistema penal que trata diferentemente e de maneira díspares estes duas sendas criminais.

A concepção de Direito, em sentido amplo, normativista, anteriormente criada sob o argumento principiológico da igualdade e da legalidade, proteção do indivíduo frente ao arbítrio Estatal, insurge, hodiermanente, na perfídia dos legisladores, na desconstrução destes dois princípios e na criação da insegurança do indivíduo, que a qualquer momento pode cair nas malhas finas dos aparelhos repressivos-administrativos do Estado (ALTHUSSER, 1998).

A inflação da legislação penal, que busca abranger a maior quantidade de fatos, ditos perturbadores do cotidiano público, é um sintoma da implementação da segregação, através do Direito Penal, dos indesejados; escravizar [134] os já sem liberdade, retirando-lhes as garantias conquistadas. Estes, por conjunturas socioeconômicas são sugados para as instituições totais.

O processo de globalização da economia leva junto à ideologia e com isto ocasiona uma pandemia do Direito Penal, partindo do modelo Norte-Americano. O Direito Penal – o processo penal se inclui – e sua repressão são atingidas em cheio, pois se faz mecanismo estratégico para separar os bons dos maus e, ainda, é possuidor da violência física, mental do cárcere e, ainda, torna temporalmente defasado na reinserção à sociedade. [135]

Desprende-se desta política, a clara motivação de exclusão. Se o individualismo distingue o eu e o outro e causa tensões conflitivas, a partir desta situação de violência, seleciona-se os bons dos maus, os que serão excluídos e o que serão protegidos. É notória a seletividade no meio do conflito, pois acaba por justificar a atuação do penal em separar os "sociáveis" dos não "sociáveis". O liame torna-se claro se a ligação for guiada pelo caminho do afastamento do outro e a ameaça que este representa é amenizada pela força penal. Dois problemas são resolvidos desta forma: 1) a ameaça do outro e a insegurança que este representa é debelada pela repressividade, ou seja, surge a ilusão do seguro; 2) no ambiente competitivo, o afastamento do outro, por suposto sua neutralização, no meio das malhas penais, significa a queda de um competidor. Ora, o penal repressivista demonstra, em um aparelho acirrador do ambiente degenerado, sócio-individualista, o que produz ainda mais violência. Além disso, mostra-se como um campo que pretende inovar em termos de Direito, ou seja, pretende propor novos horizontes-institutos ao Direito-poder-do-Estado na sua revigoração como legitimo detentor do poder máximo. Corre-se o perigo de ocorrer novos movimentos resgatadores do monopólio do Estado na imposição do Direito. A pluralidade, neste cenário, encontra-se ameaçada pelo seu debelamento em detrimento disto.

Os princípios assentes do Estado-Democrático-Constitucional-de-Direito protetores dos cidadãos em face dos desmandos do poder do "supremo" devem ser protegidos, curados em todas as instâncias da sociedade como valores intimamente ligados à dignidade do Homem. Embora artificialmente ligados a este, recebe proteção das agressões despóticas inadmissíveis no contemporâneo.


Conclusão

Nesse momento conclusivo, cabem algumas considerações que se pode inferir do exposto no decorrer do trabalho. Não restam dúvidas do recheio detalhista que o assunto levanta; a começar pelo título e percorrer as linhas, numa inconstante procura de um "porto seguro". Exatamente a teleologia do Direito Penal de tornar-se um "porto seguro", um ponto de segurança para a sociedade-individualista; um socorro resgatador dos perdidos na miserabilidade do comezinho da produção cultural da contemporaneidade. Segurança e confiança [136] são palavras que dão o sentido ao Direito Penal repressivo. A idéia de ordem emerge imediatamente com a de institucionalização, prefigurando-se na estabilização do caos indeterminante das diferenças do ser humano, transformando-o em cosmos. Uma fixação de conceitos e estruturas que orientam o movimento dos diferentes com sua autonomia-liberdade, purificando as impurezas, ou seja, reduzindo o perigo, com medidas de profilaxia de choque; quando há falha nas medidas profiláticas surgem remédios últimos de controle, o Direito assume, em certas situações, esta funcionalidade.

Outro ponto de exaustão foi o enfoque de crise, de instabilidade, de insegurança, de perigo, de impureza, de risco, etc. Estas palavras cumprem o papel de ressaltar a dispersão de paradigmas de apoio, como um farol que guia as embarcações nas proximidades da costa. A falta desta "luz" apresenta-se como a problemática a ser analisada. O Penal é escalado para cumprir esta função, mas é cabal a lembrança da sua própria ontologia de resolução de conflitos, ou seja, a eleição deste mecanismo que lida basicamente com um quadro de violência é admitir que o social tem sua estruturação sobre os alicerces do conflito. A suposta veracidade deste argumento, hobbesiano, leva a admissão de insuperação e, ainda mais, à perspectiva de acirramento da violência. O inverídico nesta sustentação encontra-se na conjuntura de sociabilidade do Humano, haja visto as sociedades de constituição simples e a formação, mais instável, da sociedade de constituição complexa. A própria necessidade do outro desmente Hobbes. O que se sucede são fatores que desequilibram as relações sociais; em períodos de intermitência irregular há quebra de segurança e acontecem crises radicais de mutação extremada, tocante ao seio social. [137] A sociedade também não corrompe o homem (ROUSSEAU), a interação, como dito, pende para um lado ou para outro, por vezes inclina para o social e outras para o individual. Na atualidade a acentuação está ao individualismo, principalmente, após a secularização e fortaleceu-se com o enfraquecimento do Estado de Bem-estar Social. A crise dos direitos de primeira e segunda geração demonstra faticamente esta condição. A solidariedade, característica da classe operária, exteriorizada nos movimentos reivindicatórios de melhores condições sociais esvanece-se no mundo material.

No focalizar o indivíduo, é conjuntural a sociedade; condição sine quo non da existência de ambos. Um, invariavelmente, é necessitado do outro. Uma figura não se mostra sem as cores da outra dimensão, seja do indivíduo para sociedade ou a sociedade para o indivíduo. Esta correspondência tende a confundir, numa busca histórica ou mesmo numa análise atual a extensão da influência de um sobre o outro. Mas, o resgate a ser frisado é no desenvolvimento, ou melhor, envolvimento do eu com o outro, a possibilidade do nós e a violência, então, trata-se de uma visão antropo-sócio-jurídica. Quando usa-se a relação entre o eu e o nós, está-se diante de uma relação social e antropo-individual. É a atuação de um sobre o outro, comunicativamente, que forma esta atmosfera de interação, seja, para o bem para o mal. Se para o bem ter-se-á "paz", se para o mal a "violência"; a predominância de uma sobre a outra nas bases sociais demonstrará a dinâmica determinante.

Sem outras considerações que desviam o foco, no trabalho foi sempre ressaltada a imbricada inter-relação individual e seu paradoxo; como última observação paradoxal, é, nesta sociedade individualista e reducionista, a formalidade funcionalizadora do processo econômico, que surge, derivada da complexidade epistemológica, a exigência da confiança no outro-técnico. A figura do técnico goza do sinônimo de confiança. O conhecimento, mergulhado num vertiginoso vale profundo, assume ares de intangibilidade se for superficialmente arrogado. Logo, pela impossibilidade de se ter conhecimento profundo em várias áreas do saber e da inevitável interligação (interdisciplinaridade) entre essas, essência se faz a figura do outro-técnico. Nessa relação encontrarão alicerces na confiança do conhecimento do outro. [138] Enlace, também, sustentado pela necessidade e materialidade da satisfação da necessidade, por exemplo: auxílio de um técnico em informática; no entanto, o Humano, contemporaneamente individualista, depende, sem outra opção, de socorrer-se com o outro; uma outra problemática surge nessa relação, que tem suas bases em aspectos puramente material, a prestação do serviço e sua respectiva recompensa. Não há o aprofundamento da relação, que fica na superficialidade do materialmente considerado.

Essa questão como as demais levantadas, no decorrer do trabalho, e não pormenorizadas, ficam, desde logo, para a oportunidade tempo-espacial adequada a serem tratadas. São questões relevantes, merecedoras de investigação [139] minuciosa; questões chave que possibilitam o acesso a outras dimensões da violência e das dinâmicas sociais, antropológicas, jurídico-penais, econômicas, políticas, etc. A transdisciplinariedade é a metodologia da compreensão da complexidade contemporaneamente posta. Mas isso não implica a sedimentação da verdade, de respostas definitivas, mas implica a seriedade, sem dúvida, da vontade de procurar respostas, de desenvolvimento de projetos, de pesquisas reveladoras, de investigações profícuas, da seriedade de instituições incentivadoras de pesquisas e da competência dos profissionais envolvidos, todos cooperativamente.

Em suma: chega-se à extenuante incógnita do rumo a ser seguido. A escolha do caminho não se apresenta numa opção diminuta, pelo contrário, além da direita ou esquerda (sem conotação política) há, à frente, inúmeras trilhas a serem percorridas. As pedras que ter-se-ão de remover dependendo da estrada escolhida. Mas, mesmo nesta parábola de pedras (obstáculos) quem caminha, raciocina, esforça-se em superar os obstáculos é o Homem; é, portanto, com a saúde de suas "pernas" e raciocínio de sua cabeça que será percorrida a estrada até o próximo cruzamento. É de sua responsabilidade a escolha e o percurso; são devidos à condição física e mental a possibilidade de superação de obstáculos. Os obstáculos não surgirão no caminho somente para impedir a passagem do viandante. Então a responsabilidade do caminhar antropo-sócio-jurídico-cultural é somente do Homem como eu-nós.


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NOTAS

01 HERDER, Johann Gottfried. Também Uma Filosofia da História Para a Formação da Humanidade. Lisboa: Antígona, 1995. p. 30.

02 "Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do queremos dizer que existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou a algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado), não está mais lá. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos." LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. pp. 45-46. (grifo do autor)

03 A responsabilidade aqui referida não é somente a jurídica, mas apresenta um sentido lato de assumir qualquer tipo de compromisso.

04 A transdisciplinariedade, nesse trabalho, refere-se à possibilidade de navegar por rios mais largos, ou seja, atingir uma problematização ampla – aproximando-se duma visão da realidade – na procura de respostas ou de visões que transpassam a disciplinariedade. A conexão comunicativa entre as disciplinas fornece o material necessário na busca da realidade, por isso, a importância da transdisciplinariedade.

05 "Vivemos a utopia da sociedade e do corpo perfeito e o enaltecimento das emoções. O avanço fantástico da tecnologia e da neurociência decretou o fim da velhice e da tristeza, mas, em lugar de potencializar o corpo e os afetos, instrumentalizou-os. Saúde e felicidade são mercadorias compradas em prateleiras, sob receita médica. A tristeza, eliminada pelo ombro amigo é substituída pela angústia biológica, curada na solidão do indivíduo com ele mesmo. Estamos viciados em livros de auto-ajuda, esoterismo, malhação. Falamos livremente de nossa intimidade a desconhecidos, valorizamos o tocar, a relação íntima, a exposição do corpo e do ‘eu’, mas esse corpo e esse eu são desencarnados, insensíveis ao outro. Sem o perceber, em nome da liberação das emoções e do exercício da sensibilidade, estamos, sutilmente, formatando e despontencializando nosso ‘conatus’ e aceitando velhos argumentos higienistas, morais e racionais, que só modernizaram sua roupagem. Também, com a ênfase no próprio ‘eu’, desencarnado e solitário, estamos nos afastando das questões públicas, nos mobilizando apenas, como multidão, pelo evangelho e pela música pop." SAWAIA, Bader Burihan. O Sofrimento Ético-Político Como Categoria de Análise da Dialética Exclusão/Inclusão. In: As Artimanhas da Exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. pp. 106-107.

06 "A competição, enfatiza Maturana, é anti-social, hoje e outrora, porque implica a negação do outro, a recusa da partilha e do amor. A sociedade moderna neoliberal, especialmente o mercado, se assenta na competição. Por isso é excludente, inumana e faz tantas vítimas. Essa lógica impede que seja portadora de felicidade e de futuro para a humanidade e para a Terra." BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: ética do humano. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 111.

07 Neste trabalho não discutirei a questão terminológica de modernidade e pós-modernidade, no entanto, a atualização das afirmações fará o enquadramento teórico, por si só, naqueles que acreditam numa ou outra terminologia/teoria.

08 "As relações sociais existem entre animais, como ocorre com as abelhas, entre as quais há o trabalho em comum, com algumas divisões, de modo que se inicia a marcha – que elas não terminam – para a socieade (senso estrito). Há animais que só admitem a solidão, e repelem contactos, mesmo entre os da mesma espécie, como ocorre com os grilos, com os pintarrochos (ditos cardeais), que vedam entrada no terreno que ocupam, e esses, postos na mesma gaiola, chegam, em luta, até à morte. Há animais sociáveis, inofensivos entre si. Há abelhas que põem as larvas a pouca distância das outras, sem que haja qualquer relação social entre elas. É o caso, por exemplo, da abelha Dosypoda. A escolha do lugar aproximou a colocação, sem que entre elas houvesse qualquer aproximação. Se o lugar muito lhe importa, para a nutrição ou outra atividade, há antílopes que marcam o seu território com secreção da glândula periorbitária em galho de árvore. O cão cheira o lugar a que o levaram, para saber se é de outro. Passa-se o mesmo com peixes." PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Introdução à Sociologia Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 5.

09 Não distinguirei, neste texto, os termos comunidade, sociedade e nem coletividade, usando-os no sentido de conjunto de pessoas que vivem num ambiente social, ou melhor, que vivem em conjunto num determinado espaço.

10 ORTEGA Y GASSET, José. O Homem e a Gente. 2. ed. Rio de Janeiro: Ibero-Americano, 1973. pp. 142-143. (grifo do autor)

11 Geralmente este movimento social serve apenas para aquelas regiões onde os recursos para alimentação eram escassos. Assim era imperiosa a movimentação de todo o grupo. "O nômade é o povo cuja permanência nos lugares é mínima, ainda que oscile em torno de espaço, que é, por assim dizer, o seu território-núcleo, ao passo que tudo mais é complementar. Quando melhora outro lugar e a erva cresce, afluem as tribos pastoris da Ásia e do Sahara. Às vezes são tais migrações, que atingem a quinhentos quilômetros e às vezes mais, como os Larbas entre o Mzab e os mercados de Tienet-el-Had. Os Kirguizes vão dos vales do Ferghana aos planaltos do Alaí. O nomadismo não exclui a noção de território, tanto assim que os povos mais nômades o defendem. Nem tampouco a dos círculos sociais componentes de tal massa ambulante. A deslocação não desfaz os laços sociais." PONTES DE MIRANDA, ob. cit. p. 38.

12 HERDER, ob. cit. p. 18.

13 "No clan, os indivíduos consideram-se parentes uns dos outros, mas só o reconhecem porque têm todos o mesmo totem é o ser animado ou inanimado, quase sempre animal ou vegetal, de que o grupo crê descender e constitui, para ele, emblema ou nome coletivo. Não entrou ainda, pelo menos visivelmente, o elemento territorial definido, o fator espaço-geográfico. Não é ainda o clan local, não é a tribo. Quando a cristalização se faz mais especial e hierarquizada passa-se do clan à família, grupo susceptível de evolução intrínseca; em vez da coexistência descentralizada do clan, vem a mais precisa regulamentação, com a diferenciação do poder e da responsabilidade, que deixam de ser indivíduos." PONTES DE MIRANDA, Introdução à Política Científica. pp. 34-35.

14 "Quando esta forma de solidariedade domina uma sociedade, os indivíduos diferem pouco uns dos outros. Membros de uma mesma coletividade, eles se assemelham porque têm os mesmos sentimentos, os mesmos valores, reconhecem os mesmos objetos como sagrados. A sociedade tem coerência porque os indivíduos ainda não se diferenciaram." ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 288. Classificação de DURKHEIM.

15 COHN, Gabriel (Org.). Max Weber: Coleção os Grandes Cientistas Sociais. 6. ed. São Paulo: Ática, 1997. (grifo do autor)

16 Os Gregos estabeleceram um sistema político que até hoje surte reflexos em nossa sociedade como exemplo de democracia, logicamente, com algumas diferenciações devido à época. "Nalgumas cidades estabeleceu-se, entre os séculos VIII e VI, um regime democrático; o mais conhecido é o de Atenas, graças aos escritos dos oradores e dos filósofos. (...) Sólon instaura uma democracia, apesar de numerosas vicissitudes, levará o direito ateniense ao auge de seu individualismo com Clístenes e Péricles. Na época clássica da democracia ateniense (± 580 a ± 338), os cidadãos governam directamente, no seio de sua assembléia (ecclesia); exprimem aí a sua vontade votando a lei (nomos), em princípio igual para todos (isonomia). A Assembléia toma todas as decisões importantes, mesmo no domínio judiciário. A administração da cidade é assegurada pelo Conselho (Bulé), composto por 500 cidadãos tirados à sorte em cada ano, e pelos magistrados, quer eleitos, quer tirados à sorte. Comparada às democracias modernas, a constituição de Atenas é no entanto pouco democrática; os escravos não têm nenhum direito, nem político, nem civil; os metecos (estrangeiros instalados na cidade) têm muito menos direitos que os cidadãos. Na cidade de Atenas haveria cerca de 40.000 cidadãos – outros dizem 6000 – porém, centenas e milhares de metecos e escravos." GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 74.

17 "Tomemos um dos mais conhecidos exemplos de evolução. O Egito, mais de cinco mil anos antes de Cristo, já mostrava desenvolvimento considerável; na época paleolítica excedia ao que o homem dos outros países fizera na neolítica. O rio, como elemento geográfico e econômico, modela a vida daquele povo dividido em aldeias e, quiçá, em clans. A inundação fertiliza o solo; mas destrói tudo, aniquila. A inteligência tem de criar expedientes captatórios e de irrigação, desenvolver a indústria do sílex e da cerâmica, lavrar a terra, usar o ouro e o cobre. Gasta-se milênio e meio em tão árduo labor; e de tal esforço da época eneolítica (terminologia de Morgan) sai o esboço de civilização. Os pequenos círculos têm de juntar-se; e integrar-se-ão, com a unificação das aldeias ou clans, os estados ou reinos. Mais tarde virá o reino único. Com a escrita, com a associação dos sinais ideográficos e fonéticos, dilatam-se os recursos da pictografia. É a fase da tradição escrita, era histórica da humanidade." PONTES DE MIRANDA, Introdução à Política Científica. p. 39.

18 LUHMANN, Sociologia do Direito I. p. 189-190. (grifo do autor)

19 "A outra dificuldade resulta do facto de fingirmos subestimar a diferença de nível entre a nossa cultura e as culturas primitivas. Fazemos pouco caso das diferenças, reais, que as separam de nós. Raramente empregamos a palavra «primitivo» e, contudo, nunca avançaremos no estudo da poluição ritual se não fizermos a pergunta: porque é que a cultura primitiva é sensível à lógica da poluição quando a nossa não o é? A nossos olhos, a poluição é uma questão de estética, de higiene ou de etiqueta, não é grave desde que não provoque qualquer embaraço social. As sanções que a acompanham são sanções sociais – desprezo, ostracismo, tagarelices e, eventualmente, perseguições policiais." DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. Lisboa: Edições 70, s.d. pp. 93-94.

20 "Ao estudar, com o grande interesse que ela desperta, a questão travada no século XVII, a propósito do nosso domínio ultramarino, entre HUGO GROCIO e o português SERAFIM DE FREITAS, tivemos de consagrar especialmente a atenção à parte dos trabalhos destes dois jurisconsultos que se refere à interpretação dalguns textos romanos sobre a condição jurídica do mar." MERÊA, Manuel Paulo. Um aspecto da questão Hugo Grocio Serafim de Freitas (condição jurídica do mar no direito romano). In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ano II (1915-1916). Coimbra, Imprensa da Universidade, 1915-1916. p. 465. Em nota de rodapé MERÊA continua: "Mare liberum, sive de iure quod Batavis competit ad Indicana commercia é o título do célebre livro de GROCIO, publicado pela primeira vez anônimo, e ao qual o nosso SERAFIM DE FREITAS respondeu no De justo império Lusitano Asiático (Valladolid, 1625)." ob. cit. p. 465. (grifo do autor).

21 "Os círculos são sistemas em que mais facilmente se procede e se exerce a adaptação. Sem os círculos, a adaptação teria de realizar-se, sem graduações, sem defensivas, entre todos os povos. O círculo como que fecha o sistema e neste terão de operar as leis biológicas que derivam da lei geral de adaptação: variedade, hereditariedade, crescente estabilidade e seleção. Aos círculos correspondem novos sistemas de substituição da luta; ao individualismo sucede o coletivismo da nova forma social. Assim, ao círculo-família cabem instintos que levam à vida em comum algo de menos violento e de mais fecundo, que é o amor paterno, materno, conjugal, filial e fraternal. É à família, e não à partícula humana, que vai ser incumbido o máximo de luta, e, quaisquer seriam as vicissitudes, não há negar que o indivíduo está mais protegido do que estaria se sozinho lutasse. Juntai os grupos, e as alianças, as amizades, as afinidades de idéias e de crenças, e logo compreendereis a grande importância das formações coletivas." PONTES DE MIRANDA. Introdução à Política Científica. p. 13.

22 "O ano de 400 viu uma Europa a caminho da fragmentação, o ano de 800 viu uma unidade até certo ponto restabelecida na parte ocidental do continente. Nesse mundo em transformação, a economia sofreu muita mudança, a vida rural foi, em alguns aspectos, modificada e os vínculos comerciais foram rompidos e reformados." HODGETT, Gerald A. J. História Social e Econômica da Idade Média. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 21.

23 "A gradual descentralização de governo e território, a transferência da terra, do controle do suserano conquistador para o da casta guerreira como um todo, nada mais é que o processo conhecido como ‘feudalização’." ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. v. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

24 "1. Alguns dos mecanismos mais importantes que, em fins da Idade Média, foram aumentando o poder da autoridade central de um território podem ser descritos sumariamente neste estágio preliminar. Eles foram, de modo geral, semelhantes em todos os maiores países do Ocidente, e isso pode ser observado com especial clareza no desenvolvimento da monarquia francesa. A expansão gradual do setor monetário da economia a expensas do setor de troca, ou escambo, em uma dada região na Idade Média gerou conseqüências muito diferentes para a maior parte da nobreza guerreira, por um lado, e para o rei ou príncipe, por outro. Quanto mais moeda entrasse em circulação numa região, maior seria o aumento dos preços. Todas as classes cuja renda não aumentava à mesma taxa, todos aqueles que viviam de renda fixa, ficavam em situação desvantajosa, sobretudo os senhores feudais, que auferiam foros fixos por suas terras." ELIAS, O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. p. 19.

25 "Na verdade, nada na história indica que essa mudança tenha sido realizada ‘racionalmente’, através de qualquer educação intencional de pessoas isoladas ou de grupos. A coisa aconteceu de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem. Mostramos como o controle efetuado de terceiras pessoas é convertido, de vários aspectos, em autocontrole, que as atividades humanas mais animalescas são progressivamente excluídas do palco da vida comunal e investidas de sentimento de vergonha que a regulação de toda a vida instintiva e afetiva por um firme autocontrole se torna cada vez mais estável, uniforme e generalidade. Isso tudo certamente não resulta de uma idéia central concedida há séculos por pessoas isoladas, e depois implantada em sucessivas gerações como a finalidade da ação e do estado desejados, até se concretizar por inteiro nos ‘séculos de progresso’. Ainda assim, embora não fosse planejada e intencional, essa transformação não constitui uma mera seqüência de mudanças caóticas e não-estruturadas." ELIAS, O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. p. 193.

26 Lógico que dependerá da ocasião, toma-se o exemplo dos duelos que, para honrar algum mal causado, dois homens se enfrentavam, geralmente, observando regras bem definidas.

27 Por exemplo: a distinção entre nobre e burguês.

28 DELEUZE, Gilles. Empirismo e Subjetividade: Ensaios sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 31.

29 "Os testemunhos da época e os historiadores estão de acordo em considerar que esse ato representou um daqueles momentos decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e o início de outra, e, portanto, indicam uma virada na história do gênero humano." BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 85. Texto referente à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, francesa.

30 A Revolução Francesa veio no sentido de inovar, acabar com as instituições então vigentes e implantar outras, aniquilando os privilégios estamentais, vigorantes no regime feudal. Possibilitou, assim, uma proteção a todos os cidadãos franceses, principalmente aos burgueses. Neste empreendimento revolucionário, importante foi a idéia geral e abstrata tida de Homem, levando, não só à França, mas para o mundo, a intenção da valorização, em relação à antiga idéia, e proteção de direitos. Ver: COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

31 Nota de rodapé número 79 do livro História do Direito Privado Moderno de FRANZ WIACKER, que diz o seguinte: "Lê Lys rouge, cap. VIII, I; no contexto de um requisitório socialista do antigo comunardo Choulette contra a revolução francesa que tinha reservado os seus frutos para a burguesia do terceiro estado: ‘Sim, somos burgueses... Isto significa para os pobres manter e agüentar os ricos na sua ociosidade. Eles têm que trabalhar sob a igualdade majestática das leis que proíbem tanto aos pobres como aos ricos dormir de baixo das pontes pedir pelas ruas e roubar pão. Isto foi um dos frutos da revolução. Pois esta revolução foi pelos tolos e pelos idiotas saqueadores do patrimônio nacional e, no fundamental, apenas conseguiu enriquecer os proprietários rurais e os rendeiros burgueses, pondo no trono a riqueza sob o nome da igualdade. E o que eu aqui digo nunca poderia ser impresso." p. 523.

32 ELIAS, O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. p. 266.

33 "O primeiro deles refere-se ao ofuscamento dos instintos humanos pelo desenvolvimento da cultura. Na verdade, nem todos os instintos foram suprimidos; a criança ao nascer busca o seio materno e instintivamente faz com a boquinha o movimento de sucção. Mais tarde, movida ainda por instintos, procurará utilizar os seus membros e conseguirá sons, embora tenda a imitar os emitidos pelos adultos que rodeiam. Mas, muito cedo, tudo o que fizer não será mais determinado por instintos, mas sim pela imitação dos padrões culturais da sociedade em que vive." LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. 15. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 50.

34 "Vêm-nos à mente as cenas apavorantes descritas por Malthus, o mundo partindo-se ao meio, deixando vítimas em luta pela sobrevivência. Num tempo não muito distante e num lugar conhecido, aquilo tudo quase aconteceu. De 1929 a 1933, nos Estados Unidos, a mão invisível do livre mercado deu tapas na cara da prosperidade. O desemprego aumentou vertiginosamente de cerca de 3% para 25% e a renda nacional caiu à metade. As construções imobiliárias pararam. Muitos perderam suas casas e seus negócios. A quebra da Bolsa de Valores em 1929, com os corretores pulando para a morte, tornou-se simultaneamente o símbolo e a causa do declínio econômico posterior. Os exuberantes anos vinte perderam o ímpeto, deixando a renda de 1933 mais baixa do que a de 1922. Os trabalhadores engalfinhavam-se pelos poucos empregados disponíveis. As sopas dos pobres proliferaram. E a depressão psicológica acompanhou a depressão econômica." BUCHHOLZ, Todd G. Novas Idéias de Economistas Mortos: O moderno pensamento econômico. São Paulo: Tama, 1989. p. 218.

35 O fôlego deste trabalho não permite que se adentre na questão da implantação do socialismo. Alguns, no entanto, chamam o modelo da União Soviética de comunismo.

36 SANDRONI, Paulo (org.). Novo Dicionário de Economia. São Paulo: Best Seller, 1994. p. 127.

37 "Nas palavras de John Kavanagh, do Instituto de Pesquisa Política de Washington, ‘A globalização deu mais oportunidades aos extremamente ricos de ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais recente tecnologia para movimentar largas somas de dinheiro mundo afora com extrema rapidez e espetacular com eficiência cada vez maior.’". BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 79.

38 "Se vivemos em (sociedade do) risco, também se poderá dizer que vão-se assumindo os contornos de uma sociedade da insegurança: é precisamente esta que caracteriza o ser dos nossos tempos. A insaciável busca pela segurança afecta, ainda segundo VILLAMOR MAQUIERA, ‘o homem, a família, a sociedade, o Estado e o direito... Demanda-se segurança no trabalho, segurança no futuro, segurança no Estado, segurança do cidadão, segurança social, proteção civil, segurança nacional, seguros privados de toda a índole, segurança econômica. Este apetite pela segurança chega até aos factos da vida quotidiana. Diz-se de uma pessoa que ‘lhe falta segurança’, ou ‘estás seguro do que pensas, do que dizes ou fazes?’. Inclusivamente uma das maiores qualidades da democracia associou-se à segurança, quando se pode dizer que é o leiteiro, sempre que batem à nossa porta de madrugada." FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal: Panorama de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 45-46. Apud. VILLAMOR MAQUIERA, Carlos de, "El fenómeno de la globalización como consecuencia del Neoliberalismo", in "Auario de la Facultad de Derecho", Universidad de Extremadura, Vol. 17, 1999; pp. 457-458. (grifo do autor)

39 A ressaltar que o problema sempre precede a solução. Embora seja uma questão de ordem lógica simples isto ocasiona diversas conseqüências, ou seja, os efeitos do problema se postergarão durante o tempo que demorar a encontrar uma solução.

40 "Esta chave não se encontra nas armas – por muito útil e desejável que seja uma diminuição do número de armas, tal não elimina o perigo. Ela reside, como se compreenderá, nos próprios homens que utilizam as armas. Embora isto seja óbvio, nem sempre é, porém, dito clara e distintamente. O perigo assenta, única e exclusivamente, na atitude dos homens uns em relação aos outros. Se fosse possível diminuir a inimizade e a desconfiança entre os dois grupos de Estados e, particularmente, entre as suas camadas dirigentes, o perigo também se atenuaria." ELIAS, Norbert. A Condição Humana. Lisboa: Difel, 1991. p. 128.

41 "O monopólio bem-sucedido dos meios de violência por parte dos estados modernos repousa sobre a manutenção secular de novos códigos de lei criminal, mais o controle supervisório de ‘desvios’." GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p. 65.

42 "Nem todo o direito é direito estadual. E para darmos o significado mais amplo possível a este conceito – ‘direito estadual’ –, diremos que se subsumirá a essa categoria o jurídico que for ou criado ou reconhecido ou tutelado (garantido coactivamente) pelo Estado. Ora não foram sempre nem são ainda criados pelo Estado amplos, e não dos menos relevantes, sectores do direito. Observa-se que grande parte, se não a totalidade, do direito privado teve historicamente uma origem extra-estadual – produto que foi da actividade jurisprudencial e da autonomia privada." NEVES, António Castanheira. Curso de Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra: Coimbra, 1976. p. 65.

43 "O Direito não é determinado por si próprio ou a partir de normas ou princípios superiores, mas por sua referência à sociedade. Essa referência não é interpretada no sentido tradicional de uma hierarquia de fontes do direito – isto é, a sociedade não substitui o direito natural, se bem que o jurista Ehrlich aproxima-se perigosamente desse raciocínio – mas é compreendida como uma correlação sujeita a modificações evolutivas, e que pode ser verificadas empiricamente como uma relação de causa e efeito. A evolução é sempre concebida como elevação da complexidade social (ou pelo menos suposta não explicitamente) podendo acentuar aqui o papel da dissolução das comunidades tribais e a passagem para a diferenciação funcional, da complexidade do moderno processo econômico, ou das condições de comportamento objetivo-racional em escala mundial. O direito surge então como elemento codeterminante e codeterminado desse processo de desenvolvimento. Ele o fomenta ao adaptar-se a suas necessidades. Essas necessidades, porém apontam para uma maior complexidade e variabilidade social: a sociedade torna-se mais rica em possibilidades; com isso seu direito tem que ser estruturalmente compatível com um número maior de possíveis situações e eventos." LUHMANN, Sociologia do Direito I. pp. 33-34.

44 "O direito informa a realidade social em que se institui e passa então a ser também elemento e ‘facto’ dessa realidade, mas enquanto ‘direito’ não é facto, ou um facto social como qualquer outro, e sim aquela intenção e fundamento que transcende os factos sociais num sentido de validade. O direito é normativo nesse momento em que é problema de validade e actus de dever-ser, não no momento em que é dado de realidade e factum do ser social. NEVES, Curso de Introdução... p. 64 (Relatório) (grifo do autor)

45 "A coacção estadual ou a organização estadual da coacção não define o direito. Toca-se aqui no modo de vinculação do direito ao Estado que mais insistentemente é afirmado por um largo sector do pensamento jurídico: o seu sector estritamente positivista, antes de mais. O direito distinguir-se-ia de outros complexos normativos por corresponder apenas às suas normas o apoio da coacção organizada institucionalmente pelo Estado, ‘coacção organizada’ de que o Estado teria em princípio o monopólio. Mas é este um critério inexacto – inexacto lógica, teórica e normativamente." NEVES, Curso de Introdução..., p. 69.

46 NEVES, Curso de Introdução..., p. 5-6. (Relatório)

47 "Durante muito tempo foi dominante a tese de que o direito romano não desfrutou antes do fim do século XI de qualquer relevância no Ocidente, tendo-se operado por esta altura um verdadeiro renascimento através da Escola de Bolonha." MARQUES, Mário Reis. Codificação e Paradigmas da Modernidade. Coimbra: Edição do próprio autor, 2003. p. 37.

48 "Existem alguns fundamentos éticos que caracterizam o ius commune, uns extraídos do ius romanum, outro do ius canonicum. Do primeiro, ressaltam os valores da liberdade e da liberdade da propriedade, o que propicia o poder de disposição dos bens na vida (inter vivos) e mortis causa (Voluntas testatoris tanquam lex implenda est), da lealdade contratual e da bona fides. Do segundo, sublinham-se os valores da clementia e da humanitas e a aequitas canonica. Há ainda a acrescentar o valor relevante da personalidade. Mesmo que em termos algo abstractos, a protecção da pessoa no direito romano estende-se desde a esfera doméstica (inviolabilidade do domicílio) até à esfera pública (oposição aos tribunais e magistrados, direito de apelação para a assembléia do povo etc.). Daí que o renascimento do direito romano tenha contribuído para a revitalização de todo o movimento livre na vida social e jurídica. De facto, o respeito pela autonomia privada foi um dos dogmas fundamentais de toda a elaboração do ius commune." MARQUES, Codificação e Paradigmas da Modernidade. pp. 64-65.

49 "O sistema do ius commune foi cerne da experiência jurídica européia até à implementação do jusnaturalismo moderno, até à idéia de que o direito, como produto da razão, pode ser pensado em termos racionais." MARQUES, Codificação e Paradigmas da Modernidade. p. 28.

50 "O latim sempre foi utilizado como argumento de combate entre os juristas (argumentum gravissimum). Utilizado por parte dos humanistas na polemica que travaram com os juristas do mos italicus, é agora conveniente ao legislador nacional para afastar Acúrsio e Bártolo." MARQUES, Mário Reis. História do Direito Português Medieval e Moderno. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. (nota de rodapé n. 301) p. 168.

51 Ver: MARQUES, Codificação e Paradigmas da Modernidade. pp. 82-83.

52 MARQUES, Mário Reis. História do Direito Português Medieval e Moderno. p. 72.

53 "Factor este, expressão de um humanismo imanentista, que se conjugava directamente com um outro, agora um factor religioso (ou conseqüência de uma certa atitude religiosa) – o qual, sendo decerto correlato anterior factor antropológico, não foi menos dele histórico-culturalmente potenciador. Aludimos ao fenômeno religioso-cultural da secularização. Como se sabe, traduz-se a secularização no reconhecimento da autonomia específica do mundo (do «século») e do homem nele em termos de aquilo que o homem é e faz nesse mundo ser imediatamente imputável à sua liberdade e compreendido como sua responsabilidade. Ou seja, o homem na sua «mundialização» e na sua «temporalização» reconhece-se responsável de si próprio e sujeito de liberdade perante Deus (e perante a Igreja): está perante Deus mediação da sua liberdade e se é membro da Igreja não é menos sujeito do mundo, e não já como necessário reflexo ou directa projecção da ordenação divina."NEVES, António Castanheira. A Imagem do Homem no Universo Prático. In: Digesta: Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. v. 1. Coimbra: Coimbra, 1995. p. 325.

54 MARQUES, Codificação e Paradigmas da Modernidade. p. 355.

55 GAUER, Ruth Maria Chittó. A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 15.

56 GAUER, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. p. 16.

57 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 1. v. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1975. pp. 437-445.

58 "Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos séculos a existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco sendo desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo discurso filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento. Ela não é encontrada mas sim suscitada: produção em vez de apofântica. Ela não se dá por mediação de instrumentos, mas sim provocada por rituais, atraída por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões: estratégica e não método. Deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder." FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 18. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. pp. 114-115.

59 GAUER, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. p. 64.

60 "E a verdade é que o absolutismo estatal, paradoxalmente aliado às revoluções inglesas do século XVII e norte-americana e francesa do século XVIII, muito concorreu para a formação das nacionalidades hodiernas principalmente as européias." MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 135.

61 Na segunda metade do século XIX e no século XX apareceram reações contra a concepção individualista e liberal da teoria contratualista. COMTE, SAINT-SIMON e KARL MARX, denunciam abusos da liberdade de contratar. O poder econômico se sobre salta a dignidade humana, tornando o Homem escravo de seu próprio trabalho e de sua vontade influenciada pelas necessidades básicas, viu na alienação do seu trabalho a esperança de melhora que realmente não aconteceu. GILISSEN, Introdução Histórica ao Direito.

62 Esta visão do Homem é que "distingue, nitidamente a Declaração de 1789 dos BILLS OF RIGHTS dos Estados Unidos da América. Os americanos, em regra, com a notável exceção, ainda aí, de THOMAS JEFFERSON, estavam mais interessados em firmar a sua independência e estabelecer o seu próprio regime político do que em levar a idéia de liberdade a outros povos." COMPARATO, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. p. 127.

63 "O contrato justifica a validade da ordem social e política e oferece a razão de ser do Estado. O que está em causa é a problemática do fundamento legal. A partir desta legitimidade nascida do contrato, o Estado só reconhece como verdadeiro direito o que é imposto pelas suas leis." MARQUES, Codificação e Paradigmas da Modernidade. p. 457.

64 Vide Giorgio DEL VECCHIO. Lições de Filosofia do Direito.

65 "A ficção do contrato social procurou contar o poder do soberano, mas seu desenvolvimento coerente teve como resultado final desmontar o poder exercido pelo sistema penal, como demonstra o fato de Marat, baseado na mesma ficção, ter desembocado numa visão socialista que deslegitimava todo o sistema penal de seu tempo, e de Feuerbach ter dela deduzido a possibilidade de uma resistência revolucionária. O próprio Rousseau, geralmente citado como fiador desta ficção, extraía dela não ‘um estado liberal econômico’ assentado sobre conceitos quiritários de propriedade, como geralmente se pretende, e sim um ‘estado social’". ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p.

66 MARQUES, Codificação e Paradigmas da Modernidade. pp. 457-458. (grifo do autor)

67 MARQUES, História do Direito Português Medieval e Moderno. p. 172. (grifo do autor)

68 "Ora, não sendo já direito-ser (como era pensado o direito natural clássico) nem evidentemente imposto por um qualquer direito positivo (v. g. por uma qualquer legislação), ou, por outras palavras, tendo-lhe sido retirada a vinculação ontológica sem adquirir vinculação positiva, o direito natural racional (nos vários sistemas de direito natural racional) era simplesmente um projecto axiológico e normativo, mas não, só por isso, direito. Os seus sistemas normativos não eram mais, do que modelos dogmático-racionais a oferecerem-se como projecto-legislativos, um ‘direito positivo ideal’ (ANDRÉ-VINCENT). É que, se esse direito ideal carecia de uma positivação para se tornar realmente direito e a positivação só era pensável ao tempo – como implicava o conceito também de ‘direito positivo’ – pela legislação, pela positivação legislativa (recorde-se o aparecimento significativo então da preocupação teorizadora da legislação, desde FILANGIERI), com isso apenas lhe ficava a possibilidade de uma conversão do seu ideal jurídico (intencionalmente pensado) ao real (efectivamente prático) mediante a sua assimilação e prescrição pelo legislador nas suas leis. E foi o que, na verdade, historicamente se verificou: o jusnaturalismo moderno-iluminista preparou desde os meados do séc. XVIII, e consumou-se, a partir de 1794 (a data do Código prussiano), na codificação. Os Códigos iluministas, e mesmo o pós-revoluciopnário Code civil francês de 1804 outra coisa não foram, fundamentantemente, do que a consagração dos sistemas racionalmente construídos pelo jusnaturalismo moderno-iluminista em positivismo-codificados sistemas legislativos – ainda que decerto com o elemento político coadjuvante quer na intenção dos soberanos iluministas, os ‘déspotas esclarecidos’, a um direito que superasse a crise já então do ius commune, com a sua dispersão, as suas contradições e a sua falta de unidade integrante, por um direito racionalmente sistemático, unitário e estável, quer de objectivos mais directamente revolucionários." NEVES, António Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Filosofia: Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. pp. 26-27.

69 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001. p. 234.

70 Para uma visualização da operacionalidade do sistema sobre o constructo autopoiético ver texto apresentado no Doutoramento em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Do Conflito Social ao Litígio Judicial: limites e possibilidades de um constructo autopoiético de Luiz Antônio Bogo Chies.

71 Modernidade exaurida ou não. Hodiernamente contemporaneidade, como foi referida no início.

72 WOLKMER, Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma cultura no Direito. pp. 48-49.

73 NEVES, Curso de Introdução... pp. 74-76.

74 Ver: NEVES, António Castanheira. O Princípio da Legalidade Criminal: O seu problema jurídico e o seu critério dogmático. In: Digesta: Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. v. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. pp. 349-473. Deixa-se, neste texto, tão-somente está breve notícia; isto para sublinhar a mudança de rumo dos institutos principiológicos. A resistência a novas e desconhecidas conseqüências da contemporânea sociedade científica-industrial, de maneira cabal afeta os paradigmas, antes seguros, do projeto irrealizado da modernidade. O estrito legalismo, juntamente, sofre o mesmo processo deletério da legalidade, como não poderia deixar de ser, não no sentido de desaparecimento, mas de reformulação conceitual, quiçá valorativa no condizente a significação do jurídico-penal para a societas e socii.

75 "Pois o direito postula uma ordem justa da sociedade e não tão-só uma organização viável ou eficaz da mesma sociedade, tem a ver com o universo espiritual e de sentido, com o dever-ser de uma axiológica validade e com correlativos fundamentos normativos, não apenas com o mundo empírico da factualidade, da eficácia e dos efeitos. O direito é uma categoria ética, não uma categoria «científica» – a sua racionalidade é prático-axiológico, não tão-só técnico-intelectual." NEVES, António Castanheira. Método Jurídico. In: Digesta: Escritos acerca do Directo, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. v. 2. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 283-336. p. 330-331. (grifo do autor) Ainda: "Daí também a abertura para o funcionalismo jurídico dos nossos dias em que o normativismo, com o seu formalismo e o seu lógico-sistemátismo se veriam superados. E não apenas isso: a própria autonomia do direito deliberadamente se sacrificaria. Pois na linha do funcionalismo o direito deixa de ser um auto-subsistente de sentido e de normatividade para passar a ser um instrumento – um finalístico instrumento e um meio ao serviço de teleologias que de fora o convocam e condicionantemente o submetem." NEVES, António Castanheira. O Direito Hoje e com que Sentido? O problema actual da autonomia do direito. Lisboa: Instituto Piaget, s. d. pp. 30-31.

76 "La lucha contra el delito es la meta más urgente para un derecho penal entendido preventivamente, es decir, ‘moderno’ como instrumento social funcional para la solución del problema. Pero esta lucha contra el delito es también el programa de una concepción de la historia de la filosofía, que a lograr alguma vez una sociedad en la que no sean necessarios ni el Estado ni el Derecho." HASSAMER, Winfried e MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la Criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. p. 38.

77 "Non si può seriamente contestare il fatto che l’elaborazione sistemática della matéria giuridica offra realmente i vantaggi descritti. Tuttavia resta un malessere che si evidenzia in un problema sempre ricorrente: se il delicato lavoro sistematico della nostra dommatica, abituata ad operare con le più sottili finezze concettuali, non sia caratterizzato da una sproporzione tra l’impegno dottrinale profuso ed il risultato pratico raggiunto. Se si trattasse solo di ordinare, armonizzare ed essere padroni della materia, la controversia intorno al «giusto» sistema dovrebbe apparire poco produttiva." ROXIN, Claus. Politica Criminale e Sistema Del Diritto Penale: Saggi di teoria del reato. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2001. pp. 39-40.

78 "A ação humana é exercício de uma atividade final. A ação é, portanto, um acontecimento final e não puramente causal. A finalidade, o caráter final da ação, baseia-se no fato de que o homem, graças a seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as possíveis conseqüências de sua conduta, designar-lhes fins diversos e dirigir sua atividade, conforme um plano, à consecução desses fins. Graças ao seu saber causal prévio, pode dirigir seus diversos atos de modo que oriente o suceder causal externo a um fim e o domine finalisticamente. A atividade final é uma atividade dirigida conscientemente em razão de um fim, enquanto o acontecer causal não está dirigido em razão de um fim, mas é a resultante causal da constelação de causas existente em cada momento. A finalidade é, por isso – dito de forma gráfica – ‘vidente’, e a causalidade, ‘cega’". WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-Penal: Uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 27.

79 "Já se referiu neste estudo o perigo para o direito penal de tornar-se um arauto da demanda de segurança numa sociedade fervilhante de riscos e que causa a chamada ‘fuga’ para aquele. Os riscos são enormes, diz-se – expansão desmedida, até se perder de vista o referente matricial, nomeadamente a protecção exclusiva de bens jurídicos – ‘palpáveis ou ao menos substancialmente indentificáveis do indivíduo ou do Estado’, seguindo COSTA ANDRADE, em direcção a um controlo do direito penal pela discussão pública –, administrativação (através do recurso a sanções próprias do direito administrativo, do direito de mera ordenação social, etc.), a criação de leis penais simbólicas, o recurso frequente à criminalização de condutas de perigo abstracto em detrimento dos crimes de dano e mesmo de perigo concreto, o que, aliado à ‘eleição de bens jurídicos vagos ou de amplo espectro’, resulta numa excessiva antecipação da tutela, um determinado efeito analgésico ou tranquilizante do direito penal (no qual pode vir a antever-se um instrumento ao serviço da população insegura e amendrontada), tornando o poder político em uma mulher de César, o qual, invertendo o velho brocardo, se preocuparia mais, e em última análise, em prestar serviço ao parecer do que ao ser." FERNANDES, Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal: Panorama de Alguns Problemas Comuns. pp. 71-73.

80 "Essa linha de ‘funcionalização’ seria antecedente lógico, ainda segundo HASSEMER, de uma desformalização que, por seu turno, tem como molde a opção pelo recurso a leis penais, a conceitos indeterminados e a cláusulas gerais, bem como a orientação no sentido de que o discurso penal clássico, assente na imputação individual, é suficiente e mesmo inadequado para servir os interesses de um direito penal moderno, o que dificultaria em muito o prosseguir de um caminho que permita seguir de perto as exigências da sociedade (de risco) hodierna." FERNANDES, Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal: Panorama de Alguns Problemas Comuns. p. 73. (grifo do autor)

81 "BECK, na sua obra basilar, refere-se mesmo ao ‘fim dos outros’ nos seguintes termos: ‘até agora, todo o sofrimento, toda a miséria, toda a violência que os seres humanos causavam a outros resumia-se sob a categoria dos «outros» (...). Tudo isto já não existe desde Chernobyl. Chegou o final dos outros, o final de todas as nossas possibilidades de distanciamento, tão sofisticadas: um final que se tornou palpável com a contaminação atômica’". FERNANDES, Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal: Panorama de Alguns Problemas Comuns. p. 69. citação de BECK, La Sociedad del Riesgo, p. 11. (grifo do autor)

82 "A tornar o panorama ainda mais preocupante, deve ter-se em conta que, quando a ocasionação de riscos é atribuída a decisões tomadas, estas, por vezes, levam ao tomar de novas decisões, as quais, por seu turno envolvem ainda a tomada de outras, como que a fazer lembrar uma ramificação ou bifurcação de decisões que, de per si, podem, também elas, comportar riscos. Assim, vivemos mais do que nunca em um contexto societário no qual se vive o futuro ‘na forma do risco das decisões’, segundo ensina LUHMANN. O risco é um elemento das decisões, decisões estas que só podem ser tomadas no presente, sendo o risco, portanto, ‘uma forma de descrição presente do futuro, desde o ponto de vista de que tendo e, conta os riscos é possível optar por uma ou outra alternativa.’" FERNANDES, Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal: Panorama de Alguns Problemas Comuns. p. 50. citando NIKLAS LUHMANN, Observaciones de la Modernidad. pp. 132-133. (grifo do autor)

83 "A alternatividade luta para que surjam leis efetivamente justas, comprometidas com os interesses da maioria da população, ou seja, realmente democráticas. E busca instrumental interpretativo que siga a mesma diretiva (da radicalidade democrática). O que a alternatividade não reconhece é a identificação do direito tão-só com a lei, nem que apenas o Estado produz direito, nem tampouco que se dê à norma cunho de dogma (verdade absoluta, inquestionável), o que é diverso da negativa da lei." CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: teoria e prática. Porto Alegre: Síntese, 1998. pp. 53-54.

84 Importante análise da Lei 9099/95 feita pelo Professor ALEXANDRE WUNDERLICH in: A Vítima No Processo Penal: impressões sobre o fracasso da Lei n° 9.099/95. conferência sobre ´´A participação da vítima no processo penal´´, por oportunidade do 9° Congresso Internacional do IBCCRIM (SP, outubro de 2003).

85 O Estado avoca o jus puniendi e a partir da reconstrução do conflito social – enquanto um fato-penal pretérito - pelo devido processo penal de garantias busca, em caso de comprovação inequívoca da responsabilidade criminal subjetiva, racionalizar o conflito existente entre o desviante e a vítima. Num exercício de resolução de conflito o Estado monopoliza a justiça penal. WUNDERLICH, Alexandre. A Vítima No Processo Penal: impressões sobre o fracasso da Lei n.º 9099/95. ob. cit. p. 6.

86 "Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder." SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 48.

87 "O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a construção de que a consagração formal de liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social." SARLET, A Eficácia dos Direitos Fundamentais. p. 49.

88 Daí a relevância do modelo garantista de democracia constitucional proposto por Luigi Ferrajoli. No modelo do garantismo penal – como sistema jurídico escorado em duas órbitas de sólidos princípios constitucionais substanciais (penais) e instrumentais (processuais) – há uma notória relação de reciprocidade (biunívoca) entre as duas esferas de garantias, que valem não somente por si mesmas, isoladamente, mas também, conjuntamente, como garantia recíproca de sua efetividade. As garantias são imprescindíveis tanto no plano estrutural como no plano funcional. As garantias substanciais só serão efetivas quando forem objeto de uma instrumentalidade na qual sejam asseguradas ao máximo a legalidade penal e processual penal, a imparcialidade, a veracidade e o controle. WUNDERLICH. A Vítima No Processo Penal: impressões sobre o fracasso da Lei n.º 9099/95. ob. cit. pp. 6-7.

89 FARIA COSTA, José de. Ler Beccaria Hoje. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. v. LXXIV, Coimbra, 1998. p. 103.

90 RECASÉNS SICHES, Luís. Comentário a Uma Obra Póstuma de Ortega. In: O Homem e a Gente: inter-comunicação humana. 2. ed. Ibero-Americano: Rio de Janeiro, 1973. p. 34.

91 O exemplo freudiano foi aventado na intenção de buscar uma diferenciação entre o instinto e a racionalidade. Não, neste exemplo, nenhuma tentativa de discutir teorias da psicanálise ou ressuscitar teorias.

92 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. pp. 52-53.

93 O Prof. Alexandre Wunderlich, destaca de forma percuciente: "O homem é treinado para viver num mundo em que qualidade de vida significa quantidade de coisas. Hoje, não se é reconhecido pelo que se é, mas pelo que se tem." Sociedade de Consumo e Globalização: abordando a teoria garantista na barbárie. (Re) afirmação dos direitos humanos. In: Diálogos Sobre a Justiça Dialogal. CARVALHO, Salo de. & WUNDERLICH, Alexandre (Org.), Lumen Júris, 2002. p. 3. Ainda pode-se citar o próprio KANT: "No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade." KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, s.d.. p. 77. (grifo do autor)

94 RECASÉNS SICHES, Comentário a Uma Obra Póstuma de Ortega. pp. 21-22.

95 "E é que a vida não a demos nós a nós mesmos, mas a encontramos precisamente quando nos encontramos a nós mesmos. De repente, sem saber como, nem porque, sem, prévio aviso, o homem se descobre e se surpreende tendo de ser, em um âmbito impremeditado, imprevisto, neste de agora, em uma conjuntura de circunstâncias determinadas." ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente. p. 81.

96 "Alguns querem designar assim o modo de ser do homem; mas o homem, que é sempre eu, – o eu que é cada um, – é o único que não existe, mas vive ou é vivendo. São precisamente todas as demais coisas, não são o homem, – eu, – aquelas que existem, porque aparecem, surgem, saltam, me resistem, se afirmam dentro do âmbito que é minha vida. Seja isso dito e disparado de passagem." ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente. p. 80.

97 "Sempre que digo ‘vida humana’, seja o que for, a não ser que eu faça alguma especial restrição, evite-se pensar na vida de outro, e cada uma deve referir-se à sua própria e tratar de tê-la presente. Vida humana como realidade radical é somente a de cada um, é somente a minha vida." ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente. p. 78. (grifo do autor)

98 Para ORTEGA Y GASSET a intimidade se denomina pela segunda pessoa do singular (tu); o outro é um ser não íntimo e indeterminado. Esta distinção não será usada devido aos propósitos do trabalho. Salvo necessidade no decorrer do texto.

99 "Baste dizer por agora que o corpo do outro, quieto ou em movimento, é um abundantíssimo semáforo, que nos envia constantemente os mais variados sinais, indicações daquilo que se passa no ‘dentro’ que é o outro homem. Esse dentro, essa intimidade não é nunca presente, mas compresente, como é o lado da maçã que não vemos. E aqui temos uma aplicação do conceito de compresença, sem o qual, como eu disse, não poderíamos esclarecer como o mundo e tudo nele existem para nós. Por certo, neste caso, a função da com presença é mais surpreendente. Porque, ali, a parte da maçã, em cada instante oculta, me foi presente outras vezes, mas na intimidade que o outro homem é não me foi feita nem me pode ser feita nunca presente. E, não obstante, a encontro aí, – quando encontro um corpo humano." ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente. p. 129.

100 "Na solidão o homem é a sua verdade, – na sociedade tende a ser sua mera convencionalidade ou falsificação. Na realidade autêntica do viver humano, está incluído do dever da frequente retirada para o futuro solitário de si mesmo." ORTEGA Y GASSET, O Homem e a Gente. pp. 135-136.

101 "A crise do ethos valorativo vivenciada pelas formas de vida da sociedade contemporânea de massas tem sua razão de ser na profunda perda de identidade cultural, na desumanização das relações sócio-políticas, no individualismo irracionalista e egoísta, na ausência de padrões comunitários e democráticos, senão ainda na constante ameaça de destruição da humanidade e de seu meio ambiente. Tal situação gera uma das grandes dificuldades presentes, que é arquitetar as bases de um conjunto de valores éticos capazes de internalizar o eu individual e o nós enquanto comunidade real. No meio da crise de legitimidade normativa, vive-se a falta de consenso e o impasse em face da diversidade de interpretações sobre o que seja virtude, bem-comum, vida boa ou ação justa. WOLKMER, Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma cultura no Direito. pp. 261-262.

102 NEVES, António Castanheira. Coordenadas de Uma Reflexão Sobre o Problema Universal do Direito – Ou as Condições da Emergência do Direito como Direito. In: Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço. v. 2. [Separata]. Coimbra: Almedina, s. d. p. 842. (grifo do autor)

103 "Pode o Jurídico, e mesmo o Direito, como em parte já consignamos acima, mesmo que fenômeno normativo e forma (dimensão de realidade) Jurídica indeclináveis para as sociedades complexas, igualmente converterem-se em potenciais instrumentos de tutela e garantia das semelhanças humanas, sobretudo no plano concreto da vida e do acesso a condições objetivas e subjetivas de existência humana. Tal entretanto exige que a própria complexidade social para essa meta se direcione, vez que então poderão também os fenômenos sociais que a essa complexidade se associam no mesmo sentido se direcionarem." CHIES, Luiz António Bogo. Possibilidades de Crítica à Imanência Social do Jurídico. Revista de Direito da Universidade Católica de Pelotas. No prelo.

104 "Como originarium, o homem não é, pois, redutível à cadeia objectiva e necessária, sucessiva e contínua, das causas e dos efeitos – ainda que como ente bio-psicológico ou numa perspectiva simplesmente ôntica, não lhe esteja decerto subtraído – nem se dilui sem resto na sucessão e impossibilidade dos eventos. Na originalidade de cada homem – outra palavra afinal para a liberdade – vai, aliás, a possibilidade de biografia. O que toca já um outro ponto." NEVES, Coordenadas de Uma Reflexão Sobre o Problema Universal do Direito… ob. cit. p. 863.

105 "A configuração moderna dos valores subordinou o homem a novas regras, por exemplo, o uso do relógio, que estava vinculado ao mundo público e produtivo das cidades. Os valores como uma construção do pensamento, a precisão das máquinas, resultado da aplicação da ciência à indústria como uma supremacia da teoria sobre a técnica mudaram a relação entre o homem e a natureza." GAUER, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. p. 24.

106 Não descarto a relação afetiva, mas a base de aproximação, em regra, entre as pessoas, se baseia em fatores econômicos.

107 "Não é por acaso que se possa considerar como chave de leitura transversal – e com isso diz-se tanto – a seguinte asserção: «não existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em alguns casos o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa» (XX. Violências). O que, em termos de política criminal, quer significar o seguinte: fazei leis que tratem o homem como pessoa e não como instrumento de prossecução de certos e determinados objectivos. Mesmo que a finalidade – poderíamos acrescentar agora à luz das nossas preocupações e dos nossos actuais problemas – seja a afirmação do valor ‘contrafáctico’ da norma." FARIA COSTA, Ler Beccaria Hoje. p. 92. (grifo do autor).

108 "O que se pode efetivamente observar é o seguinte: com a crescente mudança nas relações entre os seres humanos e as forças naturais extra-humanas, estas últimas vão aos poucos perdendo terreno como elemento da noção de um ‘mundo externo’ oposto ao ‘mundo interno’ humano. Em lugar delas, o abismo entre a parte ‘interna’ do indivíduo e as outras pessoas, entre o verdadeiro eu interior e a sociedade ‘externa’, desloca-se para o primeiro plano. À medida que os processos naturais se tornam mais fáceis de controlar, parece que nossa relativa falta de controle sobre as relações entre as pessoas e, em particular, entre os grupos, bem como os insuperáveis obstáculos erguidos contra as inclinações pessoais pelas exigências sociais, se tornam muito mais perceptível. Desse modo, perpetua-se o símbolo metafísico da individualização crescente, a idéia que o indivíduo tem de que seu eu interior está isolado do mundo lá fora como que por um muro invisível..." ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. p. 106.

109 GAUER, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. p. 37.

110 "Em palavras mais simples, toda a pessoa é, em certo sentido, um estranho, um marginal num aspecto ou noutro; não pertencendo a qualquer entidade ‘total’ mas forçados a inter-agir com muitas dessas entidades, os ‘indivíduos são ainda mais induzidos a interpretar a diferença entre eles próprios e o meio ambiente... em termos da sua própria pessoa, pelo que o ego se torna o ponto focal de todas as suas experiências interiores e o meio ambiente perde a maioria dos seus contornos’." BAUMAN, Zygmunt. A Liberdade. Lisboa: Estampa, 1989. p. 70.

111 "Do ponto de vista de Luhmann, esta alienação de toda e qualquer pessoa em relação a todo e qualquer ‘sub-sistema’ dentro da sociedade, abre um vasto espaço para o desenvolvimento individual e permite que a vida interior do indivíduo alcance uma profundidade e riqueza nunca atingidas em condições de rigoroso controlo comunal. Porém, por outro lado, a alienação mútua dos indivíduos põe em dúvida a própria continuação da comunicação inter-pessoal; na verdade, um discurso e um acordo significativos tornam-se improváveis. Para que a comunicação aconteça apesar disto, as experiências interiores dos seus intervenientes organizadas à volta de pontos focais separados têm de ser validadas inter-subjetivamente, isto é, socialmente. Segundo Luhmann, esta validação é na verdade consumada numa sociedade moderna através do amor: um meio de comunicação consentido e apoiado, em que os intervenientes que inter-agem reconhecem reciprocamente a validade e relevância da experiência interior uns dos outros – cada parceiro encarando a experiência interior do outro como real, tomando-a como motivo de sua própria acção." BAUMAN, A Liberdade. p. 71.

112 "Pode-se compreender agora como a psiquiatria da pós-modernidade se constrói na direção definida da pesquisa e interesse clínico pelas perturbações funcionais do humor, sejam estas depressões ou síndrome do pânico, na medida em que nestas perturbações do espírito, o sujeito não consegue ser cidadão na sociedade do espetáculo. Com efeito, panicados e deprimidos são fracassados na cultura do narcisismo, pois não conseguem ocupar a cena teatral da sociedade com o peito inflado e o eu obeso de si mesmo e dizerem decididamente: Cheguei." BIRMAN, Joel. Mal-Estar na Atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. São Paulo: Civilização Brasileira, 2001. p. 247.

113 "A vida organizada em torno do consumo, por outro lado, deve se bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis – não mais por regulação normativa. Nenhum vizinho em particular oferece um ponto de referência para uma vida de sucesso; uma sociedade de consumidores se baseia na comparação universal – e o céu é o único limite." BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 90.

114 "De Nova York, a doutrina da ‘tolerância zero’, instrumentos de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda – o que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência –, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica militar da ‘guerra’ ao crime e da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila os delinqüentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros - o que facilita o amálgama com a imigração sempre rendosa eleitoralmente." WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 30. (grifo do autor)

115 Expressa-se, mais ou menos, assim a crise paradigmática humanista: "Pode ocorrer, disse um pedante e escrupuloso moralista, que eu respeite e trate com distinção um homem altruísta: não por ele ser altruísta, no entanto, mas porque me parece ter o direito de ser útil a outros à própria custa. Em suma: a questão é sempre quem é ele e quem é aquele. Num homem feito e destinado ao comando, por exemplo, abnegação e retraimento modesto não seriam virtude, mas um desperdício de virtude: assim me quer parecer. Toda moral não egoísta, que se toma por absoluta e se dirige a todo e qualquer um, não peca somente contra gosto: é uma instigação a pecados de omissão, uma sedução mais sob a máscara da filantropia – e precisamente uma sedução e injúria para os mais elevados, mais raros e privilegiados. É preciso forçar as morais a inclinar-se antes de tudo frente à hierarquia, é preciso lhes lançar na cara sua presunção, até que conjuntamente se dêem conta de que é imoral dizer: ‘o que é certo para um é certo para outro’. Assim pensa meu bonhomme [bom homem] e pedante moral: não merecia talvez nossas risadas, exortando assim as morais à moralidade? Mas não se deve ter razão demais, quando se quer ter os que riem do seu lado; um pouco de falta de razão faz parte inclusive do bom gosto." NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 127.

116 "Com efeito, a acusação fundamental que Marcuse faz à sociedade altamente desenvolvida, e em particular à americana, é de ser desumana. E é desumana porque coloca e mantém o homem num meio irracional e repressivo e, portanto, em contraste com suas prerrogativas fundamentais: a razão e a liberdade." NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 199. (grifo do autor)

117 "O que os povos democráticos ou em que o Estado é democrático e liberal têm de fazer, como fim principal, é diminuir a desigualdade humana. Os Homens são desiguais, mas é preciso que, em vez de continuar ou aumentar a desigualdade, se façam menos desiguais. Têm de ser preparados e educados, alimentados e vestidos, e terem casa, de modo que possam produzir mais, concorram para melhor sorte comum, a maior colaboração social e a menor criminalidade." PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Democracia, Liberdade, Igualdade: Os três Caminhos. Campinas: Bookseller, 2002. p. 771.

118 "Nesta perspectiva, a sociedade não passa de um agregado de indivíduos, uma vez que não há um bem comum que possa ser assumido por todos como uma meta compartilhada, de modo a que a vida em sociedade possa ser como um empreendimento comum. Se cada indivíduo possui fins e valores que lhe são próprios, nada devendo à sociedade, não é difícil verificar o caráter anti-natural de toda forma de cooperação social, tornando os demais ou irrelevantes para a realização dos fins do indivíduo ou apenas meios para a implementação dos mesmos." BARZOTTO, Luis Fernando. Modernidade e Democracia. In: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito. São Leopoldo, UNISINOS, 2001. p. 142.

119 "Percebe-se nítida simetria entre as propostas político-criminais propugnadas pelos MLO e pelos arautos da ‘Tolerância Zero’: ambos postulam o incremento da repressão penal. Todavia, enquanto estes primam pela repressão à criminalidade de rua e bagatelar, entendendo como único meio de prevenção do caos e da desordem social, aqueles reivindicam alta punibilidade às graves lesões de bens jurídicos interindividuais (v. g. criminalidade de sangue, delitos sexuais e criminalidade patrimonial violenta)." CARVALHO, Salo de. As Reformas Parciais no Processo Penal Brasileiro. In: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito. São Leopoldo, UNISINOS, 2001. pp. 312-313.

120 "E articula nesses" – Murray – "termos categóricos e política penal que deve acompanhar a retirada social do Estado: ‘Um sistema judiciário não tem que se preocupar com as razões que levam alguém a cometer um crime. A justiça está aí para punir os culpados, indenizar os inocentes e defender os interesses dos cidadãos que respeitam a lei.’ Em termos claros, o Estado não deve se preocupar com as causas da criminalidade das classes pobres, à margem de sua ‘pobreza moral’ (o novo ‘conceito’ explicativo em voga), mas apenas com suas conseqüências, que deve punir com eficácia e intransigência." WACQUANT, As Prisões da Miséria. p. 50.

121 "La stessa denominazione del movimento internazionale della c.d. difesa sociale («défense sociale») basta a chiarire il suo obiettivo ed il suo contenuto. Poiché nessun sistema di tutela sociale da noi conosciuto è tale da soddisfare de fornte alla criminalità e ai suoi indesiderati effetti collaterali, la politica criminale trova da sempre il suo centro di gravitá nel rinnovamento del diritto penale, nella riforma dell’amministrazione giudiziaria e del sistema delle pene." KAISER, Gunter. Criminologia. Criminologia Política Criminale Dirrito Penale. Collana diretta da Frederico Stella. Sezione III, v. 1. Milano: Giuffrè Editore, 1985. pp. 32-33. (grifo do autor)

122 "A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo." Penalidade, segundo o autor, é o conjunto de práticas, instituições e discursos relacionados à pena e à pena criminal. WACQUANT, As Prisões da Miséria. p. 7. (grifo do autor) A terminologia usada pelo autor de Primeiro e Segundo Mundo, ao meu ver, ficou no passado, pois com o fim da União Soviética, acabou a tripartição de Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos. Passou-se a usar a seguinte terminologia: países desenvolvidos e subdesenvolvidos e/ou em desenvolvimento.

123 BUCHHOLZ, Todd G. Novas Idéias de Economistas Mortos: O moderno pensamento econômico. São Paulo: Tama, 1989. pp. 203-204 (grifo meu)

124 "De Nova York, a doutrina da ‘tolerância zero’, instrumentos de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda - o que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência -, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica militar da ‘guerra’ ao crime e da ‘reconquista’ do espaço público, que assimila os delinqüentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com a imigração sempre rendosa eleitoralmente." WACQUANT, As Prisões da Miséria. p. 30. (grifo do autor)

125 BAUMAN, Globalização..., p. 54.

126 Isto está como a caça as bruxas, seres estranhos que tornam impuro o espaço público: "Por cierto que entonces Alemania se había quedado atrás en comparación com Francia, pêro cien años después, y durante los siglos XVI y XVII. Estuvo a la cabeza en la superstición de brujería. Durante más de dos siglos, niños y ancianos, hombres y mujeres, sabios y gente del pueblo, pobres y ricos, feos y hermosos, fueron llevados a la cámara de tortura y a la hoguera; su número se supone fué de varias decenas de milhares. Sólo en el siglo XVIII, bajo la influencia de la Ilustración (Aufklärung) fué disminuyendo lentamente an Alemania la locura de las brujas." RADBRUCH, Gustavo e GWINNER, Enrique. Historia de la Criminalidad (Ensayo de una Criminología Histórica). Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1955. p. 178.

127 BAUMAN, Globalização..., p. 69.

128 WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001. p. 99. (grifo do autor)

129 A sociedade é uma espécie de Panopticon: "O Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura, etc. Na torre central havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nela nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de venezianas, de postigos semi-cerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo. Para Bentham esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica podia ser utilizada por um série de instituições. O Panopticon é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atualmente conhecemos - utopia que efetivamente se realizou. Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo. Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo." FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 87. (grifo do autor)

130 "Além dos problemas teóricos e metodológicos relativos à definição de criminalidade e ao conceito de ‘realidade social’, que influenciaram o surgimento do labeling approach na sociologia criminal, não só do interior da literatura específica, mas também de outros setores da moderna sociologia, influenciaram não pouco sobre o deslocamento do ponto de partida, do comportamento desviante para os mecanismos de reação e de seleção da população criminal dos últimos decênios, relativas a dois novos campos de investigação: a) a criminalidade de colarinho branco; b) a cifra negra da criminalidade e a crítica das estatísticas criminais oficiais." BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. p. 101.

131 BAUMAN, Globalização..., p. 56. (grifo do autor)

132 "Por todo ello, no es raro que no sólo en el lenguaje cotidiano, sino también en las expresiones técnicas se asocien ‘criminalidad’ y ‘delito’ con la idea de ‘lucha’. El delito se concibe como un ‘mal’. La criminalidad como una ‘enfermidad infecciosa’ y el delicuente como un ser ‘dañino’. La opinión pública, tal como se trasluce sobre todo en las ‘encuestas’ periodísticas, muestra una actitud ‘belicosa’ y en base a este sentimento se elabora la política. Cuanto más a, enezantes son o se consideran determinados delitos, tanto más materialistas son las exigencias que se imponen en su tratamiento. Esta tendencia hacia una lucha sin cuartel parele casi general en ámbitos como los del terrorismo y el tráfico de drogas, constituyendo un ‘Derecho Penal para enemigos’ es decir, para determinadas formas de criminalidad o determinados tipos de delincuentes, a los que se priva incluso de las tradicionales garatías del Derecho penal material y del Derecho processual penal." HASSAMER e MUÑOZ CONDE, Introducción a la Criminología y al Derecho Penal. p. 37.

133 Haja vista a configuração do Código Penal Brasileiro. Destaca BAUMAN, citando Thomas Mathiesen: "Hoje sabemos que o sistema penal ataca a ‘base’ e não o ‘topo’ da sociedade." Globalização... p. 131.

134 Seguindo o pensamento de PROUDHON expressado por GURVITCH: "Se tivesse que à seguinte pergunta: Que é a escravatura? e respondesse simplesmente: É o assassinato, o meu pensamento seria imediatamente compreendido. Não necessitaria de um longo discurso para mostrar que o poder de privar um homem de seu pensamento, vontade e personalidade é um poder de vida e de morte e que, fazer de um homem um escravo, é assassiná-lo." GURVITCH, Georges. Proudhon. Lisboa: Edições 70, n.d. p. 72.

135 "Infelizmente, a sentença absolutória não é capaz de devolver-lhe o tempo, pois sua flecha - em que pese a relatividade diria EINSTEIN - é irreversível, ao menos por ora. Logo, pouco ou nada é capaz de fazer a absolvição para amenizar a mácula deixada no rastro de um processo indevido, pois não lhe devolve o tempo." LOPES JR., Aury Celso L. O Tempo e a Prisão: Parecer lançado no Conselho Penitenciário do Rio Grande do Sul. In. Revista Transdiciplinar de Ciências Penitenciária. v. 1, n. 1, jan.-dez. Pelotas: Educat, 2002. p. 247.

136 "A segurança ontológica é uma forma, mas uma forma muito importante, de sentimento de segurança no sentido amplo em que empreguei o termo mais atrás. A expressão se refere à crença que a maioria dos seres humanos têm na continuidade de sua auto-indentidade e a na constância dos ambientes de ação social e material circundantes. Uma sensação da fidedignidade de pessoas e coisas, tão central à noção de confiança, é básica nos sentimentos de segurança ontológica, daí os dois serem relacionados psicologicamente de forma íntima." GIDDENS, As Conseqüências da Modernidade. p. 95.

137 "Para onde quer que nos voltemos, deparamos com as mesmas antinomias: temos uma certa ideia tradicional do que somos como indivíduos. E temos uma noção mais ou menos distinta do que queremos dizer ao pronunciar o termo ‘sociedade’. Mas essas duas ideias - a consciência que temos de nós como sociedade, de um lado, e como indivíduos, de outro - nunca chegam a coalescer inteiramente. Sem dúvida temos consciência, ao mesmo tempo, de que esse abismo entre os indivíduos e a sociedade não existe na realidade. Toda a sociedade humana consiste em indivíduos distintos e todo indivíduo humano só se humaniza ao aprender a agir, falar e sentir no convívio com outros. A sociedade sem os indivíduos ou o indivíduo sem a sociedade é um absurdo. Mas, quando tentamos reconstruir no pensamento aquilo que vivenciamos cotidianamente, é constante aparecerem lacunas e falhas em nosso fluxo de pensamento, como num quebra-cabeça cujas peças se recusassem a compor uma imagem completa." ELIAS, A Sociedade dos Indivíduos. p. 67.

138 "Nas sociedades modernas, em contraste, não interagimos comumente com estranhos como ‘pessoas todas’ da mesma forma. Em muitos cenários urbanos, particularmente, interagimos mais ou menos de forma contínua com outros que ou não conhecemos bem ou nunca encontramos antes - mas esta interação assume a forma de contatos relativamente efémeros." GIDDENS, As Conseqüências da Modernidade. p. 84.

139 É preciso pensar: "Segundo parece, há muita gente que não pode perdoar às ciências da natureza o facto de terem desencantado a natureza. Também isto pertence à humana conditio. Creio que, no contexto do que tenho para dizer, não deixa de ser importante mencionar expressamente este facto. Muitos homens dizem que querem saber a verdade, que querem saber como é, efectivamente, o mundo em que vivem. No entanto, observando com mais rigor, revela-se com frequência que o mundo, tal como ele é realmente, está longe de corresponder aos desejos humanos. Quando se apercebem disso, muitos homens ficam assustados com a verdade recuam. Preferem embalar-se nos seus sonhos e enganar-se a si próprios. Esta é, de facto, uma das questões centrais da existência humana: será que se quer ver o mundo, na medida do possível, como ele é realmente, mesmo quando se revela pouco satisfatório do ponto de vista emocional, e se verifique que não está feito como se desejaria? Ou preferiremos envolver-nos nos nossos desejos e ideais como num agasalho quente que nos protege do frio da vida, correndo o risco de que a realidade não desejada irrompa um dia, subitamente, nos sonhos acalentadores, de modo a termos depois de continuar a viver amargurada, desigualdade e cinicamente dos sonhos perdidos e dos ideais carcomidos e despedaçados?" ELIAS, Norbert. A Condição Humana. pp. 15-16. (grifo meu)


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MASSAÚ, Guilherme Camargo. Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 796, 7 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7249. Acesso em: 19 abr. 2024.