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A federalização dos crimes contra os direitos humanos à luz dos princípios federativo e do juízo natural

A federalização dos crimes contra os direitos humanos à luz dos princípios federativo e do juízo natural

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1. Introdução

            A Emenda Constitucional n° 45, de 08 de dezembro de 2004, amplamente conhecida como "Reforma do Poder Judiciário", trouxe alterações pungentes nos órgãos jurisdicionais e naqueles qualificados como essenciais à justiça, inclusive no tocante às respectivas atribuições e competências.

            Dentre tais mudanças situa-se a prescrita no artigo 109, inciso V-A, e seu parágrafo 5°, ambos da Constituição Federal, assim redigidos:

            "Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

            (...)

            V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;

            (...)

            § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal".

            Trata-se, como apontado pelo próprio Poder Constituído Reformador, de incidente de deslocamento de competência que, suscitado pelo Procurador-Geral da República e julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, possibilita a transferência do procedimento investigatório ou do processo do juízo estadual para o juízo federal, desde que se trate de causas em que ocorra grave violação de direitos humanos. Nota-se, de plano, que não há delimitação sobre a espécie de causa a que o dispositivo se refere, podendo, em princípio, incidir nas searas cível e penal.

            Por se tratar de fruto do exercício de Poder Constituído, que é subordinado aos desígnios do Constituinte, a constitucionalidade da referida regra é objeto dos mais acalorados e frutíferos debates em seio doutrinário, notadamente diante da vedação constitucional constante do artigo 60, parágrafo 4°, do Texto Maior.

            Aliás, é de se gizar que foram protocoladas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°s 3486-3 e 3493-6, respectivamente ajuizadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros — AMB e pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais — ANAMAGES, ambas impugnando a inserção do aludido incidente de modificação de competência. Ainda não houve, entrementes, qualquer decisão em tais ações, em que pese tenham os requerentes deduzido pedidos de liminares.

            Dentro desse contexto, o presente estudo tem por escopo o aprimoramento da discussão acerca da compatibilidade da chamada federalização dos crimes contra os direitos humanos com o texto constitucional precedente à Emenda Constitucional n° 45/2004, fazendo-se uma análise pautada sobre as vigas mestras do ordenamento jurídico pátrio, máxime dos princípios federativo e do juízo natural.

            Antes de incursionar propriamente na abordagem do novo instituto, faz-se mister sucinta e perfunctória exposição do conteúdo e significado dos indigitados princípios.


2. O princípio federativo no Estado brasileiro

            O princípio federativo tem a sua matriz na experiência histórica dos Estados Unidos da América. Como é cediço, as colônias inglesas transformaram-se em Estados soberanos e, após tentativa não muito exitosa de formação de uma Confederação (1777), entabularam a Convenção da Filadélfia (1787), lançando os moldes do vindouro Estado Federal norte-americano, consistente na reunião de Estados que, sem abdicar de autonomia, "sacrificaram" a sua soberania, com vistas à consecução de interesses políticos, econômicos e sociais comuns por meio da criação de uma ordem central, de uma direção unificadora.

            A concepção clássica de tal modelo de organização estatal comporta a existência de centros de poder soberanos (Estados) que, cedendo parte de suas prerrogativas, reúnem-se em uma ordem central e formam o Estado Federado, não abdicando, todavia, das respectivas autonomias. Há, no dizer de KELSEN, a coexistência de duas ordens jurídicas parciais, a da União e a dos Estados, e uma global, a da Federação, a qual subordinaria as duas primeiras por meio de um texto supremo. Tem-se, dessa maneira, uma aliança entre Estados, outrora soberanos, legitimada e regulada por ato legislativo que expressa a vontade política suprema de um povo e que delimita toda a manifestação do poder, seja ela oriunda da União ou dos Estados-membros.

            No mais, sob o pálio de um Estado Federado, os entes políticos participam de modo direto e indireto na formação dos atos governamentais, de tal sorte que, de regra, o Poder Legislativo é estruturado de forma bicameral, compreendendo uma casa representativa do povo da Federação e uma outra em que estão representados os próprios Estados-membros. Tal modelo plúrimo é mais adequado à composição da pletora de interesses (da União e de todos os Estados-membros) e expressa a paridade entre as pessoas políticas.

            Sob o modelo estatal ora comentado, os Estados têm as suas próprias Constituições, que representam o signo mais eloqüente de suas autonomias, na medida em que definem e especificam os respectivos órgãos e forma de governo, embora sempre subordinadas às diretrizes estampadas na Constituição Federal, cuja defesa, de regra, é delegada a um tribunal ou corte constitucional federal.

            Gize-se que uma das principais características dos Estados Federais é a existência de uma única vontade soberana, a da Federação. Esta concentra o poder que foi relegado pelos Estados-membros quando da formação do pacto e em benefício deste. O Estado Federal, cuja vontade é fruto da participação de todos os entes políticos (estes detentores de autonomia), não reconhece superior dentro de seu território e interage, em paridade jurídica, com outras nações no plano internacional.

            Deve-se frisar que, a despeito das inúmeras formas de manifestação do princípio federativo pelas diversas nações, este tem uma viga mestra: a existência de um poder político central concentrador dos interesses comuns dos Estados-membros que, sem perder as respectivas autonomias, integram, conjuntamente e em situação de igualdade com o ente político central, um único Estado, o Estado Federal.

            A Constituição Federal, logo em seu limiar, dispõe que o Brasil é uma república federativa, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal. Em outros dispositivos, especifica as competências de cada ente político, definindo balizas razoavelmente rígidas para a atuação de cada um. Enfim, adota a forma de Estado Federal.

            O Estado Federal brasileiro, em que pese tenha nascido do fracionamento de um poder central e não da reunião de vários centros de poder, apresenta grande parte das características acima expostas. Há, porém, uma grande peculiaridade no sistema estabelecido pelo Constituinte de 1988: os Municípios e o Distrito Federal são qualificados como entes políticos e detêm competências próprias delineadas no bojo do texto constitucional.

            Tal opção, embora duramente criticada por grande constitucionalista pátrio [01], não desnatura o pacto federativo brasileiro, notadamente pelo fato de existir uma ordem central (União) que agrupa os interesses dos demais entes políticos, mas não lhes retira a autonomia. É de se dizer: os Estados, os Municípios e o Distrito Federal têm ampla liberdade de atuação, isto é, têm autonomia, desde que subordinados aos comandos insertos na Constituição Federal.

            E em que consistiria a tão festejada autonomia? Neste ponto, já é célebre o escólio de CUNHA FERRAZ, segundo o qual "quatro aspectos essenciais caracterizam-na; a capacidade de auto-organização, a capacidade de auto-governo, a capacidade de auto-legislação e a capacidade de auto-administração" [02]. Não existindo quaisquer destes, desnaturada a qualidade de membro de uma federação.

            A capacidade de auto-organização compreende a prerrogativa de os Estados-membros definirem o cerne da sua própria estrutura mediante a promulgação da respectiva Constituição Estadual, desde que respeitados os princípios, expressos ou não, do sistema constitucional pátrio, tais como o princípio republicano, a eletividade, a divisão tripartite das funções estatais, os direitos fundamentais, as regras de processo legislativo, as regras de repartição de rendas, etc. Há, dessa maneira, subordinação exclusiva à Lex Legum, de modo que, não havendo conflito com esta, pode o Estado-membro se organizar da maneira que melhor lhe aprouver.

            A capacidade de auto-administração, por sua vez, consiste na prerrogativa de o Estado-membro gerir os próprios interesses, órgãos e serviços públicos, sem a interferência da União ou de outro ente político.

            A capacidade de auto-legislação permite ao Estado-membro, dentro dos lindes traçados pela Constituição Federal, elaborar seus próprios atos normativos, como fruto da atividade legiferante de seus órgãos e chefes de poder. O principal dos atos em destaque é a lei estadual, elaborada pela respectiva Assembléia Legislativa de acordo com as regras de competência e de processo legislativo estampadas na Carta da República. Fora o requisito da conformidade com esta, a vontade política expressa no texto legislativo estadual não pode sofrer maiores restrições, especialmente por atos legais e infra-legais emanados de outros entes federais.

            Nesse contexto, isto é, dentro de um quadro em que as pessoas políticas gozam de estrita igualdade jurídica, não se pode falar em hierarquia entre as leis cuja elaboração competir à União e as que forem editadas pelos Estados ou Municípios. E tal premissa é verdadeira por uma razão muito contundente: a hierarquia de leis só existe quando o ato legislativo subordinado busca o seu fundamento de validade no subordinante. É o que ocorre, por exemplo, quando uma lei deixa "claros" ou comandos abertos passíveis de comaltação por meio de decretos expedidos pelo chefe do Poder Executivo; estes, para serem válidos, devem estar conformes com aquela.

            Ora, se as leis federais, estaduais, municipais e distritais haurem a sua validade na mesma fonte, ou seja, na Constituição Federal, somente a esta devem obediência e, portanto, não se subordinam entre si, sob pena de flagrante inconstitucionalidade material da lei pretensamente subordinante.

            Como corolário de todos os aspectos acima delineados, tem-se a capacidade de auto-governo, entendida esta como o domínio sobre as decisões políticas do Estado-membro, exercido pelas autoridades locais com independência em relação às autoridades da ordem central.

            Destarte, os agentes públicos do Estado-membro, cujo poder foi outorgado pelo povo da unidade federada, exercem-no de maneira autônoma aos desígnios das autoridades da União. São, portanto, responsáveis pela afirmação do Estado de Direito dentro da Unidade da Federação, cumprindo e fazendo cumprir os comandos legais.

            Ante tal paridade entre os agentes dos entes políticos, a atuação do Poder Judiciário estadual, desde que situada no âmbito da competência residual que lhe é outorgada pela Lex Legum, é perfeitamente legítima e não pode ser afastada ou negada por ato de agente ou órgão de outra Unidade da Federação ou do poder central (União). Se existem deficiências na aplicação, deve o Estado-membro buscar os expedientes necessários para solver tal problema. Somente quando a ação do Estado-membro for incipiente a ponto de ferir gravemente a Constituição Federal, pode a União tomar medidas mais incisivas a respeito.

            Aliás, o próprio Texto Maior prevê, desde a sua redação original, o instrumento apto para tratar tais casos extremos: a intervenção federal. Esta somente será admissível nas hipóteses taxativamente descritas no artigo 34 da Constituição Federal, que representam os chamados princípios constitucionais sensíveis. Se o Estado-membro os conspurca, sujeita-se à decretação de intervenção federal e, por conseguinte, à perda temporária de sua autonomia.

            É de se dizer, por fim, que a intervenção federal, como instrumento excepcional que é, revela-se o único meio apto à destituição da autonomia dos Estados-membros, sendo defesa a criação de novos mecanismos, diretos ou oblíquos, que tenham o mesmo desiderato, sob pena de infirmação do pacto federativo e, nessa medida, de grave mácula à Carta Política. A vedação abrange, inclusive, as alterações efetivadas por meio de Emenda Constitucional, ante o teor do artigo 60, parágrafo 4°, inciso I, da Constituição Federal.


3. O princípio do juízo natural no ordenamento jurídico brasileiro

            O princípio do juízo natural, cujas bases foram lançadas pelo direito anglo-saxão, é adotado pela maioria dos povos cultos como postulado de legitimidade da atuação jurisdicional, na medida em que exerce papel garantidor da correta aplicação da lei e da preservação da imparcialidade da atividade do magistrado.

            Originariamente, o princípio consistia basicamente na vedação aos chamados tribunais de exceção, isto é, os designados ou criados para o julgamento de determinado fato, seja ele anterior ou posterior à constituição do tribunal. No dizer de NERY, o tribunal será de exceção "quando de encomenda, isto é, criado ex post facto, para julgar num ou noutro sentido, com parcialidade, para prejudicar ou beneficiar alguém, tudo acertado previamente" [03].

            Com a evolução do constitucionalismo e do reconhecimento e tutela dos direitos fundamentais, o princípio em destaque ganhou nova dimensão, a exigir regras de competência previamente estabelecidas em lei. É de se ressaltar que a primeira manifestação de tal desdobramento do juízo natural fez-se sentir no direito norte-americano, cuja forma de estado exigia a determinação, baseada em critérios objetivos, da competência dos órgãos jurisdicionais federais e dos estaduais.

            O ordenamento jurídico pátrio consagra as duas vertentes do aludido princípio, estipulando a Constituição Federal que não haverá juízo ou tribunal de exceção (artigo 5°, inciso XXXVII), bem como que ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente (artigo 5°, inciso LIII). A exigência é, pois, que o juízo ou tribunal seja definido abstratamente, conforme regras de competência adrede previstas em lei.

            Ambos os preceitos, muito além de garantirem a atuação jurisdicional legítima e imparcial, constituem consectários do princípio da isonomia, pelo qual os fatos iguais devem ser submetidos ao mesmo juízo, de acordo com as regras de competência previstas na Constituição Federal e na legislação processual. Significa que o cidadão deve submeter-se ao juízo aleatório do Estado, sem violar a regra de livre distribuição, e que o Estado deve observar as regras de não-discriminação para a definição do órgão jurisdicional competente em razão de tal ou qual fato.

            Em geral, a doutrina aponta que o referido princípio assenta-se sobre uma tríade de caracteres, a saber: a exigência de determinabilidade, a garantia de justiça material e a existência de critérios de fixação de competência.

            O primeiro aspecto, a determinabilidade do juízo, significa a possibilidade de se prever qual o órgão estatal competente para julgamento de determinado fato. No ordenamento jurídico pátrio, o Poder Judiciário exerce a jurisdição com privatividade, tendo a respectiva competência fixada por meio de leis genéricas, impessoais e abstratas anteriores à ocorrência do fato a ser julgado. Sob este foco, o juiz natural corresponde ao juiz legal, aquele investido no poder de definir o direito em determinado caso concreto.

            Todavia, a mera previsão em lei não exaure o conteúdo do princípio do juízo natural. Há a necessidade de que o órgão jurisdicional esteja investido em prerrogativas assecuratórias da correta aplicação da lei e da realização da justiça. Deve, pois, ter condições de entregar às partes uma prestação jurisdicional estreme de injunções políticas, econômicas e sociais.

            Em âmbito processual penal, deve o juízo procurar o equilíbrio entre a ação persecutória estatal e as garantias constitucionais inerentes a qualquer pessoa, independentemente da gravidade do delito ou da repercussão social que este tenha causado. A sua adstrição será ao alegado e provado pelas partes, sempre observados preceitos do devido processo legal, inclusive a sua livre convicção motivada.

            Odiosos, dessa maneira, quaisquer procedimentos que exijam do magistrado análise enviesada e antecipada do mérito da res in iudicium deducta, sejam eles impostos pela lei ou pelas diversas instituições sociais, entre as quais se destacam os órgãos de comunicação de massa.

            Por fim, inarredável é a existência de critérios previstos em lei para a determinação da competência dos juízes. E mais: para que sejam razoáveis, tais critérios devem ser objetivos, motivo pelo qual são inaceitáveis as regras que sujeitam a fixação da competência à discricionariedade de quaisquer órgãos ou agentes públicos. Estes, ainda que responsáveis pela fixação da competência, devem observar preceitos racionais e objetivos em tal mister.

            Nesse particular, valiosas são as palavras de MORAES, in verbis:

            "O referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se, não só a criação de tribunais ou juízos de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e a imparcialidade do julgador" [04].

            Os três aspectos acima expostos se interpenetram e formam o cerne da garantia político-jurídica mais eminente da atividade jurisdicional, porquanto se constitua como uma limitação instransponível ao Estado, na medida em que impede a criação de juízos de exceção ou ad-hoc, e como um direito subjetivo da parte de ter sua causa julgada por órgão investido em prerrogativas que lhe garantam a independência e a imparcialidade e cuja competência tenha sido fixada por meio de critérios objetivos.

            Sobre o assunto, GRINOVER não destoa do restante da doutrina, asseverando que o princípio do juízo natural desdobra-se "na verdade, em três conceitos: só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após o fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja" [05].

            A amplitude da garantia individual sob exame também é consagrada em nível jurisprudencial, onde avultam os julgados do Pretório Excelso abaixo colacionados:

            "O princípio da naturalidade do juízo - que reflete noção vinculada às matrizes político-ideológicas que informam a concepção do Estado Democrático de Direito - constitui elemento determinante que conforma a própria atividade legislativa do Estado e que condiciona o desempenho, pelo Poder Público, das funções de caráter persecutório em juízo. O postulado do juiz natural, por encerrar uma expressiva garantia de ordem constitucional, limita, de modo subordinante, os poderes do Estado - que fica, assim, impossibilitado de instituir juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção -, ao mesmo tempo em que assegura, ao acusado, o direito ao processo perante autoridade competente abstratamente designada na forma da lei anterior, vedados, em conseqüência, os juízos ex post facto" [06].

            "(...) O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal" [07].

            Estreme de dúvidas, portanto, que o princípio do juiz natural, nos contornos que lhe confere o direito pátrio, não se compraz com a dúvida ou com a indeterminação do órgão jurisdicional que julgará determinado fato. Ao contrário, a certeza, que orienta todo o direito, lhe é peculiar, tendo o réu, notadamente em sede processual penal, o direito subjetivo de ser julgado apenas pelo juízo que for determinado previamente pela lei, consoante regras de competência que, por serem objetivas, permitem a ele — e à sociedade — antever qual o seu juiz natural.

            Restam defesos, assim, os expedientes que introduzam a incerteza na definição da competência. Trata-se de óbice imposto pelo Poder Constituinte, que reflete a importância de garantia individual integrante do núcleo duro da Constituição Federal, motivo pelo qual não pode ser transposto, ainda que por meio de reforma ou emenda constitucional.


4. A federalização dos crimes contra os direitos humanos — análise do dispositivo constitucional

            Conforme já dito alhures, a Emenda Constitucional n° 45, de 08 de dezembro de 2004, ampliou a competência da Justiça Federal, que passou a abranger as causas em que haja grave violação dos direitos humanos. Conquanto já se tenha transcrito o dispositivo, de bom tom a sua repetição, in verbis:

            "Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

            (...)

            V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;

            (...)

            § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal".

            Trata-se, também como já abordado, de incidente de deslocamento de competência, suscitado pelo Procurador-Geral da República e julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, apto a transferir a competência para julgamento de determinada causa da Justiça Estadual para a Justiça Federal.

            Seus requisitos são vários. De início, a violação dos direitos humanos há de ser grave. O juízo primeiro de tal gravidade é feito pelo Procurador-Geral da República, que decide, a seu alvedrio, acerca da deflagração ou não do incidente. Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça profere outro juízo de valor, este definitivo, sobre a dita violação grave ensejadora da modificação de competência.

            Neste ponto reside a primeira — e gravíssima — inconstitucionalidade do dispositivo. Com efeito, ao introduzir um instrumento capaz de modificar a competência para o julgamento de determinada causa e, portanto, de subtrair a competência do órgão jurisdicional originariamente competente com base em juízos subjetivos acerca da gravidade de um crime, a aludida regra constitucional vilipendia a garantia do juízo natural, porquanto lhe retire a objetividade e a determinabilidade que lhe são peculiares.

            Em outras palavras, a sociedade e o acusado, já conhecedores do juízo natural, este definido por regras objetivas prévias ao fato, quedar-se-ão submetidos à discricionariedade dos órgãos estatais persecutórios, o que evidentemente não se admite em um Estado Democrático de Direito.

            Nem se diga que a decisão judicial, na espécie proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, seria capaz de purgar a inconstitucionalidade. A referida Corte não teria dados objetivos para bem fundamentar a sua decisão, tendo em vista a inexistência de critérios minimamente objetivos autorizadores da modificação.

            Afinal, o que qualificaria determinada conduta como gravemente atentatória aos direitos humanos?

            A matéria não é de simples deslinde. Primeiro, pelo fato de que a própria concepção de direitos humanos é fluida, não chegando os autores especializados a um consenso mínimo acerca de qual seria o parâmetro para estremar quais os bens jurídicos que lhes seriam ou não representativos.

            Segundo, a valoração sobre a gravidade do crime, à míngua de critérios objetivos, só poderá ser feita com a análise dos elementos que circundam o crime, importando, nessa medida, em inadmissível antecipação do mérito da ação penal. Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o incidente, terá de avaliar as circunstâncias da prática delituosa, tais como: modo de execução, repercussão social, grau de reprovação, suas conseqüências, etc., atividade que, de regra, o órgão jurisdicional só faz quando da prolação da sentença. Haveria, como se vê, malferimento de um dos pilares do princípio do juiz natural, a imparcialidade.

            Outro aspecto crucial a tal respeito é a possibilidade de o mesmo Superior Tribunal de Justiça ser provocado, no curso do processo, a resolver questão relativa ao desrespeito das leis federais ou mesmo de violação à liberdade de locomoção. Em que posição ficaria o órgão jurisdicional que já afirmou a gravidade do delito ao julgar, v.g., um habeas corpus em que se pedisse o trancamento da ação penal por vício de incompetência absoluta da Justiça Federal? A situação seria, no mínimo, incômoda.

            Outra característica tradutora da incerteza é a possibilidade de a competência ser modificada em qualquer fase do inquérito ou processo, o que além de flagrantemente incompatível com a certeza e objetividade peculiares ao postulado do juiz natural, coloca uma espada de Dâmocles sobre o acusado.

            Apenas para ilustrar o absurdo que o dispositivo pode causar, imagine-se a seguinte situação: o Ministério Público Estadual, após a instrução processual, verifica a inexistência de elementos probatórios sólidos para afirmar a culpabilidade de denunciados pela suposta prática de latrocínio e requer, em sede de alegações finais, a absolvição com fundamento no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal. O Procurador Geral da República ajuíza imediatamente o incidente de deslocamento de competência perante o Superior Tribunal de Justiça, que, por sua vez, reconhece a gravidade do delito e transfere a competência para julgamento à Justiça Federal. O Ministério Público Federal, não tendo participado do contraditório, é chamado a se manifestar, ocasião em que requer a condenação dos inculpados. O Juiz Federal, por seu turno, profere sentença condenatória.

            A hipótese, embora pareça de difícil configuração, traz em seu bojo máculas à certeza do direito e à segurança jurídica, na medida em que impõe ao acusado duas respostas estatais diametralmente opostas, o que é impensável em qualquer sistema penal moderno.

            Poder-se-ia argumentar que eventual lei especificadora de quais delitos seriam considerados como gravemente atentatórios aos direitos humanos acabaria com a inconstitucionalidade ora aventada. A idéia, conquanto sedutora, não se sustenta, máxime diante do fato de que chamada "federalização" dos crimes contra os direitos humanos constitui um dos mais graves ataques ao pacto federativo brasileiro, conforme se verá adiante.

            Como já se disse, a Constituição Federal estabelece um minudente sistema de distribuição de competência, fixando as atribuições de cada pessoa política. Dentro desse campo de atuação, o ente político age com autonomia em relação aos demais integrantes da Federação.

            Nessa senda, o Texto Maior, ao delimitar taxativamente a competência da Justiça Federal e definir a competência dos órgãos do Poder Judiciário estadual como residual, aponta para a excepcionalidade das causas que devem ser julgadas pelo Poder Judiciário da União. Em outros termos, afora os casos em que a Constituição especifica, cabe aos órgãos judiciários estaduais a atuação com independência e autonomia.

            O novel dispositivo constitucional ora debatido, ao introduzir no âmbito da competência da Justiça Federal um amplo rol de crimes, os causadores de grave lesão aos direitos humanos, vai de encontro à cláusula constitucional que informa a distribuição de competências entre os órgãos do Poder Judiciário dos Estados e o da União, tornando ampliando demasiadamente o que deve ser exceção.

            Estariam, em tese, submetidos à competência da Justiça Federal todos os latrocínios, crimes de tortura e outros delitos deste jaez. Haveria, destarte, uma subtração enorme da competência do Poder Judiciário estadual a infirmar a relevância do pacto federativo.

            Em verdade, o dispositivo estabelece uma cláusula geral de desconfiança acerca da competência (em sentido literal) dos Estados-membros em apurar e punir as condutas atentatórias aos direitos humanos e, dessa forma, garantir a observância dos tratados internacionais de que o Brasil faça parte. Há, em outras palavras, a presunção de que os órgãos persecutórios e o Poder Judiciário federais melhor tratariam da matéria, o que é imponderável em uma república dita federativa. Afinal, se as pessoas políticas são juridicamente iguais, inadmissível que a lei atribua aos órgãos da União preeminência em relação aos dos Estados-membros.

            É de se registrar que abalizados setores doutrinários defendem que a modificação da competência seria admissível, porquanto deva haver coincidência entre a pessoa política responsável pela tutela dos direitos humanos no plano internacional e no plano interno. Nesse sentido manifesta-se PIOVESAN, in verbis:

            "A justificativa é simples: considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir. Todavia, paradoxalmente, em face da sistemática vigente, a União, ao mesmo tempo em que detém a responsabilidade internacional, não detém a responsabilidade nacional, já que não dispõe da competência de investigar, processar e punir a violação, pela qual internacionalmente estará convocada a responder" [08].

            Com a devida vênia, o entendimento não se conforma com o princípio federativo. Se é verdade que à União cabe a representação internacional da República, também é igualmente verdadeiro que não há distinção entre esta e os demais entes políticos no plano interno. Os Estados-membros, por integrarem a Federação, são tão responsáveis pela violação dos direitos humanos quanto a União e, portanto, não podem ser alijados do mister de apurar, processar e julgar crimes insertos no bojo de sua competência, por mais graves que estes sejam.

            Não se trata, ao demonstrar a inconstitucionalidade do incidente de modificação de competência, de constituir estorvo à apuração dos crimes ou de incentivar a impunidade, pois que há uma gama de outros instrumentos capazes de garantir a tutela dos direitos humanos e conformes com o pacto federativo. Fala-se, por exemplo, da colaboração nas investigações, depurada pela Lei n° 10.446, de 8 de maio de 2002, e do tão conhecido instituto do desaforamento no Tribunal do Júri.

            Não se pode olvidar, outrossim, que eventual vício no julgamento por parte da Justiça estadual poderá ser discutido em instâncias superiores, inclusive no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, o que dificulta sobremaneira o erro judiciário e a promoção da impunidade.

            De toda sorte, acaso o contexto estadual seja grave a ponto de indicar a falência total ou o mal-funcionamento crônico das instituições locais e, por conseguinte, a apuração deficitária das condutas que violem gravemente os direitos humanos, pode a União intervir no respectivo Estado-membro, retirando-lhe temporariamente a autonomia. A intervenção federal, na espécie, poderia ter arrimo em muitos dos fundamentos arrolados no artigo 36 da Lex Legum, a saber: pôr termo a grave comprometimento da ordem pública (inciso III), garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da federação (inciso IV), prover a execução de lei federal (inciso VI) e, especialmente, garantir a observância dos direitos da pessoa (inciso VII, alínea "b").

            A intervenção federal é sempre ultima ratio, mas é o único meio constitucional para o afastamento da autonomia de um Estado-membro, sendo que outros expedientes com o mesmo desiderato, ainda que introduzidos por Emenda Constitucional, não se conformam com o pacto federativo e, por tal motivo, devem ser expurgados do mundo jurídico. O incidente de deslocamento de competência, na medida em que subtrai a competência do Poder Judiciário dos Estados-membros, afigura-se inconstitucional, por instituir uma intervenção federal subliminar ou de "forma branca".

            No único caso até agora julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, o Incidente de Deslocamento de Competência n° 01/PA, entendeu-se pela improcedência do pedido, consoante a ementa aposta no voto do Ministro-Relator, que ora se transcreve:

            "CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO DOLOSO QUALIFICADO. (VÍTIMA IRMÃ DOROTHY STANG). CRIME PRATICADO COM GRAVE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS. INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA – IDC. INÉPCIA DA PEÇA INAUGURAL. NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA CONTIDA. PRELIMINARES REJEITADAS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E À AUTONOMIA DA UNIDADE DA FEDERAÇÃO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RISCO DE DESCUMPRIMENTO DE TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO PELO BRASIL SOBRE A MATÉRIA NÃO CONFIGURADO NA HIPÓTESE. INDEFERIMENTO DO PEDIDO.

            1. Todo homicídio doloso, independentemente da condição pessoal da vítima e/ou da repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida, previsto no art. 4º, nº 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário por força do Decreto nº 678, de 6/11/1992, razão por que não há falar em inépcia da peça inaugural.

            2. Dada a amplitude e a magnitude da expressão "direitos humanos", é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir o rol dos crimes que passariam para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstâncias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há falar em norma de eficácia limitada. Ademais, não é próprio de texto constitucional tais definições.

            3. Aparente incompatibilidade do IDC, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, com qualquer outro princípio constitucional ou com a sistemática processual em vigor deve ser resolvida aplicando-se os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

            4. Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de

            direitos humanos.

            5. O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente.

            6. Pedido indeferido, sem prejuízo do disposto no art. 1º, inc. III, da Lei nº 10.446, de 8/5/2002" [09].

            O acórdão, embora preservando a competência da Justiça Estadual, revela um traço muito forte do incidente comentado, o de funcionar como um sucedâneo da intervenção federal dentro do processo, a ser adotado quando houver inépcia dos órgãos locais. Isto é, a desídia ou incompetência do Estado-membro, que deveria autorizar a decretação de intervenção federal, acaba legitimando a adoção de expediente que agride o pacto federativo e menoscaba o Poder Judiciário e os órgãos persecutórios estaduais, sendo, por tal motivo, inconstitucional.

            Por fim, é de se dizer que, como já ocorreu no caso supracitado, o Poder Judiciário ficará sob forte pressão das forças sociais, notadamente da imprensa, a fim de que desloque a competência para a Justiça Federal, sendo que eventual julgamento improcedente por parte do Superior Tribunal de Justiça pode ser alardeado como incentivo à impunidade. Enfim, corre-se o risco de o princípio do juiz natural e o pacto federativo ficarem ao sabor de fatores e interesses extra-jurídicos, sem as necessárias objetividade e certeza.


5. Conclusões

            A Emenda Constitucional n° 45/2004 realizou reforma considerável na estrutura do Poder Judiciário, dispondo sobre diversas alterações de competência, dentre as quais avulta a ampliação dos casos submetidos a processo e julgamento pela Justiça Federal, a abranger atualmente as causas que versem sobre violação grave dos direitos humanos que tenham sido deslocadas da Justiça Estadual.

            Como sói acontecer, às alterações constitucionais seguem-se inúmeros debates sobre a conformação dos novos dispositivos com a vontade imutável do Poder Constituinte, especialmente no que tange ao respeito aos princípios fundamentais e dos direitos e garantias individuais.

            Na espécie, o incidente de deslocamento de competência, capaz de "federalizar" um crime, ou melhor, transferir a competência de processo e julgamento de determinado delito da Justiça Estadual para a Justiça Federal, tem a sua constitucionalidade contestada em face do postulado do juízo natural e do princípio federativo.

            O princípio do juiz natural, originariamente previsto na Inglaterra como a vedação aos chamados tribunais de exceção ou ex post facto, teve seu conteúdo aprimorado por obra do federalismo norte-americano e atualmente apóia-se sobre três principais pilares: a previsão legal, pretérita à ocorrência do fato, do órgão jurisdicional competente para o processo e julgamento de determinada causa; a existência de poderes e garantias, atribuídos ao Juízo, capazes de preservar-lhe a independência e a imparcialidade, visando à promoção da justiça material e à correta aplicação do direito; e a definição da competência por meio de lei, observando critérios objetivos. O Juízo que não preencher tais requisitos será de exceção e, portanto, inidôneo para o julgamento do que quer que seja.

            O princípio federativo, por seu turno, tem a mais expressiva manifestação na federação formada pelos Estados Unidos da América, cujo traço maior é a existência de uma ordem central, representativa dos interesses dos Estados-membros, que não retira a autonomia destes para cuidar dos próprios interesses.

            A república brasileira, seguindo o modelo de estado norte-americano, constitui-se em Estado Federal formado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, entes cujas prerrogativas e atribuições estão rigidamente fixadas no seio da Constituição Federal, sendo-lhes vedada, de regra, a intervenção recíproca.

            A chamada federalização dos crimes contra os direitos humanos, consistente em um incidente de deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal que pode ser suscitado a qualquer momento pelo Procurador Geral da República, que juntamente com o Superior Tribunal de Justiça, realiza juízo subjetivo acerca da gravidade do crime, introduz a incerteza, o suspense, no processo penal e, dessarte, conspurca o conteúdo do princípio do juiz natural, motivo bastante para a afirmação de sua inconstitucionalidade, ante o teor do artigo 60, parágrafo 4°, inciso IV, da Constituição Federal.

            Também, ao proporcionar a retirada de causa que originariamente estava no âmbito de atuação do Poder Judiciário dos Estados-membros, o referido incidente revela uma tendência centralizadora infensa à forma federativa de estado, importando em inadmissível mácula ao princípio federativo.

            Assim, a aludida modificação no artigo 109 da Constituição Federal, levada a efeito pelo Poder Constituído Reformador, viola direitos e garantias fundamentais, máxime a garantia do juiz natural e a cláusula do due process of law, bem como deprecia o já combalido pacto federativo pátrio. É, portanto, inconstitucional, não devendo ser aplicada pelos órgãos jurisdicionais e merecendo ser extirpada do mundo jurídico pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°s 3486-3 e 3493-6, o que se espera com ansiedade.


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NOTAS

            01 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 409

            02 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Poder constituinte do Estado-membro, cit., p. 54

            03 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. cit., p.67

            04 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. cit., p.108.

            05 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em sua unidade – II. cit., p. 39.

            06 STF, AI 177.313-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 17/05/96)

            07 HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/04

            08 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional: a exigência da federalização. Boletim dos Procuradores da República, n° 16, agosto de 1999.

            09 STJ, Terceira Seção, IDC 01/PA, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA. Julgado em 08/06/2005.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JUNIOR'S, Edmilson Rufino de. A federalização dos crimes contra os direitos humanos à luz dos princípios federativo e do juízo natural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 823, 4 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7383. Acesso em: 20 abr. 2024.