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Direitos humanos como utopia

Direitos humanos como utopia

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Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de Direitos Humanos. 3. Histórico dos Direitos Humanos no Brasil e no Mundo; 3.1. Histórico dos Direitos Humanos no mundo; 3.2. A História dos Direitos Humanos no Brasil; 4. Os Direitos Humanos Fundamentais; 5. A concepção de Utopia; 5.1 – O pensamento utópico; 5.2 – A função da utopia; 6. Conclusão.


"A igualdade não é um dado, mas um construído."
(Hannah Arendt)


1. INTRODUÇÃO

Diante da violência, da miséria, da discriminação e do preconceito que assolam o nosso país, quiçá o nosso planeta, não poderíamos deixar de reconhecer e, sobretudo, ressaltar a importância dos Direitos Humanos para toda a população mundial. No entanto, cabe neste momento, questionar o que são os Direitos Humanos? Como tudo isso começou? Será que esses direitos foram, estão sendo e serão respeitados? O que se deve fazer para garantir o respeito igualitário de tais direitos, de forma que atinjam, também, as classes menos privilegiadas e que, portanto, são as que mais sofrem todo o tipo de preconceito e discriminação, em um desrespeito total à sua dignidade humana, dignidade esta, que deveria ser respeitada sem distinção de cor, sexo, religião e etc.

È sobre esse assunto tão vasto, polêmico e por isso mesmo, tão apaixonante e envolvente, que iremos falar. Iniciaremos com o conceito de Direitos Humanos, relacionando os direitos humanos fundamentais e suas finalidades, passando por sua história no Brasil e no Mundo. Terminada essa primeira fase, assim podemos dizer, defenderíamos a posição dos Direitos Humanos como uma utopia. Utopia não no sentido de algo inacessível, algo que não se possa realizar, muito pelo contrário, conforme veremos no decorrer do presente trabalho.

Por fim, culminaremos com a conclusão que poderá confirmar ou não a hipótese principal e mola propulsora desse trabalho que é a afirmativa de que os Direitos Humanos nada mais são do que, como diz o nosso ilustre mestre JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF, "A construção universal de uma utopia"(I).


2. CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS

A expressão Direitos Humanos já diz, claramente, o que este significa. Direitos Humanos são os direitos do homem. Diria que são direitos que visam resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, ou seja, direitos que visam resguardar a solidariedade, a igualdade, a fraternidade, a liberdade, a dignidade da pessoa humana. No entanto, apesar de facilmente identificado, a construção de um conceito que o defina, não é uma tarefa fácil, em razão da amplitude do tema.

Vejamos quais os conceitos elaborados pelos estudiosos da área, sobre Direitos Humanos:

          "Direitos Humanos são as ressalvas e restrições ao poder político ou as imposições a este, expressas em declarações, dispositivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a fazer respeitar e concretizar as condições de vida que possibilitem a todo o ser humano manter e desenvolver suas qualidades peculiares de inteligência, dignidade e consciência, e permitir a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais."(II)

"Os Direitos Humanos colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana." (III)

"Direitos Humanos são uma idéia política com base moral e estão intimamente relacionados com os conceitos de justiça, igualdade e democracia. Eles são uma expressão do relacionamento que deveria prevalecer entre os membros de uma sociedade e entre indivíduos e Estados. Os Direitos Humanos devem ser reconhecidos em qualquer Estado, grande ou pequeno, pobre ou rico, independentemente do sistema social e econômico que essa nação adota." (IV)

O ilustre mestre João Baptista Herkenhoff, assim conceitua Direitos Humanos: "Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir". (V)

Podemos afirmar, portanto, como já o fizemos em trabalho anterior(VI), que entende-se por Direitos Humanos, aqueles direitos inerentes à pessoa humana, que visam resguardar a sua integridade física e psicológica perante seus semelhantes e perante o Estado em geral. De forma a limitar os poderes das autoridades, garantindo, assim, o bem estar social através da igualdade, fraternidade e da proibição de qualquer espécie de discriminação.


3. HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL E NO MUNDO

3.1. Histórico dos Direitos Humanos no Mundo

Em sua obra "Curso de Direitos Humanos – Gênese dos Direitos Humanos, Volume 1", João Baptista Herkenhoff(VII) ensina que, utilizando-se a expressão "Direitos Humanos" como quaisquer direitos atribuídos ao homem, pode-se encontrar o reconhecimento de tais direitos até mesmo na Antiguidade. E cita, como exemplos, o Código de Hamurábi, no século XVIII antes de Cristo, na Babilônia; os pensamentos do imperador do Egito, Amenófis IV, no século XIV a.C.; as idéias de Platão, na Grécia, no século IV a.C.; o Direito Romano, e várias outras civilizações e culturas ancestrais.

No entanto, o próprio Herkenhoff salienta que, não obstante já haver uma preocupação com tais direitos, estes não possuíam uma "garantia legal", de forma que eram bastante precários em sua estrutura política, já que o respeito à eles dependia da sabedoria dos governantes. Apesar de tais fatos, tal contribuição não deixou de ser relevante na criação da idéia dos Direitos Humanos.

Solicitamos a devida vênia para concordar, em parte, com o autor supra citado, quando este afirma não estar de acordo com a posição de certos doutrinadores em afirmar que a história dos Direitos Humanos começou com "balizamento do poder do Estado pela lei", por entender que essa posição "obscurece o legado de povos que não conheceram a técnica de limitação do poder mas privilegiaram enormemente a pessoa humana nos seus costumes e instituições sociais". (VIII)

De fato, a preocupação com a proteção à integridade da pessoa humana remonta de muitos e muitos séculos e faz parte da própria natureza humana, que busca o reconhecimento de suas necessidades em prol de uma sociedade que garanta uma distribuição igualitária e justa. Não se pode vincular algo que faz parte da natureza humana com as determinações da lei, que muitas vezes nada têm a ver com justiça e muito menos com as limitações do poder estatal por esta, uma vez que a preocupação humana com relação à proteção de suas necessidades básicas, existe até mesmo antes de tais limitações legais.

Além do mais, como bem enfatiza Herkenhoff, "a simples técnica de estabelecer em constituições e leis, a limitação do poder, embora importante, não assegura, por si só o respeito aos Direitos Humanos. Assistimos em épocas passadas e estamos assistindo, nos dias de hoje, ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde eles são legal e constitucionalmente garantidos. Mesmo em países de longa estabilidade política e tradição jurídica, os Direitos Humanos são, em diversas situações concretas, rasgados e vilipendiados." (IX)

No entanto, em recente trabalho, que nos foi solicitado no curso de Mestrado em Direito, de nome "A Homossexualidade Brasileira face a Declaração Universal dos Direitos Humanos", tivemos a oportunidade de afirmar que os primeiros marcos da "internacionalização dos Direitos Humanos" foram constituídos pelos Direitos Humanitários que são os aplicados nas hipóteses de guerra, tendo como escopo impor limites à atuação do Estado e assegurar, dessa forma, a observância dos direitos fundamentais, de modo a proteger, nesses casos, os militares postos fora de combate e as populações civis, regulando juridicamente o emprego da violência no âmbito internacional e limitando, com isso, a liberdade e a autonomia dos Estados.

Vejam, que não estamos a falar que a história dos Direitos Humanos iniciou-se com a limitação pela lei, da autonomia estatal. O que afirmamos, ora, é que um dos primeiros marcos da internacionalização dos Direitos Humanos constituiu-se nas limitações dos poderes do Estado, de forma a assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

Além do Direito Humanitário, outro importante marco foi a Liga das Nações, criada após a primeira guerra mundial com o intuito de promover a cooperação, a paz e a segurança internacional, de forma a condenar as agressões externas contra a integridade territorial e a independência política de seus membros. Através de uma convenção da Liga das Nações, os Estados tinham o compromisso de assegurar condições justas e dignas de trabalho para homens, mulheres e crianças, sendo estabelecidas sanções econômicas e militares contra Estados que, porventura, viessem a violar seus preceitos. Seu principal objetivo era "promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais."

Junto com tais organizações, estava, também, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), que deixou importantes contribuições para o chamado processo de internacionalização dos Direitos Humanos. A OIT foi criada após a Primeira Guerra Mundial, para promover parâmetros básicos de trabalho e bem-estar social. Um de seus objetivos foi o de regular a condição dos trabalhadores no âmbito mundial.

Todos esses institutos forneceram a sua parcela de contribuição para o processo de internacionalização dos Direitos Humanos e se assemelham, na medida em que projetam o tema dos Direitos Humanos na ordem internacional, uma vez que estão todos voltados, exclusivamente, para a guarda e proteção dos direitos do ser humano, de forma que o Estado deixou de ser o único sujeito de direitos internacional, não se podendo, atualmente, negar a personalidade internacional do indivíduo.

Entretanto, foi em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial e com o intuito de proteger os seres humanos das atrocidades do Holocausto e das barbaridades cometidas pelos nazistas contra os judeus, na Alemanha, que surgiram as mais profundas preocupações no que pertine à proteção internacional dos Direitos Humanos. Preocupações, estas, que consistiam em afirmar que a soberania estatal encontra-se limitada pelo respeito aos Direitos Humanos, não sendo, portanto, totalmente absoluta. E foi justamente essa preocupação, que acabou por impulsionar o processo de internacionalização dos Direitos Humanos, culminando com a criação de normas de proteção internacional que possibilitaram a responsabilização do Estado no domínio internacional, quando as instituições nacionais se mostrarem falhas ou omissas na tarefa de proteção dos Direitos Humanos.

Podemos afirmar, portanto, que foi a Carta das Nações Unidas de 1945 que internacionalizou os Direitos Humanos. No entanto, apesar de conter, em seu bojo, normas que determinavam a importância de se defender, promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, ela não definiu o conteúdo dessas expressões, que só vieram a ser definidas, com precisão com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.

          3.2. A História dos Direitos Humanos no Brasil

A história dos Direitos Humanos no Brasil está vinculada, de forma direta com a história das constituições brasileiras. Portanto, para falarmos a respeito de tal assunto, abordaremos, brevemente, a história das várias Constituições no Brasil e a importância que as mesmas deram aos Direitos Humanos.

A primeira Constituição Brasileira já surgiu provocando o repúdio de inúmeras pessoas, falamos da Constituição Imperial de 1824, que foi outorgada após a dissolução da Constituinte, razão da rejeição em massa que acarretou protestos em vários Estados brasileiros, como em Pernambuco, Bahia, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Essas reivindicações de liberdade, culminaram com a consagração dos Direitos Humanos, pela Constituição Imperial, que apesar de autoritária (por concentrar uma grande soma de poderes nas mãos do imperador), revelou-se liberal no reconhecimento de direitos.

De acordo com a Constituição Imperial Brasileira de 1824, a inviolabilidade dos direitos civis e políticos baseavam-se na liberdade, na segurança individual e, como não poderia deixar de ser, na propriedade (valor, de certa forma, questionável).

Em 24 de fevereiro de 1891, surgiu a primeira Constituição Republicana que tinha como objetivo, como ensina Herkenhoff, "corporificar juridicamente o regime republicano instituído com a Revolução que derrubou a coroa." (X)

Foi essa Constituição que instituiu o sufrágio direto para a eleição dos deputados, senadores, presidente e vice-presidente da República, no entanto, determinava, também, que os mendigos, os analfabetos, os religiosos, não poderiam exercer tais direitos políticos. Além disso, ela aboliu a exigência de renda como critério de exercício dos direitos políticos.

O sufrágio direto estabelecido por esta Constituição no entanto, não modificou as regras de distribuição do poder, já que a prioridade da força econômica nas mãos dos fazendeiros e o estabelecimento do voto, a descoberto, contribuíram para que estes, pudessem manipular os mais fracos economicamente, de acordo com seus interesses políticos.

Apesar disso, podemos afirmar que a primeira Constituição republicana ampliou os Direitos Humanos, além de manter os direitos já consagrados pela Constituição Imperial.

Em 1926, com a reforma constitucional, procurou-se em primeiro lugar, remediar os abusos praticados pela União em razão das intervenções federais nos Estados, no entanto, não atendeu, de forma plena, a exigência daqueles que entendiam que a Constituição de 1891 não se mostrava adequada à real instauração de um regime republicano no Brasil.

A Revolução de 1930 provocou um total desrespeito aos Direitos Humanos, que foram praticamente esquecidos. O Congresso Nacional e as Câmaras Municipais foram dissolvidos, a magistratura perdeu suas garantias, suspenderam-se as franquias constitucionais e o habeas corpus ficou restrito à réus ou acusados em processos de crimes comuns. Não foram poucos os que se rebelaram contra essa "prepotência", culminando com a Revolução constitucionalista de 1932, que acarretou na nomeação, pelo governo provisório, de uma comissão para elaborar um projeto de Constituição, comissão esta que, por reunir-se no Palácio do Itamarati, recebeu o nome de "a comissão do Itamarati". A participação popular, no entanto, ficou por demais reduzida em razão da censura à imprensa. Entretanto, apesar desta censura, a Constituição de 1934 estabeleceu algumas franquias liberais, como por exemplo: determinou que a lei não poderia prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; vedou a pena de caráter perpétuo; proibiu a prisão por dívidas, multas ou custas; criou a assistência judiciária para os necessitados (assistência esta, que ainda hoje, não é observada por grande parte dos Estados brasileiros); instituiu a obrigatoriedade de comunicação imediata de qualquer prisão ou detenção ao juiz competente para que a relaxasse, se ilegal, promovendo a responsabilidade da autoridade coatora, além de várias outras franquias estabelecidas.

Além dessas garantias individuais, a Constituição de 1934 inovou ao estatuir normas de proteção social ao trabalhador, proibindo a diferença de salário para um mesmo trabalho, em razão de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; proibindo o trabalho para menores de 14 anos de idade, o trabalho noturno para os menores de 16 anos e o trabalho insalubre para menores de 18 anos e para mulheres; determinando a estipulação de um salário mínimo capaz de satisfazer às necessidades normais do trabalhador, o repouso semanal remunerado e a limitação de trabalho a oito horas diárias que só poderão ser prorrogadas nos casos legalmente previstos, além de inúmeras outras garantias sociais do trabalhador.

          A Constituição de 1934 não esqueceu-se também dos direitos culturais. Tratava-se de uma constituição que tinha como objetivo primordial, o bem estar geral. Ao instituir a Justiça Eleitoral e o voto secreto, essa constituição abriu os horizontes do constitucionalismo brasileiro, como bem ensina Herkenhoff (Curso de Direitos Humanos, pg. 77), para os direitos econômicos, sociais e culturais. Ela respeitou os Direitos Humanos e vigorou durante mais de 3 anos, até a introdução do chamado "Estado Novo", em 10 de Novembro de 1937, que introduziu o autoritarismo no Brasil.

Foi no "Estado Novo" que foram criados os tão polêmicos Tribunais de exceção, que tinham a competência para julgar os crimes contra a segurança do Estado. Nesta época, foi declarado estado de emergência no país, ficaram suspensas quase todas as liberdades a que o ser humano tem direito, dentre elas, a liberdade de ir e vir, o sigilo de correspondência (uma vez que as mesmas eram violadas e censuradas) e de todos os outros meios de comunicação, sejam orais ou escritos, a liberdade de reunião e etc.

          Os Direitos Humanos praticamente não existiram durante os, quase, oito anos em que vigorou o "Estado Novo".

          Com a Constituição de 1946, o país foi como diz Herkenhoff(XI), "redemocratizado", já que essa constituição restaurou os direitos e garantias individuais, sendo estes, até mesmo ampliados, do mesmo modo que os direitos sociais. De acordo com estes, foi proibido o trabalho noturno a menores de 18 anos, estabeleceu-se o direito de greve, foi estipulado o salário mínimo capaz de atender as necessidades do trabalhador e de sua família, dentre outros demais direitos previstos.

Os direitos culturais também foram ampliados e essa Constituição vigorou até o surgimento da Constituição de 1967, no entanto sofreu várias emendas e teve a vigência de inúmeros artigos suspensa por muitas vezes por força dos Atos Institucionais de 9 de Abril de 1964 (AI-1) e de 27 de outubro de 1965 (AI-2), no golpe, autodenominado "Revolução de 31 de março de 1964". Apesar de tudo isso, podemos afirmar que, durante os quase 18 anos de duração, a Constituição de 1946 garantiu os Direitos Humanos.

          A Constituição de 1967, porém, trouxe inúmeros retrocessos, suprimindo a liberdade de publicação, tornando restrito o direito de reunião, estabelecendo foro militar para os civis, mantendo todas as punições e arbitrariedades decretadas pelos Atos Institucionais. Hipocritamente, a Constituição de 1967 determinava o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário, no entanto na prática, tal preceito não existia.

No que pertine aos demais direitos, os retrocessos continuaram: reduziu a idade mínima de permissão para o trabalho, para 12 anos; restringiu o direito de greve; acabou com a proibição de diferença de salários, por motivos de idade e de nacionalidade; restringiu a liberdade de opinião e de expressão; recuou no campo dos chamados direitos sociais, etc.

Essa Constituição vigorou, formalmente, até 17 de outubro de 1969, com a nova Constituição, porém, na prática, a constituição de 67 vigorou apenas até 13 de dezembro de 1968, quando foi baixado o mais terrível Ato Institucional, o que mais desrespeitou os Direitos Humanos no País, provocando a revolta e o medo de toda a população, acarretando a ruína da Constituição de 1967, o AI-5.

O AI-5 trouxe de volta todos os poderes discricionários do Presidente, estabelecidos pelo AI-2, além de ampliar tais arbitrariedades, dando ao governo a prerrogativa de confiscar bens, suspendendo, inclusive, o habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Foi um longo período de arbitrariedades e corrupções. A tortura e os assassinatos políticos foram praticados de forma bárbara, com a garantia do silêncio da imprensa, que encontrava-se praticamente amordaçada e as determinações e "proteções legais" do AI-5. Tanto foi assim, que a Constituição de 1969 somente começou a vigorar, com a queda do AI-5, em 1978. A constituição de 1969, retroagiu, ainda mais, já que teve incorporadas ao seu texto legal, as medidas autoritárias dos Atos Institucionais. Não foram respeitados os Direitos Humanos.

          A anistia conquistada em 1979, não aconteceu da forma que era esperada, já que anistiou, em nome do regime, até mesmo os criminosos e torturadores. No entanto, representou uma grande conquista do povo.

Para João Baptista Herkenhoff (obra citada, pg. 88) e inúmeros brasileiros, a luta pela anistia representou "uma das páginas de maior grandeza moral escrita na História contemporânea do Brasil", juntamente com a convocação e o funcionamento da Constituinte.

A Constituição de 1988 veio para proteger, talvez tardiamente, os direitos do homem. Tardiamente, porque isso poderia ter se efetivado na Constituição de 1946, que foi uma bela Constituição, mas que, logo em seguida foi derrubada, com a ditadura. É por isso que Ulisses Guimarães afirmava que a Constituição de 1988 era uma "Constituição cidadã", porque ela mostrou que o homem tem uma dignidade, dignidade esta que precisa ser resgatada e que se expressa, politicamente, como cidadania.

O problema da dignidade da pessoa humana, vem tratado na Constituição de 1988, já no preâmbulo, quando este fala da inviolabilidade à liberdade e, depois, no artigo primeiro, com os fundamentos e, ainda, no inciso terceiro (a dignidade da pessoa humana), mais adiante, no artigo quinto, quando fala da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à igualdade.

Mas o que significa esta dignidade? Significa que o homem não pode ser tratado como um animal qualquer, pois ele tem a sua individualidade. Tem uma essência, que é própria dele. Cada indivíduo é totalmente diferente de outro e o que nos identifica é essa essência de ser pessoa.

A única coisa capaz de garantir a dignidade da pessoa humana, é a justiça! A dignidade é um valor supremo. O homem é digno, pelo simples fato de ser racional, o que o diferencia dos outros animais. A dignidade é, portanto, um valor fundamental!

Flávia Piovesan(XII) ensina que "a ordem constitucional de 1988 apresenta um duplo valor simbólico: é ela o marco jurídico da transição democrática, bem como da institucionalização dos direitos humanos no país. A Carta de 1988 representa a ruptura jurídica com o regime militar autoritário que perpetuou no Brasil de 1964 a 1985".

          Com a Constituição de 1988, houve uma espécie de "redefinição do Estado brasileiro", bem como de seus direitos fundamentais.

Ao ler os dispositivos constitucionais, podemos deduzir o quanto foi acentuada a preocupação do legislador, em garantir a dignidade, o respeito e o bem-estar da pessoa humana, de modo a se alcançar a paz e a justiça social.


4. OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Dentre os chamados Direitos Humanos Fundamentais, encontram previsão legal nos artigos 1 e 55 da Carta das Nações Unidas, os princípios da Autodeterminação dos povos, da não discriminação e o princípio da promoção da igualdade.

De acordo com o princípio da autodeterminação dos povos, o direito dos povos e nacionais à livre determinação é um requisito prévio para o exercício de todos os direitos humanos fundamentais.

O princípio da não discriminação, por sua vez, determina que o pleno exercício de todos os direitos e garantias fundamentais pertence a todas as pessoas, independentemente de raça, sexo, cor, condição social, genealogia, credo, convicção política, filosófica ou qualquer outro elemento arbitrariamente diferenciador.

Para Flávia Piovesan(XIII), "discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade."

Conforme determina a Declaração Universal dos Direitos Humanos, qualquer espécie de discriminação deve ser destruída, extirpada, de modo a assegurar, a todos os seres humanos, o pleno exercício de seus direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Até mesmo nossa Magna Carta, em seu artigo 5º, inciso XLI, determina que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais".

Dessa forma, havendo injustificada diferenciação no tratamento entre os indivíduos, estará caracterizada a discriminação. No entanto, não basta apenas não discriminar, é preciso, também, criar normas que possibilitem a esses grupos, já tão marginalizados, sua inclusão no contexto social do país, por meio da participação em instituições públicas ou privadas, a fim de garantir a verdadeira e completa implementação do direito à igualdade.

Com relação à esse assunto, Flávia Piovesan manifesta-se no seguinte sentido: "Com efeito, a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão – exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica na violenta exclusão e intolerância à diferença e diversidade. O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação."


5. A CONCEPÇÃO DE UTOPIA

Ao falarmos em Utopia, a primeira coisa que nos vem em mente é algo irrealizável, inatingível. De fato, se formos buscar o significado da palavra Utopia em nossos dicionários, iremos encontrar: "Projeto irrealizável; quimera." (XIV)

Entretanto, não é neste sentido que utilizamos a palavra Utopia, aqui, neste trabalho.

Nicola Abbagnano(XV) ensina que Thomas Moore deu o nome Utopia, a uma espécie de romance filosófico (De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, 1516), onde relatava as condições de vida em uma ilha desconhecida, que denominou Utopia. Nela teriam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa. Foi por isso que tal termo passou a designar, não apenas qualquer tentativa análoga, como também qualquer ideal político, social ou religioso, cuja realização seja difícil ou impossível.

Porém, como o próprio Abbagnano salienta, Manheim considerou a Utopia, como algo destinado a realizar-se, ao contrário da ideologia que não é passível de realização. Nesse sentido, a Utopia seria o fundamento da renovação social.

E continua: "Em geral, pode-se dizer que a U. (sic) representa a correção ou a integração ideal de uma situação política, social ou religiosa existente. Como muitas vezes aconteceu, essa correção pode ficar no estágio de simples aspiração ou sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da realidade vivida. Mas também pode tornar-se força de transformação da realidade, assumindo corpo e consistência suficientes para transformar-se em autêntica vontade inovadora e encontrar os meios da inovação. Em geral, essa palavra é considerada mais com referência à primeira possibilidade que à segunda." (XVI)

Em sua obra Direito e Utopia, João Baptista Herkenhoff afirma que a palavra Utopia deriva do grego, e significa "que não existe em nenhum lugar". Para Herkenhoff, a utopia é o contrário do mito, ou seja, utopia "é a representação daquilo que não existe ainda, mas que poderá existir se o homem lutar para sua concretização." E continua dizendo que a Utopia é a consciência antecipadora do amanhã. "O mito ilude o homem e retarda a História. A utopia alimenta o projeto de luta e faz a História". Herkenhoff vê o pensamento utópico como o grande motor das Revoluções. (XVII)

          5.1. O Pensamento Utópico

          O pensamento utópico teve um importante papel no Direito, uma vez que é através do mesmo que encontramos os instrumentos necessários para construir o nosso direito; É o pensamento utópico que ilumina o caminho em prol do que é justo, já que não fica restrito às imposições legais, que nem sempre estão de acordo com o que se entende por justiça.

O pensamento utópico funciona como uma espécie de libertação das amarras que prendem o Direito aos aspectos legais. Através da utopia, busca-se não o que diz a letra da lei, mas sobretudo, o que é justo. E lei e justiça não são palavras sinônimas, muito menos Direito e Lei. Essa distinção é proveniente, justamente, do pensamento utópico, que desvinculou o Direito da lei, proclamando que antes de tudo o Direito é justiça! Através do Direito, conforme o pensamento utópico, busca-se uma sociedade mais justa, fraterna, igualitária, onde os direitos das chamadas minorias (como as mulheres, os negros e os homossexuais, por exemplo) serão respeitados, um direito escrito pelo povo e em respeito, essencialmente, à dignidade da pessoa humana!

          5.2. A função da Utopia

De acordo com os ensinamentos proferidos pelo mestre João Baptista Herkenhoff(XVIII), a primeira função da utopia é favorecer uma visão crítica da realidade. No entanto, como salienta o mesmo, sua função não para por aí. A utopia é antes de mais nada, uma forma de ação, uma vez que provoca o movimento das pessoas, em busca do desenvolvimento de uma sociedade mais justa. Trata-se, de acordo com Bloch (citado por Herkenhoff) do "Princípio da Esperança" que anima o mundo.

Podemos dizer, dessa forma, que a função da utopia é a de provocar um movimento social, em busca de um novo Direito, um "Direito Justo", livre de amarras pré estabelecidas; um direito que busca a igualdade entre os povos, a fraternidade e, acima de tudo a paz social; um direito que renasce a cada dia, de acordo com as novas aspirações humanas, porque o homem é um ser dinâmico, de forma que, se o direito é criado exclusivamente em prol do ser humano, não poder ser estático, pois isso acarretaria uma contradição.

A utopia serve, portanto, como um instrumento de transformação social. Trata-se de uma realidade que visa, como ensina João Baptista Herkenhoff, "desmascarar a falsidade da ideologia estabelecida". (XIX) E, sabiamente, continua o mestre: "O presente pertence aos pragmáticos. O futuro é dos utopistas"!


6. CONCLUSÃO

É, de fato, impressionante como, às portas do tão esperado terceiro milênio, pouca coisa mudou, com relação à proteção e ao respeito aos direitos humanos, à dignidade da pessoa humana! Atualmente, não é difícil constatar a miséria, a violência, a degradação dos costumes que estamos vivenciando. Os jornais, revistas, televisão, não se cansam de anunciar, a todo o momento, o total desrespeito do homem para com ele próprio, quem dirá para com seus semelhantes!

São casos de jovens que resolvem "brincar" ateando fogo em um pacato índio que dorme ao relento; de policiais que, ao invés de proteger o cidadão, espancam e matam menores, em uma verdadeira chacina física e moral; discriminações e preconceitos contra a mulher, os negros, homossexuais, enfim, as chamadas minorias sociais; pais que se esquecem do dever natural de proteger seus filhos e os espancam, ou até mesmo estupram e matam; enfim, uma enorme e variada quantidade de atrocidades cometidas, as vezes até mesmo em nome da lei, que nos fazem questionar, a todo momento: onde estão os Direitos Humanos, os direitos do cidadão, da pessoa humana?

Estamos vivenciando uma espécie de violação em massa desses direitos e, diante de tanta miséria, discórdia, violência, o ser humano clama por JUSTIÇA, IGUALDADE E FRATERNIDADE!

Conforme ensina, sabiamente, o ilustre mestre João Baptista Herkenhoff, "as pessoas têm uma dignidade humana que tem de ser reverenciada" (XX) e, continua, "O Direito não pode ser instrumento legitimador da exploração do homem pelo homem. Direito que legitima a espoliação não é Direito, mas corrupção do Direito." (XXI)

É preciso buscar uma verdadeira conscientização da sociedade, no sentido de que os direitos humanos devem ser resguardados, independentemente de raça, cor, religião ou orientação sexual, pois somos todos diferentes, não existe ninguém igual! E a essência do princípio da igualdade está exatamente em respeitar as diferenças existentes, dando a todos, sem distinção, tratamentos iguais, pois, antes de qualquer coisa, somos seres humanos! Precisamos resgatar a dignidade da pessoa humana!

Como ensina Carlos Aurélio Mota de Souza(XXII), "Urge, em conseqüência, reconstruir os valores humanos desde suas raízes e transformar cada indivíduo, cada estudante, em cidadãos conscientes e exigentes da salvaguarda desses valores."

É preciso conscientizar o homem para a Cidadania! É preciso escutar a voz do povo na construção dessa verdadeira utopia! Utopia no sentido de movimentar a sociedade em prol de uma libertação, de uma conscientização, de um reconhecimento da dignidade humana. Utopia, no sentido de instrumento de mudança social e de conquistas populares. Utopia no sentido de buscar a igualdade social, a fraternidade e a construção da verdadeira cidadania!

Para que isso ocorra, é extremamente necessário o redirecionamento dos estudos jurídico no Brasil e, quiçá no Mundo, no sentido de libertar o direito das "amarras" criadas pelo Positivismo. No sentido de "abrir os olhos" da população, em busca do justo, e não somente do que encontra-se estipulado no texto de lei, que na sua grande maioria é injusto e não condiz com a realidade social, além de ser hipócrita, por não atingir todas as camadas da população, deixando "de fora" uma grande parte, já tão massacrada e perseguida! Cabe aos mestres e educadores, a tarefa de desvincular o Direito da Lei, de mostrar a diferença entre eles e de ensinar que o Direito é, sobretudo justiça!

É preciso coragem e luta para romper as barreiras do "Direito posto", na busca do "Direito Justo". É preciso, como afirma Herkenhoff, "dessacralizar a lei"! (XXIII)

Por fim, fazemos nossas as sábias palavras de João Baptista Herkenhoff(XXIV), quando este afirma que "Proclama-se o Direito e lança-se o anátema contra o antidireito, qual seja, o Direito estabelecido"!


NOTAS

  1. HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos – A construção Universal de uma utopia. São Paulo : Ed. Santuário, 1997.
  2. ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Sérgio Antônio Fabris Editor. Pg. 24.
  3. MORAIS, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. Coleção Temas Jurídicos – Vol. 3. São Paulo : Ed. Atlas, 1998. 2ª Edição. Pg. 20.
  4. J. S. Fagundes Cunha – Juiz de Direito do Paraná e Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa e da Escola Superior de Magistratura do Paraná, Mestre em Direito pela PUC/SP e doutorando pela UFPR, em artigo publicado no site www. jus.com.br.
  5. HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos HumanosGênese dos Direitos Humanos. Volume 1. São Paulo : Ed. Acadêmica, 1994. Pg. 30.
  6. O tema Direitos Humanos também foi abordado em um artigo de minha autoria, chamado "A Homossexualidade Brasileira face a Declaração Universal dos Direitos Humanos", trabalho este, onde apresento os mesmos conceitos neste expostos.
  7. HERKENHOFF, João Baptista. Obra citada. Pg. 51.
  8. Idem.
  9. Obra citada. Pg. 52.
  10. HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. Pg. 72.
  11. Curso de Direitos Humanos – Gênese...(ob. Citada). Pg. 78.
  12. PIOVESAN, Flávia Temas de Direitos Humanos. Pg. 206.
  13. PIOVESAN, Flávia. Idem. Pgs. 132 e 133.
  14. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3ª Edição. Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira, 1993. Pg. 557.
  15. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo : Ed. Martins Fontes, 1998. Pg. 987.
  16. Idem.
  17. HERKENHOFF, João Baptista. Direito e Utopia. Porto Alegre : Ed. Livraria do Advogado, 1999. Pgs. 11 e 12.
  18. HERKENHOFF, João Baptista. Direito e Utopia. Pg. 14.
  19. Direito e Utopia. Pg. 16.
  20. HERKENHOFF, João Baptista. Idem. Pg. 81.
  21. Idem. Pg. 92.
  22. SOUZA, Carlos Aurélio Mota. Direitos Humanos, Urgente! São Paulo : Ed. Oliveira Mendes, 1998. Pg. 91.
  23. Direito e Utopia. Ob. Citada. Pg. 91.
  24. Idem. Pg. 98.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMANIEGO, Daniela Paes Moreira. Direitos humanos como utopia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76. Acesso em: 29 mar. 2024.