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Os recursos penais e a efetividade da tutela jurisdicional

Os recursos penais e a efetividade da tutela jurisdicional

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Sumário: 1- O Processo em Evolução. 2- Embargos de Declaração em Decisão Interlocutória. 3- Recurso em Sentido Estrito. 4- Protesto por Novo Júri 5- Garantismo e Presteza. 6- Sugestões. 7- Conclusões


Síntese:O texto versa sobre a necessidade de reformas no processo penal, abordado alguns problemas dos recursos penais e formulando sugestões de lege ferenda.


1- O PROCESSO EM EVOLUÇÃO

            O último quarto do século XX foi marcado como um período de revisão geral do processo de origem romano-canônica. As reformas observadas no processo civil brasileiro a partir de meados dos anos noventa também podem ser observadas em outros ordenamentos, inclusive antes, podendo se citar o exemplo italiano.

            A jurisdição é hoje reconhecida como um direito fundamental e não se compreende como mero direito a um processo, senão que se trata de assegurar uma jurisdição eficaz, não somente porque os direitos têm de transcender à esfera meramente formal, como, ainda, pelo fato de que a eficácia da tutela jurisdicional é o índice de sua legitimação.

            Na esteira desta constatação, concluiu-se que a adaptação contínua do processo às realidades sociais é um componente imprescindível para manter-se sua eficácia, e, portanto, sua institucionalização pela sociedade como instância adequada para dirimir conflitos.

            Assim é que o processo civil tem sido objeto de várias e profundas reformas, sendo que a última delas se deu no último dia 20 de outubro, através de Lei nº 11.187/05. Observando o quanto evoluiu o processo civil, vem à lume um questionamento que me parece bastante pertinente: E o processo penal? Será que ele está tão bem adaptado à realidade que não carece de reformas, ou será que não se operaram mudanças porque não é visto com a devida atenção?

            O Código de Processo Penal sem dúvida é um diploma de qualidade, tanto que foi possível, através de poucas e limitadas reformas e da interpretação jurisprudencial, que continuasse sendo aplicado mesmo após o advento da CF/88, sem grandes problemas. Mas problemas existem, e acredito que a ausência de reformas se deve mais à desatenção com o processo penal é tratado do que ao grau de excelência do CPP.

            De fato, se o papel destinado à jurisprudência se hipertrofia há indicativo de que a lei precisa ser modificada. A jurisprudência desenvolve importante papel, mas seu espectro de atuação deve se dar dentro dos lindes da lei [01]. Quando esta é imperfeita ou lacunosa a melhor solução é a correção. No CPP, atualmente, observamos exatamente este quadro em algumas questões. Nos propomos a tratar exatamente de algumas delas, apontando soluções para discussão de lege ferenda, pois o processo deve estar sempre em evolução.


2- EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM DECISÃO INTERLOCUTÓRIA

            Embora o CPP apresente classificação sensivelmente diferente do CPC, quer seja quanto aos critérios, quer seja quanto às categorias, o certo é que o processo penal também contempla decisões interlocutórias, algumas das quais podem representar severa repercussão na esfera de direitos do acusado, citando-se, ad exemplum, as decisões relativas à custódia cautelar.

            Ocorre que, observando o CPP, constatamos que não existe previsão para embargos de declaração desta espécie de decisão. O artigo 382 prevê a possibilidade de que a parte solicite ao juiz que declare a sentença em caso de obscuridade, ambigüidade, contradição ou omissão, direito a ser exercitado em prazo de dois dias.

            As mesmas circunstâncias legitimam o manejo dos embargos de declaração do artigo 619 do CPP em relação aos acórdãos. As previsões destinam-se expressamente às sentenças e acórdãos, não às decisões interlocutórias. É pensar-se, por exemplo, na decisão que apreciando a concessão de liberdade provisória para dois acusados presos em flagrante por lapso deixa de conceder ou não liberdade a um deles. Quide inde?

            O jurisdicionado tem direito à decisões fundamentadas em prazo razoável. Este direito encontra-se previsto nos artigos 5º, incisos XXXV e LXXVIII [02], e 93, inciso IX, da CF/88. Logo, nenhuma decisão judicial é indene a questionamento formalizado com o fito de esclarecê-la, ainda que não previsto recurso de forma expressa em lei. Aliás, já decidiu o STJ que "é possível o cabimento de Embargos Declaratórios contra qualquer decisão judicial." [03]

            Além desta fundamentação constitucional, o cabimento dos embargos de declaração contra decisão interlocutória pode ser buscado dentro do próprio CPP, na medida em que o artigo 3º autoriza a analogia, cabível com relação ao artigo 382.

            Tal solução é válida também para o processo sumaríssimo do Juizado Especial, em vista dos artigos 83 e 92 da Lei nº 9.099/95 combinados com o artigo 3º do CPP.

            A solução ideal, porém, seria incluir as decisões na dicção dos artigos 82 ou 619 do CPP.


3- RECURSO EM SENTIDO ESTRITO

            Outro ponto nevrálgico reside no recurso em sentido estrito. Primeiro aspecto que salta a vista e que contribui decisivamente para o surgimento de problemas reside na formula casuística, em numerus clausus, concebida pelo legislador no artigo 581 do CPP. Veja-se que o recurso é manejável, conforme se depreende do caput do mencionado preceptivo, tanto contra despachos, como contra decisões ou sentenças, passando a enumerar as hipóteses nos vários incisos.

            Na tentativa de ser específico, falhou o legislador na redação dos incisos quando prevê uma situação, mas não o seu contraponto. Prevê, por exemplo, a decisão que concluir pela incompetência, mas não a que concluir pela competência; prevê a concessão de liberdade provisória ou a denegação do pedido de custódia cautelar, mas não o inverso, ou seja, a denegação da liberdade provisória ou decretação a prisão preventiva. Todos estes lapsos tiveram de ser supridos pela jurisprudência, seja pela analogia ou pela utilização do habeas corpus. Embora possa se dizer isso represente uma anomalia, em termos práticos os problemas não são sérios.

            Melhor seria, contudo que fosse utilizada uma fórmula simples, como a do CPC, que determina cabível o agravo contra decisões interlocutórias e apelação contra as sentenças.

            Diversamente, o regime de processamento do recurso traz a possibilidade de problemas mais sérios. O primeiro deles reside na formação do instrumento e na tramitação no primeiro grau.

            A necessidade de indicação das peças que formarão o instrumento coloca o recurso em sentido estrito em par de igualdade ao recurso de agravo, do processo civil, antes das reformas processuais, consumindo-se longo tempo para que sejam trasladadas as cópias indicadas. Após, ainda temos a vista para contra razões e a indicação de peças da parte ex adversa, para posterior conclusão ao juiz. Neste ínterim, correm semanas ou mesmo meses.

            Outro aspecto relevante reside no efeito suspensivo, que é exceção, conforme se verifica do artigo 584 do CPP. Para as hipóteses não contempladas neste dispositivo, resta a saída do manejo do mandado de segurança, com pedido de liminar, para conferir efeito suspensivo ao recurso em sentido estrito ou agravo em execução, pois "a natureza eminentemente civil da ação de mandado de segurança não impede a sua utilização em sede processual penal, uma vez configurados os pressupostos de impetrabilidade do writ constitucional" [04]. Passamos a ter, portanto, pelo menos três decisões relativas a um mesmo incidente.

            Ocorre, porém, que esta solução encontra resistências, pois já se decidiu que "o mandado de segurança não se presta para atribuir efeito suspensivo a recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público contra decisão que concede liberdade provisória." [05]

            Observe-se que o efeito suspensivo pode abarcar situações potencialmente graves, como à relativa ao restabelecimento de custódia cautelar.

            Idêntico raciocínio pode ser feito em relação ao agravo em execução, que segue a mesma sistemática.


4- PROTESTO POR NOVO JÚRI

            Este sem dúvida um instituto excrescente, que deveria ser prontamente banido do processo penal pátrio. Ora, a justificativa do recurso reside na fixação de pena superior a 20 anos. Se este é o fator preponderante e se o tribunal pode alterar a quantidade de pena sem interferir na soberania do veredicto, o correto seria estabelecer-se, nesta hipótese, uma revisão do quantum automática.

            A manutenção de tal recurso faz pouco caso do julgamento que é cassado e substituído, gerando, inclusive certa resistência em se fixar penas superiores a vinte anos simplesmente para se impedir o manejo desta impugnação.


5- GARANTISMO E PRESTEZA

            É no processo penal que identifico a seara natural para o garantismo, garantindo a preservação da esfera de direitos intangível do acusado, que como tal deve ser presumido sempre inocente, através de um processo previamente estruturado e permeado pelas garantias da ampla defesa e do contraditório, entendidos como veículos de participação democrática e fiscalização da atuação do Estado.

            Em uma ampla acepção, voltada a extrair o máximo desta perspectiva, o garantismo deve ser visto não só como uma vertente que busque assegurar ampla defesa e contraditório, além de decisões judiciais com maior grau de imunização em relação ao erro, mas deve ser compreendido como uma busca de redução dos efeitos negativos do processo.

            O processo é fonte de segurança, mas também de angústias na medida em que traz ínsita a prorrogação do conflito através de sua estabilização.

            O tempo de duração do processo penal é, por conseguinte, fator que deve ser sopesado, não só visto globalmente, mas também em relação a cada incidente.

            Assim, o vetor da presteza jurisdicional também deve ser considerado, respeitadas as peculiaridades, em relação a este ramo do processo, pois as modificações e circunstâncias que compeliram ao processo de reformas do processo civil também se fazem sentir no processo penal.

            Consectário desta premissa é a necessidade de que sejam incorporados ao processo penal institutos aptos a celerizá-lo, sem prejuízo da necessidade de cautela que os direitos em jogo recomendam.

            A rápida solução da pendência judicial é positiva não só para a sociedade, que tem a pronta resposta ao delito, mas também para o acusado, seja ele culpado ou não.


6- SUGESTÕES

            Algumas sugestões podem ser alvitradas a fim de tornar o sistema recursal penal mais simples e eficaz. Inicialmente, é necessária uma classificação mais simples das decisões, a qual possa facilitar a tarefa de ligar um recurso a cada decisão. Esta solução, adotada pelo processo civil, facilita sobremaneira a funcionalidade do sistema recursal.

            Nesta ordem de idéias, podemos considerar sentenças as condenatórias, as de rejeição da denúncia, aquelas definidas no artigo 386, a decisão de pronúncia, impronúncia e absolvição sumária, e as decisões relativas aos incidentes do artigo 95 do CPP. Todas as demais, inclusive as relativas à custódia cautelar, seriam decisões interlocutórias.

            Para as sentenças, na esteira da disciplina do CPC, cabível seria a apelação. Para as decisões interlocutórias, o recurso em sentido estrito ou um agravo criminal. Esta sistemática evitaria o casuísmo hoje existente.

            Aqui vem outra sugestão, converter o recurso em sentido estrito em agravo criminal, que poderia ser estendido inclusive ao processo de execução. Enquanto no caso da apelação é justificável a aplicação do princípio da complementaridade, no recurso em sentido estrito ou agravo criminal, não há um motivo.

            Aliás, seria plenamente possível a aplicação do regime do agravo cível em termos de prazo e regras de processamento, com formação do instrumento pelo próprio recorrente e interposição direta junto ao tribunal. Não haveria necessidade de uma forma retida do recurso. Por outro lado, seria conveniente a possibilidade de flexibilização para permitir concessão de efeito suspensivo ou antecipação da tutela recursal, evitando-se a anômala utilização do mandado de segurança para este fim.

            Também necessária a criação de um recurso de embargos de declaração para esclarecimento ou complementação de qualquer espécie de decisão.

            Já o recurso de protesto por novo júri deveria ser abolido. Caso se verifica que necessidade de maior precaução, basta estabelecer-se reexame necessário exclusivamente quanto ao quantum da pena desde que esta seja fixada partir de uma determinada quantidade.


7- CONCLUSÕES

            É difícil afirmar-se com precisão quais fatores conduziram o processo penal a uma posição de relativo obscurantismo em relação ao processo civil. Certamente devem ser considerados em linha de conta fatores como a tradição privatista e patrimonialista de nosso Direito e o maior número de relações jurídicas com conseqüências e projeção de efeitos na ordem civil.

            Em contraponto, o processo penal se presta à aplicação do mecanismo mais incisivo do Estado (ou assim deveria ser): o direito penal. Os direitos em voga apresentam maior importância e o processo penal representa em si uma pecha as vezes indelével sobre o cidadão.

            Não vejo assim, razão plausível para que também o processo penal não seja repensado, tendo-se em mira a efetividade da jurisdição, sendo uma de suas vertentes a celerização. À evidência que o processo penal não comporta aplicação imediata e direta de todas as conquistas recentemente amealhadas pelo processo civil.

            Isto, porém, não infirma a necessidade de construção do processo sob a perspectiva de uma teoria geral do processo, de modo que possamos perceber que há muito em comum ao processo civil, penal e mesmo administrativo. [06]

            Assim sendo, em que pese o grau de excelência do CPP, o que permitiu que fosse aplicado por décadas sem grandes reformas e atravessando mutações constitucionais, é chagada a hora de reformas também neste estame.

            O objetivo almejado por esta singela abordagem, além de oferecer algumas alternativas para o debate, é chamar a atenção para a necessidade de tratativa do processo penal de acordo com a dinâmica da sociedade moderna e sem pré-concepções que o tornam uma área esquecida ou destinada a especialistas.

            Trata-se isto sim, de um importante mecanismo de cidadania e justiça que merece tratamento no mínimo igual aos seu congêneres. Só assim caminharemos para uma efetividade da tutela jurisdicional penal.


Notas

            01 A respeito, ver de minha autoria "O juiz, a norma, o valor e do Direito Penal", disponível nos sites http://www.forense.com.br e http://www.ufsm.br/direito.

            02 Este último inciso foi incluído pela Emenda nº 45/04. A propósito, ver o meu "Apontamentos à Emenda Constitucional nº 45/04 e a Reforma do Judiciário", disponível nos sites http://www.jurid.com.br e http://www.jus.com.br.

            03 Embargos de Declaração no Agravo de Instrumento nº 164654/RO, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Felix Fischer. j. 15.10.1998, Publ. DJU 22.02.1999, p. 120

            04 Habeas Corpus nº 70392/DF, 1ª Turma do STF, Rel. Min. Celso de Mello. j. 31.08.1993, DJU 01.10.93, p. 20214

            05 Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 16364/SP (2003/0076951-1), 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Gilson Dipp. j. 26.08.2003, unânime, DJU 29.09.2003, p. 282. No mesmo diapasão, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 15548/RS (2002/0129796-0), 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Felix

            06 A respeito, ver o meu "Jurisdição, Ação e Processo à luz da processualística moderna: para onde caminha o processo", publicado na revista Forense, nº 376, p. 145 e seg, e disponível nos sites, http://www.ufsm.br/direito, http://www.jus.com.br, http://www.jurid.com.br, http://www.ambito-juridico.com.br.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Os recursos penais e a efetividade da tutela jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 903, 23 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7748. Acesso em: 20 abr. 2024.