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Exercício de outra função pública por membro do Ministério Público

incompatibilidade ou prerrogativa constitucional?

Exercício de outra função pública por membro do Ministério Público: incompatibilidade ou prerrogativa constitucional?

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Propomos o debate da necessidade de o Ministério Público poder emprestar seus membros ao exercício de outras funções públicas, desde que sujeitas a controles e compatíveis com as elevadas finalidades institucionais.

I. Razões e fundamentos da tese de incompatibilidade

Inicialmente, vale destacar o porquê deste trabalho, no vigente contexto nacional. Trata-se de enfrentar problema grave, urgente, normalmente relegado à superficialidade de debates estéreis ou demagógicos. Cuida-se de focar, ainda, questão concreta, atinente à vida político-institucional do Ministério Público brasileiro, com a qual nos deparamos em nossa vivência de agente ministerial licenciado temporariamente da carreira para exercício de outra função pública, nos moldes do art.129, IX, da Magna Carta. Uma análise detalhada e um pouco mais aprofundada pode e deve ser resgatada, porque a tendência parece ser o uso político, interna corporis, desse debate, para efeito de alimentar discursos eleitorais inerentes aos processos políticos no Ministério Público brasileiro e em tais cenários a demagogia, a superficialidade e a esterilidade andam juntas [01].

Nosso interesse pelo tema, portanto, se dá por várias razões, sejam institucionais, pessoais, políticas ou jurídicas. Cumpre destacar nossa própria experiência como Secretário-Adjunto de Estado da Justiça e da Segurança/RS, de novembro de 2003 até a data de fechamento deste trabalho (dezembro de 2005), ocasião em que solicitamos retorno aos quadros institucionais. Nosso afastamento se deu ao abrigo de licença concedida à unanimidade pelo Conselho Superior do Ministério Público gaúcho, por solicitação do Governador do Estado do Rio Grande do Sul ao Procurador-Geral de Justiça [02].

Nesta condição, tivemos de refletir sobre o ajuizamento de Reclamação contra o Decreto governamental que embasara o exercício daquelas funções, na condição de terceiro interessado, efetuando pesquisas e reflexões mais acuradas sobre o tema. Não adentraremos a matéria debatida naquela Reclamação, de cunho estritamente processual, até porque se trata de feito em curso [03], mas vale adiantar que o pano de fundo envolve o objeto deste trabalho.

Sustenta-se, Brasil afora, especialmente através de petições ao Supremo Tribunal Federal formuladas por Partido Político de escassa representatividade nacional, o PSL, Partido Social Liberal, com fluxo de interesses corporativos de segmentos da Polícia Civil brasileira, mas também por posicionamentos firmados pelo próprio Ministério Público Federal e de lideranças de alguns Ministérios Públicos Estaduais, a incompatibilidade de membro do Ministério Público, seja dos Estados, seja da União, exercer qualquer outra função pública, salvo uma de magistério [04].

Não é à toa que lideranças do próprio Ministério Público brasileiro defendem a incompatibilidade em análise. Devemos destacar que, historicamente, por influências importantes, muitas oriundas de líderes como Hugo NIGRO MAZZILLI e outros, também tivemos opinião contrária a essas licenças, por reputá-las incompatíveis com o ideário de pureza e independência do Ministério Público, na linha de uma visão lógico-gramatical do texto constitucional. Um conjunto de valores nos foi transmitido por lideranças históricas, importantes, do Ministério Público brasileiro, pós-88, no sentido de que a neutralidade e a distância da classe política ou dos Poderes Executivo e Legislativo seria a maior garantia de nossa independência. Assim, deveríamos guardar prudente distância de outras funções públicas, sob pena de sofrermos contaminações indevidas, perdendo autonomias e angariando vícios indesejáveis. Esse tipo de discurso pode causar deslumbramento em jovens autoridades ministeriais, porque mexe precisamente com o substrato idealista que as move.

Os valores que embasam a orientação restritiva em torno ao conhecido art.128, par.5º, II, "d", da Magna Carta, são, portanto, de distintas ordens, todas convergindo nos aparentes ideários de pureza, imparcialidade e independência do Ministério Público, bem assim na suposta necessidade de seu isolamento relativamente a outras funções públicas.

Há, pois, aqueles que defendem que o contato com outras funções públicas faz do Ministério Público um órgão menos imparcial e menos independente do que deveria ser, politizando-se indevidamente, eis uma linha histórica do pensamento que norteou uma parte dos constituintes de 1988 na formatação da ambigüidade semântica do dispositivo consagrado no art.128, par.5º, II, letra "d", da CF. Essa mesma concepção ainda hoje inspira arrazoados e posicionamentos institucionais, num corte nitidamente corporativo e de matriz purista.O pano de fundo histórico e político dessa orientação foi a busca de equiparação remuneratória e institucional com a magistratura, aliado a problemas políticos internos em determinados Ministérios Públicos, nos quais as autoridades licenciadas participavam ativamente do jogo político de poder. Outros sentimentos menos nobres talvez também influíssem nessa tomada de posição, eis que são poucas as autoridades licenciadas e muitas as que jamais receberam convite para qualquer espécie de afastamento provisório das funções originárias.

Há, também, aqueles outros segmentos que não se interessam, politicamente, pela presença de membros do Ministério Público fora de suas funções, porque os agentes ministeriais, em cenários externos, acabariam ocupando espaços que poderiam ser ocupados por outras carreiras públicas. Por isso, defende-se a incompatibilidade como ferramenta política na luta por espaços corporativos. Eis aqui outra importantíssima linha de orientação institucional em segmentos estranhos ao Ministério Público, embora organizados estrategicamente na defesa de tese simpática aos seus próprios e peculiares interesses. É verdade que nem sempre tais interesses se identificam, autenticamente, com essa tese, visto que espelham muito mais uma visão estreita de corporativismo defasado do que propriamente uma visão voltada à saúde institucional e corporativa.

Para não perdermos o foco no Direito positivo, e já considerando o substrato axiológico disponível, eis a incompatibilidade suposta, in verbis:

Art. 128. O Ministério Público abrange:

(...) § 5º - Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros:

(...) II - as seguintes vedações:

(...) d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério (grifos nossos);

Esboçando linha de entendimento na direção restritiva e isolacionista entre Poderes da República, ainda que em medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de assentar, numa tese provisória:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI COMPLEMENTAR DO ESTADO DE MINAS GERAIS. ORGANIZAÇÃO DO PARQUET ESTADUAL - REQUISIÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS PELO PROCURADOR-GERAL. MATÉRIA DA COMPETÊNCIA DO GOVERNADOR. PRERROGATIVAS DE FORO. EXTENSÃO AOS MEMBROS INATIVOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA, DISPUTA E EXERCÍCIO DE CARGO ELETIVO. NECESSIDADE DE LICENÇA PRÉVIA. AFASTAMENTO PARA O DESEMPENHO DE FUNÇÕES NO EXECUTIVO FEDERAL E ESTADUAL. IMPOSSIBILIDADE.

1. A competência outorgada ao Procurador-Geral de Justiça para requisitar servidores públicos, por prazo não superior a 90 (noventa) dias, estando subjacente o caráter cogente da cessão, envolve imposição indevida de condições de governabilidade ao Chefe do Poder Executivo local, a quem cabe a direção superior da administração estadual. Violação aos artigos 84, II e VI; e 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal.

2. As prerrogativas de foro dos membros do Ministério Público, em atividade, retratam garantias dirigidas à instituição como forma de viabilizar, em plenitude, a independência funcional do Parquet (CF, artigo 127, § 1º). Não se destinam a quem exerceu o cargo ou deixou de ocupá-lo. Inaceitável a extensão da excepcionalidade aos inativos.

3. A filiação político-partidária, a disputa e o exercício de cargo eletivo pelo membro do Ministério Público somente se legitimam acaso precedida de afastamento de suas funções institucionais, mediante licença. Precedentes. Interpretação conforme a Constituição dos dispositivos da norma legal que regula a matéria.

4. Incabível a imposição de restrições à concessão do afastamento do membro do Parquet para o exercício de atividade política, como não estar respondendo a processo disciplinar, cumprindo o estágio probatório ou, ainda, não reunir as condições necessárias à aposentadoria.

5. O afastamento de membro do Parquet para exercer outra função pública viabiliza-se apenas nas hipóteses de ocupação de cargos na administração superior do próprio Ministério Público. Inadmissibilidade da licença para o exercício dos cargos de Ministro, Secretário de Estado ou seu substituto imediato. Medida cautelar deferida em parte.

(ADI n° 2.534-MC/MG, Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 13.06.2003, p. 08) [05]

De igual modo, o mesmo STF já havia decidido que a Lei Orgânica do Parquet paulista (LC n° 734/93) [06], ao referir, em seu art. 170, parágrafo único, a possibilidade do "exercício de cargo ou função de confiança na Administração Superior", estaria referindo a Administração do próprio Ministério Público como o único lugar adequado para um membro da Instituição deslocar-se de suas funções originárias. Veja-se a ementa do julgado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 170, V E PARÁGRAFO ÚNICO; E 224, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI COMPLEMENTAR N.º 734/93, DO ESTADO DE SÃO PAULO (LEI ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL). ALEGADA OFENSA A DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Interpretação conforme à Constituição dada ao art. 170, V, da Lei Complementar nº 734/93, para esclarecer que a filiação partidária de representante do Ministério Público paulista somente pode ocorrer na hipótese de afastamento das funções institucionais, mediante licença e nos termos da lei, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Interpretação da mesma natureza dada ao art. 170, parágrafo único, da lei em apreço, para determinar que a expressão "o exercício de cargo ou função de confiança na Administração Superior" seja entendida como referindo a Administração do próprio Ministério Público.

Declaração de inconstitucionalidade da expressão "e XVIII deste artigo, bem como a prevista no art. 221 desta lei complementar, se o fato ocorreu quando no exercício da função", contida no parágrafo único do art. 224 da Lei Complementar nº 734/93.

Ação direta parcialmente procedente, na forma explicitada.

(ADI n° 2.084/SP, Min. ILMAR GALVÃO, DJ de 14.09.2001, p. 49)

Do ponto de vista processual, as decisões do STF não têm vinculado os demais Estados federativos, porquanto as realidades estaduais são distintas, sendo necessário o ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade contra os diversos diplomas estaduais que permitirem licenças para membros do Ministério Público exercerem outras funções públicas, ainda que compatíveis com suas finalidades institucionais [07].

Ademais, ainda no plano processual, há que se sublinhar a possibilidade de que legislações estaduais tratem diversamente o tema contemplado no art.129, IX, e art.128, par.5º, II, "d", da Magna Carta, dando densidade normativa diferenciada a esses dispositivos constitucionais, através de conteúdos peculiares à norma que permita o exercício de outra função pública, inclusive no distinguir funções públicas compatíveis, ou não, com as finalidades institucionais do Ministério Público. Nesse passo, as ações diretas de inconstitucionalidade haveriam de levar em linha de conta tais aspectos singulares e próprios de cada legislação estadual, sem falar nos controles incidentais dos atos administrativos, que podem, caso a caso, ser interpretados conforme a Constituição.

Não há, portanto, posicionamento definitivo, firme, do STF sobre o tema, ao contrário do que se costuma imaginar. Uma crítica construtiva à linha jurisprudencial que se esboça, no entanto, é necessária, assim como também resulta imperiosa uma auto-crítica do Ministério Público brasileiro, no tocante à interpretação que vem emprestando ao instituto da licença que deflui do art. 129, IX, da Carta Magna e as distorções que daí possam estar emergindo.

Entendemos, com efeito, que, não obstante a visão restritiva imperante em múltiplos segmentos, a ocupação de espaços externos, no exercício de outras funções públicas, é uma prerrogativa constitucional do Ministério Público que advém do art.129, IX, da Magna Carta. Ao mesmo tempo, constatamos que tal prerrogativa tem sido largamente utilizada, e sempre sem uma regulamentação segura, no Ministério Público brasileiro como um todo, no deferimento de licenças para exercício de funções as mais diversas, nos domínios mais distintos, como Municípios, Estados e União. Daí que nossa proposta pretenda configurar uma linha intermediária entre o atual clima de desregulamentação legal e a tentativa de supressão, pura e simples, da prerrogativa constitucional. Defendemos a manutenção da prerrogativa e seu detalhamento e limitação normativa, desde uma perspectiva legal federal e desde critérios objetivos consagrados nas Instituições estaduais e federais [08]. Vejamos, pois, mais a fundo a tese restritiva encabeçada por várias lideranças do próprio Ministério Público brasileiro, observando sua consistência e sua resistência às críticas. Somente um teste semelhante pode respaldar, ou não, uma postura hermenêutica constitucional.


II.Desdobramentos e fundamentos da interpretação lógico-gramatical e formal: visão crítica da tese da incompatibilidade

A primeira providência que se impõe, relativamente à opção pela técnica lógico-gramatical, fundada em elementos históricos e baseada numa determinada concepção de independência funcional dos agentes ministeriais, é a percepção de suas reais e potenciais conseqüências na atualidade de nosso contexto jurídico-constitucional, não apenas relativamente ao Ministério Público, mas fundamentalmente em relação aos interesses sociais e individuais indisponíveis que constituem a razão existencial da Instituição. Nem sempre se buscam os desdobramentos necessários de uma dada postura hermenêutica, mas é imperioso que se resgate essa visão pragmática e axiológica, de modo a revitalizar uma postura histórica ou superá-la, atualizando-a em face dos valores republicanos vigentes.

Buscaremos também elucidar e confrontar o real fundamento alegado para embasar a postura interpretativa em análise, qual seja, a suposta necessidade de resguardar o princípio da independência funcional, de tal modo a visualizar sua pertinência ou inadequação aos propósitos anunciados na defesa da incompatibilidade absoluta.

Do conjunto de naturais e pertinentes conseqüências da hermenêutica lógico-gramatical e da decorrente proibição constitucional de o membro do Ministério Público exercer qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, devemos desde logo sinalizar a percepção de um horizonte de corporativismo hermético ao Ministério Público brasileiro, no longo prazo, bem assim o fechamento de acesso da sociedade às distintas e relevantes funções que um agente ministerial poderia vir a desempenhar. Nessa mesma linha, percebemos potenciais prejuízos aos relacionamentos entre Ministério Público e outras Instituições, sejam técnicas, sejam políticas, pelo esvaziamento dessa participação ministerial na sociedade, considerando que os agentes que ocupam cenários externos costumam costurar vias dialogantes e construtivas com outros segmentos sociais da mais alta importância, além de obter aprendizados diferenciados que sempre são úteis à Instituição de origem.

Necessário esmiuçar um possível custo social e político que haveria de ser compensado pela manutenção (?) ou construção (?) da independência do Ministério Público, circunstância a embasar a incompatibilidade de funções. Se essa relação lógica entre a incompatibilidade e a independência funcional não sobrevivesse, à luz de uma argumentação razoável, cairia por terra o único fundamento axiológico relevante a embasar a incompatibilidade, seus custos sociais e políticos, no bojo de uma interpretação puramente gramatical e subsuntiva.

De outro lado, analisaremos a consistência jurídica interna, a coerência e a harmonia dos elementos que integram a via interpretativa que conduz ao reconhecimento da incompatibilidade. Se estiverem ausentes predicados necessários a uma hermenêutica consistente e coerente, haveremos de perceber não somente a fragilidade dessa postura hermenêutica, mas sua inadequação para sustentar os custos sociais e políticos dela decorrentes.

a) Custos sociais e políticos de uma visão hermenêutica inconsistente: o balanço das alternativas disponíveis

Ao trabalharmos uma determinada opção hermenêutica, com seus elementos internos e suas conseqüências, levamos em consideração seu custo social e político, porque os juristas, no mais das vezes, diante de casos difíceis, deparam-se com pluralidade de alternativas. A eleição de uma ou outra alternativa depende de um plexo de valores e fatores que justificam, ou desautorizam, a decisão adotada. O teste de legitimação da opção não passa apenas por sua racionalidade, razoabilidade e plausibilidade diante do ordenamento jurídico vigente, mas também pelas conseqüências que acarreta à sociedade e aos legítimos interesses e expectativas em jogo. Daí porque nenhum ato interpretativo de uma norma jurídica pode mergulhar tão somente em sua lógica interna, como se isso bastasse à sua legitimação ética na comunidade.

Com efeito, para começar, de uma leitura literal, histórica e formal desse comando normativo do art.128, par.5º, II, letra "d", da Magna Carta, infere-se que está vedado ao membro do Ministério Público o exercício de qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, mas assegurado – dentro da mesma lógica de raciocínio - o exercício de outras funções privadas, quaisquer outras, ressalvadas apenas aquelas vedações constitucionais ou legais explícitas. Uma interpretação literal do conjunto de dispositivos constitucionais que disciplinam as incompatibilidades, nos termos do art.128 da CF, conduziria a essa natural conseqüência, que é, sem dúvida alguma, um fato político a ser levado em linha de consideração, na percepção dos desdobramentos do ato hermenêutico em exame.

Há que se sublinhar o equívoco da conseqüência normativa apontada, justamente porque a interpretação literal das incompatibilidades é um método inadequado e contraditório de tratamento dessa matéria. Sabe-se que grande parte das funções privadas estarão vedadas pela lógica das chamadas incompatibilidades implícitas, ao mesmo tempo em que as funções públicas estarão regradas pela lógica da compatibilidade com as finalidades institucionais, é o que decorre de uma leitura a contrario sensu do art.129, IX, da CF.

Entender que o agente ministerial não pode exercer qualquer outra função pública, salvo uma de magistério, mas pode exercer qualquer outra função privada, salvo aquelas proibidas expressamente na própria Carta Política de 1988, ou na legislação federal pertinente, que é altamente lacunosa a respeito, seria natural conseqüência de uma interpretação literal, embora expressasse violência ao sentido sistêmico e teleológico da Magna Carta. Essa espécie de paradoxo indica a inconsistência da interpretação lógico-gramatical, do ponto de vista jurídico, para sustentar conseqüências gravosas aos interesses sociais. A postura estampada na interpretação lógico-gramatical é incompatível com a natureza superior e aberta das normas constitucionais e legais que disciplinam as vedações aos membros do Ministério Público. Não se pode adotar posturas simplistas para problemas complexos.

Outra importante conseqüência previsível da interpretação lógico-gramatical, na vida corrente, na linha racional da visão restritiva, encontra-se na proibição absoluta da participação de membros do Ministério Público em atividades da mais alta relevância social e aqui resulta necessário avaliar se tais atividades se enriquecem, ou não, pela presença de membros do Ministério Público como seus executores diretos e se a abertura é, ou não, positiva à sociedade como um todo.

Não se tem a menor dúvida de que a doutrina e a jurisprudência dominantes são taxativas em reconhecer um amplo conceito às funções públicas, até mesmo em relação às atividades transitórias de Comissões. Assim, na doutrina do saudoso Hely Lopes MEIRELLES, função é conceituada como sendo "a atribuição ou conjunto de atribuições que a Administração confere a cada categoria profissional, ou comete individualmente a determinados servidores e para a execução de serviços eventuais." [09] Especifica, ainda, o jurista que "todo cargo tem função, mas pode haver função sem cargo. As funções do cargo são definitivas; as funções autônomas são, por índole, provisórias, dada a transitoriedade do serviço a que visam atender. Daí porque as funções permanentes da Administração devem ser desempenhadas por titulares de cargos, e, as transitórias, por servidores designados, admitidos ou contratados precariamente. Os funcionários podem estabilizar-se nos cargos, mas não nas funções."

Entre as atividades que se encaixam no conceito de "outras funções públicas" – e é de se frisar, en passant, que a expressão em tela acarreta o efeito de alcançar uma quantidade infinita de atividades públicas, em realidade qualquer atividade pública - encontram-se aquelas abrigadas nas chamadas Comissões de Reforma Legislativa ou semelhantes [10], onde o agente ministerial, ao participar formalmente desses espaços, dá uma contribuição preventiva ao aperfeiçoamento do ordenamento jurídico, estancando ou regulando futuros conflitos sociais, precisamente através do exercício de outras funções públicas estranhas à carreira, onde pode aportar suas vivências e sua visão técnico-política sobre assuntos vitais aos interesses da coletividade organizada.

Levando a restrição às conseqüências necessárias, dentro da linha de uma hermenêutica lógico-gramatical, concluir-se-ia que um membro do Ministério Público jamais poderia participar de comissão de reforma legislativa por tratar-se de "outra função", distinta do magistério. E o que ganharia a sociedade com isso? O que perderia? É possível calcular tais custos sociais? Certamente não estamos no plano matemático, no qual os custos poderiam ser mais precisamente calculados, mas podemos lançar estimativas razoáveis.

A vingar a tese sustentada em vários segmentos do Ministério Público brasileiro e da Associação Nacional de Delegados de Polícia, ambos coincidindo no viés corporativista, embora por razões distintas, tem-se que o membro do Ministério Público não poderá exercer qualquer outra função pública, v.g., Conselheiro de um Programa Estadual de Proteção a Testemunhas, Conselheiro no Conselho Superior de Polícia, participante de Comissões Legislativas, assessoramento direto a Senadores, Secretarias Estaduais de Justiça e Segurança Pública, Secretarias Nacionais de Justiça e Segurança Pública, etc. A série de efeitos dessa interpretação é demolidora, conduzindo à ruína da participação externa do Ministério Público nos mais variados espaços político-institucionais, bem assim ao engessamento gradual e crescente da Instituição, com prejuízos inegáveis à sociedade [11].

A sociedade, ao ver ampliada a incompatibilidade dos agentes ministeriais aos níveis desejados por alguns setores, ganharia membros do Ministério Público fechados em suas "casas" de origem, no aguardo das legislações para então formularem críticas, ou medidas judiciais de controle a posteriori, sempre à espera dos equívocos de outros agentes públicos que desempenham funções no Poder Executivo, para só depois reprimi-los.

O custo mais evidente dessa interpretação aqui testada diz respeito ao fato de que a sociedade perde em prevenção, para justificar uma duvidosa aposta exclusiva na repressão, porque certamente se avolumariam os processos judiciais contra leis arbitrárias ou incorretas, sem falar nos desvios administrativos que se propagariam com maior intensidade ante a lacuna participativa do Ministério Público no Poder Executivo [12]. A perda é enorme, porque a qualidade das leis brasileiras já não é alta e mais baixa ainda é a qualidade dos serviços prestados pelo Poder Executivo, mas se a sociedade perder a oportunidade de contar com agentes do Ministério Público na confecção de projetos de leis ou na ocupação de espaços noutro Poder de Estado, certamente estará perdendo a contribuição de agentes públicos com experiências e visões interessantes.

A existência de um Ministério Público imparcial e independente, puro e distante dos demais Poderes da República, sob o pretexto de melhor controlá-los, cobra determinados custos sociais e políticos, não se pode ignorar tal realidade. A questão é se o princípio da independência funcional justifica ou exige esse preço social que se dá no afastamento de membros do Ministério Público de outras funções públicas, através de uma proposta hermenêutica inconsistente, repleta de contradições internas e fundamentada em elementos precários, tais como, a técnica lógico-gramatical ou a interpretação histórica. Veja-se que é de singular dimensão o ônus argumentativo dos que pretendem atrelar a incompatibilidade e seus custos às exigências da independência funcional, porquanto a técnica hermenêutica empregada é, nesse contexto, precária e de uma espantosa fragilidade, buscando sustentar justificativa para custos sociais e políticos de necessidade duvidosa. Daí a importância de restar a incompatibilidade do art.128, par.5º, II, "d", CF, bem atrelada à salvaguarda do princípio da independência funcional, sob pena de se desmoronar seu alicerce fundamental.

b) Impossibilidade de alicerçar a suposta incompatibilidade na defesa da independência e da imparcialidade funcionais

Se os custos sociais e políticos desse afastamento do Ministério Público da possibilidade do exercício de outras funções públicas são altos, ao que tudo indica, e pobre é a técnica interpretativa que o embasa, não se pode ignorar que o fundamento axiológico de uma visão literal, gramatical e restritiva do art.128, par.5º, II, alínea "d", da Magna Carta, vale relembrar, repousa na necessidade de assegurar independência e imparcialidade ao agente ministerial, afastando-o de outros contatos espúrios, especialmente com outras funções públicas (reconheça-se que a preocupação não é a mesma com as funções privadas) [13].

Cumpre, pois, olhar de perto essa fundamentação supostamente constitucional, para apreciar a sustentação máxima da linha hermenêutica ora em exame, e aqui devemos naturalmente retomar uma análise da argumentação já exposta na doutrina de Hugo Nigro MAZZILLI, seus seguidores e do próprio Supremo Tribunal Federal, no tocante ao tema controvertido.

Não será a exigência de independência do membro do Ministério Público que irá afastá-lo da possibilidade de exercício de outras funções públicas, desde que compatíveis com suas finalidades. E assim nos posicionamos por variadas e consistentes razões, sempre reconduzíveis ao sistema constitucional, mas também lastreadas em experiências históricas relevantes, ao efeito de concluir que é falso, ou equivocado, situar o fundamento da suposta incompatibilidade no princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público ou na garantia de sua imparcialidade.

b.1.) Independência do Ministério Público e do Judiciário: algumas precisões

Antes de adentrarmos o núcleo da fundamentação que sustenta a tese da incompatibilidade de agentes ministeriais exercerem outras funções públicas, devemos apenas registrar algumas das facetas mais relevantes e singulares da independência do Ministério Público, distinguindo-a de outro tipo de independência, qual seja, a judicial. Ao sinalizarmos alguns traços marcantes da independência do Ministério Público, teremos condições também de avaliar se há indícios de que seja o Ministério Público brasileiro deficitário em sua independência, ou não. Mais ainda, com a compreensão em torno aos conteúdos do princípio da independência funcional, torna-se possível perceber em que medida a incompatibilidade supostamente vazada no art.128, par.5º, II, "d", da CF, tem cabimento, nos moldes da proposta hermenêutica restritiva, em face do formato de seu objeto de proteção.

No campo do senso comum, a independência de um sujeito traduz a possibilidade de que atue de acordo com sua consciência jurídica, com sua vontade ou sua auto-determinação, sem subordinação a elementos volitivos estranhos, sejam eles de ordem política, econômica ou institucional, externos ou imanentes ao sistema onde inserido. A independência constitui uma característica da autonomia e da capacidade de agir de uma Instituição e de seus representantes, com liberdade, sem amarras ou condicionantes outras que não aquelas ditadas diretamente pela ordem jurídica e pela própria Instituição, através das consciências coletivas e individuais de seus agentes.

É claro que, desde logo, convém ressaltar duas grandes facetas da independência: a externa, que se dá perante outros Poderes ou Instituições, e a interna, que se opera perante os colegas e os superiores hierárquicos. Quando se fala em proteger a independência do Ministério Público, não se pode desprezar tais contornos, menos ainda ignorar suas dimensões interna e externa, eis que ambas resultam umbilicalmente interligadas. Hoje, pode-se arriscar que o fortalecimento da independência interna tem tanta importância quanto o da independência externa; isso, porque ambas constituem sustentáculos da autonomia lato sensu de uma Instituição e de seus agentes.

A Carta Magna consagra o princípio da independência funcional às Instituições do Poder Judiciário e do Ministério Público, extraindo tal previsão do conjunto sólido de garantias constitucionais a ambas outorgadas, tanto que aproxima tais Instituições no tratamento dispensado às garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, além dos predicados das autonomias administrativa e financeira, todos direcionados, teleologicamente, à consagração e preservação do princípio da independência funcional.

Esse processo de aproximação entre o Poder Judiciário e o Ministério Público é histórico e consagrou, também, uma afinidade remuneratória e de regimes jurídicos, embora não tenha conduzido à identidade ou unificação institucional, tal como ocorre noutros sistemas e modelos de Direito comparado. Isso, porque talvez tais afinidades não logrem esconder diferenças substanciais nessas atividades, cujos perfis institucionais resultam absolutamente distintos e vocacionados a tarefas diferenciadas, o que repercute na formatação de conteúdos díspares à independência funcional de uma e outra Instituição, além da diferenciação nos respectivos regimes de incompatibilidades e regimes jurídicos, com carreiras distintas.

Não se pode equiparar a independência do Judiciário, ou dos Juízes, com a do Ministério Público e de seus membros, como não se equiparam as respectivas imparcialidades e incompatibilidades, nem a totalidade dos regimes jurídicos que lhes são próprios. E isso se dá em razão de vários fatores juridicamente relevantes, dignos de nota. Há características que separam o Judiciário do Ministério Público, com repercussões relevantes, tanto quanto outros traços comuns indicam a conveniência ou a necessidade de aproximações nos regimes jurídicos, observados elementos históricos importantes.

O Judiciário move-se sempre no plano do "terceiro imparcial", dotado de competências decisórias, passivas, condicionado pelos princípios do contraditório e da demanda, ambos inerentes à sua atividade, assim como pelo individualismo dos juízes naturais, subordinados apenas e tão-somente às suas consciências, sem qualquer vinculação, preocupação ou comprometimento com a unidade institucional. O Ministério Público, ao contrário, atua como parte ou fiscal da lei, sempre movido por sua convicção institucional, que será alheia ao princípio do contraditório, eventualmente pautada por dimensão coletiva alicerçada em canais de democracia interna, respeitada a consciência jurídica de seus membros. A unidade é um traço essencial do Ministério Público que não se faz presente no Judiciário, assim como a posição processual de um e de outro resulta absolutamente distinta.

Se pudéssemos traçar uma distinção decisiva, diríamos que a independência do Ministério Público é coletiva, institucional e marcada pela unidade, protegendo a consciência jurídica dos membros, diante de eventuais abusos e desvios de autoridades administrativas superiores ou de atores externos. Já a independência judicial, a seu turno, tende a ser radicalmente a do Juiz natural, individualista e unitária, nunca coletiva. Confundir tais categorias pode conduzir a equívocos lamentáveis, tais como estes que se reproduzem na tentativa de transformar o Ministério Público num Poder Judiciário às avessas [14], importando, inclusive, seus vícios.

b.2.) A independência do Ministério Público brasileiro e sua desconexão relativamente à possibilidade de seus membros exercerem outras funções públicas

Traçados alguns contornos básicos da independência do Ministério Público, forçoso formular uma indagação, que há de integrar o núcleo fundamental da tese da incompatibilidade: o Ministério Público brasileiro é, hoje, apesar do descumprimento sistemático e reiterado de uma suposta incompatibilidade estampada no art.128, par.5º, II, "d", da CF, independente dos Poderes Políticos? É uma Instituição independente? Parece-nos relevante tocar nesse tema, diante do fato de que os agentes ministeriais têm sido licenciados para exercício de outras funções públicas, desde 1988, abertamente, e se tal suposta incompatibilidade vem sendo ignorada no plano concreto, como é verdade, há que se perguntar sobre as conseqüências dessa suposta vulneração à incompatibilidade. Tornou-se o Ministério Público menos independente, desde 1988, considerando o contínuo licenciamento de seus membros para exercício de outras funções públicas? Queremos um Ministério Público mais independente do que hoje? O caminho para isso, se confirmada tal expectativa, passa necessariamente pela eliminação da possibilidade de os agentes ministeriais exercerem outras funções públicas? São indagações importantes, a nosso ver, embora raramente tocadas.

Entendemos que o Ministério Público brasileiro, em que pese não observar a suposta incompatibilidade ora em exame, é uma Instituição independente, tendo atuado com independência frente aos Poderes Públicos desde 1988, porque esta é uma tradição antiga no Parquet, que se submete à Lei e ao Direito, não podendo a consciência jurídica de seus membros ser violentada por atos espúrios ou marcados pelo desvio de finalidade. A independência ministerial nada tem a ver com a possibilidade de exercício de outras funções públicas por seus membros, desde que tais funções se mostrem compatíveis com as finalidades institucionais do Parquet, eis nossa constatação, que passaremos a justificar em maior detalhe.

Nenhum sinal aponta em sentido contrário à constatação da independência do Ministério Público, essa é uma questão de ônus argumentativo relevante. Aqueles que rechaçam, num plano de convicção íntima, tal assertiva, poderiam aportar dados e informações que justificassem um juízo de desvalor no tocante à independência ministerial, mas isso não tem sido feito publicamente, nos mais diversos espaços que existem para tal espécie de discussão. Problemas pontuais certamente não justificariam uma avaliação global negativa, nesse especial tópico.

Diga-se, aliás, que o Ministério Público é uma Instituição bem valorada pela sociedade brasileira, como demonstrou pesquisa IBOPE (2004) que situou tal organismo em quarto lugar num ranking bastante extenso, atrás apenas da Igreja, das Forças Armadas e da Mídia. Certamente, um dos fatores que pesa nessa avaliação positiva é a independência dos integrantes do Ministério Público e sua exposição positiva na mídia.

Constatada a independência ministerial, não vemos em que medida essa independência poderia ser abalada com a presença de agentes ministeriais no desempenho de funções estranhas à carreira, porquanto tal prática já ocorre e nunca gerou semelhante conseqüência. Aliás, há outros nichos de intervenção do Poder Executivo junto ao Ministério Público e nem mesmo tais possibilidades enfraqueceram a independência institucional ora em análise.

Afirmamos tranqüilamente, portanto, que a independência do agente ministerial, ainda que afastado para exercer outra função pública, pode e deve ser mantida na sua consciência ético-jurídica, nos controles ministeriais a que está submetido, nas garantias da carreira e na submissão de seu "mandato" externo ao crivo permanente e discricionário dos órgãos de Administração Superior da Instituição. Daí porque o afastamento provisório das funções tipicamente ministeriais, para exercício de outras funções de interesse institucional, não deve nem pode abalar a independência funcional do agente, que segue vinculado à sua carreira, submetido aos controles do Procurador-Geral e do Conselho Superior, os quais podem revogar sua licença [15].

Analogamente, diríamos que, se a presença de agentes ministeriais no cenário externo, sujeitos a todos os controles, efetivamente perturbasse a independência da Instituição, talvez perturbasse ainda mais a autonomia do Ministério Público, e ameaçasse sua independência, outro tipo de ingerência constitucional do Poder Executivo, muito mais incisiva e intensa. Repare-se, com efeito, na possibilidade de o Presidente da República escolher discricionariamente o Procurador-Geral da República, sem sequer submeter-se a uma lista tríplice [16], circunstância que permite a uma determinada autoridade permanecer, teoricamente, muitos anos no cargo e, dentro de sua esfera estrita de atribuições, mover-se de acordo com critérios peculiares, elásticos e soberanos, não raro coincidentes com os critérios e interesses políticos do Governo de plantão. Apesar da sensibilidade diante desta realidade, não se vislumbra tenha havido comprometimento da Instituição como um todo, a partir dessa participação tão intensa do Poder Executivo na vida institucional do Ministério Público da União, escolhendo discricionariamente sua chefia, com reconduções ilimitadas e ausência de lista tríplice.

Não se pode dizer que o Ministério Público Federal não tenha atuado com independência, como um todo, desde o advento da Carta Política de 1988, apesar de sua chefia ser escolhida ao talante do Poder Executivo Federal. Basta vermos a atuação dos Procuradores da República no cenário da vida política brasileira, para termos convicção em torno a essa independência. Se a eventual falta de independência do chefe máximo da Instituição não comprometeu a independência real de seus demais membros, nem o conjunto da Instituição, o que se dirá da possibilidade de um agente ministerial, afastado provisoriamente, em caráter precário, dos quadros, para desempenho de outra função pública, poder afetar a independência de toda uma Instituição? Realmente, não nos parece lógica tal hipótese [17].

No tocante ao comando constitucional que outorga ao Governador do Estado a prerrogativa de escolher o Procurador-Geral de Justiça, dentro de lista tríplice votada pela classe, na forma regulamentar e legal [18], embora seja legítimo anseio histórico da Associação Nacional de classe e das Instituições espalhadas pelo país introduzir modificações nesse dispositivo, suprimindo ou atenuando ainda mais a participação dos Governadores, não se pode acoimar de dependentes do Poder Executivo os Ministérios Públicos estaduais. Ao contrário, a independência tem sido a tônica em suas atuações, na esmagadora maioria dos Estados, senão em sua totalidade. E se mesmo quando o Procurador-Geral é escolhido pelo chefe do Poder Executivo, com todos os riscos inerentes ao jogo político prévio a essa escolha, não há comprometimento da independência dos membros da Instituição, não raro nem mesmo do próprio Procurador-Geral, o que se dirá de uma simples licença precária de outro agente para exercício de outra função pública? Obviamente que essa licença não terá o condão de afetar ou comprometer a independência da Instituição, nem de seus membros, nem mesmo do agente licenciado [19], que estará submetido aos controles de sua Instituição e aos deveres éticos e jurídicos aos quais resultará permanentemente vinculado.

Tais prerrogativas políticas do Presidente da República e dos Governadores dos Estados traduzem níveis distintos e intensos de ingerência do Poder Executivo na estrutura do Ministério Público, sendo interpretadas ora como meios de potencial pressão e interferência interna, ora como possível fonte de legitimação política do próprio Ministério Público, constituindo ferramenta para estancar eventual rodízio no poder por grupos corporativos que usem e abusem da máquina administrativa. De um modo ou de outro, não se pode dizer, hoje, que a Instituição ministerial não seja independente, porquanto a independência advém de um conjunto sólido de garantias e prerrogativas constitucionais, legais e regulamentares, no bojo de uma cultura institucional vocacionada, historicamente, à independência e à proximidade - não è identidade, frise-se bem - com a Magistratura, nesse especial aspecto.

O questionamento sobre o papel a ser desempenhado pelo Poder Executivo junto ao Ministério Público é legítimo e deveria suscitar maior debate no meio político e acadêmico, ao contrário do que ocorre normalmente. Isso, porque resulta legítimo aos membros do Ministério Público pleitear a escolha direta de sua própria chefia, sendo recomendável uma disciplina legal uniforme, de natureza federal, para o processo eletivo, criando normas de incompabilidades e de uso da máquina, não apenas no período eleitoral, mas no decorrer de todo o mandato do Procurador-Geral, do Corregedor-Geral e do Presidente da Associação de classe, sem prejuízo da identificação de outros cargos de relevância [20].

Muito além do debate sobre a independência externa, tão suscitada e defendida quando se trata de buscar a restrição à possibilidade de agentes ministeriais desempenharem funções externas à carreira, não se pode olvidar do problema da independência interna, é dizer, aquela que o membro do Ministério Público deveria ostentar em relação aos órgãos de Administração Superior da Instituição. Tal independência é necessária diante dos múltiplos mecanismos de pressão existentes, imanentes ao funcionamento do sistema, v.g., desde os benefícios econômicos até as mais distintas vantagens administrativas, funcionais e políticas. A independência interna também não resulta protegida pela norma de incompatibilidade ora sub examen, nem ela, nem a independência externa.

Equilibrar a independência interna com o ideário de unidade institucional, eis um desafio gigantesco pela frente. Essa discussão pode ser tão ou mais importante do que aquela atinente à independência externa. Não obstante reconhecermos variados e até preocupantes problemas nessa seara, seja diante da necessidade de desenvolvermos novas ferramentas assecuratórias de independência interna, seja na falta de políticas de unidade institucional, no Ministério Público brasileiro, jamais poderíamos dizer que os membros da Instituição não são independentes, mesmo que estejam submetidos a ambientes internos desprovidos de uma regulamentação detalhada e mais incisiva em torno às relações entre as Cúpulas e os agentes ministeriais, no tocante às atividades funcionais, ao processo eleitoral e ao uso da máquina interna. Nenhuma dessas lacunas afetou ou comprometeu a independência externa da Instituição,quando se trata de afrontar interesses submetidos ao crivo fiscalizatório do Ministério Público.

Como se vê, a discussão sobre independência funcional é complexa e não comporta simplificações, menos ainda hipocrisias intoleráveis. Importa notar, de qualquer sorte, que tanto o Ministério Público Federal – o exemplo mais notório do Ministério Público da União - quanto os Ministérios Públicos Estaduais não deixam de ser instituições autônomas e independentes, a partir da atuação firme de seus integrantes, ainda que suas chefias máximas sejam escolhidas pelo chefe do Poder Executivo, com ou sem lista tríplice. Se isso é certo, e pensamos que ninguém ousaria seriamente impugnar tal assertiva – a da independência do Ministério Público brasileiro -, não vemos lógica alguma em sustentar que o exercício de outra função pública, totalmente submetida ao crivo discricionário do próprio Ministério Público e seus órgãos de Administração, pudesse "contaminar" a suposta "pureza" do Ministério Público; não contaminou, historicamente, nem antes, menos ainda depois da Constituição de 1988.

Possuir membros atuando externamente, construindo "pontes", abrindo caminhos, participando ativamente das estratégias político-institucionais do Ministério Público e da sociedade brasileira, ofertando contribuições à comunidade na condição de agentes políticos qualificados, parece ser mais uma prerrogativa constitucional a serviço da Instituição e da sociedade do que um ato promíscuo e incestuoso capaz de envergonhar os membros do Ministério Público [21].

Quer-se reafirmar que a independência do Ministério Público brasileiro, hoje, não pode seriamente ser posta em dúvida, apesar das dificuldades pontuais eventualmente detectadas. A Instituição vivencia problemas de outra índole, não de falta de independência, inclusive no topo de suas estruturas, apesar do déficit existente. Agentes ministeriais de todos os níveis hierárquicos atuam com a mais absoluta tranqüilidade e independência, alguns ajuizando ações até mesmo estranhas, inéditas em todo o Direito brasileiro e Direito comparado, desde que compatíveis com suas soberanas consciências individuais. Dificilmente alguém poderoso irá escapar de uma ação judicial ou de uma investigação, se considerarmos apenas o dado da independência funcional das autoridades do Ministério Público. Escapam por outras razões, muito mais poderosas, que dizem respeito ao mau funcionamento do Estado e de todo seu aparato investigatório, não por falta de independência no agir ministerial, via de regra. Podem até escapar por falta de eficiência e unidade, não por falta de independência, regra geral, se tomarmos um contexto global como referência [22].

A independência ministerial é, inclusive, tão forte e tão marcante que pode ser tida, dentro de determinada concepção mais radical, como fonte de distorções dignas de atenção. Veja-se que cada agente ministerial pode chegar a ser o equivalente a uma Promotoria ou Procuradoria distinta, que se transforma por completo nas férias de seu titular, ante os novos entendimentos do substituto, ainda que pelo singelo período de um mês. Cada Procuradoria ou Promotoria poderia ostentar, nesse viés interpretativo, uma consciência jurídica ambulante que, algumas vezes, se recusaria a prestar contas de suas opções no plano interna corporis, sob alegação de que ninguém pode condicioná-la, ainda que suas convicções agredissem a ordem jurídica, o posicionamento cristalizado de Tribunais Superiores ou da própria Instituição. Um dos grandes desafios do momento consiste em criar mecanismos democráticos internos para formatar a vontade institucional, redefinindo os limites e conteúdos da independência funcional das autoridades públicas aqui consideradas, à luz dos princípios da eficiência e da responsabilidade, coibindo os desvios e abusos que muitas vezes ocorrem.

Pode-se arriscar um diagnóstico no sentido de que o princípio da unidade institucional talvez esteja sendo esmagado por uma determinada concepção radical acerca da independência funcional. E a falta de unidade conduziria a distorções funcionais de enorme relevância, quebrando-se o princípio isonômico, criando-se ambientes de aplicação seletiva das normas jurídicas, fomentando-se a insegurança jurídica diante da falta de critérios harmônicos e coerentes de autoridades revestidas de expressivos poderes institucionais, além da ineficiência e do descontrole inerentes às distorções mais profundas de uma independência ilimitada. Forma-se, assim, contexto propício ao abuso praticado ao abrigo da suposta independência, diante da falta de controles e de critérios, porque acaba prevalecendo uma concepção lastreada na irresponsabilidade dos agentes políticos. A independência descontrolada pode tornar-se o instrumento mais idôneo para acobertar ineficiência, falta de coerência, preguiça ou arbitrariedades, sempre em prejuízo não apenas da sociedade, mas do próprio Ministério Público, cujas prerrogativas e garantias poderiam, nesse lastro, vir a ser questionadas ou ardilosamente atacadas por seus adversários.

A construção de uma saudável relação entre os princípios constitucionais da independência e da unidade institucionais constitui uma questão central a ser enfrentada com vigor pela doutrina que se ocupa do Ministério Público brasileiro, já tivemos oportunidade de alertar [23], diante dos novos paradigmas de responsabilidade social que emergem nos cenários atuais e considerando o ideário da Nova Gestão Pública que alcança também as Instituições de controle. Trata-se, mais do que de um tema científico, de um problema de gestão do Ministério Público no século XXI.

Se tudo isto é certo, do que vem de ser exposto, percebemos que a manutenção ou o fortalecimento da independência funcional guarda grande relação com o fortalecimento da unidade e dos controles internos, mas não com a ausência de agentes ministeriais nos cenários externos. Esse último fator não entra em nenhum momento na linha causal relevante para a configuração do princípio da independência funcional, seja para seu robustecimento, seja para seu enfraquecimento. Assim como o método de escolha dos Procuradores-Gerais não tem tido força suficiente para estancar a independência do Ministério Público brasileiro, menos ainda o teria a presença de agentes ministeriais em cenários externos. Esta abertura revela-se relevante para outras estratégias político-institucionais do Ministério Público, não servindo para fortalecer nem enfraquecer sua independência.

Insista-se que as distorções que podem se originar a partir da presença de agentes ministeriais nos quadros do Poder Executivo ou do Poder Legislativo podem e devem ser resolvidas com os instrumentos administrativos de controle do "mandato" daquela autoridade, perante os órgãos de Administração Superior do Ministério Público. É um tema relativamente simples, que sequer carece de inovações no ordenamento jurídico. O que evidentemente não é lógico é que as distorções tenham o condão de produzir distorção ainda maior, qual seja, a supressão de uma prerrogativa constitucional. Na metáfora popular, repleta de sabedoria, não se pode pretender curar uma doença através da eliminação do doente; com efeito, busquem-se os remédios pertinentes.

Devemos constatar, em face do que foi até o momento exposto, que não vivenciamos, em realidade, problemas significativos de agressão à independência funcional dos membros do Ministério Público e da Instituição como um todo, ao menos a partir de estatísticas que tenham vindo à tona, no Brasil, seja por vias internas, seja por vias externas. Os problemas que existem devem ser muito localizados, sem expressão nacional. Afora a necessidade de aperfeiçoamento das Cúpulas, tema já recorrente, não há vícios ou contaminações relevantes que estejam a atingir o princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público brasileiro, eis a premissa que temos como inquestionável e que foi objeto das reflexões precedentes.

Assim sendo, observa-se que a manutenção da independência do Ministério Público se dá num contexto em que se admitem abertamente as licenças fundadas no art.129, IX, da CF, para exercício de outras funções públicas, desde 1988. Frise-se, portanto, que a preservação da independência, ou da imparcialidade, não pode constituir pano de fundo para defesa de norma de suposta incompatibilidade derivada de visão literal do art. 128, par.5º,II, "d", da Magna Carta, sobretudo diante dos controles que se tem sobre o agente político afastado da carreira para exercício de funções compatíveis com as finalidades institucionais, e considerando, ainda, os conteúdos normativos subjacentes ao princípio da independência funcional, que jamais poderiam conduzir às conseqüências pretendidas nesse campo das incompatibilidades, e, ainda, os custos sociais e políticos decorrentes da tese que advoga a incompatibilidade.

Qual a interpretação correta, então, para os atos administrativos que deferem licenças de afastamento aos agentes ministeriais, frente ao artigo 128, § 5º, II, "d", da Constituição Federal, de modo a respeitar uma visão histórica, sistemática e teleológica em torno do assunto? Veremos que a hermenêutica a ser emprestada à compreensão da citada norma constitucional constitui válida e atraente alternativa ao intérprete, não apenas por sua coerência, racionalidade, razoabilidade, mas por seus reflexos sociais, institucionais e políticos, elementos embutidos na interpretação constitucional. Trata-se de uma alternativa que esmaga sua oponente, por serem incomparáveis seus níveis de legitimação diante da ordem constitucional e política vigente.


III.Proposta hermenêutica: a compatibilidade com as funções e o controle das Instâncias internas do Ministério Público

Não podemos deixar de olhar o contexto histórico, sem que isso signifique um olhar paralisante ou nostálgico. Nosso olhar é uma retrospectiva crítica, não uma pesquisa de intenções subjetivas duvidosas ou insondáveis. Devemos perceber o que norteou os debates originais na confecção do art. 128, par.5º, II, "d", da Magna Carta, para alcançar o entendimento mais consentâneo com o contexto jurídico-constitucional vigente.

Já nos debates da Constituinte de 1988, a questão da cumulatividade do exercício de funções, sem necessariamente implicar diminuição da independência funcional, foi tema central da votação da emenda aditiva n° 23, de autoria do então Constituinte Deputado José Carlos Grecco, a qual permitia expressamente a cumulatividade com cargo relevante à função ministerial, abordando a polêmica que se revitaliza nos dias que correm [24].

Veja-se o destaque na íntegra:

O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães) - É a seguinte a matéria destacada:

EMENDA Nº 123

(Do Sr. José Carlos Grecco)

Dê-se à alínea a, do inciso II do §3º, do artigo 157, a seguinte redação:

"Artigo 157, § 3º, II - exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo o magistério e cargo administrativo de excepcional relevância, não podendo, durante o afastamento, ser promovido senão por antigüidade;"

O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães) - O texto do nobre Constituinte José Carlos Grecco é aditivo. É esta a redação do art. 155 do texto-base. Quer o nobre Constituinte o seguinte:

" Exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo magistério e cargo administrativo de excepcional relevância, não podendo, durante o afastamento, ser promovido, senão por antigüidade" - quer dizer, as proibições generalizadas - " excepcionando-se no caso para o Promotor Público e o exercício do magistério."

O Promotor poderá exercer o magistério e também um cargo administrativo de excepcional relevância, como em São Paulo, por exemplo, que já teve Promotor Público como Secretário de Segurança, podendo ocupar cargo administrativo, e não podendo, durante o afastamento, ser promovido, a não ser por antigüidade, que é o critério adotado, inclusive, para os parlamentares e funcionários públicos. Só pode ser promovido por antigüidade.

Nesse sentido, defendeu o texto com muita coerência o Deputado Roberto Rollemberg, dizendo o seguinte:

O SR. ROBERTO ROLLEMBERG ( PMDB - SP. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Constituintes, é com muita honra que venho defender a emenda aditiva do nobre Constituinte José Carlos Grecco.

Preliminarmente, referir-me-ei à atuação do Ministério Público no processo democrático, como advogado criminal, e tendo no período da repressão sentido a força dessa mesma repressão, inclusive com restrição de liberdade individual. Foi no Ministério Público que encontramos uma força democrática que equilibrava a aplicação da Justiça, e ainda o é hoje.

Quando se deseja excluir a participação do Ministério Público em cargos de relevância, comete-se, inicialmente, o absurdo de excluir o funcionário público de uma função pública com coerência pela sua atuação de funcionário público, mas fundamentalmente, porque o seu aproveitamento, a sua utilização, além de ser coerente nas funções públicas, é, antes de tudo, também, uma economia para o Estado.

Em São Paulo e em inúmeros Estados, o sistema das prisões na direção dessas casas, ou seja, o técnico habilitado, o Promotor Público, o Representante do Ministério Público tem dado uma contribuição efetiva, não só pela sua responsabilidade de funcionário e de membro do Ministério Público como porque é um técnico capaz de dirigir com eficiência esses setores.

Ainda não se entende que se possa excluir a convocação do Representante do Ministério Público, na oportunidade em que inúmeros Secretários de Segurança neste País ocupam essa Secretaria com eficiência, com noção de justiça e, fundamentalmente, na sua função principal, que é a fiscalização da aplicação da lei.

No nosso Estado - queremos exemplificar, por se tratar de um exemplo típico de competência, probidade e eficiência -, temos na Secretaria de Segurança um representante do Ministério Público, que, pela natureza da sua função pública, é um fiscal da lei e trata a segurança com equilíbrio, com espírito democrático e, sobretudo, com a independência que caracteriza os representantes do Ministério Público.

Sr. Presidente, Srs. Constituintes, não é admissível que se exclua a possibilidade da utilização dos representantes do Ministério Público em função de alta relevância, porque é absolutamente coerente e econômico para o Estado se utilizar figuras de representação e de responsabilidade inerentes à sua função no Ministério Público, nos cargos de alta relevância. Funcionário público, em função pública, em cargo de alta relevância é coerente, é econômico, é democrático e, sobretudo, uma segurança, porque, além da responsabilidade que vai representar e assumir, tem ele a representatividade e a responsabilidade de membro do Ministério Público. Portanto, somando-se duas responsabilidades de melhor forma de atender à segurança, aos cargos, às funções públicas. É exatamente a utilização desse setor do funcionalismo de alto gabarito, concursado e efetivamente respeitado pela comunidade.

Sr. Presidente, Srªs., Srs. Constituintes, pedimos que compreendam a importância para o Estado e para a organização da sociedade a utilização dos membros do Ministério Público no sistema prisional e nos cargos de alta relevância nas Secretarias de Segurança, porque teremos, inclusive, com esta oportunidade, utilizando aquilo que, sem demérito para os demais, é o melhor segmento ou dos melhores segmentos do funcionalismo público neste País.

Assim sendo, peço aprovem a emenda do Constituinte José Carlos Grecco, dando uma contribuição efetiva na possibilidade de o Estado se servir do funcionário competente e, naturalmente, ligado às funções principais da segurança e da estabilidade administrativa.

Não obstante o grande apoio manifestado na sessão em tela à tese do Deputado Roberto Rollemberg com outros discursos proferidos, prevaleceu a posição exarada pelo Constituinte Relator, Deputado Bernardo Cabral, cuja opinião ficou assim transcrita:

O SR. RELATOR (Bernardo Cabral) -

A mens legis que norteou o posicionamento do órgão do Ministério Público no Projeto que há pouco foi aprovado, no respectivo Capítulo, não pode condescender com a presente emenda, em que pese a excelente sustentação feita pelo eminente Constituinte Roberto Jefferson. Por que, Sr. Presidente? Porque o Ministério Público está sendo colocado, em importância, ao lado da Magistratura. E é evidente que qualquer desvio de função comprometeria essa independência.

Sei, Sr. Presidente, de conhecimento próprio, e poderia citar o Dr. Fleury, que é do Ministério Público e hoje Secretário de Segurança de São Paulo, mas não posso com uma exceção justificar, convalidar a regra que norteou o Projeto.

Em que pese ter sido a proposta aditiva rejeitada pelos nobres Constituintes (88 votaram "sim" e 268 "não"), prevalecendo a tese sufragada pelo Deputado Bernardo Cabral, o substrato do debate travado ficou bem claro: de um lado, os que defenderam a utilidade e até essencialidade social de membros do Ministério Público exercerem outras funções públicas e, de outro lado, os que defenderam sua plena equiparação com a Magistratura, inclusive no plano das incompatibilidades, daí derivando a proibição do exercício de outras funções públicas, salvo uma de magistério, guardando simetria com o tratamento dispensado à Magistratura.

Feita a digressão histórica, lembre-se que a técnica do constituinte, não raro, foi a de conciliar interesses e remeter o problema à decisão do sistema judicial, facilitando e acelerando votações problemáticas. Daí a proliferação de tantas cláusulas gerais, tantos termos jurídicos indeterminados e numerosas ambigüidades semânticas na técnica legislativa, tal como chegou a proclamar, em várias palestras, o Ministro Nelson JOBIM. Tratava-se de imprimir um ritmo de trabalho às votações e, naturalmente, debates intermináveis poderiam paralisar o andamento das atividades e os resultados almejados. É claro que não sabemos, ao certo, todas as cláusulas constitucionais que foram pactuadas nesses termos. Sabemos, não obstante, que essa estratégia foi empregada como técnica de sobrevivência da própria constituinte.

Não é de surpreender, pois, nesse contexto, que nem uma tese nem outra, das que foram identificadas no debate pré-constitucional, relativamente ao problema em tela, prevaleceu na consolidação do texto constitucional, seja em seu conjunto, seja no momento em que o texto se desprendera da vontade dos constituintes e se integrara à vida política nacional. O Ministério Público jamais veio a ser alçado à paridade absoluta, no campo das incompatibilidades, com a Magistratura, e as licenças para exercício de outras funções públicas de relevância foram sistematicamente concedidas e validadas por respeitados Ministérios Públicos Estaduais e mesmo pelo Ministério Público da União. A cláusula constitucional recebeu uma leitura peculiar no ordenamento jurídico vigente.

Note-se que tanto o conteúdo concreto da incompatibilidade funcional, quanto o regime geral de incompatibilidades, acabaram ganhando distância em relação ao projeto histórico dos Parlamentares federais. Daí a desmoralização de qualquer possibilidade de pesquisa das subjetividades dos constituintes, porque suas intenções haveriam de ser percebidas no todo das normas constitucionais que disciplinaram as incompatibilidades dos membros do Ministério Público e da Magistratura, seja em suas origens, seja em sua concretização posterior. Não se pode partilhar em fatias o texto constitucional para aferir a intencionalidade de seus autores, eis que estes subscreveram o todo, não os fragmentos da Carta Magna.

Sabemos que a redação do art.128, par.5º, II, "d", da Carta Política, restou lacônica, aparentemente vedando ao agente ministerial o exercício de outras funções públicas, na linha de um entendimento de equiparação dos membros do Parquet aos membros da Magistratura [25]. Paradoxalmente, induvidoso que nunca se emprestou, no plano concreto e político-institucional, a exegese histórica a esse dispositivo, permitindo-se que as autoridades ministeriais fossem licenciadas para exercício das mais diversas funções públicas, municipais, estaduais e federais, em governos de todos os matizes político-partidários e durante todo o período de vigência da Carta Política. No tocante à preocupação com a equiparação com a Magistratura, fundamento e razão de ser do dispositivo constitucional, tampouco prevaleceu a preocupação do Deputado Bernardo Cabral, porque os regimes de incompatibilidades acabaram sendo consagrados em níveis bem distintos, sendo que apenas as garantias constitucionais e institucionais restaram equiparadas, sobretudo nos planos da vitaliciedade, inamovibilidade, autonomias administrativa e financeira. Tanto isto é certo que os agentes ministeriais podem cumular funções de magistério em várias Universidades, o que está vedado aos Magistrados [26]. Também podem exercer uma série de outras atividades que estão proibidas aos Juízes, cujas normas de incompatibilidade são infinitamente mais rigorosas.

Justificou-se a ambição dos constituintes de 1988, na construção de um novo perfil institucional ao Parquet, na sua gestação constitucional, no sentido de evitar que o Ministério Público pudesse reter laços com o Poder Executivo, do qual pretendia apartar-se, comprometendo-se, dessa forma, sua independência funcional. Essa posição era necessária para estabelecer o marco histórico da instituição, enquanto defensora da sociedade, não dos Governos de plantão, ao mesmo tempo em que sinalizava um inédito e vanguardista papel ao Ministério Público [27].

Com efeito, para analisarmos uma preocupação histórica cristalizada na Carta Política de 1988, devemos ter em conta o conjunto da obra. Sem embargo, se é certo que teria havido suposta preocupação radical com a independência do Ministério Público, no excluir a possibilidade de que seus membros exercessem outras funções públicas, não se percebe tal intenção noutras passagens de igual ou até maior relevância. Com efeito, outros pontos essenciais à independência ministerial não foram tocados pela Assembléia Constituinte, tais como aqueles atinentes ao método de escolha dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, assim como os temas relativos à independência interna e às normas de incompatibilidade para exercício de funções político-partidárias ou privadas, entre outras, se tomarmos o texto originário da Carta Magna. Não houve paridade de tratamento com a Magistratura no terreno das incompatibilidades, eis outro tópico capital já mencionado.

Apesar da preocupação histórica dos constituintes e da redação lacônica do art.128, par.5º, II, "d", CF, a questão da incompatibilidade, é o que se viu, tornou-se objeto de um tratamento institucional peculiar, na medida em que os agentes ministeriais seguiram sendo licenciados para exercício de outras funções públicas e nem por isso a Instituição, como um todo, perdeu espaços de independência. Ao contrário, o que se viu é que, no curso histórico, o Ministério Público esteve e está em permanente busca de sua maturidade política em termos de independência funcional, tendo alcançado patamares invejáveis nos cenários de Direito comparado [28].

As reformas ainda pendentes, no capítulo relativo ao princípio da independência funcional, dizem respeito ao processo eleitoral de escolha dos chefes dos Ministérios Públicos e a disciplina legal do processo eleitoral interno, num marco democrático e republicano que permita a pluralidade de posicionamentos, candidaturas e acesso à máquina administrativa, de tal sorte a preservar o valor da independência em sua plenitude. Há que se estabelecer controles que inibam a tomada de poder por grupos dentro dos Ministérios Públicos, coibindo práticas clientelistas e uso da máquina pública para fins privados, com o objetivo de sufocar lideranças alternativas. Também o desenvolvimento do princípio da unidade institucional haverá de fortalecer e revigorar a independência, dentro de novos parâmetros coletivos. De qualquer sorte, é certo que a presença de autoridades ministeriais em cenários externos à carreira nunca constituiu óbice real, fático ou político ao pleno desenvolvimento do princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público, eis a conclusão inarredável.

A interpretação histórica, portanto, não nos remete a uma solução unívoca ou automática, menos ainda a qualquer espécie de compromisso político com a vontade dos constituintes que aprovaram o texto em análise. Perceber a intenção dos constituintes não significa chancelá-la, mormente porque passadas praticamente duas décadas desde seu advento e, sobretudo, porque, desde as origens, tal intencionalidade veio marcada pela névoa das contradições e paradoxos, nos termos expostos. Não há intencionalidade cristalina que permita essa espécie de método histórico de interpretação.

Nesse contexto, a Assembléia Constituinte deixou suficientemente ambíguo o texto constitucional respeitante à incompatibilidade ora em exame, especialmente no conjunto das normas destinadas à disciplina da Magistratura e do Ministério Público, permitindo abertura a novo debate e ao processo de atualização da norma constitucional. Imperiosa se torna, então, uma atualização constitucional, uma revitalização do sentido da norma constitucional, tarefa que cabe ao próprio STF através da interpretação conforme a Constituição, se tomarmos as lições de Luis Roberto BARROSO, o qual chama de interpretação evolutiva essa técnica de atualização das normas constitucionais [29], terminologia que nos parece aplicável precisamente à matéria em exame.

a)Conteúdo concreto da interpretação, sistêmica e teleológica, conforme a Constituição, apontando a compatibilidade das funções ministeriais com outras funções públicas

Uma visão atualizada sobre o tema ora em exame veio à lume através de notório parecer lavrado pelo jurista José AFONSO DA SILVA em ação judicial em que figurou como parte ilustre membro do Ministério Público paulista, emprestando exegese constitucional às regras de incompatibilidade dos membros do Ministério Público ao exercício de outras funções públicas. O caminho hermenêutico proposto pelo constitucionalista é muito mais rico, fecundo e proveitoso aos interesses sociais, podendo vir a ser adotado pelo Supremo Tribunal Federal, na direção de uma nova linha interpretativa que salvaguarde o sentido unitário do Texto Constitucional. Nesse passo, o constitucionalista propôs uma leitura do art.128, par.5º,II, "d", em conformidade com o art.129, IX, da mesma Carta Magna [30]. Ressalte-se que não haveria razão diversa para a Constituição fazer alusão à possibilidade de o agente do Ministério Público desempenhar outras funções compatíveis com a instituição ministerial, sob pena de incorrer em redundância, na medida em que devemos considerar absurda a hipótese de exercício de funções estranhas ao Ministério Público dentro da própria carreira ou administração interna. Daí que o aludido art.129, IX, há de ser interpretado como a fonte normativa constitucional para o desempenho de outras funções públicas compatíveis com as finalidades institucionais, excepcionando a proibição geral estampada no art. 128, par.5º, II, "d", da mesma Magna Carta [31].

O texto constitucional deve ser interpretado de maneira teleológica e sistemática [32], não há dúvidas, combinando-se os dispositivos de vedação com aqueles que disciplinam o perfil institucional e as atividades que apresentam compatibilidade funcional, tais como aquelas definidas genericamente no art. 129, IX, da Magna Carta. Observe-se que igual preceito não encontra guarida no capítulo concernente ao Poder Judiciário, o que é perfeitamente compreensível em face da diversidade de sentidos que se deve atribuir ao termo imparcialidade, quando se está a falar em atividade judicial e função ministerial.

Nesse sentido, e apenas para ilustrar um bom argumento, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também consagrou entendimento bastante claro acerca da possibilidade de que um membro do Ministério Público exerça outra função pública, desde que compatível com as finalidades institucionais. No caso, concluiu-se pela possibilidade de agente ministerial participar, como Conselheiro no Conselho Superior de Polícia, com atribuição para decidir, inclusive, sobre a aplicação de penas disciplinares aos policiais submetidos àquele órgão [33], rechaçando a demanda ordinária em sentido oposto.

No plano legal estadual, no Rio Grande do Sul, há vários textos normativos, de longa data, que autorizam o exercício de outras funções públicas pelo membro do Ministério Público, sendo esta uma tradição salutar no Direito Administrativo brasileiro [34], em vários Estados federativos, senão em sua maioria [35], estando imanente ou expressa a idéia vinculante de as funções serem compatíveis com as finalidades do Ministério Público.

Apenas para demonstrar a tendência atual, e exemplificar tipologia de funções adequadas, citemos alguns ilustres representantes do Ministério Público em funções compatíveis com as finalidades institucionais, no segundo semestre de 2004, afastados provisoriamente das funções por deliberação de seus órgãos de origem e a pedido de autoridades do Poder Executivo (das mais variadas colorações políticas), espelhando uma orientação e um interesse de Governos e de Ministérios Públicos de todos os matizes, o que resulta significativo enquanto interesse de Estado, não de Governos: a) Promotora de Justiça/DF, CLÁUDIA MARIA DE FREITAS CHAGAS [36], Secretária Nacional da Justiça, autoridade lotada no Governo Federal; b) Promotor de Justiça/PR, LUÍS FERNANDO FERREIRA DELAZARI [37], Secretário de Estado da Segurança Pública do Paraná; c) Promotor de Justiça/SP, SAULO DE CASTRO ABREU FILHO [38], Secretário de Estado dos Negócios da Segurança Pública de São Paulo; d) Promotor de Justiça/PB, FRANCISCO GLAUBERTO BEZERRA [39], Secretário de Estado da Segurança Pública do Rio Grande do Norte; e) Procurador de Justiça/PA, MANOEL SANTINO [40], Secretário Especial de Defesa Social do Pará; f) Promotor de Justiça/MT, CÉLIO DE OLIVEIRA [41], Secretário de Estado de Segurança Pública do Mato Grosso; h) Promotor de Justiça/ES, FERNANDO ZARDINI ANTONIO [42], Secretário de Justiça do Estado do Espírito Santo.

No início de 2005, com a eleição e posse do Prefeito/SP, José SERRA, situando-se no plano municipal, que é sempre um domínio mais polêmico pelas potencialidades de atritos com a própria Instituição de origem, tem-se a presença do Procurador de Justiça/SP, LUIZ ANTÔNIO GUIMARÃES MARREY [43], Secretário de Negócios Jurídicos do Município de São Paulo, ex-Procurador-Geral de Justiça daquele Estado e ex-Presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça, liderança importante do Ministério Público brasileiro [44].

Há vários outros nomes de agentes políticos que poderiam ser citados, mas não o foram, mesmo estando a exercer outras funções públicas, em outras áreas, nomeadamente no meio ambiente ou no setor penitenciário. Se recolhêssemos um histórico pós 1988, teríamos uma gigantesca lista de membros afastados, que foram, sinale-se, vitais à construção e consolidação de espaços ao Ministério Público brasileiro nesse período. Falta um trabalho de levantamento e atualização permanente por algum organismo central acerca do histórico e da tipologia dessas licenças, lacuna que, é certo, dificulta um panorama concreto acerca dessa realidade. Espera-se que, para breve, órgãos como o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, ou a Associação Nacional dos membros do Ministério Público, possam alavancar alguma proposta de construção de banco permanente de dados, inclusive com pesquisa histórica, nesse sentido, preferencialmente até mesmo retroagindo para antes de 1988, a efeitos de comparação, observados dados qualitativos.

b) Distinção entre "outra função pública" e "atividades político-partidárias": esclarecimento relevante

Resulta necessário enfatizar que não estamos a tratar aqui dos agentes ministeriais afastados para concorrerem a cargos eletivos, com filiação político-partidária, embora também se trate de exercício de outras funções públicas, funções especiais, ao abrigo do direito de concorrer e de filiar-se a partidos políticos, matéria igualmente controversa junto ao STF, que teve oportunidade de ditar orientação restritiva a respeito do assunto [45]. Sabe-se que tal prerrogativa é ínsita à cidadania e fundamenta o próprio regime democrático: o direito de participar de eleições na condição de candidato.

O debate sobre as funções político-partidárias, de natureza eletiva ou não [46], insista-se, envolve a possibilidade de o Ministério Público possuir representantes diretos nos Parlamentos, ou no Poder Executivo, com canais de diálogos autônomos e interlocuções qualificadas. Se não puder contar com membros nas Casas Legislativas de nosso país, ou nos cargos eletivos de maior relevância social, o Ministério Público certamente deverá buscar interlocutores em outros segmentos, tais como, Deputados e Senadores oriundos das classes policiais ou empresariais, para discutir projetos e programas de atuação carentes de iniciativas legais. E a sociedade é que perderá, "a priori", com a impossibilidade de o Ministério Público oferecer alguns de seus poucos representantes aos Parlamentos, ou cargos no Poder Executivo, nomeadamente Federais e Estaduais, que seriam os lugares mais apropriados para essa categoria funcional, no haver interesse por atividade político-partidária.

Sobre o tema do exercício da atividade político-partidária, registre-se, a evolução tem sido marcadamente restritiva, não apenas na linha já exposta do STF, mas numa direção muito mais radical, envolvendo mudança no texto constitucional, através de alteração do regime de incompatibilidades constitucionais.

Veja-se que, em sessão solene do Congresso Nacional, realizada em 8 de dezembro de 2004, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, contendo o texto aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, alterando o regime de incompatibilidades da seguinte forma:

"Art. 128....................................

.............................................

§ 5º.........................................

I -.........................................

.............................................

b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa;

.............................................

II -........................................

.............................................

e) exercer atividade político-partidária;"

Feita a digressão em torno às atividades político-partidárias, alerte-se que tais atividades não se confundem com outras funções públicas, de natureza institucional ou administrativa, porque ostentam pressupostos e alcance distintos. Uma atividade político-partidária pressupõe um envolvimento muito maior do agente ministerial e, nesse caso, há que se reconhecer, pode ocorrer um drástico redimensionamento de sua independência e imparcialidade, no mínimo frente aos correligionários, companheiros e colegas de partido político, cujas estruturas soem ser hierarquizadas, mas também em relação aos eleitores. Há, ainda, o problema bastante delicado das campanhas eleitorais, com todas suas implicações econômico-financeiras, além dos envolvimentos correlatos, com favores e relações de amizade interessada que se travam no curso desses processos, de um modo mais intenso do que noutras esferas.

O discurso de um agente ministerial com filiação político-partidária ganharia, dentro de certa concepção, novo tipo de independência, que é aquela relativa à representação da cidadania nos Parlamentos e cargos eletivos, mas perderia, em contrapartida, a independência peculiar ao perfil institucional do Ministério Público, dando motivo à incompatibilidade constitucionalmente arquitetada.

É compreensível, portanto, uma preocupação mais exacerbada dos Parlamentares Federais com o problema das atividades político-partidárias. Os discursos encampados por distintos atores, técnicos e políticos, são bastante peculiares, no mais das vezes, e a natureza precípua da função ministerial é técnica, distinta da política. De modo que estamos diante de um tema autônomo, por isso mesmo não tratado neste espaço. A proibição constitucional dirigida às atividades político-partidárias não afeta o assunto relativo ao exercício de outras funções públicas pelo agente ministerial, na medida em que tem fundamentos e pressupostos axiológicos diversos, tratamento normativo autônomo e alcance muito distinto.

Sem dúvida alguma, tal vedação constitucional também merece uma discussão qualificada, porque resulta perceptível que, apesar das nuanças e dos riscos inerentes a essa prerrogativa de cidadania, o Ministério Público estará optando por um modelo diferenciado ao aceitar que, num horizonte futuro, não haja a presença de seus membros nos Parlamentos e noutros cargos eletivos. O que poderá significar tal renúncia, em termos de futuro do Ministério Público e de prejuízos à sociedade brasileira? Pode-se aquilatar, hoje, o que representaram Parlamentares Federais oriundos do Ministério Público, na construção de novos espaços e prerrogativas legais e constitucionais? Algumas gerações de agentes ministeriais talvez não compreendam essa realidade política, mas é necessário resgatar a memória sobre o trajeto legal e constitucional do Ministério Público, quais foram os Parlamentares mais decisivos nessas lutas. O que representará essa perda para o Ministério Público brasileiro?

Cabe externar preocupação diante do esvaziamento de parcela da cidadania. Membros do Ministério Público não necessitam ostentar a mesma e idêntica imparcialidade dos Magistrados. Trata-se de advogados da sociedade. Não haveria razão legítima, em tese, para cortar uma parcela significativa da cidadania dos agentes ministeriais, os quais têm prerrogativas de participação na vida pública brasileira, inclusive através de submissão ao voto popular. Não obstante, a opção do Congresso Nacional foi restritiva e radical.

Não pretendemos tratar deste complexo tema das atividades político-partidárias, no presente espaço, mas apenas deixar registros para reflexões, até mesmo porque é bem provável que tal assunto se preste a um debate mais político-institucional do que jurídico propriamente dito, ante a contundência da incompatibilidade trazida à tona por Emenda Constitucional.

c) Sobre os agentes ministeriais pré-88 e pós-88: uma distinção (quase) irrelevante

Gostaríamos de consignar que, para efeitos do exercício da prerrogativa de que trata o art.129, IX, da CF, será praticamente irrelevante se o agente ministerial ingressou na Instituição antes ou depois da Constituição de 1988, por várias razões. Há fatores de ordem hermenêutica, assim como aspectos teleológicos e morais relevantes, que devem ser levados em consideração.

O exercício de outra função pública é faculdade autônoma em relação ao dispositivo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que disciplina as incompatibilidades e garantias ministeriais, porque este é mais abrangente e se refere a outras prerrogativas e vedações. Essa autonomia decorre do modelo adotado, porquanto não está expresso comando em sentido restritivo ao exercício de outra função pública. Há que se reconhecer que, na ausência de previsão expressa, resulta inviável estender o comando do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ao art.129, IX, da CF, arbitrariamente.

Ainda que estivéssemos diante de uma proibição absoluta no art.128, par.5º, II, "d", da CF, haveria que se sublinhar que a eventual ausência de opção pelo regime jurídico de que trata o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [47] faz com que de nada importe o marco temporal de ingresso na carreira. A opção é um ato solene, administrativo, marcado pela submissão do agente público a todo um regime jurídico anterior a 1988, quando se inaugura uma novel sistemática de garantias e incompatibilidades. Quem não faz a opção por todo o regime anterior, no que respeita às garantias e vantagens, na integralidade, não pode pretender faze-lo apenas no tocante ao que lhe interessa, na perspectiva de sua ótica privada. Não existe a chamada opção eclética, costurando algumas garantias pré-88, outras posteriores à Carta Magna, culminando numa colcha de retalhos.

Finalmente, o sistema de incompatibilidades não existe para satisfazer pretensões individuais, mas o interesse público. Em existindo interesse público na eventual vedação ao exercício de outras funções públicas pelos agentes ministeriais – e sustentamos que inexiste esse interesse público -, não se concebe pudesse a hermenêutica constitucional pautar-se pela lógica da satisfação dos interesses puramente privados das autoridades públicas. E isso ocorreria, lamentavelmente, caso se interpretasse com demasiada elasticidade a exigência da chamada "opção constitucional", como ato esvaziado, passível de realizar-se a qualquer tempo e sem prejuízo algum ao regime jurídico-constitucional dos agentes ministeriais pós-88. É dizer: quem houvesse entrado antes de 88, teria uma singular oportunidade de optar por todas as vantagens pré-88 e todas as vantagens pós-88, num regime jurídico mesclado e costurado, sem limitação temporal, ao sabor das circunstâncias. Ora, semelhante operação serviria apenas para manter supostos "direitos adquiridos" – que, em realidade, não são direitos, menos ainda adquiridos - de uma elite ministerial, sem qualquer utilidade social ou pública, em descompasso com as exigências de uma interpretação constitucional do sistema de incompatibilidades.

O regime jurídico dos que ingressam antes de 1988 e não fazem a opção integral é rigorosamente idêntico ao dos que ingressam pós 1988, como o demonstra a praxe administrativa dos Ministérios Públicos Estaduais e da União. Do ponto de vista prático, todos os que estão atualmente licenciados, ao abrigo do regime jurídico da Constituição de 1988, usufruindo as garantias constitucionais, estão submersos na mesma normativa da Magna Carta, se não tiverem feito opção explícita e administrativa em sentido inverso.

O que significaria a opção do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias? Ainda que se acate o entendimento de que não haveria prazo para essa opção, como veio vazado recentemente em decisão do STF [48], não é possível entender que a opção de que trata a Magna Carta diz respeito simplesmente à aceitação de um convite para exercício de outra função pública. Ora, é necessário aquilatar a opção na sua inteireza, porque parece certo e induvidoso que não se trata de simples aceitação de convite para honroso cargo ou função pública. A opção é por um regime jurídico em detrimento de outro. O agente ministerial que opta por dispensar um regime jurídico, relacionado a supostas incompatibilidades, para mover-se com maior liberdade no cenário político, deve arcar com o ônus de perder garantias constitucionais, submetendo-se ao regime jurídico anterior a 1988. Se o entendimento é de que existe um conjunto de incompatibilidades, e delas pode a autoridade pública abrir mão, por opção constitucional, isto equivale a dizer que tal opção afasta o sistema de garantias e incompatibilidades disciplinado na Carta da República de 1988.

A opção do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias até pode, pois, ser exercida a qualquer momento, como parece ser a orientação predominante no STF, mas não pode, em hipótese alguma, fraudar a necessária submissão do agente político à normativa constitucional relacionada ao sistema de garantias e incompatibilidades. Note-se que as incompatibilidades andam lado a lado com as garantias. Incompatibilidades mais rigorosas são erigidas em homenagem às garantias de Magistrados. Não é possível dissociar incompatibilidades de garantias para efeito de agregar conteúdo à opção constitucional.

Diga-se que a interpretação constitucional, no equacionar o tema em análise, jamais poderia atrelar-se à salvaguarda e ao império dos interesses puramente individuais e particulares dos agentes públicos pré/88, dividindo-se em tuas correntes: incompatibilidade de exercício de outra função pública para os que forem posteriores a 1988 e plena admissibilidade dessa mesma oportunidade para os que tivessem ingressado anteriormente ao advento da Magna Carta. Semelhante manobra seria ilícita, puramente política, para acomodar interesses privados, em descompasso com o princípio da impessoalidade administrativa. É profundamente equivocado submeter a hermenêutica constitucional, aqui girando em torno a uma instituição democrática, a interesses particulares, sem equilíbrio com os interesses gerais pertinentes. Se o exercício de outra função pública efetivamente fosse objeto de uma restrição constitucional, lastreando-se na proteção ao princípio da independência funcional e imparcialidade dos agentes ministeriais, então esta incompatibilidade haveria de valer para todos, independentemente da condição temporal de ingresso na carreira. E a única exceção seria aberta para os que pretendessem, de fato, abdicar do status constitucional de agentes políticos inamovíveis, vitalícios, dotados de uma série de prerrogativas constitucionais, para abraçar as garantias outorgadas apenas no campo infraconstitucional. Tais agentes públicos ficariam numa condição diferenciada, submetidos a regime jurídico pré-88, até porque o controle sobre seus movimentos poderia ser mais rigoroso também.

Não se pode pretender salvaguardar privilégios históricos, a partir de interpretações desprovidas de amparo na axiologia constitucional. O constituinte resguardou, é verdade, direitos adquiridos a um determinado sistema de garantias e incompatibilidades, remetendo à normativa pré-88, mas exigiu que houvesse, para tanto, a propalada opção constitucional. Nesse caso, não há falar-se em sistema dual, porquanto aquelas autoridades que optarem pela redução de suas incompatibilidades, ao mesmo tempo, terão optado, também, pela redução de suas garantias constitucionais. Os optantes, nessa lógica, não serão contemplados com o mesmo status que a Constituição de 1988 conferiu a todos os membros do Ministério Público. Não é possível, evidentemente, optar pelo bônus, sem nenhuma espécie de ônus, menos ainda fundamentando essa lógica na pura e bruta antiguidade funcional.

Entendemos, por certo, que o exercício de outra função pública não esbarra em incompatibilidade constitucional. Ao contrário, reflete prerrogativa constitucional inscrita no art.129, IX, da Carta Magna. Por isso, todos os agentes ministeriais podem, em tese, licenciar-se para exercício de outra função pública, mediante controle da instância de administração superior da Instituição. Mantemos a visão em torno às incompatibilidades em sintonia com o sistema de garantias. Todos os agentes ministeriais gozam das mesmas garantias e incompatibilidades, inexistindo um sistema dual, que contemple privilégios aos mais antigos na carreira. O exercício das elevadas atribuições, por todos os agentes, acarreta o mesmo patamar de responsabilidades, deveres e prerrogativas.


À guisa de conclusão:

O que observamos, no contexto atual, é um cenário de franca utilização e manutenção da prerrogativa do art.129, IX, da Carta Política, sem uma fundamentação adequada e sem uma discussão mais aberta e transparente com a sociedade. Nem mesmo o fato de que uma boa parte das autoridades ministeriais tenha ingressado na Instituição antes de 1988 legitimaria o procedimento diante do art.128, par.5º, II, "d", da CF, como se viu, porquanto não fora feita a opção do art.29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com o significado constitucional que ostenta. Daí porque é necessário o enfrentamento do tema à luz dos complexos parâmetros que o norteiam e não da simplificação em torno ao detalhe de haver o agente ingressado antes ou depois de 1988 no Ministério Público, até porque não se trata de aquilatar direito individual de ordem privada, mas direito difuso da sociedade a um Ministério Público mais aberto ou mais fechado, conforme se trate de uma ou outra opção política.

Ao constatarmos a tendência, atual e crescente, de membros do Ministério Público ocuparem cargos de posicionamento estratégico na sociedade brasileira, com ingresso anterior e posterior a 1988, aportando contribuições nas mais diversas áreas, não podemos esquecer da norma insculpida no art. 129, II, da Constituição Federal, que preceitua ser função institucional do Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos serviços de relevância pública.

Concretamente, do ponto de vista político, não há dúvidas de que funções públicas que devem e seguramente são exercidas por membros do Ministério Público, no interesse da Instituição e da sociedade, ainda que fora da carreira, são as chamadas funções relativas ao ciclo da persecução criminal, onde há íntima relação entre os órgãos executores da atividade policial e a atuação ministerial, não somente como fiscal da lei e titular da ação penal pública, mas inclusive como controlador externo da própria atividade dos agentes policiais [49]. Outra área estratégica é aquela relativa à administração do sistema penitenciário, onde estreitas relações são travadas com os interesses institucionais do Ministério Público, seja na área de execução penal, seja no próprio controle da criminalidade organizada no interior do sistema prisional [50]. Também a área ambiental [51] ou de defesa dos interesses das crianças e dos adolescentes [52] ou dos consumidores [53], dos direitos humanos e da saúde pública, entre outras, pode assumir essa relevância constitucional, inegavelmente.

Caberá, sempre, em última análise, ao chefe do Ministério Público, ou à sua Cúpula, como o Conselho Superior, decidir se aquela função é intimamente ligada à instituição como um todo, compatível com suas finalidades e interesses [54], ou não. Isto, porque uma dada função pode tornar-se incompatível com as finalidades institucionais do Ministério Público, seja em razão da matéria, seja em razão do status da função ou do cargo em exame [55].

Pensamos que a melhor técnica para embasar decisão sobre cabimento de licença para exercício de outra função pública por agente ministerial é aquela que supõe fundamentação, ao menos do posicionamento prevalente, no tocante ao cabimento e compatibilidade das funções estranhas à carreira com as finalidades institucionais. O ideal, no entanto, é que houvesse uma regulamentação legal ou até mesmo administrativa uniforme para o trato da matéria, disciplinando limites gerais e condicionantes específicos ao exercício de funções públicas fora dos quadros do Ministério Público, evitando que haja proliferação de licenças indevidas, em que os cargos ou funções ocupados sejam infinitamente inferiores à dimensão e ao status constitucionais do Ministério Público, órgão com alcance singular em nosso Estado Democrático de Direito.

É claro que a União pode e deve legislar sobre o assunto, respeitada a competência de iniciativa, a partir de trabalho de órgãos como os Conselhos Nacionais de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, Conselho Nacional de Corregedores-Gerais, além das Associações Nacionais de classe e de representantes da cidadania. O tratamento legal no plano federal não inibirá, por certo, iniciativas setoriais dos Estados, na disciplina do assunto em face das peculiaridades locais, com maior ou menor rigor, em perspectiva variável no tocante ao grau de restrição.

Outra possibilidade interessante é a de o Conselho Nacional do Ministério Público, órgão constitucional de governo, regulamentar, na via administrativa, hipóteses gerais de cabimento, em tese, de licenças para afastamento destinado ao exercício de outras funções públicas. Não parece conveniente que os Ministérios Públicos dos Estados e da União sigam divergindo e adotando posições discrepantes. O Conselho Nacional é órgão revestido de legitimidade para o balizamento administrativo geral desse tema, emprestando maior densidade e uniformidade ao trato do assunto. Desse modo, o Conselho tem a oportunidade de coibir licenças abusivas, arbitrárias ou incompatíveis com a dignidade das funções, delimitando, por exemplo, alguns tipos de funções para as quais um agente ministerial pode ser liberado [56].

O que não pode ocorrer – e lamentavelmente é o que vem ocorrendo – é uma discussão superficial sobre tema tão relevante e estratégico como o é a manutenção, e fortalecimento, de uma prerrogativa constitucional do Ministério Público brasileiro, inscrita no art.129, IX, da Magna Carta, cujas potencialidades ainda não têm sido exploradas em sua plenitude.

Tensas têm sido as situações que espelham problemas e possíveis desvios de finalidade, seja no deferimento das licenças, seja em sua manutenção diante de posturas descabidas das autoridades licenciadas.

Pior ainda, ressalte-se, é que extremamente nocivas aos interesses sociais são as reações contrárias à presença de membros do Ministério Público em posições vitais à sociedade brasileira, ainda que externas à Instituição, fundamentando-se tanto em visões imaturas sobre tema tão relevante, quanto em visões demasiado maduras na perspectiva dos interesses obscuros que sustentam, ambas tendo em comum, sem embargo, um viés corporativista inaceitável nos dias de hoje.

Resta-nos propor o resgate desse debate à luz do dia, de modo a reafirmar a contundente necessidade de o Ministério Público poder emprestar seus membros ao exercício de outras funções públicas, desde que compatíveis com as elevadas finalidades institucionais e sujeitas a controles da própria Instituição. A proposta, de tão singela e direta, talvez desmerecesse um esforço teórico maior. Todavia, diante do crescente agigantamento dos movimentos em prol da supressão dessa que é uma das mais estratégicas prerrogativas constitucionais do Ministério Público, a serviço dos interesses sociais, parece-nos oportuno formular convite ao debate mais aberto e crítico, com os enunciados discursivos transparentemente expostos, em todos seus matizes.

Pensamos que o Ministério Público brasileiro deve eleger alternativas em sua trajetória e evolução institucionais. Os contextos são cada vez mais velozes e complexos, verdadeiramente desafiadores, estando superada a etapa histórica de afirmação da independência. Pensamos que o momento se presta à consolidação e ao fortalecimento da independência, através das parcerias e relacionamentos, priorizando-se as posturas construtivas mais que as posturas puramente repressivas ou de controle a posteriori. A independência há de ser implementada e fortalecida a partir da unidade institucional, que supõe democracia interna, garantias, controle de qualidade e resultados obtidos em equipe, sempre balizados pela responsabilidade [57].

Os gestores do Ministério Público deverão entabular, na busca de qualidade institucional, no enfrentamento dos desafios contemporâneos, relacionamentos com os mais diversos organismos, públicos e privados. Não é possível aceitar posturas de fechamento corporativo, ainda que baseadas em receio de contaminação política ou cooptação de agentes ministeriais por outros órgãos públicos ou privados. Tais riscos devem ser enfrentados na forma adequada, jamais através do fechamento da Instituição à possibilidade de penetrar noutras esferas políticas e institucionais. O método correto de redução desses riscos passa pela consolidação de medidas que tornem o setor público cada vez mais atrativo, não apenas pela remuneração média e pela estabilidade, mas pelos prêmios e reconhecimento das diferenças, estimulando-se o desenvolvimento dos talentos e a otimização das potencialidades [58].


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Notas

01 Fica o agradecimento ao especialista em Direito Internacional Público pela UFRGS e advogado, Rafael Barreto Garcia, pela colaboração e pesquisas efetuadas.

02 Diga-se que tem sido orientação histórica e recorrente do Ministério Público do Rio Grande do Sul prestigiar o exercício de outras funções públicas por seus membros, com experiências saudáveis e produtivas, sem notícias de distorções. Um exemplo significativo está na edição do Jornal Réplica, informativo da Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ano XIX, número 49, dezembro de 1995, na gestão Cláudio Barros Silva, quando se fez uma espécie de "homenagem" a nove agentes ministeriais então licenciados, a saber, pela ordem consignada na matéria: Ivo Mainardi; Vieira da Cunha; Paulo Emílio Barbosa; Paulo Tonet Camargo; Sérgio Gilberto Porto; Zuleika Vargas; Jarbas Lima; Paulo Vidal. Segundo a matéria, "muitas vezes, fora da instituição, colegas que sempre se destacaram na atividade ministerial prestam inestimáveis serviços à classe e à sociedade, quando no exercício de outras funções públicas". E destacou a matéria outros nomes: Ibsen Pinheiro; Paulo Olímpio, Lauro Guimarães, Augusto Berthier; José Paganella Boschi, entre outros. Já anunciando conhecimento sobre a controvérsia em torno aos afastamentos – e o Procurador-Geral, à época, era Voltaire de Lima Moraes, igualmente eleito para presidir o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União -, a matéria jornalística consigna: "Há quem discuta a participação de promotores ou procuradores na vida pública fora do Ministério Público. São conhecidos os argumentos dos que defendem a possibilidade e dos que pensam em sentido contrário. O que é inquestionável é a relevância dos serviços que todos prestaram lá e cá e, acima de tudo, a honradez com que sempre cumpriram seus deveres". Ademais, as autoridades licenciadas, historicamente, "marcam suas biografias fora do Ministério Público, sem deixar de lado os princípios da instituição e sempre atentos aos interesses dela, que são os mesmos da sociedade". Essa tem sido a marca do Ministério Público gaúcho no trato dessa matéria, o que poderia servir de inspiração para o debate nacional.

03 A liminar foi negada, o parecer da Procuradoria-Geral da República foi pela improcedência da Reclamação e o feito seguia tramitando no STF até dezembro de 2005. O curioso é que a Reclamação fora ajuizada cerca de 08 meses após nossa posse como Secretário-Adjunto, denotando que se tratava não de uma postura estritamente institucional, mas de alguma espécie de retaliação de algum segmento da polícia civil contra posturas por nós adotadas. Esse detalhe talvez tenha contribuído para desqualificar a pretensão de urgência embutida na Reclamação.

04 Tem-se entendido largamente que o magistério aqui referido é o público, inexistindo limitações ao magistério privado, tanto que membros do Ministério Público costumam acumular várias funções de magistério privado, em múltiplas entidades de ensino. Aliás, suavizando essa proibição, algumas entidades, especialmente preparatórias a concursos, adotam o sistema de contemplar tais autoridades com "palestras", em períodos regulares. E isso se deu de modo absolutamente generalizado, tanto na Magistratura quanto no Ministério Público. De forma que os "palestrantes" não estariam, por assim dizer, no desempenho de funções de "magistério". E parece lógico que assim seja, porque o magistério supõe uma regularidade e uma relação na qual o aluno tenha de submeter-se a exames, para fins de obter aprovação. Não é o caso das palestras, que pressupõem apenas a transmissão do conhecimento e a preparação para um determinado objetivo que transcende o curso propriamente dito. É claro que o magistério ou as palestras diárias de agentes ministeriais constituem um fenômeno digno de atenções crescentes dos órgãos de controle interno, sobretudo porque resulta possível questionar, em determinadas situações, qual a carga horária destinada ao desempenho de funções ministeriais típicas, dada a sobrecarga com aulas numa agenda permanente e estável. Há que se mencionar que alguns agentes públicos, não satisfeitos com as aulas, têm migrado à atividade empresarial, deixando como sócio-gerente da Pessoa Jurídica algum sócio ou até mesmo pessoa de sua família, mas compartilhando lucros de modo absolutamente igualitário, fruto do labor empregado na constituição e manutenção de Escolas preparatórias a concursos públicos. Esse é outro tema que, por sua amplitude no território nacional, revela-se digno de uma maior reflexão, que certamente não é esta no presente espaço.

05 Vê-se que se trata de medida cautelar, logo, provisória, pois pode ser revertida em face do julgamento final de mérito. Na oportunidade, eis a composição do Supremo: Maurício Corrêa, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Ilmar Galvão, Carlos Velloso, Moreira Alves, Celso de Mello, Nelson Jobim, e Gilmar Mendes. Destes Ministros, quatro já se aposentaram. Outros, ademais, podem, perfeitamente, reformular entendimento. Não são raros os casos em que os Ministros dessa Corte, demonstrando humildade e vocação republicana, revisam seus próprios votos, alcançando soluções mais justas e razoáveis. Especialmente em matérias controvertidas e polêmicas, pode-se alimentar justa expectativa de que, diante de nova composição e considerando o espírito republicano e democrata dos nobres Ministros que já votaram e ainda estão por votar, possa haver reformulação de posicionamento. Daí porque não se pode ter como recomendável pretender a "execução universal" do comando de uma decisão liminar, provisória e ainda precária, a título de criar instabilidade em organismos públicos estratégicos.

06 "Art. 170 – Aos membros do Ministério Público é vedado: (...) IV – exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; (...) Parágrafo único. Não constituem acumulação, para os efeitos do inciso IV deste artigo, as atividades exercidas em organismos estatais afetos à área de atuação do Ministério Público, em Centro de estudos e Aperfeiçoamento do Ministério Público, em entidades de representação de classe e o exercício de cargo ou função de confiança da administração superior e junto aos Órgãos de Administração ou Auxiliares do Ministério Público."

07 Nesse sentido, vide os seguintes julgados: RCL n° 556-9/TO, Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 03.10.1997, p. 49.230; RCL n° 448-1/MS, Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 09.06.1995, p. 17.226; RCL n° 447-3/PE, Min. SYDNEY SANCHES, DJ de 31.03.1995, p. 7.772; RCL n° 399/PE, Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 24.03.1995, p. 6.804); RCL n° 467-8/DF, Min. CELSO DE MELLO, DJ de 09.12.1994, p. 34.081; RCL n° 385/MA, Min. CELSO DE MELLO, DJ de 18.06.1993, p. 12.109; RCL n° 397/RJ, Min. CELSO DE MELLO, DJ de 21.05.1993, p. 9.765.

08 Enquanto não editada essa regulamentação legal federal, seguem vigentes as normativas próprias de cada Ministério Público, seja pela via legal, seja pela via administrativa stricto sensu. A regulamentação pode dar-se, também, na via das legislações estaduais, observado eventual balizamento de legislação federal que se ocupe do tema.

09 Hely Lopes MEIRELLES (1988).

10 Verifica-se, hoje em dia, que há comissões de Reforma de Código de Processo Civil e Penal, por exemplo, que contam com membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, não raro afastados, mediante licença, da origem, para desempenhar tais funções, sendo assaz reconhecidas a importância e a relevância para a sociedade brasileira das referidas participações, sejam nas comissões de juristas, criadas por lei que auxiliaram na elaboração dos Anteprojetos do Código de Defesa do Consumidor, da Lei de Ação Civil Pública, Lei Antitruste, entre outros regramentos, sejam em comissões diversas.

11 Com efeito, a vingar o entendimento aqui examinado, não poderia um membro do Ministério Público participar do gabinete de assessoramento de um Senador da República, espaço onde tem condições de articular eloqüentes aberturas à Instituição, aprimorando e dando início a projetos de lei, porque tal função lhe estaria vedada. Sabemos que existem notáveis membros do Ministério Público no assessoramento do gabinete de Senadores da República. É o caso do Senador José Sarney, que contou, em 2005, com a assessoria de um dos mais ilustres representantes do Ministério Público brasileiro, de ingresso pré-88. Já no Poder Executivo são inúmeros os exemplos de participação construtiva do Ministério Público, ocupando espaços estratégicos, nas mais variadas Secretarias ou órgãos de alto assessoramento dos governantes, sempre assegurado o retorno imediato aos quadros institucionais.

12 E não são poucas as legislações que contaram com presenças ostensivas de membros do Ministério Público em suas comissões de origem. Em geral, grandes conquistas da coletividade, como o Código de Defesa do Consumidor, contam com participações qualificadas, não raro com juristas oriundos do Ministério Público.

13 Essa é a razão de ser da doutrina pioneira de Hugo Nigro MAZZILLI (1989; 1997; 1998; 2001). O autor, liderança histórica no Ministério Público paulista, cuja Associação de classe foi por ele presidida, reproduziu o pensamento de uma determinada época, mormente quando o foco central do Ministério Público brasileiro era a difícil afirmação de sua independência frente ao poder político. Mais ainda, não se pode desconhecer o conjunto de peculiaridades do Estado de São Paulo, onde membros do Ministério Público, em concreto até mesmo um ex-Governador de Estado, galgaram postos importantes e tiveram significativas áreas de atrito com sua Instituição. Porém, a realidade mostra que os abusos e desvios de poder, praticados por membros do Ministério Público quando no exercício de outras funções públicas, estranhas à carreira, embora compatíveis com suas finalidades, deveriam merecer controles internos específicos de parte do próprio Ministério Público, a começar pela revisão da licença concedida. Não se poderia generalizar para todo um país aquilo que seria problema específico do Estado de São Paulo. E mesmo que se reconheça que tal problema tenha ocorrido também em outros Estados – no Rio Grande do Sul, nunca se teve notícia de distorções similares -, o que seria recomendável e necessário é o ataque às causas concretas dos desvios, não à prerrogativa constitucional de a Instituição ocupar espaços estranhos à carreira e compatíveis com suas finalidades, a teor do comando do art. 129, IX, da Carta Política de 1988. A salvaguarda da independência e da autonomia ministeriais, em sintonia com o postulado da unidade de atuação, pode e deve ser feita a partir de mecanismos internos de controle do Ministério Público, regulamentando-se suas licenças de modo mais rigoroso, controlando a presença e atuação dos agentes ministeriais quando estiverem cedidos, provisoriamente, a outras Instituições. O foco da discussão há de ser, pois, redirecionado. Constitui equívoco elementar a generalização de soluções casuísticas para todo um conjunto de Instituições que não se adaptam ao caso concreto tido como paradigmático.

14 O agente ministerial possui modo de atuação ativo e enquanto órgão postulante pode investigar, requisitar diligências, buscar provas, relacionar-se mais abertamente com outros setores da comunidade, inclusive elaborando estratégias processuais ou investigatórias comuns. O Promotor de Justiça, Procurador do Trabalho, Promotor da Justiça Militar ou o Procurador da República é parte nos processos e pode atuar ao lado de outros órgãos públicos ou até mesmo privados, tais como as Organizações Não-Governamentais, as associações ou entidades defensoras de interesses coletivos. Formando litisconsórcios, os agentes ministeriais e os advogados podem, inclusive, estabelecer, em reuniões, estratégias comuns. E, na seara investigativa, o Ministério Público aproxima-se muito dos órgãos investigadores, fiscalizando as ações policiais, ditando diligências, buscando elementos informativos. Tem-se, nesse real contexto normativo e cultural, que a imparcialidade da autoridade ministerial não o impede de mergulhar em outras experiências institucionais e funcionais, desde que compatíveis com suas funções e finalidades próprias à carreira. Daí a razão de ser da distinção de regime jurídico entre as incompatibilidades dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. Razão outra não há para a opção do constituinte em separar em capítulos distintos o Poder Judiciário (Capítulo III – arts. 92 a 126) do Ministério Público (arts. 127 a 130) –enquanto função essencial à justiça (Capítulo IV – arts. 127 a 135), ao lado da Advocacia Pública ( arts 131 e 132) e da Advocacia e da Defensoria Pública (arts. 133 a 135), todos sob o pálio do Título IV da Carta de 1988 (Da organização dos poderes).

15 É claro que um agente ministerial licenciado pode, teoricamente, externar e abraçar posicionamento divergente da cúpula de sua Instituição, num determinado caso concreto. Cabe à cúpula ministerial, sob a fiscalização da opinião pública e das instâncias políticas, equacionar eventual impasse da melhor maneira possível, seja absorvendo o conflito com naturalidade ínsita aos regimes democráticos e plurais, seja entendendo que a postura do agente licenciado se revela incompatível com as finalidades superiores de sua Instituição de origem. Essa é uma opção, carregada de ônus, que as autoridades competentes devem assumir. Não é lícito ao agente licenciado atuar como se estivesse completamente desligado e desconectado das finalidades institucionais estampadas genericamente no art.129, IX, da CF, mas tampouco resulta admissível compreender o exercício de outra função pública como atitude puramente servil do agente licenciado em relação ao órgão de origem. Com efeito, a independência funcional também há de concorrer, positivamente, para resguardar posições e a consciência jurídica da autoridade licenciada, nos limites da Lei e do Direito aplicáveis à sua esfera de competências.

16 Lei Complementar nº 75/93: Art. 25 - O Procurador-Geral da República é o chefe do Ministério Público da União, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de 35 (trinta e cinco) anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta do Senado Federal, para mandato de 2 (dois) anos, permitida a recondução, precedida de nova decisão do Senado Federal.

17 Não há que se ignorar que algum outro membro do Ministério Público Federal, licenciado para exercer funções no Poder Executivo, talvez tenha pecado pelo distanciamento em relação aos interesses e finalidades da Instituição de origem, participando de iniciativas tidas como antipáticas ou contrárias aos interesses institucionais, inclusive em anteprojetos de lei. Pela relevância do cargo e função que veio a exercer, tal agente ministerial foi acusado informalmente de haver participado de "esquemas" de blindagem do Governo Federal e seus altos funcionários diante dos Procuradores da República. Uma vez mais, observamos um problema pontual de relacionamento, a ausência de estratégias de relacionamento e de cobrança de posturas. Daí à multiplicação de equívocos foi um passo pequeno. De um lado, a cúpula do Ministério Público Federal talvez tenha ignorado suas prerrogativas de controle. De outro, certamente faltou diálogo produtivo com a autoridade licenciada. Finalmente, a radicalização de posicionamentos conduziu ao isolamento do agente licenciado e o Ministério Público brasileiro perdeu a oportunidade de contar com um forte aliado no cenário externo. Imaturidade política, ignorância em torno às atribuições e prerrogativas, vaidades, problemas internos, são muitos os fatores que podem gerar o ambiente propício ao isolamento dos agentes licenciados. Nada justifica a eliminação da prerrogativa de afastamento, que pertence à Instituição, não ao licenciado, porque o importante é diagnosticar os eventuais desvios e consolidar o uso de ferramentas de controle, incluindo a proximidade e o diálogo permanentes. O que não se justifica é tomar um caso de desvio de finalidade para justificar toda uma doutrina geral de tratamento da matéria.

18 Lei Federal nº 8.625/93: Art. 9º - Os Ministérios Públicos dos Estados formarão lista tríplice, dentre integrantes da carreira, na forma da lei respectiva, para escolha de seu Procurador-Geral, que será nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, para mandato de 2 (dois) anos, permitida uma recondução, observado o mesmo procedimento.

19 Se a independência deste for afetada, caberá à Instituição exercer os controles pertinentes.

20 Lembre-se que a capacidade eleitoral ativa de Promotores de Justiça, nos Estados, para o exercício das funções constitucionais de Procurador-Geral de Justiça, tem sido abusivamente restringidas em algumas unidades da Federação, por leis estaduais. Não se compreende, sem embargo, que haja tanta preocupação com independência externa e pureza, mas tanta negligência em relação à participação democrática dos Promotores de Justiça no processo eleitoral ativo de uma instituição, fortalecendo-se "castelos elitizados" de Procuradores de Justiça, em detrimento da unidade institucional. É óbvio que um Promotor de Justiça em estágio probatório não poderia eleger-se, mas o fato de alguém ficar no patamar de Promotor de Justiça não poderia servir de suporte para o cerceamento de suas prerrogativas de cidadania interna corporis.

21 Sintomaticamente, há lideranças que se orgulham de nunca haverem exercido funções públicas fora da carreira, anunciando tal circunstância solenemente em seus currículos de apresentação eleitoral ou acadêmica. Apresentam-se como supostamente mais independentes do que outras autoridades, em face dessa característica profissional. Não é verdade que a independência possa ser aferida por esse "termômetro", o qual não mede nem a independência externa, menos ainda a independência interna. Uma autoridade servil a grupos políticos internos, na busca de seus interesses, pode ser muito menos independente do que uma autoridade licenciada para alto cargo governamental. O termômetro é bem mais exigente para avaliar tal qualidade, vale dizer, a da independência. Pior ainda, tem-se a impressão, às vezes, que o discurso corporativista de "pureza" vem marcado por um estranho sentimento de superioridade dos controladores sobre os controlados, evitando-se que haja mistura indevida entre fiscais e fiscalizados. Com todo o respeito, essa espécie de postura está notoriamente defasada, não apenas porque tais fronteiras são tênues e flexíveis, sendo todos controladores e cotrolados num ambiente republicano democrático, havendo necessidade de compreensão recíproca, mas porque não deixa de refletir um suposto idealismo, dissociado da realidade e perigoso pela pretensão que carrega. Note-se que o pensamento conforme o qual o agente ministerial, ao desempenhar outra função pública, estaria freqüentando ambientes promíscuos, participando de acordos políticos inconfessáveis, arquitetando estratégias em sintonia com grupos ou partidos políticos, em circunstâncias tais que restaria comprometido em sua vida funcional, caso efetivamente viesse a retornar à Instituição, está em descompasso com as necessidades da vida real e o papel que o Ministério Público exerce na comunidade, além de não corresponder à verdade. Tais presunções, além de politicamente muito nocivas ao Ministério Público, pois o posicionam num intolerável patamar corporativista, são descabidas, porque há cargos eminentemente técnicos, que demandam a presença de agentes ministeriais, a serviço das próprias finalidades inerentes ao Ministério Público, ainda que externos à Instituição, nos termos do próprio art.129, IX, CF. Em tais cargos ou funções, os membros do Ministério Público, por possuírem garantias e carreira próprias, ficam livres para atuar com independência, podendo desligar-se da função no instante em que sua consciência moral e jurídica ditar essa necessidade. De igual modo, os controles do Ministério Público poderão incidir a qualquer tempo. Não se pode, pois, alimentar uma visão fechada, corporativista e até certo ponto preconceituosa em relação ao meio político, tomando como promíscuo ou foco de contaminações o ambiente institucional junto ao Poder Executivo, como se tais cenários fossem passíveis de contaminar autoridades públicas com formação moral e jurídica suficiente para integrarem o Ministério Público. Presumir que tais vícios estejam, ademais, apenas em cenários externos, e não no plano interna corporis, onde também vicejam a política interna, os acordos, os compromissos, é, no mínimo, equivalente a ignorar a realidade. Em verdade, sabe-se que as atividades do Ministério Público exigem constantes e intensas aproximações, rompendo qualquer lógica corporativista e infensa aos acordos, ao diálogo, à postura humilde e serena de quem quer ajudar a construir novos parâmetros de probidade e qualidade na gestão pública brasileira. Essas aproximações necessitam de contatos e a existência de agentes ministeriais nos cenários externos facilita tais contatos, viabilizando a aproximação com outras Instituições estratégicas, como as Polícias ou outros organismos de vital relevância à sociedade. Deve-se dizer que a construção e a manutenção de prerrogativas legais e constitucionais também passa por um acesso qualificado ao meio político, que não pode ser desprezado nem tido como fonte de contaminações aos membros do Ministério Público. Realmente, o que importa é que o Ministério Público aproveite, dentro de suas estratégias políticas, o membro que estiver no exercício de outra função pública, como instrumento para abertura de espaços, de diálogo e de soluções construtivas à sociedade, rompendo eventual lógica corporativista. Não importa que, posteriormente, a autoridade venha a definir novos rumos à sua carreira, desligando-se da Instituição e trilhando novo caminho profissional. Diga-se que tal possibilidade é natural num regime democrático, onde ninguém deve estar obrigado a permanecer numa Instituição ou atividade. Ademais, tem havido saída de membros do Ministério Público para a iniciativa privada, fruto da produção intelectual e dos contatos travados, o que tampouco é passível de controle repressivo. Trata-se de conseqüência da liberdade de iniciativa e da autonomia de vontade das pessoas. A melhor forma de encarar essa realidade é oferecer oportunidades e ambiente cada vez mais qualificado dentro da Instituição, valorizando os talentos de cada um e estimulando produtividade através de retorno institucional direto e indireto. Causa espanto que tal linha de argumentação possa, pois, pretender servir de suporte à sustentação de uma incompatibilidade mais rígida, como forma de evitar suposta "evasão" de recursos humanos, quando, em verdade, não será o fechamento da Instituição que impedirá essa saída de agentes ministeriais para outras funções, dentro das regras de mercado.

22 Sabemos que nenhuma Instituição solitariamente pode resolver os mais graves problemas brasileiros, menos ainda as instituições fiscalizadoras, que não detém as estruturas materiais, humanas e as competências funcionais para definir e implementar sofisticadas e onerosas políticas públicas.

23 E o fizemos precisamente no prefácio à magnífica obra, já citada, de Emerson Garcia.

24 BRASIL. Assembléia Nacional Constituinte. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Quarta-feira, 13 de abril de 1988, p. 9327 a 9.328.

25 Repita-se que o Ministro Nelson JOBIM, na condição de Presidente do Supremo Tribunal Federal, tem afirmado, em palestras públicas, na privilegiada condição de quem fora brilhante Deputado Constituinte, que a técnica empregada na confecção de muitos dispositivos, quando envolviam polêmicas, era a da ambigüidade semântica, abrindo espaço às interpretações até mesmo antagônicas, de modo a satisfazer as expectativas dos grupos em colisão, acelerando-se a produção das normas. Tratava-se de técnica para construir consenso. Os constituintes remetiam o problema e a competência para sua resolução a outra instância, em outro momento histórico. Isso ocorreu em numerosos dispositivos e, acrescentamos, em boa medida, também no caso ora em exame parece haver ocorrido o uso dessa técnica. Isso porque, no fundo, ao optar por uma redação ambígua e aparentemente contraditória entre os dispositivos dos arts. 128, par.5º, II, "d", e 129, IX, da Magna Carta, não obstante os discursos históricos dos Parlamentares, a Assembléia Constituinte postergou o enfrentamento do tema e tanto é assim que sua efetividade nunca foi implementada. O discurso do Relator, Bernardo Cabral, não indica linha de entendimento diverso, porque sua idéia era identificar o regime de incompatibilidades do Ministério Público com a Magistratura e isso acabou não ocorrendo. Vê-se, pois, que o assunto efetivamente foi relegado a outra instância que, no caso, passa a ser o Supremo Tribunal Federal, no atual contexto histórico, no qual o Ministério Público assume feições muito diversas daquelas concebidas em 1988, já efetuado o balanço de suas atividades, suas perdas e seus ganhos.

26 Agentes ministeriais que ingressam na Magistratura pelo Quinto Constitucional abandonam, não raro, alguma Universidade, para dedicar-se somente a um cargo de magistério jurídico. No Ministério Público, permite-se a cumulatividade em várias Universidades.

27 A fundamentação histórica vazada na Assembléia Constituinte coincidiu plenamente com a doutrina de independência absoluta e radical do Ministério Público, que veio a ser robustecida no pensamento de autores como MAZZILLI (1988), idealizando-se tal Instituição como espécie de Magistratura (não de Advocacia), cujos membros somente prestariam contas às suas consciências, a ninguém mais, sempre ao abrigo de critérios individuais de atuação (ou omissão), na elástica interpretação dos comandos normativos.

28 No Direito comparado, vale consultar MATHIAS (1999) com ênfase na Alemanha e na França.

29 Veja-se Luís Roberto BARROSO (2003).

30 Assim, vide novamente o inciso IX do art. 129: "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas."

31 Parecer anexo à SUSPENSÃO DE SEGURANÇA nº 2.065/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO.

32 Sobre exegese sistêmica, veja a clássica doutrina de Carlos MAXIMILIANO (1991), segundo o qual "o Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos. Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço".

33 Assim restou ementado o julgamento: "Mandado de segurança. Servidor publico. Demissão de policiais civis proposta pelo Conselho Superior de Polícia em procedimento administrativo-disciplinar e acolhida pelo Governador do Estado. Constitucionalidade da composição do conselho, integrado por membro do Ministério Publico. Compatibilidade da função com as finalidades institucionais do Ministério Publico. Denegação da ordem" (Tribunal Pleno do TJRS, Mandado de Segurança nº 70002333847, grifos nossos). Nesse passo, vale transcrever trecho do voto do Relator, Des. ÉLVIO SCHUCH PINTO, verbis: "(...) A Constituição da Republica atribui ao Ministério Publico as Funções institucionais que elenca no art. 129, alem do exercício de "outras funções que lhe foram conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação constitucional e a consultoria jurídica de entidades publicas" (inciso IX). (...) A participação de representante do Ministério Publico no CSP, portanto, tem respaldo em lei e não afronta os princípios da Constituição Federal, pois, como mencionado, há previsão constitucional para o exercício de outras funções que não as ali expressamente previstas. Além do que, a função ora questionada encontra-se de acordo com a finalidade do Parquet de defesa da ordem jurídica, o que compreende, no caso, o resguardo dos princípios da legalidade e moralidade administrativa como bem ressalvado pela autoridade coatora."

34 Citem-se os seguintes: Art. 9º, I, do Dec. nº 33.452/90; Art. 2º, VI, do Dec. nº 37.037/96; Art. 4º, "f", do Dec. nº 37.691/97; Art. 9º, IV, n, do Dec. nº 42.355/03.

35 Sudeste: (ES) art. 3º, item 3, do Dec. n.º 3.792/94; art. 2º do Dec. n.º 3.984/96; art. 2º, item 9, do Dec. n.º 3.408/92; (MG) art. 3º, II, da Lei n.º 13.414/99; art. 9º da Lei n.º 10.501/91; (RJ) art. 7º, §2º, da Lei n.º 3.329/99; art. 5º da Lei n.º 1.697/90 (redação dada pela Lei nº 2.422/1995); art. 1º, I, alíneas "b" e "c", da Lei n.º 1.160/87; Nordeste: (AL) art. 32, IX, da Lei n.º 6.447/04; (CE) art. 3º, XII, da Lei Complementar n.º 48/04; (PE) art. 2º, II, da Lei n.º 10.486/90; (RN) art. 4º, IV, da Lei n.º 6.972/97; (SE) art. 5º, VII, da Lei n.º 3.139/91; art. 4º, item 9, da Lei n.º 3.062/91; Norte: (AP) art. 6º da Lei n.º 0165/94 (redação dada pela Lei nº 0387/1997); art. 4º, §1º, I, alíneas "g" e "h", da Lei n.º 0501/99; art. 6º, VI, da Lei n.º 0687/02; (RO) art. 5º, V, da Lei n.º 917/00; (TO) art. 1º, VI, da Lei n.º 1.180/00. No plano legislativo federal, tem-se o disposto no Art. 5º, §1º, II, do DECRETO FEDERAL Nº 99.274/90.

36 Ingressou no Ministério Público em 1993.

37 Ingressou no Ministério Público em 1993.

38 Ingressou no Ministério Público em 1987.

39 Ingressou no Ministério Público em 1991 e, curiosamente, é Promotor de Justiça no Estado da Paraíba, sendo licenciado para outra função pública no Estado vizinho do Rio Grande do Norte. Tal licença demonstra a presença de interesses estratégicos do Ministério Público paraibano no Estado do Rio Grande do Norte, bem assim uma política diplomática de intercâmbio de qualificados recursos humanos e uma concepção nacional de unidade.

40 Ingressou no Ministério Público em 1982

41 Ingressou no Ministério Público em 1994.

42 Ingressou no Ministério Público em 1991.

43 Ingressou no Ministério Público em 1980.

44 Reitere-se a necessidade de a Instituição monitorar todo e qualquer agente ministerial em espaço externo, no sentido de assegurar que sua presença não constitua suporte para "blindagem" dos administradores públicos frente à atividade fiscalizadora do Parquet, o que há de ser apreciado pelo órgão responsável pela licença e, sobretudo, pelo órgão competente por sua manutenção. Não se trata de alimentar viés corporativo, mas apenas de evitar que membros do Ministério Público, no cenário externo, desvirtuando-se das elevadas e impessoais finalidades institucionais, possam pretender alçar carreira política autônoma às custas do oferecimento de proteção extraordinária aos administradores públicos. É claro que não é esse o caso do Município de São Paulo, pela tradição moral e pela postura ética da autoridade ministerial que veio a ocupar as funções de Secretário de Negócios Jurídicos, mas é imperioso registrar que os espaços municipais se prestam, via de regra, às tensões mais freqüentes com o Ministério Público, que é uma Instituição estadual a manter litígios jurídicos com as entidades municipais, no controle da gestão pública nas mais variadas áreas, v.g., urbanismo, meio ambiente natural, probidade administrativa, saúde pública, educação, etc. O problema central, pois, parece residir no fato de que as licenças transformaram-se em puros direitos individuais, líquidos e certos, das autoridades licenciadas, quando há uma combinação mais rica de elementos. De um lado, existem pretensões legítimas, que não podem ser obstaculizadas com desvio de poder pelo Conselho Superior, por motivações puramente políticas ou ideológicas. De outro lado, há a exigência de que a licença seja fundamentada, transparentemente, de modo a ensejar proteção às finalidades institucionais do Ministério Público, e não apenas aos interesses subjetivos da autoridade cuja licença está sendo apreciada.

45 Veja-se previsão normativa acerca do afastamento para exercício de atividade político-partidária: Art. 113, II, alínea "e", da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989 (e, como este, há muitos outros diplomas estaduais com igual previsão, Brasil afora); art. 204, IV, da Lei Complementar n.º 75/93, aplicável a todos os Ministérios Públicos; Art. 4ºA, V, da Lei n.º 6.536/73 (Estatuto do Ministério Público gaúcho; igualmente, há outros diplomas semelhantes nos Estados federados). Outrossim, note-se a atual posição do STF acerca da possibilidade de afastamento de agente ministerial para concorrer a cargo eletivo, em especial, a posição exarada pelo Min. Maurício Corrêa, verbis: "(...) Sustenta a requerente que a filiação partidária, ressalvadas as proibições pertinentes aos membros do Parquet, configura atividade político-partidária vedada pela letra e do inciso II do artigo 128 da Carta Política. Por essa razão, o exercício ou a disputa por cargos públicos eletivos deve ser precedida de licença. Este tema também já foi amplamente debatido no âmbito desta Corte, que adotou exegese segundo a qual a atividade política dos membros do Ministério Público, aí incluída a filiação partidária, somente poderá ocorrer com o seu afastamento, mediante licença. Visa-se, com isso, assegurar isenção, autonomia e independência do Parquet no desempenho de suas funções institucionais. Em outras palavras, não é proibido o exercício de atividades político-partidárias pelos promotores e procuradores, desde que o façam na condição de licenciados na forma que a lei dispuser. (...). Desse modo, merece deferimento o pedido sucessivo do requerente acerca do tema, para emprestar aos textos impugnados interpretação conforme a Constituição Federal, sem redução de texto, de sorte que tanto a filiação partidária de membro do Parquet, a que alude o inciso V do artigo 111, quanto a disputa ou o exercício de cargos públicos eletivos, prevista no inciso I do artigo 142, ambos os dispositivos da Lei Complementar 34/94, devem ser precedidas do afastamento das funções institucionais, mediante licenciamento, na forma da lei." (p. 322 e 323 dos autos da ADI n° 2.534-MC/MG, DJ de 13.06.2003, p. 08)." Nesse sentido, vejam-se as seguintes decisões: ADI n° 1.377/DF, Min. Octávio Galloti, julgado em 03.06.1998; ADI n° 2.084/SP, Min. ILMAR GALVÃO, DJ de 14.09.2001, p. 49.

46 Pode haver militância político-partidária sem candidatura a cargo eletivo, o que, pelo novo texto constitucional, também poderia estar proibido. A atividade político-partidária, no entanto, é mais ampla e pressupõe a possibilidade de candidatura a cargos eletivos, alvo central da incompatibilidade criada por Emenda Constitucional.

47 Assim enuncia o Art. 29 do ADCT: "Enquanto não aprovadas as leis complementares relativas ao Ministério Público e à Advocacia-Geral da União, o Ministério Público Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, as Procuradorias e Departamentos Jurídicos de autarquias federais com representação própria e os membros das Procuradorias das Universidades fundacionais públicas continuarão a exercer suas atividades na área das respectivas atribuições. (...) § 3º - Poderá optar pelo regime anterior, no que respeita às garantias e vantagens, o membro do Ministério Público admitido antes da promulgação da Constituição, observando-se, quanto às vedações, a situação jurídica na data desta."

48 Confira-se a ADI 2836/RJ, rel. Min. Eros Grau, 17.11.2005. (ADI-2836).

49 Art. 111, IV, da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul; art. 129, VII, da Constituição Federal; art. 3º da Lei Complementar nº 75/93. Repare-se que justamente aqueles que se opõem ao controle externo da polícia judiciária pelo Ministério Público costumam situar óbices à ocupação desses espaços pelos agentes ministeriais. Isso, porque a autoridade ministerial investida das funções de secretário da segurança é um agente facilitador de um controle externo saudável e produtivo. De outra banda, é verdade que os agentes ministeriais radicais, que enxergam no controle externo instrumento de subversão da hierarquia e dos valores internos da polícia, percebem na presença de outra autoridade ministerial no Poder Executivo eventual obstáculo à consumação de abusos dos controladores. De qualquer sorte, é louvável perceber a importância de o Ministério Público poder ocupar espaços estratégicos na esfera de suas áreas de atuação, desde que submetido a controles públicos e transparentes.

50 Art. 111, II, da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul; arts. 67 e 68, da Lei nº 7.210/84.

51Arts. 1º, I, e 5º, da Lei nº 7.347/85; art. 5º, III, "d", da Lei Complementar nº 75/93; art. 129, III, da Constituição Federal.

52 Art. 201 da Lei nº 8.069; art. 5º, III, da Lei Complementar nº75/93.

53 Arts. 1º, II, e 5º, da Lei nº 7.347/85; art. 81, I, da Lei nº 8.078/90.

54 A competência de revisão dos próprios atos administrativos, de parte do Ministério Público, especialmente das licenças concedidas a seus membros para desempenho de outras funções públicas, desde que compatíveis com as finalidades institucionais, decorre de um sólido conjunto de dispositivos legais: Art. 52, VIII, da Lei nº 8.625/93; art. 57, XI, "a", e XIX, da Lei Complementar nº 75/93.

55 Funções incompatíveis poderiam ser, a título de exemplo, aquelas atinentes a Secretarias de Estado ou Ministérios mais distantes das finalidades institucionais, tais como Turismo, Cultura, Transportes, Desporto, etc. No tocante às funções públicas municipais, há que se ter uma visão mais restritiva, por tratar-se o Ministério Público de um órgão federal ou estadual. Assim, somente grandes Municípios talvez comportassem a presença de agentes ministeriais em funções estratégicas. Outro detalhe a ser levado em consideração, já o dissemos, diz respeito à potencialidade de atritos do membro licenciado com a Instituição de origem. Se essa potencialidade for muito alta, talvez não seja recomendável a licença, matéria de competência do Conselho Superior e do Procurador-Geral. As grandes Capitais poderiam admitir a presença de agente ministerial em funções estratégicas, mas a matéria poderia ser controvertida, até mesmo porque os Municípios, em geral, apresentam enormes áreas de atritos em potencial com os agentes do Ministério Público. Essa lacuna é que há de ser suprida por uma disciplina legal federal, ainda que haja espaço para detalhamentos legais estaduais e para a inarredável discricionariedade administrativa do órgão ministerial competente.

56 Relembre-se que talvez não fosse conveniente permitir o afastamento de agentes ministeriais para ocupação de funções de secretários municipais, salvo nas grandes capitais dos Estados, ou para ocupação de espaços polêmicos, estranhos às atribuições do Ministério Público ou a elas demasiado próximas em termos de potencial atrito. Seria recomendável uma pesquisa de campo antes de eventual regulamentação administrativa dessa matéria, para diagnosticar a realidade brasileira, o que, no entanto, pende de providências a serem adotadas pelos órgãos próprios, tais como os próprios Conselhos de Procuradores-Gerais ou de Corregedores-Gerais, sem falar nas associações nacionais de classe. Infelizmente, tem havido lamentável omissão nesse terreno, que poderá e deverá ser suprida pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

57 A independência funcional dos agentes do Ministério Público brasileiro é um fato social, político e jurídico inquebrantável. Iniciativas que visem inibi-la estarão sempre sob o crivo crítico da sociedade, dos órgãos institucionais e classistas do Ministério Público.

58 Veja-se o contexto de horizontes difíceis, complexos e problemáticos descrito por MACEDO JÚNIOR (1999) e repare-se na importância do fortalecimento de canais abertos de diálogo do Ministério Público com a sociedade. Para tanto, a instituição necessita de suas principais lideranças ativas e valorizadas, sob pena de correr riscos de perder recursos humanos para a política ou para a iniciativa privada. A verdade é que algumas perdas são necessárias, outras parecem inevitáveis. Se alguns membros do Ministério Público enveredam pela via política, optando, até mesmo, pelo desligamento de sua instituição, sempre haverá a possibilidade de contato com tal pessoa, em face das raízes ministeriais, com proveito político ao próprio Ministério Público. Se houver migração para a iniciativa privada, outra hipótese que se tornará cada vez mais comum no futuro, diante das reformas estruturais no setor público, cuida-se de uma perda inevitável, que pode ser aproveitada e metabolizada pela instituição, no aprendizado contínuo da vida político-institucional. A perda de "cérebros" para a iniciativa privada ocorre independentemente da ida para o exercício de outras funções públicas. Grandes escritórios de advocacia, empresas, conglomerados financeiros, estão cada vez mais atentos à realidade das instituições, onde resulta possível buscar novos talentos, competindo com os baixos salários do setor público. Essa realidade não é privativa do cenário nacional, porquanto espelha uma situação mundial. O poderio econômico da iniciativa privada, aliado ao horizonte de liberdades e desafios, sempre será um fator de desequilíbrio na captação de talentos no setor público ou em caráter preliminar aos concursos. A única maneira de reduzir tais riscos – é impossível eliminá-los -, passa pelo fortalecimento de um sólido sistema de incentivos no setor público, com meritocracia e valorização adequada dos recursos humanos diferenciados, substituindo a miopia e o espírito mesquinho predominantes nos modelos defasados vigentes.


Autor

  • Fábio Medina Osório

    Fábio Medina Osório

    Advogado Geral da União. Advogado. Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e nos cursos de pós-graduação da Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (RS). Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid, pela Capes. Mestre em Direito Público pela UFRGS. Ex-membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

    é vice-presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE), membro do Grupo Nacional Anticorrupção da Transparência Brasil.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDINA OSÓRIO, Fábio. Exercício de outra função pública por membro do Ministério Público: incompatibilidade ou prerrogativa constitucional?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 945, 3 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7909. Acesso em: 7 maio 2024.