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Seletividade na lei de drogas, encarceramento de massas e controle social

Seletividade na lei de drogas, encarceramento de massas e controle social

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A política criminal de drogas no Brasil e no mundo sempre foi um grande problema para a sociedade e o Estado.

1 INTRODUÇÃO

 Muito embora a política de criminalização das drogas tenha se dado de forma gradual no ordenamento jurídico brasileiro, desenvolvida com o suporte de discursos que a legitimavam, transmitidos e incorporados pelo senso comum à população, principalmente com o argumento de que se tratava de uma questão de saúde pública, nenhuma medida efetiva foi adotada para auxiliar os usuários que, por longo período, receberam do ordenamento jurídico o mesmo tratamento dispensado aos traficantes. Esse cenário somente começou a mudar com o advento da Lei nº 11.343/2006 – Lei de Drogas, que adotou uma tendência abolicionista no tocante aos usuários.
No Brasil observou-se o total implemento dos Tratados Internacionais, em sua maioria propostos pelos Estados Unidos, e na década de 1940 deu-se iniciou a uma proibição sistematizada, e os usuários deixaram de ser identificados como imorais, devassos, a dependentes, como nos dias atuais.
Contudo, a Lei nº 11.343/2006 trouxe algumas notáveis alterações na legislação penal pertinente ao usuário de droga, dentre elas a proibição de encarceramento, embora tenha o legislador mantido a proibição do uso, restringindo a punição às penas restritivas de direito e multa.
Não bastasse isso, o legislador não estabeleceu critérios objetivos para a distinção entre usuário e traficante, o que, na prática, fomenta a discricionariedade e a discriminação, ressaltando a seletividade do aparato penal, já que o número de pessoas presas por envolvimento com tráfico de drogas é assustador, ficando atrás apenas dos aprisionados pelo crime de roubo.
É nesse contexto que se situa o presente estudo, que tem por objetivo averiguar a problemática da criminalização primária e secundária e, consequentemente, os reflexos da seletividade penal na Lei nº 11.343/2006, que contribui para o encarceramento de massas e o implemento do controle social.

Destarte, adota-se, para a elaboração do presente estudo, o método de abordagem dedutivo e, quanto ao método de procedimento, o descritivo, pautando-se a pesquisa no levantamento bibliográfico e documental, pois se busca na doutrina, legislação, artigos, dentre outras fontes, elementos para a compreensão do tema.

2 DESENVOLVIMENTO

A política criminal de drogas no Brasil e no mundo sempre foi um grande problema para a sociedade e o Estado. Cada dia é mais frequente o uso de entorpecentes por crianças, adolescentes, jovens, adultos, enfim, por todos os seres humanos e em todas as classes sociais que, por algum motivo, recorrem a essas substâncias.
Nesse cenário é que o Estado foi caminhando gradativamente na criminalização das condutas relacionadas ao uso de drogas, adotando políticas proibicionistas. Porém, com o passar dos tempos, constatou-se a necessidade de dispensar ao usuário um tratamento diverso daquele conferido ao traficante, o que se concretizou, no Brasil, no ano de 2006, pelo menos a nível teórico, com o advento da Lei nº 11.343/2006.

Apesar da determinação legal, o que se percebe é o grande número de pessoas recolhidas à prisão por tráfico de drogas, e a consequente ineficácia das medidas voltadas ao usuário, que não deve, por determinação legal, ser apenado, mas sim receber tratamento do Estado. De fato, o legislador não se preocupou em estabelecer critérios claros e objetivos para distinguir a figura do traficante da do usuário. Assim, é comum que usuários sejam processados e condenados pela prática do crime de tráfico de drogas, refletindo a seletividade do aparato penal.

A seletividade punitiva, ou seja, o modo como a punição do Estado efetivamente pune os crimes, ocorre de modo distinto dependendo de quem é o autor da conduta. Seletividade punitiva não é um tema latente no cotidiano das pessoas, o que acaba conduzindo a uma visão deturpada da realidade. Contudo, ao observar a população carcerária (através de um programa de televisão, jornal, revista, filme, dentre outros meios de comunicação de massa), a conclusão a que se chega é que os infratores, quase sempre (ou sempre), pertencem a camadas sociais “inferiores”. Essa é a mensagem que o sistema penal transmite diuturnamente, e a questão não é recente, pois Carvalho (2006, p. 35), em meados da década passada, já apontava que mais de 90% da população carcerária brasileira era constituída por homens pobres, sendo que destes, aproximadamente 60% eram negros ou mulatos, 55% contavam com menos de 30 anos de idade e a quase totalidade possuía baixa escolaridade, sem ignorar, claro, a parcela da população carcerária que era analfabeta.

Dados mais recentes, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em agosto de 2018, apontam que 95% da população carcerária são homens e apenas 5% mulheres; 30% dos presos tem entre 18 e 24 anos de idade; e, o mais assustador, é quanto ao tipo de delito que conduziu a grande maioria das pessoas à prisão, pois 27% estão presos pelo crime de roubo, enquanto 24% da população carcerária, ou seja, quase 1/4, estão recolhidos à prisão pela prática do tráfico de drogas, incluindo presos provisórios e definitivos (JUSTIFICANDO, 2018).

Ao analisar estes dados é fácil perceber que há um padrão definido de criminoso no Brasil. Mas será que realmente é este o padrão de criminoso brasileiro ou estes dados apenas refletem quem realmente está propenso a ser punido pelo sistema penal? Esta indagação também não é recente. Segundo Andrade (1997, p. 270), a “[...] clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque têm maiores chances para delinquir, mais precisamente porque têm maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes”.

Para entender a problemática da punição estatal, é importante compreender como vem sendo definido o que é o Direito Penal. Desde a construção da definição do que é o sistema há necessidade de perpetuar conceitos que legitimem a atuação do poder de punir do Estado. Depois de entender o conceito de Direito Penal, é possível analisar seu papel social e como age influenciado, e influenciando, pela ideologia dominante, “[...] não em sua concepção de projeto político, mas na sua acepção de falsa consciência, ocultadora da realidade” (CASTRO, 2005, p. 49).
É o Direito Penal, conforme afirma Miguel Reale (2002, p. 346-347), instituído para “entrar em cena” quando as regras jurídicas são violadas, ou melhor, quando as infrações se revestem de “gravidade, por atentar valores considerados necessários à ordem social, provoca uma reação por parte do Poder Público, que prevê sanções penais aos transgressores”. Portanto, é imposto pelo Estado, servindo para determinadas finalidades, a exemplo da preservação da ordem social. Logo, tem por objetivo punir os indivíduos, teoricamente todos, que causam certo dano a esta dita ordem social, por atentar contra valores considerados necessários, supostamente a toda sociedade. Este discurso é amplamente difundido pela ideologia dominante, que engloba também a ideologia penal, para dar conforto àqueles que vivem harmonicamente em sociedade.

De fato, a ideologia penal dominante sustenta que o Direito Penal tem a missão de controlar a criminalidade, a fim de evitar que o caos impere. Mas como bem lembra Queiroz (2016, p. 15), “[...] não se deve confundir controle da criminalidade com controle penal, em face das múltiplas possibilidades de política social utilizáveis pelo Estado para a prevenção e controle da desviação”. Percebe-se claramente que o Direito Penal passa então a se valer do mecanismo repressivo (polícia, prisão, por exemplo) para combater a criminalidade, esquecendo-se dos inúmeros métodos preventivos (educação e acesso à justiça, por exemplo).

Também Castro (2005, p. 89) tece críticas à questão, ao destacar que a “política criminal deveria ser apenas uma parte da política social; e a política penal a ultima ratio, ao contrário do que ocorre atualmente”. Não obstante, a ideologia dominante prega que, para conter a criminalidade, é preciso construir mais cadeias, punir com mais rigor ou aumentar as possibilidades de penas. O encarceramento em massa, portanto, se torna uma consequência das medidas adotadas pelo Estado.

Ao punir alguém o sistema penal aplica a lógica da punição determinada pela ideologia dominante, pondo em prática as funções reais do sistema penal. O legislador, ao editar uma lei que cria um crime, já direciona sobre quem recairá determinada conduta. É o processo de criminalização seletiva, que inclusive integra as funções não declaradas do Direito Penal, onde idênticas “[...] características, apresentadas como negativas ao se ligarem a um criminoso, ganharão sentido positivo se tiverem vinculadas a uma pessoa prestigiada pela ordem vigente” (THOMPSON, 1998, p.129). Não há como sustentar então que o sistema serve para proteger e punir a todos. O sistema é sim, seletivo.

Ocorre que não basta que o sistema tenha um discurso ideológico, mesmo que não sirva para proteger todos ou para cumprir as funções de recuperar. É preciso selecionar as pessoas que serão punidas, para provar que o sistema está cumprindo o seu papel social. Para ocorrer à seleção das condutas, ou pessoas na verdade, é preciso operar um elaborado processo de seleção. E esse processo de seleção de pessoas é o método pelo qual se escolhe quem efetivamente será punido por cometer crime, quem efetivamente vai ser taxado como criminoso. Bissoli (1998, p. 180) enfatiza que a seleção acontece devido à impossibilidade de prever todos os possíveis crimes, assim como também é impossível punir todas as pessoas que cometem crime. Por isso, mesmo que o processo de criminalização devesse tratar igualmente todas as pessoas e interesses não é isso que ocorre, ele é desigual e seletivo. Sabendo “[...] que o crime não é ontológico, e sim construção cultural da própria sociedade que visa regular determinadas condutas, existirão então criminalizações [...]” (NEPOMOCEMO, 2014, p. 55), surgindo assim os conceitos de criminalização primária e secundária.

Segundo Zaffaroni et al. (2013, p. 43), a criminalização primária consiste em “[...] sancionar uma lei penal que define o crime (define a conduta) e permite a criminalização de determinadas pessoas, em geral quem cria a lei é o legislativo e o executivo”. Para o ordenamento jurídico brasileiro, a criminalização primária está atrelada ao princípio da legalidade, consagrado no inciso XXXIX, do art. 5º da Constituição de 1988, ao preconizar que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988).
Como destaca Nepomuceno (2014, p. 55-56), os agentes que definem a criminalização primária nem sempre vai conseguir representar a vontade de todos, pois tem sua composição oriunda de determinada camada social, com certa formação ideológica, cultural, religiosa e moral. Um exemplo disso é que os crimes que estas pessoas estão mais propensas a cometer serão tratados de formas distintas e por vezes tratados como normais, no mínimo de forma mais branda. Não é o que ocorre, por exemplo, com as drogas, seja em relação ao traficante, seja em relação ao usuário. Os legisladores tratam tais delitos como “longe da sua realidade”.

Ainda, tem-se a criminalização secundária. Neste estágio o processo de seleção começa a ser concretizado, pois “[...] a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado” (ZAFFARONI et al., 2013, p. 43). Mais uma vez os usuários e traficantes se destacam, principalmente porque a polícia é um dos principais atores da seleção secundária.
Percebe-se, do até aqui exposto, que a seletividade do aparato penal é algo complexo e que exige atenção especial do estudioso do Direito. E trazendo os conceitos gerais para a política de drogas, como enfatiza Rodrigues (2018, p. 01), percebe-se a criminalização secundária é a legitimação da criminalização primária, claramente sentida a Lei de Drogas vigente, mormente quanto ao tratamento dispensado ao usuário, cujos critérios não são claros e objetivos, ou seja, não se preocupou o legislador em estabelecer quem é o usuário e quem é o traficante, fomentando assim a discricionariedade e a discriminação.

Ainda segundo Rodrigues (2018, p. 01), há estudos que demonstram a seletividade penal, na Lei de Drogas, no que tange a forma de abordagem e o perfil dos presos no Brasil:
Uma pesquisa² realizada pelo DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional – trazendo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN, de 2014, demonstrou que a população no brasil nesse ano já alcançava o número total de 607.731 presos. Uma população privada de liberdade que coloca o Brasil na 4º posição entre os 20 países com maior número de presos no mundo. Pela primeira vez, o número de presos no país ultrapassou a marca de 600 mil.

Dados dessa pesquisa demonstram que 31% dos presidiários estão dentro da faixa etária de 18 a 24 anos; 67% dos presos são da cor negra, ou seja, em cada 03 pessoas presas, 02 são negros. E também, resta clara, por meio da pesquisa, que 53% dos presos não completaram nem mesmo o ensino fundamental. Corroboram com dados expostos no início deste estudo.
Ainda, o tráfico foi considerado, através desse relatório da DEPEN, o crime que mais condena no Brasil, totalizando 55.920 presos por tráfico, 7.655 por associação ao tráfico, e 2.738 por tráfico internacional de drogas. O detalhe que confirma a seletividade penal na Lei 11.343/06 é que negros e pardos correspondem a 60% dos presos por tráfico.
Resta evidente, portanto, que a política criminal de drogas, no ordenamento jurídico brasileiro, é sim seletiva e contribui para o encarceramento de massas e o controle social. A quase totalidade dos aprisionados pela prática dos delitos consagrados na Lei de Drogas são pobres, de baixa escolaridade, cor predominantemente negra. Infelizmente, rotula-se o traficante e o usuário, e as políticas de droga se voltam, automaticamente, ao sancionamento destes indivíduos.

3 CONCLUSÃO

Buscou-se, nesse breve estudo, expor a problemática da seletividade penal na Lei de Drogas, e as medidas que se voltam ao encarceramento de massa e ao controle social.

Constatou-se, sem a pretensão de esgotar o tema, que a seletividade do aparato penal na política de drogas adotada no Brasil é clara, e reflete um Direito preconceituoso. Este acaba por rotular indivíduos, estabelecendo uma imagem de forma equivocada, com o etiquetamento de determina classe social, o que, na prática, acaba corroborando para a ineficácia das políticas criminais.
Não bastasse isso, e considerando que quase 1/4 a população carcerária brasileira é composta por traficantes de droga, evidencia-se o encarceramento de massa e a seletividade penal, o que alcança também o usuário.

Contudo, não se pode aceitar, em um Estado Democrático de Direito, que o usuário seja vítima de “rótulos”, não recebendo do Poder Público tratamento adequado, e muito menos que seja a ele dispensado tratamento semelhante ao do traficante, o que reflete a ineficácia estatal. Destarte, espera-se uma mudança de política criminal, de modo a afastar o caráter seletivo que prevalece na atualidade.

REFERÊNCIAS


ANDRADE, Vera. A ilusão de segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998.
CARVALHO, Thiago Fabres de. O “direito penal do inimigo” e o “direito penal do homo sacer: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro, 2006. Disponível em: <http://www.ihj.org.br/pdfs/Artigo_Thiago_Fabres.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019.
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005.
CNJ divulga os mais recentes dados sobre a população carcerária do Brasil. Justificando, 08 ago. 2018. Disponível em: < http://www.justificando.com/2018/08/08/cnj-divulga-os-mais-recentes-dados-sobre-a-populacao-carceraria-no-brasil/>. Acesso em: 10 set. 2019.
NEPOMOCEMO, Alessandro. Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustado ao novo código civil, São Paulo: Saraiva, 2002.
RODRIGUES, Marcelo Matte. A seletividade no direito penal e a Lei de Drogas (lei 11.343/06) no Brasil. JusNavegandi, jun. 2018. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/66940/a-seletividade-no-direito-penal-e-a-lei-de-drogas-lei-11-343-06-no-brasil/3>. Acesso em: 10 set. 2019.
THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2013.



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