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O processo constitucional português e a atuação do Ministério Público

O processo constitucional português e a atuação do Ministério Público

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O Estado português, conquanto mantenha-se fiel à tradição européia, conferindo a um órgão estranho à estrutura jurisdicional ordinária a competência precípua de aferir a compatibilidade de atos normativos com a Constituição, também prestigia o sistema de controle difuso, de origem norte-americana, permitindo a participação direta dos demais órgãos jurisdicionais nessa atividade. Diversamente dos sistemas alemão e italiano, em que os tribunais limitam-se a receber o incidente e a encaminhá-lo ao Tribunal Constitucional, em Portugal o controle é realizado diretamente pelos tribunais.

O modelo atual é fruto de uma lenta evolução histórica, que pode ser subdividida em três períodos: 1º) controle puramente político (Constituições monárquicas de 1822, 1826 e 1838); 2º) predomínio do controle judicial difuso, com elementos do controle político (Constituições de 1911 e 1933 e leis constitucionais revolucionárias de 1974 e 1975); e 3º) predomínio do controle judicial concentrado, mas integrado com o controle difuso, sendo que, entre 1976 e 1986, é adotado um complexo sistema misto, contemplando-se igualmente o controle político (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, 2001, p. 123).

O Tribunal Constitucional é composto de treze juízes, que elegerão seu Presidente, sendo dez designados pela Assembléia da República e três cooptados por estes, acrescendo-se que, desse total, seis são obrigatoriamente escolhidos entre juízes dos demais tribunais (art. 222, 1, 2 e 4, da Constituição de 1976). O mandato dos juízes tem a duração de nove anos, a exemplo do sistema espanhol, e não é renovável (art. 222, 3, da Constituição). Os juízes do Tribunal Constitucional têm direito a passaporte diplomático (art. 33 da Lei nº 28/1982) e o Presidente é membro do Conselho de Estado, órgão político de consulta do Presidente da República (arts. 141 e 142, c, da Constituição). O Tribunal, a partir da Revisão Constitucional de 1997, está autorizado a funcionar em seções, "salvo para efeito da fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade", sendo cabível recurso para o pleno "das decisões contraditórias das secções no domínio de aplicação da mesma norma" (art. 224, 2 e 3, da Constituição).

A organização, o funcionamento e o processo do Tribunal Constitucional enquadram-se na reserva absoluta de competência legislativa da Assembléia da República, exigindo a edição de lei de procedimento reforçado (lei orgânica), enquanto os tribunais em geral enquadram-se na reserva relativa de competência, admitindo seja a matéria delegada ao Governo (arts. 164, c e 166, 2 da Constituição). Além de responsável pela administração da justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, o Tribunal ainda detém um considerável rol de competências, que variam desde o julgamento, em última instância, da regularidade e da validade dos atos do processo eleitoral, à apreciação, a requerimento dos legitimados (art. 91-A, 2, da Lei nº 28/1982), dos recursos relativos à perda do mandato de Deputado (arts. 221 e 223 da Constituição). A exemplo dos similares alemão e espanhol, mas diversamente do italiano, o Tribunal Constitucional português pode ter suas competências elastecidas pela lei, o que efetivamente ocorreu com a edição da Lei nº 28/1982 e suas posteriores alterações.

O modelo português de controle de constitucionalidade é extremamente versátil: projeta-se nos planos preventivo e repressivo, alcança tanto os atos comissivos como os omissivos e contempla um rol relativamente amplo de legitimados à propositura das ações. Se não há maior controvérsia quanto à possibilidade de controle das normas jurídico-públicas, o mesmo não pode ser dito em relação às resultantes da autonomia privada (v.g.: Convenções Coletivas de Trabalho), sendo divisada uma nítida tendência de excluir as últimas desse controle (Carlos Blanco de Moraes, Justiça Constitucional, Tomo I, 2002, p. 436 e ss.). Nos processos de fiscalização abstrata, somente é admitida a desistência do pedido em se tratando de fiscalização preventiva (art. 53 da Lei nº 28/1982).

A fiscalização abstrata preventiva de constitucionalidade pode ser iniciada: a) pelo Presidente da República, em relação a tratado internacional, acordo internacional ou decreto encaminhado para promulgação como lei ou decreto-lei; b) pelos Ministros da República, quanto a determinados decretos regionais que devem assinar; e c) pelo Presidente da República, pelo Primeiro-Ministro ou por um quinto dos Deputados da Assembléia da República, em relação a qualquer norma constante de decreto que tenha sido encaminhada ao Presidente da República para promulgação como lei orgânica (art. 278 da Constituição). O Tribunal Constitucional deve pronunciar-se no prazo de vinte e cinco dias, o qual, na primeira hipótese, pode ser reduzido pelo Presidente da República por motivo de urgência. Decidindo pela inconstitucionalidade, o diploma deve ser vetado, salvo se for expurgada a norma inconstitucional ou confirmada pela maioria de dois terços dos Deputados presentes. Reformulado o diploma, a sua constitucionalidade pode ser reapreciada (art. 279 da Constituição). Ainda que o decreto, o tratado ou o acordo internacional seja promulgado, o Tribunal pode voltar a considerá-lo inconstitucional, desta feita sem a possibilidade de que sua decisão seja superada (Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2002, p. 1022). Apesar de não serem atos normativos, a constitucionalidade e a legalidade dos referendos nacionais, regionais e locais estão sujeitas ao controle prévio do Tribunal (art. 223, 2, f, da Constituição).

A fiscalização abstrata sucessiva de constitucionalidade (e de legalidade) pode ser deflagrada por inúmeros legitimados, dentre eles o Provedor de Justiça e o Procurador-Geral da República. Note-se que a legitimidade somente foi outorgada às entidades públicas, excluindo-se a iniciativa privada, inclusive por meio de associações (Jorge Barcelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, vol. II, 2005, p. 1365). A decisão proferida terá força obrigatória geral não só nesse caso como também na hipótese de a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma ter sido reconhecida em três casos concretos (art. 281 da Constituição). Ressalvada a existência de deliberação em contrário do Tribunal, as decisões terão efeito ex tunc, ocorrendo a repristinação das normas eventualmente revogadas (art. 281, 1 e 4, da Constituição). Tratando-se de inconstitucionalidade ou ilegalidade superveniente, os efeitos somente retroagirão à data da entrada em vigor do paradigma de confronto (art. 281, 2, da Constituição). A coisa julgada será observada, mas pode ser mitigada pelo Tribunal nos casos em que "a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido" (art. 282, 3, da Constituição).

O sistema português, fonte de inspiração do Constituinte brasileiro, ainda contempla a aferição da inconstitucionalidade por omissão, processo deflagrado a partir de requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou, no caso de violação de direitos das regiões autônomas, dos Presidentes das Assembléias Legislativas Regionais. Constatando a inconstitucionalidade por omissão, o Tribunal apenas dará conhecimento ao órgão legislativo competente (art. 283 da Constituição), o que já é indicativo da pouca utilidade desse instrumento. Vale mencionar que nos vinte e cinco anos que se seguiram à Constituição de 1976, somente em quatro casos (três deles anteriores a 1982) os órgãos de fiscalização deram por verificada a inconstitucionalidade por omissão, sendo que, de 1995 a 2001, nenhuma decisão foi proferida (Jorge Pereira da Silva, Dever de Legislar e Protecção Jurisdicional contra Omissões Legislativas, 2003, p. 156).

A fiscalização concreta de constitucionalidade (e de legalidade) a cargo do Tribunal é realizada em sede recursal, após o esgotamento das instâncias ordinárias (art. 70 da Lei nº 28/1982), sendo cabível sempre que for divisada a não aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou a aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada pelas partes ou pelo Ministério Público (Canotilho, op. cit., p. 896). Constando a norma de convenção internacional, de ato legislativo ou de decreto regulamentar, o recurso será obrigatório para o Ministério Público, o mesmo ocorrendo na hipótese de decisão que aplique norma já julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional (art. 280 da Constituição). O recurso será interposto perante o tribunal que houver proferido a decisão recorrida, cabendo a ele a realização do primeiro juízo de admissibilidade (art. 76, 1, da Lei nº 28/1982), sendo cabível reclamação contra o despacho que não o admita (art. 77, 1, da Lei nº 28/1982). Julgando o recurso em sentido divergente do anteriormente adotado quanto à mesma norma, por qualquer de suas seções, caberá recurso para o plenário do Tribunal, obrigatório para o Ministério Público quando intervir no processo como recorrente ou recorrido (art. 79-D, 1, da Lei nº 28/1982). A decisão do Tribunal Constitucional ficará adstrita à questão de constitucionalidade ou legalidade, devendo o processo retornar ao órgão a quo para que este reforme a decisão ou a mande reformar em conformidade com a posição do Tribunal, inclusive quanto à interpretação fixada (art. 80, 2 e 3, da Lei nº 28/1982).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. O processo constitucional português e a atuação do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1005, 2 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8189. Acesso em: 19 abr. 2024.