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Ampla defesa nas ações de reintegração de posse fundadas em leasing

Ampla defesa nas ações de reintegração de posse fundadas em leasing

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Segundo entendimento de alguns juristas, a ação de natureza possessória não admite discussão acerca de matéria outra que não seja correlatada à questão da posse. Assim, a alegação em sede de contestação, de matéria referente à validade de cláusulas contratuais, não pode ser apreciada em exame de mérito, pois extrapola os limites do que se poderia ter como matéria possessória.

A relevância deste tema volta-se para os inúmeros contratos de leasing de automóveis firmados entre consumidores e bancos credenciados, tipificados como contratos de adesão e que contêm uma infinidade de cláusulas leoninas, abusivas e imorais que permitem o desequilíbrio da relação de consumo, colocando o consumidor em situação de imensa desvantagem frente ao fornecedor do crédito.

Ao tornar-se inadimplente de uma obrigação advinda de uma operação leasing, ou seja, um arrendamento mercantil, o credor, por disposição contratual expressa, fica autorizado a reintegrar-se na posse do veículo, através da ação de reintegração de posse com pedido de liminar, mediante comprovação efetiva da mora.

Deferida a liminar e citado o réu para apresentar contestação, deve ao mesmo ser conferido direito de alegar em sua defesa qualquer matéria, inclusive a discussão de cláusulas contratuais consideradas abusivas.

Impedir este tipo de discussão é cercear o direito à ampla defesa do cidadão e negar vigência ao artigo 300 do Código de Processo Civil onde "compete ao réu alegar, na contestação, toda matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir".

Negar ao consumidor o direito de alegar a abusividade das cláusulas contratuais, a cobrança exorbitante de juros, a capitalização dos mesmos, entre outras inúmeras ilegalidades existentes nos contratos de arrendamento mercantil, é também negar o acesso à Justiça e o contido no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, pois "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

E não se alegue que pode o consumidor intentar a ação competente para discutir a abusividade das cláusulas contratuais, cerceando, assim, seu direito de discuti-las na possessória. Poder é uma faculdade, analisar o direito do cidadão é uma obrigação do magistrado.

Pois bem, sabe-se que o Direito é dinâmico e há de ser sempre inovado em adequação com os fatos sociais. O Direito tem que dar resposta aos fatos, ainda mais quando estes são de incomensurável relevância e essencial à segurança jurídica propiciada pelo Poder Judiciário na interpretação das leis.

Desse modo, o Superior Tribunal de Justiça protege e auxilia o consumidor no seu direito à ampla defesa. Com base nesse raciocínio jurídico, assim decidiu a 4ª Turma do STJ (*):

"Ementa: LEASING. Ação de reintegração de posse. Âmbito da defesa do réu. A ação de reintegração de posse é a via processual que a lei concede ao credor para o desfazimento do contrato de leasing pelo descumprimento do devedor.

A procedência da ação depende da existência da mora e de sua gravidade a ponto de justificar a extinção do contrato.

Tendo o devedor alegado que as prestações mensais estão sendo calculadas abusivamente, deve o juiz examinar essa defesa, pois a reintegratória é a via adequada para isso.

Recurso conhecido e provido em parte..

Para chegar a essas conclusões o Ministro Ruy Rosado de Aguiar , juntamente com os Ministros que integram a 4ª Turma do STJ, levaram em consideração as seguintes razões:

"...mora somente existe quando o atraso resultar de fato imputável ao devedor (art. 963 do Código Civil). Se a exigência do credor é abusiva, e portanto ilegítima, o devedor que não paga o que lhe está sendo indevidamente cobrado não incide em mora, pois pode reter o pagamento enquanto não lhe for dada quitação regular. O melhor comportamento do devedor é, em tal caso, promover a ação cabível para definir o valor exato do débito. Da sua omissão, porém, não resulta a perda ao direito de propor as questões sobre os valores devidos, sobre a validade das cláusulas contratuais referentes à sua prestação e sobre a regularidade na composição do débito mensal, o que pode ser feito não apenas em ação própria mas também quando da reintegratória promovida pelo arrendante, ação que corresponde à de resolução do contrato bilateral em geral, e que é a cena adequada para o debate dos temas que envolvem o exato cumprimento do contrato e o exame da legitimidade de suas cláusulas.

Deixando de examinar a alegada abusividade da avença, matéria de ordem pública a ser conhecida até de ofício pelo juiz, nos termos do artigo 51 do CDC, a eg. Câmara causou ofensa a tal dispositivo legal"

Como pode-se constatar o STJ, guardião da lei federal, entende ser a possessória momento hábil à discussão de toda e qualquer cláusula contratual que porventura venha ser considerada abusiva.

E não poderia ser diferente. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor ocorreu uma profunda modificação no ordenamento jurídico pátrio.

A aplicação das normas contidas no Código de Defesa do Consumidor devem ser aplicadas em perfeita consonância com as leis processuais vigentes no país. Assim, se o Código de Defesa do Consumidor possibilita ao devedor a discussão e anulação de toda e qualquer cláusula contratual abusiva, deve o juiz conhecer dessas alegações e possibilitar a discussão das cláusulas conforme determina o CDC, invertendo o ônus da prova quando cabível e dilatando a produção das provas requeridas no curso do processo.

Agir diferente é massacrar o consumidor, parte hipossuficiente na relação de consumo. Ora, se o credor pode dispor da reintegratória para reaver o bem objeto do leasing no menor espaço de tempo, o devedor poderá, contestando a ação, alegar tudo quanto achar conveniente, inclusive atacar as cláusulas leoninas e as condições contratuais expostas.

Cabe ao juiz manter o equilíbrio da relação processual, e esse equilíbrio só poderá ser mantido se o julgador estiver aberto a interpretações progressistas, que viabilizem a aplicação do sentido espiritual da norma para que seja concedida a Justiça.

A Justiça não é a lei. A Justiça é o direito provado, devidamente conjugado com fatos. Ao limitar, na contestação da possessória, a matéria a ser discutida, o réu nada poderá alegar em sua defesa, a não ser questão relativa à posse.

Ora, como analisar a questão da posse sem antes analisar as cláusulas e condições contratuais que permitiram ao consumidor o direito de possuir?

Tenho que, ao contestar a ação de reintegração de posse, o réu tanto pode quanto deve alegar toda matéria de defesa em prol de seu direito, requerendo a nulidade das cláusulas contratuais abusivas e a inversão do ônus da prova, tal qual lhe alberga o Código de Defesa do Consumidor.


NOTA

(*) Resp. nº 150.099/MG. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. Recorrente: redelto Construções Ltda. Recorrido: Nacional Leasing S/A Arrendamento Mercantil – unânime, DJ de 08.06.98.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Felipe Augusto Cortez Meira de. Ampla defesa nas ações de reintegração de posse fundadas em leasing. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/823. Acesso em: 19 abr. 2024.