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O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002

O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002

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SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A moderna principiologia contratual – 3. Distinção entre a boa-fé objetiva e a subjetiva – 4. Antecedentes históricos da boa-fé objetiva – 5. A positivação da boa-fé subjetiva no Brasil – 6. A positivação da boa-fé objetiva no Brasil – 7. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil – 8. A acolhida jurisprudencial sobre a boa-fé objetiva – 9. Conclusão – Bibliografia.


1. Introdução

Indubitavelmente, a concepção clássica do contrato está sepultada, não sendo mais aceitável a célebre afirmação de Jean Joseph Bugnet, em tom axiomático: "eu não conheço o direito civil; eu apenas ensino o Código de Napoleão", numa alusão idolatrada aos postulados clássicos do direito privado, passando pelo Code até o Corpus Iuris Civilis.

A ideologia do Estado Social, marcadamente intervencionista, cada dia mais tende a solapar a classificação quíntupla dos princípios contratuais clássicos (autonomia da vontade, supremacia da ordem pública, irretratabilidade das convenções, boa-fé e relatividade dos contratos), em face de sua aplicação reduzida, bastante restrita, à vista de que, na sociedade contemporânea (massificada e despersonalizada), a liberdade contratual, fundada no princípio clássico da autonomia da vontade, representa muito mais uma quimera do que uma realidade indiscutível, o que assim justifica a aplicação freqüentíssima do Código de Defesa do Consumidor nas relações hodiernas.

Ao contrato regido pelo Código Civil de 1916, na atual sociedade de consumo, resta um campo de incidência menor, muito mais reduzido, diante mesmo da velocidade de proliferação dos contratos de consumo, de variados matizes, envolvendo produtos e serviços, celebrados diuturnamente por milhões e milhões de pessoas, consumidores em potencial.

Não obstante, uma nova realidade contratual está a surgir, com o advento do novel Código.

Tão importante quanto o Código de Defesa do Consumidor (norma especial), que se destina a regular as relações de consumo, o novo Código Civil (norma geral) em breve (10 de janeiro de 2003) entrará em vigor, a fim de regular os contratos comuns civis e mercantis, assim o fazendo sob um novo enfoque, ou melhor, um enfoque civil-constitucional, objetivando atingir a função social do contrato, a boa-fé objetiva e a equidade contratual, harmonizando, a um só tempo, a autonomia privada e a solidariedade social.

Nesse sentido, pois, novos princípios passaram e passarão a reger a Teoria dos Contratos, sintonizados com o Texto Constitucional e, muito especialmente, inspirados e espelhados nos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa (artigo 1° inciso III e artigo 170 caput da Carta Magna, respectivamente), no desenrolar de um processo ou fenômeno já identificado como Direito Civil Constitucional ou Constitucionalização do Direito Civil, que, em sumário, significa a leitura do Direito Civil à luz da Constituição.


2. A moderna principiologia contratual

O modelo clássico de contrato, como sabido, atrelado à sua principiologia liberal e ainda em vigor no sistema jurídico pátrio (Código Civil de 1916), já não atende, de há muito, aos reclamos e aos anseios de uma sociedade plural e despersonalizada.

Atualmente, a criação de um sistema civil-constitucional, mediante a resistematização do Direito Civil em torno do Direito Constitucional, busca lançar as bases de um sistema jurídico mais aberto, através da adoção de cláusulas gerais espelhadas no Texto Constitucional, no sentido de melhor regular o contrato inserido numa sociedade pós-moderna, na qual as contratações ocorrem sob a forma massificada, veloz e quase que indispensável, com o contratante exercendo minimamente a sua autonomia da vontade, apesar de válida e eficaz a formação do contrato.

E um bom exemplo da abertura do sistema no ordenamento jurídico pátrio é o próprio Código de Defesa do Consumidor, no que se refere à adoção da cláusula geral abusiva epigrafada no artigo 51, IV do CDC, segundo o qual dispõe que são nulas de pleno direito as cláusulas que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a equidade", cláusula esta que representa um norte e um paradigma para o aplicador do direito, pois se acha em consonância como os valores consagrados pela Constituição, em busca de tão almejada Justiça Contratual.

Nesse sentido, uma nova ordem contratual está a nascer, e que, segundo atualíssima doutrina, fincada se acha em princípios sociais, em número de três, a saber: princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da equivalência ou equidade, os quais, diga-se de passagem, não eliminaram os princípios clássicos do contrato (já referidos), mas limitaram, radicalmente, o seu alcance dogmático.

Em apertada síntese, pois, a novel principiologia contratual tem por escopo teleológico alcançar a Justiça Contratual, que é uma espécie de Justiça Comutativa, segundo magistério de Fernando Noronha [01], ao observar que "a justiça contratual será, portanto, uma modalidade de justiça comutativa. Se a justiça costuma ser representada pela balança de braços equilibrados, a justiça contratual traduz precisamente a idéia de equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes contrapostas numa relação contratual".

Inserido assim na seara da Justiça Contratual, destaca-se, com realce, o princípio da boa-fé objetiva, objeto deste estudo.


3. Distinção entre a boa-fé objetiva e a subjetiva

À luz da doutrina, há marcante diferença entre a boa-fé objetiva e a subjetiva.

No que concerne à boa-fé subjetiva, também denominada boa-fé crença, sua concepção se acha ligada ao voluntarismo e ao individualismo que informam o Código Civil de 1916, podendo ser definida como um estado psicológico contraposto à má-fé, em que há ausência de má-fé, fundada em um erro de fato, ou melhor, em um estado de ignorância escusável. É traduzida como um estado íntimo, de crença, um estado de ignorância de uma pessoa que se julga titular de um direito, mas que, em verdade, é titular exclusivamente de seu juízo e imaginação.

Nesse diapasão, assim a conceitua Alinne Arquette Leite Novais [02]: "A boa-fé subjetiva corresponde ao estado psicológico da pessoa, à sua intenção, ao seu convencimento de estar agindo de forma a não prejudicar outrem na relação jurídica."

Já a boa-fé objetiva, também denominada boa-fé lealdade, significa o dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura e honestidade. Trata-se de uma regra de conduta, a ser seguida pelo contratante, pautada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses legítimos e expectativas razoáveis do outro contratante, visto como um membro do conjunto social.

Para bem aclarar a distinção entre ambas, assim preleciona a Professora Judith Martins-Costa [03], insigne jurista gaúcha:

"A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo."


4. Antecedentes históricos da boa-fé objetiva

Historicamente, a noção de boa-fé deita raízes no Direito Romano, reportando-se à fides romana, apresentando-se com implicações de ordem religiosa, ética e moral. Por exemplo, na interpretação de determinados contratos considerados de boa-fé (bona fides), como a locatio e o mandatum, o valor da palavra empenhada tinha um peso maior do que a exteriorização da forma. No Corpus Iuris Civilis a noção de boa-fé está prevista de forma diluída, entendida a bona fides como um estado psicológico de ignorância, também influenciada pelo Direito Canônico, que via a boa-fé como ‘ausência de pecado’. Basicamente, pois, durante o período romano e, depois, medieval, adotou-se uma visão subjetiva sobre a boa-fé.

Mais tarde, com o advento do Code Civil francês de 1840 (Code Napoléon), a noção da boa-fé objetiva passa a ser positivada, através da terceira alínea do artigo 1134 do Code, quando ali determina que os pactos devem ser executados de boa-fé, sendo que tal norma não foi cumprida, tornou-se letra morta, à vista da influência da Escola da Exegese, apegada ao extremo à letra da Lei Napoleônica.

À vista da grande influência que o Code exerceu mundo afora, a noção de boa-fé espargiu-se para outros ordenamentos jurídicos, sendo a boa-fé objetiva adotada, de forma expressa, pelo Código Civil alemão (BGB), através de sua cláusula geral, em seu § 242: "O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como a exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego".

Entretanto, logo após a entrada em vigor do BGB, em 1900, o dispositivo citado (§ 242) não teve a repercussão devida, à altura da sua importância, somente vindo a ser ressaltado a partir da 1ª Guerra Mundial, através da jurisprudência alemã que, de forma mais copiosa e contundente, passou a difundir os seus contornos, ao ponto de a cláusula geral da boa-fé objetiva ter sido adotada por diversos países europeus, como a Itália, Portugal e Espanha.

Ao que parece, a sua importância tende a universalizar-se, ao ponto mesmo de as Nações Unidas reconhecerem a boa-fé objetiva como um parâmetro hermenêutico nos tratados que versem sobre o comércio internacional, como a Convenção de Viena (1980), que trata da compra e venda de mercadorias, cuja cláusula 7 deste tratado assim reza: "Na interpretação da presente Convenção ter-se-á em conta o seu caráter internacional bem como a necessidade de promover a uniformidade da sua aplicação e de assegurar o respeito da boa-fé no comércio internacional".


5. A positivação da boa-fé subjetiva no Brasil

No ordenamento jurídico pátrio, a primeira referência à boa-fé teve lugar no vestuto Código Comercial de 1850, em seu artigo 131, I, como cânone para a interpretação dos contratos firmados sob sua égide.

Posteriormente, com o advento do Código Civil de 1916, a noção de boa-fé aparece em diversas ocasiões, de forma explícita, mas sempre sob a ótica subjetiva, ou seja, fundada num erro de fato ou num estado de ignorância desculpável.

Efetivamente, trata-se da boa-fé subjetiva, adotada expressamente pelo Código Civil em vigor, como, por exemplo: quanto aos efeitos civil do casamento putativo (artigo 221); quanto à conceituação de posse de boa-fé (artigos 490 e 491); quanto ao requisito para a usucapião (artigos 550 e 551); quanto à proteção daquele que aliena, de boa-fé, imóvel que recebeu indevidamente (artigo 968); quanto à aquisição a non domino (artigo 622), dentre outros.


6. A positivação da boa-fé objetiva no Brasil

A partir dos anos 30 do século XX, começa a proliferar no Brasil, segundo o insigne civilista Gustavo Tepedino – uma sucessão de leis extravagantes e especiais, que tinham por escopo disciplinar novos institutos surgidos com a evolução econômica e com o recrudescimento da problemática social.

Gestadas no seio de um fenômeno conhecido como ‘dirigismo contratual’, tais leis extracodificadas passaram a disciplinar institutos específicos do direito privado (contrato, família, propriedade), criando assim os chamados microssistemas jurídicos, que condensavam um direito civil especial, a gravitar ao redor do Código Civil, que passou a guarnecer um direito civil comum, pois, segundo ensinança de Gustavo Tepedino [04], o Código Civil passou "a ter uma função meramente residual, aplicável tão-somente em relação às matérias não reguladas pelas leis especiais".

Em suma, é a ‘era dos estatutos’, a qual, igualmente inspirada na principiologia da Constituição Federal de 1988, produziu o Código de Defesa do Consumidor, de matriz constitucional, vez que o legislador constituinte erigiu a defesa do consumidor à categoria de direito fundamental (artigo 5°, XXXII) e a princípio da ordem econômica (artigo 170, V), ambos da Carta Magna/88.

Em verdade, considerado a lei rejuvenescedora do Direito Civil Brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor foi quem, pela vez primeira, positivou expressamente a boa-fé objetiva no ordenamento jurídico pátrio, mencionando-a em dois momentos, sendo o primeiro no capítulo da política nacional de relações de consumo (artigo 4°, III) e o segundo na seção das cláusulas abusivas (artigo 51, IV).

Num primeiro momento, a boa-fé objetiva aparece como princípio, a saber:

Artigo 4°: A Política Nacional das relações de Consumo tem por objetivos o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de sues interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (...)

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores".

Num segundo momento, a boa-fé objetiva aparece como cláusula geral, ou seja:

"Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

IV- estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis como a boa-fé ou a equidade".

Agora, com a edição do novo Código Civil, definitivamente e pela primeira vez na legislação civil brasileira, a boa-fé objetiva passa a ser consagrada, de forma clara a expressa, conforme dispõe o artigo 422:

"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".


7. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil

A abalizada doutrina, e, muito especialmente, o grande jurista alagoano Paulo Luiz Netto Lôbo [05], assesta que "a boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de comportamento".

Em igual sentido, ‘mutatis mutandis’, elucida Cláudia Lima Marques [06] que a "boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes".

A boa-fé objetiva se acha inserida no novo Código Civil enquanto um princípio, de cunho social, estampado que se acha pela cláusula geral disposta no artigo 422.

Aliás, nesse sentido, o novel codificador agiu bem em positivar a boa-fé objetiva enquanto cláusula geral, na medida que, através dessa técnica legislativa, faculta-se ao aplicador do Direito uma linha teleológica de interpretação, objetivando a abertura do sistema jurídico para permitir o ingresso de princípios e valores, de forma ‘não-casuística’.

A cláusula geral é uma valiosa técnica legislativa que, não obstante a sua vagueza semântica, segundo uma parcela da doutrina, representa um importante instrumento de vivificação do ordenamento jurídico, desde quando, é claro, seja prudente e sabiamente operada pela magistratura, no sentido de acompanhar a dinamicidade e a vicissitude da vida moderna.

A boa-fé objetiva trata-se, pois, de um princípio, ou de uma cláusula geral.

Por oportuno, registre-se que a norma do artigo 422 do Código Civil de 2002 refere-se a ambos os contratantes do contrato comum, civil ou comercial, não podendo o princípio ser aplicado preferencialmente ao contratante devedor, mas aplicado a qualquer deles, indistintamente.

E ainda: que o princípio da boa-fé objetiva, segundo a melhor doutrina, aplica-se aos contratantes antes, durante e após o contrato, ou seja, é aplicável à conduta dos contratantes antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum).


8. A acolhida jurisprudencial sobre a boa-fé objetiva

No dizer de Bruno Lewicki [07], o debate sobre a boa-fé objetiva em nossos tribunais, mormente nas cortes superiores, tem se dado de forma esporádica e tênue, possivelmente em razão da cultura jurídica herdada pelos operadores do direito, na sua grande maioria ainda muito ligada à idolatria da codificação, na medida que entende e admite o Código Civil como a ‘constituição do direito privado’.

Tal visão deve ser rechaçada.

A moderna civilística advoga a resistematização do sistema jurídico civil, a partir da Constituição Federal, enquanto vértice do ordenamento jurídico, e não mera base deste.

É o chamado Direito Civil Constitucional, ou seja, a legislação civil lida e interpretada à luz do Texto Constitucional e não o inverso.

Nesse sentido, pois, é de se aplaudir alguns votos proferidos pelo então Desembargador Ruy Rosado de Aguiar Junior, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, lavrados no final da década de oitenta e os primeiros anos da década de noventa, os quais, fazendo ou não menção expressa ao princípio da boa-fé objetiva passaram a corporificar uma renovada concepção do direito das obrigações.

À guisa de exemplo, trago à baila o famoso ‘caso dos tomates’, cujo acórdão foi lavrado em 06/06/1991, relatado pelo jurista citado, "no qual, de forma majoritária, entendeu-se que uma vigorosa empresa do ramo alimentício era responsável pelas perdas dos agricultores que haviam confiado na compra de sua safra de tomates – o que a Ré fazia sistematicamente, ano após ano, exercitando um comportamento que instava a parte autora ao plantio, inclusive através da distribuição de sementes. Como naquele ano a empresa negara-se a comprar a produção, movida por interesses próprios, determinou-se que ela deveria "...indenizar aqueles que lealmente confiaram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo".

Mais recentemente, o mesmo jurista, agora já Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça, assim relatou: "O compromisso público assumido pelo ministro da Fazenda, através de Memorando de Entendimento, para suspensão de execução judicial de dívida bancária de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no mutuário a justa expectativa de que essa suspensão ocorrerá, preenchida a condição. Direito de obter a suspensão fundado no princípio da boa-fé objetiva, que privilegia o respeito à lealdade" (STJ, 4ª T., RMS 6183, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.u., j. 14.11.1995).

A bem se ver, pois, como bem ressalta a doutrina, o princípio da boa-fé objetiva tem uma ‘vocação expansionista’, agora muito mais alargada em face de sua expressa previsão legal, no Código Civil de 2002.


9. Conclusão

À vista do laborioso trabalho da jurisprudência alemã, a partir da Primeira Guerra Mundial, a cláusula da boa-fé objetiva difundiu-se à larga, mas não chegou a ser adotada pelo Código Civil de 1916. Ao contrário, o Código Civil em vigor consagrou a boa-fé subjetiva, mormente em matéria possessória.

Dogmaticamente inconfundíveis, a boa-fé subjetiva diz com um estado de ignorância de uma pessoa, de estar agindo a não prejudicar outrem, enquanto a boa-fé objetiva diz com uma regra de conduta, pautada na lealdade e honestidade, a ser observada pelos contratantes, tanto na celebração quanto na execução do contrato.

De início consagrada pelo Código de Defesa do Consumidor, a boa-fé objetiva ingressa na legislação civil pela norma do artigo 422 do Código Civil de 2002, como um princípio social, uma linha teleológica de interpretação, sob a forma de uma cláusula geral, o que significa, a grosso modo, um instrumento à disposição do aplicador do direito para vivificar o ordenamento jurídico, diante da voluptuosidade dos fatos sociais hodiernos.

Muito embora pouco discutida pelos tribunais superiores, uma parcela da jurisprudência gaúcha de há muito já vinha decidindo com base na boa-fé objetiva, ainda que de forma implícita e tangencial.

Todavia, com o advento do novel Código Civil, espera-se que a magistratura nacional, com prudência e coragem, dê concretude a esse novo princípio contratual, o qual, em suma, busca alcançar a Justiça Contratual.


Bibliografia

LEWICKI, Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. In: Problemas de Direito Civil-Constitucional. Gustavo Tepedino (Coordenador). 1ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v. 42.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, v. I.

MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito privado. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994.

NOVAIS, Alinne Arquette Leite. Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fè Objetiva e o Princípio da Tutela do Hipossuficiente. In: Problemas de Direito Civil-Constitucional. Gustavo Tepedino (Coordenador). 1ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

VENOSA, Silvio de Salvo. Novo Código Civil. Texto Comparado. 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2002.


Notas

01 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 215.

02 NOVAIS, Alinne Arquette Leite. Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fé Objetiva e o Princípio da Tutela do Hipossuficiente. In: Problemas de Direito Civil-Constitucional. Gustavo Tepedino (coordenador). 1ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 22.

03 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 411.

04 TEPEDINO. Gustavo. Temas de Direito Civil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.212.

05 LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002, v. 42, p. 193.

06 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, v. I, p. 106-107.

07 LEWICKI, Bruno. Panorama da boa-fé objetiva. In: Problemas de Direito Civil-Constitucional. Gustavo Tepedino (Coordenador). 1ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.71


Autor

  • João Hora Neto

    João Hora Neto

    juiz de Direito no Estado de Sergipe, professor de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe (UFS), mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em Novo Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HORA NETO, João. O princípio da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1016, 13 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8245. Acesso em: 28 mar. 2024.