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A inconstitucionalidade da atual forma de ingresso de ministros e conselheiros aos Tribunais de Contas.

A infração ao princípio da separação dos poderes decorrentes das listas triplas e sêxtuplas

A inconstitucionalidade da atual forma de ingresso de ministros e conselheiros aos Tribunais de Contas. A infração ao princípio da separação dos poderes decorrentes das listas triplas e sêxtuplas

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O ingresso de Ministros e Conselheiros aos Tribunais de Contas não se mostra compatível com os princípios republicano, da moralidade e da impessoalidade administrativa.

Resumo: o ingresso de Ministros e Conselheiros aos Tribunais de Contas não se mostra compatível com os princípios republicano, da moralidade e da impessoalidade administrativa. A única razão para a inobservância da regra do concurso público para esses cargos é de natureza histórica. A correta interpretação das normas constitucionais, seja através da interpretação conforme ou da nulidade parcial sem redução de texto, permite extrair a conclusão de que é inconstitucional o ingresso de pessoas ao serviço público para ocupar cargos vitalícios e tão relevantes à aferição da boa gestão dos recursos públicos sem concurso público, não se justificando mais regras de privilégio e ofensivas ao princípio da isonomia diante dos bons frutos que a regra do concurso público tem produzido no Brasil, como o ingresso na carreira da Magistratura ou do Ministério Público, carreiras que podem ser equiparadas às existentes nos Tribunais de Contas. Também as listas triplas e sêxtuplas implicam ofensa ao princípio da separação dos poderes e ingerência de membros de um Poder maculando o princípio da imparcialidade e o bom desempenho que os demais Poderes devem ter no cumprimento de suas respectivas missões Institucionais.


Sumário: 1. Introdução. 2. O Regramento Normativo Vigente e a Proposta de Emenda Constitucional nº 25/2000, do Senador Alvaro Dias. 3. Checks and Balances ou Infração ao Princípio da Separação dos Poderes. 4. A Natureza Jurídica dos Cargos de Ministros e Conselheiros. 5. A Teoria das Normas Constitucionais Inconstitucionais. 6. A Interpretação Constitucional: Interpretação Conforme e a Inconstitucionalidade Parcial sem Redução de Texto. 7. A Dimensão dos Princípios: Vigas Mestras do Sistema Jurídico. 8. Outros Princípios Hermenêutico-Constitucionais. 9. A República, o Princípio Republicano e a Acessibilidade aos Cargos Públicos. 10. O Princípio Constitucional da Moralidade e da Impessoalidade. 11. A Inconstitucionalidade da Atual Forma de Acesso aos Tribunais de Contas. 12. Conclusão.


1.Introdução

            O presente artigo visa analisar, à luz dos princípios constitucionais, especialmente dos princípios republicano, da moralidade e da juridicidade se a atual forma de ingresso de Ministros e Conselheiros aos Tribunais de Contas do País, bem como se a atual forma de indicação de membros de outros poderes pelo Executivo é ou não constitucional e se não fere o principio da separação dos poderes.

            No caso dos Tribunais de Contas, o que se tem observado é que essas indicações têm impedido que os Ministros e Conselheiros julguem com imparcialidade as contas [01] de quem os indica, não sofram ações de improbidade administrativa ou não tenham seus atos invalidados.

            Esses cargos que têm sido preenchidos exclusivamente por critérios políticos, conflitam com inúmeros princípios constitucionais, como o republicano, da moralidade, da impessoalidade, etc.

            Analisar-se-á o regime jurídico desses cargos e sua natureza jurídica, com vistas a concluir se a atual forma de ingresso é compatível com tal regime e natureza.

            Atualmente tem-se entendido prescindir tal ingresso do concurso público, permitindo o acesso basicamente de políticos em final de carreira ou que sucumbiram nas urnas, ou pessoas influentes no Legislativo e Executivo, apesar de constar da Constituição que qualquer cidadão pode concorrer a uma vaga de Conselheiro do Tribunal de Contas, não tendo, ao que se sabe, um único caso em que "qualquer do povo", ainda que detenha os requisitos exigidos pela Constituição, tenha acessado a essas Cortes.

            Assim, o estudo examinará se é Constitucional tal forma de acesso numa interpretação sistemática da Constituição.


2.O Regramento Normativo Vigente e a Proposta de Emenda Constitucional nº 25/2000, do Senador Alvaro Dias

            Aqui se examina o texto Constitucional e a proposta de Emenda Constitucional do Senador Álvaro Dias para alterar o art. 75, da Constituição da República.

            Conforme destacado por Barroso [02], a Constituição de 1988 consagrou princípios e regras que, por simples incidência, deveria inviabilizar práticas de favorecimento pessoal fundados em laços familiares e/ou afetivos, lembrando que a dogmática constitucional atual confere plena eficácia aos princípios constitucionais, ampliando o princípio da legalidade para o de juridicidade constitucional.

            Da análise do art. 73, § 1º, da CR e art. 77, da Constituição do Estado do Paraná, qualquer brasileiro pode ser Conselheiro do Tribunal de Contas, desde que tenha mais de 35 anos, idoneidade moral, reputação ilibada, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública, mais de 10 anos de exercício de função ou efetiva atividade profissional que agregue tais conhecimentos.

            Pelo parágrafo segundo do art. 73, § 2º, da CF e seu correlato art. 77, § 2º, da Constituição Estadual do Paraná, os Conselheiros serão escolhidos pelo Governador do Estado e pela Assembléia Legislativa (2/7 e 5/7, respectivamente), sendo que da ‘cota’ do Governador, um deve ser dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, indicados em lista tríplice pelo Tribunal de Contas, segundo critérios de antiguidade e merecimento.

            Há que aduzir-se que a estrutura do Tribunal de Contas segue a mesma estrutura do Poder Judiciário, com as mesmas garantias, impedimentos e responsabilidades a seus membros, nos termos do art. 96, da Constituição Brasileira e art. 77, § 3º, da Constituição Estadual do Paraná.

            Há que acrescer-se que o Projeto de Emenda Constitucional nº 25/2000, do Senador Alvaro Dias pretende alterar o art. 75, da Constituição da República, para exigir o concurso público para o ingresso de Ministros e Conselheiros aos Tribunais de Contas.

            Na justificação do projeto, o Senador destaca a importância do concurso público como mecanismo de nomeação de servidores públicos para ocupar cargos efetivos na administração dos Poderes nas três esferas de governo.

            Enfatiza que o concurso público é instrumento democrático concretizador dos princípios da moralidade e da impessoalidade, constituindo já pressuposto de ingresso nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público.

            Destaca que apenas por razões históricas é que os membros dos Tribunais de Contas foram mantidos à parte do critério da impessoalidade de engajamento dos servidores públicos (concurso).

            Observa que o modelo baseado no concurso público se mostrou exitoso como mecanismo de seleção de agentes públicos em todos os níveis e se acha consolidado nas esferas da Magistratura e do Ministério Público, razão pela qual "o constituinte derivado de alguns entes da Federação tem-se defrontado com a exigência de incorporar tal experiência institucional à composição das cortes de contas, que passariam a ser dotadas de maior independência, em razão da escolha de seus membros por exclusivo critério de mérito".

            Dessa forma, dado que o modelo da União é repetido nos Estados e Municípios, inclusive a forma de composição baseada em critérios políticos, faz-se necessária a alteração do art. 75, da Constituição Brasileira, adotando critério simétrico ao disciplinado no art. 73, parágrafo 2º, da Constituição, onde o ingresso aos Tribunais de Contas se dará através de concurso público.


3.Checks and Balances ou Infração ao Princípio da Separação dos Poderes

            Aqui se analisa o sistema de checks and balances, com vistas a auscultar se a atual forma de indicação de Ministros e Conselheiros para os Tribunais de Contas ou a escolha, nem sempre democrática, dos indicados em listas tríplices e sêxtuplas (ex. Procurador Geral de Justiça ou representante do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas) ferem ou não o princípio da separação dos poderes.

            A teoria da separação dos poderes em sua concepção atual reconhece que cada Poder tem funções típicas (Executiva, Legislativa e Judiciária) e atípicas, ou seja, cada qual exerce preponderantemente sua função elementar, mas também exerce, ainda que em menor grau, atividades que tipicamente são de outros Poderes.

            O princípio da tripartição dos poderes constitui-se no reconhecimento da garantia e da relevância do princípio republicano, em sua dupla face: a) conter o poder e b) manter dos órgãos que o exercem, equilibradamente.

            Essa construção está embasada no fato de que cada Poder necessita de mecanismos eficazes para desempenhar sua própria missão institucional, mas não mecanismos que impeçam ou interfiram na missão institucional de outro Poder. Assim, a indicação de membros para os Tribunais de Contas ou para o Ministério Público, implica na burla ao princípio constitucional da imparcialidade na apreciação das contas de quem os indicou, bem como, no mínimo, causa constrangimento ao Procurador Geral de Justiça quando se depara com ato de improbidade praticado no âmbito do Executivo e que possa envolver interesse direto ou indireto de quem o indicou.

            Assim, mostra-se incompatível com o princípio republicano que uma esfera de Poder exerça influência em outra a tal ponto em que a missão Institucional de cada um reste comprometida ou suspeita, fato este que se tem evidenciado na prática, pois não se tem notícia de desaprovação de contas de um Governador de Estado ou ações de improbidade contra Governadores de Estado.


4.A Natureza Jurídica dos Cargos de Ministros e Conselheiros

            Conforme classificação de Bandeira de Mello [03], a denominação agentes públicos é gênero do qual são espécies os agentes políticos, os servidores estatais (servidores públicos e servidores das pessoas governamentais de direito privado) e os particulares em colaboração com a administração.

            Justen Filho [04] define agente público como "toda pessoa física que atua como órgão estatal, produzindo ou manifestando a vontade do Estado".

            Os agentes políticos titulam cargos estruturais à organização política do País. São eles o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e Vices, os auxiliares do Chefes do Executivo, como os Ministros e Secretários, os Senadores, Deputados Federais e Estaduais e os Vereadores. Exercem munus público e o vínculo que mantém com a administração é de natureza política e não profissional. Suas relações jurídicas com o Estado é de natureza institucional, estatutária.

            O servidor público é expressão utilizada em acepção ampla e é aplicada aos agentes que se relacionam com o Estado por vínculo jurídico de direito público, abrangendo os civis e militares. O servidor público com cargo indica o servidor que exerce atividade não política e não jurisdicional, sujeito ao regime estatutário [05].

            Justen Filho [06] define servidores públicos estatutários ou com cargo público como aqueles "cuja relação jurídica com o Estado é subordinada a regime jurídico de direito público, caracterizado pela ausência de consensualidade para sua instauração tal como para a determinação de direitos e deveres".

            Cargo público, por sua vez, define o autor [07] "é uma posição jurídica criada e disciplinada por lei, sujeita a regime jurídico de direito público peculiar, caracterizado por mutabilidade por determinação unilateral do Estado e por inúmeras garantias em prol do ocupante".

            Os servidores estatais, portanto, atuam segundo o regime estatutário e o não estatutário, aqui compreendido o emprego público e a contratação temporária, nos termos do art. 37, inciso IX, da Constituição Republicana.

            Assim, o agente estatal terá vínculo de direito público ou de direito privado. O vínculo de direito público pode ser político ou não. O vínculo de direito público político se dá no âmbito do Legislativo ou Executivo, seja como mandato eletivo ou como cargo em comissão, respectivamente.

            O vínculo de direito público não político pode ser civil ou militar. O de natureza civil se encontra nos três poderes. No Executivo pode ser dar com não servidores quando as relações jurídicas se dão na forma estabelecida na Lei nº 8.666/93, na Lei nº 8.987/95, na Lei nº 9.637/98 ou na Lei nº 9.790/99 ou com servidores, onde aí encontramos o servidor estatutário, o celetista e o temporário.

            No âmbito do Legislativo, temos o estatutário e o não estatutário e no âmbito do Judiciário, servidores (magistrados, estatutários e não estatutários) e não servidores.

            Justen Filho [08] afirma que "os estatais com vínculo jurídico de direito público são aqueles aos quais se reserva o exercício das competências estatais mais essenciais, que traduzem de modo direto e imediato os poderes próprios do Estado e se orientam à promoção dos direitos fundamentais dos integrantes da sociedade".

            Dessa forma, a grande massa de agentes estatais é formada por agentes não políticos. Os exercentes de funções jurisdicionais, os membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas são agentes não políticos, sendo a natureza de suas atribuições acentuadamente vinculada à aplicação do direito e à promoção de atividades necessárias à satisfação dos direitos fundamentais.

            Ressalta o autor [09] que o regime jurídico das atividades dos Ministros é basicamente o reservado aos servidores públicos titulares de cargos em comissão, porque os Ministros estão vinculados diretamente ao Presidente da República. São, assim, de natureza precária (demissíveis ad nutum), donde, por um critério ou outro (político ou cargo em comissão) resulta que tal regime é incompatível com a vitaliciedade dos cargos ocupados pelos Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas.


5.A Teoria das Normas Constitucionais Inconstitucionais

            Objetiva-se aqui apenas traçar as linhas gerais da teoria das normas constitucionais inconstitucionais ou antinomias constitucionais, advertindo, no entanto, ser desnecessário seu conhecimento e aplicação no caso em exame para concluir pela inconstitucionalidade da atual forma de ingresso dos Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas.

            As antinomias constitucionais são tidas como incompatibilidades possíveis ou instauradas em regras, valores ou princípios jurídicos, pertencentes validamente ao mesmo sistema jurídico, tendo de ser vencidas para a preservação da unidade e da coerência do sistema axiológico-positivo e para que se alcance a máxima efetividade da pluralista teleologia constitucional.

            Jorge Miranda [10] afirma que "uma norma ou um acto inconstitucionais, ao infringirem uma norma constitucional, afectam toda a Constituição e, ao serem destruídos, comportam-se como elementos estranhos na ordem jurídica. A violação de uma norma constitucional surge como uma quebra da integridade do sistema da Constituição. Uma relação jurídica subsume-se ou não numa norma Constitucional: se se subsume, dá-se inconstitucionalidade, quando a norma legal não acompanha a regulação constitucional ou quando o acto jurídico-público (facto jurídico da relação jurídico-constitucional) contradiz a norma constitucional. É em cada relação jurídica que a norma constitucional é ou deixa de ser eficaz".

            Bachof [11] conceitua uma Constituição em sentido material como sendo "o sistema daquelas normas que representam componentes essenciais da tentativa jurídico-positiva de realização da tarefa posta ao povo de um Estado de edificar o seu ordenamento integrador". Afirma que também pode haver direito constitucional material fora do documento constitucional, mas que, inversamente, nem todas as normas constitucionais formais são direito constitucional material com função integradora.

            A validade (Geltung) de uma Constituição compreende sua legitimidade no sentido da positividade (plano e expressão de um poder efetivo) e da obrigatoriedade (vinculação dos destinatários das normas ao que é ordenado). Esta obrigatoriedade só existirá se e na medida em que o legislador tome em conta os princípios constitutivos de toda e qualquer ordem jurídica e se deixe guiar pela aspiração à justiça, evitando regulamentações arbitrárias.

            Há inúmeras interrogações sobre o conteúdo, alcance e legitimidade das certas normas constitucionais, em especial aquelas que afrontam valores fundamentais ou das que limitam a fruição de direitos ou propriamente de leis injustas, não devendo os tribunais obediência a elas, como é o caso objeto do presente estudo onde se sustenta que a indicação dos Ministros e Conselheiros para os Tribunais de Contas, assim como as listas tripas e sêxtuplas não sobrevivem a uma interpretação sistemática da Constituição que consagre a devida importância aos princípios republicano, da moralidade e da impessoalidade.

            Assim, o tema da validade das normas constitucionais é de fundamental importância. Bachoff [12] abordando a questão da legitimidade da norma constitucional, afirma que o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha reconheceu em várias decisões a existência de um direito ‘supra-positivo’ ou supra-legal (ex. igualdade), obrigando também o legislador constituinte. Afirma categoricamente que uma norma constitucional pode ser nula, se desrespeitar os postulados fundamentais da justiça. Afirma [13] que "a permanência de uma Constituição depende em primeira linha da medida em que ela for adequada à missão integradora que lhe cabe face à comunidade que ela mesma ‘constitui’".

            Importante a transcrição de texto fundamental que sintetiza as idéias de Bachof [14] sobre a tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais:

            "... não posso imaginar que a judicatura, que recebe a sua dignidade e autoridade unicamente da idéia de justiça, possa renunciar em princípio a um controlo cujo padrão seja esta idéia, sem com isso perder ao mesmo tempo essa sua dignidade e autoridade. Uma jurisdição que ‘se queira livre’ da sua ‘responsabilidade pelo conteúdo jurídico da lei’ degrada-se necessariamente, pelo menos de maneira potencial, num auxiliar do mero poder".

            Essa idéia de Justiça não depende da idéia que dela faz cada Juiz, mas da idéia que, dialeticamente, a comunidade dela faz em determinado momento histórico (communis opinio), evidenciando, portanto, que essa idéia é cambiante e se amolda à evolução da sociedade, além dos princípios constitucionais (ex. dignidade da pessoa humana, Estado Democrático de Direito, igualdade, etc.) que estão irradiar luz ao intérprete levando a um ‘porto seguro’ na busca e solução das respostas para os casos concretos da vida.


6.A Interpretação Constitucional: Interpretação Conforme e a Inconstitucionalidade Parcial sem Redução de Texto

            Conforme observado no capítulo anterior, o constitucionalismo contemporâneo, visando prestigiar o legislador, tem rejeitado a tese das normas constitucionais inconstitucionais ou antinomias constitucionais, construindo as técnicas da ‘interpretação conforme’ e da ‘inconstitucionalidade parcial sem redução de texto’, com vistas a encontrar determinado sentido que seja compatível com o sistema jurídico do país, especialmente com o sistema constitucional e seus princípios.

            Assim, importante aqui examinar os critérios da interpretação conforme e da inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, fixando suas diferenças e semelhanças, destacando-se que ambas são espécies do gênero ‘decisões interpretativas’. Conforme Streck [15], ambas adicionam sentido ou reduzem incidência de sentidos normativos estabelecendo correções à atividade legislativa. Prestigia-se, assim, a legislação não expungindo o texto do sistema jurídico, mas outorgando-lhe sentido compatível com tal sistema.

            A interpretação conforme, também denominada de decisão interpretativa de rejeição significa que a norma é constitucional, se interpretada num sentido de adequação ao sistema constitucional.

            Pela ‘inconstitucionalidade parcial sem redução de texto’, também denominada de decisão interpretativa de acolhimento (de acolhimento parcial) ou inconstitucionalidade parcial qualitativa, julga-se inconstitucional o preceito ‘enquanto’ ou ‘na medida em que’ ou ‘na parte em que’ incorpora uma certa dimensão aplicativa, declarando-se inconstitucional um certo segmento ou seção da norma questionada [16].

            Destaca Streck [17] que na interpretação conforme se tem a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, enquanto na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada hipótese de aplicação do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal.

            Em suma, a Corte diria que a norma impugnada é constitucional se se lhe der a interpretação que o Tribunal entende compatível com a Constituição.

            Jorge Miranda [18] leciona que há sempre que interpretar a Constituição, como há sempre que interpretar a lei. Só através dela, a partir dela, mas sem parar na letra, encontra-se a norma ou o sentido da norma.

            Observa o autor [19] que hoje é unânime o reconhecimento da importância da interpretação constitucional – não só para o juiz que tem o dever de desaplicar normas inconstitucionais, mas também para os cidadãos em geral, chegando-se ao ponto de defender-se a necessidade de uma "sociedade aberta de intérpretes da Constituição, especialmente no domínio dos direitos fundamentais, como expressão de uma res pública".

            Reconhece a "existência de fatores de perturbação com os quais se deparam os operadores do direito, destacando a variedade de normas constitucionais quanto ao objeto e eficácia, a incompleição ou indeterminação de muitas delas; a linguagem; a proximidade dos fatos políticos e a ‘rebeldia’ destes perante os quadros puramente lógicos da hermenêutica; a influência ineliminável da ideologia, pelo menos da ‘pré-compreensão’ de cada intérprete, num contexto plural e complexo; os diferentes critérios por que se movem os órgãos políticos, administrativos e jurisdicionais e as possíveis atitudes dos respectivos titulares; a origem compromissória de não poucas Constituições, marcadas por princípios diferentes, quiçá discrepantes (como a Constituição Portuguesa de 1976 ou a Brasileira de 1988)" [20].

            Aponta [21], para em seguida o criticar, que entre os caminhos indicados para superar tais obstáculos, tem-se recorrido à tópica de Theodor Viehweg onde "quaisquer problemas de interpretação e aplicação seriam aqui situados diante de tópicos, lugares-comuns ou argumentos a extrair de princípios gerais, de decisões jurisprudenciais ou de crenças e opiniões comuns; e, em vez de se procurarem as soluções em abstracto através de um raciocínio dedutivo e sistemático sobre as normas, elas haveriam de ser ensaiadas a partir dos próprios problemas em concreto nas circunstâncias em que surgem; a tópica é a técnica de pensar por problemas (ou de pensar de baixo para cima, em termos dialéctivos)".

            Observa que o método tópico, na mesma linha de Canaris [22], serve para completar ou comprovar resultados adquiridos de outra forma, pois o recurso não está experimentado o suficiente para demonstrar sua eficiência, havendo grande risco, em especial no domínio do direito constitucional, de ele conduzir a uma casuística pouco fecunda.

            Aponta que mesmo um autor como Konrad Hesse [23] que enfatiza o caráter aberto e criador da interpretação constitucional, em necessário contato com o problema, entende que o método tópico apenas pode ter um lugar limitado, tanto que o direito constitucional enquanto direito fundamental da ordem global e concebido como ordem de convivência não deve ser compreendido pontualmente, a partir de um problema isolado.

            Aponta Jorge Miranda [24] os seguintes pontos de apoio para uma adequada interpretação constitucional:

            - "A Constituição deve ser apreendida, a qualquer instante, como um todo, na busca de uma unidade e harmonia de sentido. O apelo ao elemento sistemático consiste aqui em procurar as recíprocas implicações de preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua inter-relacionação e em tentar, assim, chegar a uma idônea síntese globalizante, credível e dotada de energia normativa;

            - isto se aplica particularmente ao chamado fenômeno das ‘contradições de princípios’, presente nas Constituições compromissórias e, não raro, noutros setores além do Direito constitucional. Tais contradições hão de ser superadas, nuns casos, mediante a redução adequada do respectivo alcance e âmbito de cedência de parte a parte, e, noutros casos, mediante a preferência ou prioridade, na efectivação, de certos princípios frente aos restantes – nuns casos, pois, através de coordenação, noutros através de subordinação. Tem de fazer-se, por conseguinte, um esforço de concordância prática, assente num critério de proporcionalidade. E pode ter de se solicitar (mesmo sem se aderir a todas as premissas do puro método valorativo) a ponderação ou hierarquização dos valores inerentes aos princípios constitucionais;

            - um paralelo esforço, agora de determinação ou de densificação, tem de ser levado a cabo relativamente aos chamados conceitos indeterminados. Estes têm de ser entendidos sempre na perspectiva dos princípios, valores e interesses constitucionalmente relevantes. É indispensável reconhecer ao legislador uma margem relativamente grande de conformação, mas ele não pode ‘transfigurar o conceito, de modo a que cubra dimensões essenciais e qualitativamente distintas daquelas que caracterizam a sua intenção jurídico-normativa’; e o que se diz do legislador deve dizer-se, até por maioria de razão, do intérprete;

            - diversos dos conceitos indeterminados, mas pondo problemas algo parecidos, são os conceitos pré-constitucionais ou exógenos – conceitos vindos de outros setores e ramos do direito, ou extrajurídicos, vindos de outras ciências; e com estes, entra largamente a realidade constitucional a agir. Ora, todos os elementos e conceitos, uma vez situados em disposições da Constituição formal, têm de ser entendidos em conexão com os demais e analisados tendo em conta quer o seu originário sentido (em princípio, ‘recebido’), quer o que lhe advém da sua colocação sistemática.

            - deve assentar-se no postulado de que todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma pode dar-se uma interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Mais: a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação. Interpretar a Constituição é ainda realizar a Constituição;

            - nem isso é infirmado pelo carácter ‘aberto’ das normas programáticas ou, em geral, das normas não exeqüíveis por si mesmas, as quais, desempenham o seu pAPEL próprio, por um lado, incorporando preceitos objectivos e valores e, por outro lado, propiciando ao legislador ordinário (e, em democracia pluralista, portanto ao povo) uma margem maior ou menor de concretização e de variação consoante as conjunturas e as opções políticas;

            - os preceitos constitucionais devem ser interpretados não só no que explicitamente ostentam como também no que implicitamente deles resulta. Contudo, a eficácia implícita de quaisquer preceitos deve, por seu lado, ser pensada em conjugação com a eficácia, implícita ou explícita, dos outros comandos (é isso o que acontece, nomeadamente, no domínio das competências dos órgãos, onde é usual falar em poderes implícitos);

            - todas as normas constitucionais têm de ser tomadas como normas da Constituição actual, da Constituição que temos (conquanto com carácter prospectivo), e não como normas de uma Constituição futura, cuja execução não vincule, desta ou daquela maneira, os órgãos de poder e o legislador ordinário. E tão-pouco podem reconduzir-se ao absurdo por impor aos seus destinatários não o possível, mas o impossível;

            - na interpretação de preceitos da Constituição, é legítimo e pode ser conveniente considerar o modo como são aplicados na prática, em especial através da lei e das decisões dos tribunais. Todavia, evidentemente, não é o sentido que daí decorra que, só por isso, deve ser acolhido – porque não é a Constituição que deve ser interpretada em conformidade com a lei, ma sim a lei que deve ser interpretada em conformidade com a Constituição".

            Um dos métodos consagrados pelos modernos sistemas hermenêuticos e que busca salvaguardar a autonomia entre os Poderes, em especial o Legislativo, é o da interpretação conforme a Constituição.

            Hesse [25] observa que pela interpretação conforme à Constituição deve-se evitar a declaração de inconstitucionalidade da norma se for possível extrair sentido que a coloque em sintonia com o sistema constitucional. O método torna a interpretação extensiva ou restritiva em alternativa legítima para o conteúdo de uma norma que aparenta ser inconstitucional, salvando-se os atos normativos, na medida do possível.

            Jorge Miranda [26] ao comentar a interpretação conforme observa que "cada norma legal não tem somente de ser captada no conjunto das normas da mesma lei e no conjunto da ordem legislativa; tem, outrossim, de se considerar no contexto da ordem constitucional; e isso tanto mais quanto se tem dilatado, no século XX, a esfera de acção desta como centro de energias dinamizadoras das demais normas da ordem jurídica positiva". A interpretação conforme, segundo o autor "não consiste então tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja mais conforme com a Constituição quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade - um sentido que, embora não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental. E são diversas as vias que, para tanto, se seguem e diversos os resultados a que se chega: desde a interpretação extensiva ou restritiva à redução (eliminando os elementos inconstitucionais do preceito ou o do acto) e, porventura, à conversão (configurando o acto sob a veste de outro tipo constitucional. Destaca que as normas constitucionais não são apenas normas parâmetro; são também ‘normas de conteúdo’ na determinação do conteúdo das leis ordinárias.

            A "interpretação conforme", leciona SCHIER [27], "obriga a formação de um comando de otimização material da ordem jurídica, devendo impor a construção de uma norma que atribua "a" maior eficácia e efetividade possíveis (ou seja, maior afirmação social dos valores constitucionais). Por isso, o princípio da interpretação conforme, sob a leitura da filtragem, transmuda-se para um princípio de dimensões formais e materiais porque deve conferir a maior eficácia jurídica e também social da norma constitucional".


7.A Dimensão dos Princípios: Vigas Mestras do Sistema Jurídico

            A teoria jurídica contemporânea classifica os princípios jurídicos como normas jurídicas-princípios, ao lado das conhecidas normas jurídicas-regras. A aplicação das regras se resolve no plano do tudo ou nada, ou seja, incide ou não incide determinada regra jurídica em determinado caso concreto. Os princípios, por outro lado, não possuem hierarquia e não se repelem e é o caso concreto que determinará que princípio incidirá em cada situação. Assim, o conflito principiológico se resolve no plano da ponderação, do sopesamento, da relevância do caso concreto e da tutela jurídica que ele requer para a boa e adequada solução do caso.

            A violação de um princípio segundo Bandeira de Mello [28] é o ataque mais violento à Constituição, pois representa a insurgência contra todo o sistema jurídico de um país, subversão de seus valores fundamentais.

            Segundo Ataliba [29], "o princípio aponta a direção, o sentido em que devem ser entendidas as normas que nele se apóiam, e ressalta não poder o intérprete extrair conclusão que contrarie um princípio, lhe compromete as exigências ou lhe negue as naturais conseqüências" [30].

            Colhendo lições de Gordillo [31], observa Ataliba que o princípio determina em forma integral qual deve ser a substância do ato pelo qual se o executa: o princípio é o limite e conteúdo.

            Ainda com Gordillo [32] tem-se que "o princípio exige que tanto a lei como o ato administrativo respeitem seus limites e tenham um mesmo conteúdo, sigam sua direção, realizem seu espírito, especialmente porque esses conteúdos básicos da Constituição regem toda a vida comunitária e não somente os atos que mais diretamente se referem ou às situações que mais expressamente contemplam".

            Para se compreender a dimensão de um princípio e sua importância para o sistema jurídico brasileiro, importa colacionar a lição de Bandeira de Mello [33] para quem "princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo".

            Afirma Bandeira de Mello [34] que "violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa a insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a ser arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra".


8.Outros Princípios Hermenêutico-Constitucionais

            Há ainda que observar-se que em se tratando de hermenêutica constitucional, os seguintes princípios são de ser sopesados:

            a)Princípio da Supremacia Constitucional (formal e material): na análise do legislador constituinte a matéria tratada é mais importante que as demais reservadas a outras normas infraconstitucionais;

            b) princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder público, presunção esta que é relativa, podendo ser demonstrado o contrário;

            c) princípio da unidade da constituição, onde é preciso interpretá-la como um todo útil. Se é norma só se pode concebê-la como vinculante;

            d)princípio do efeito integrador: instinto de preservação da Constituição, levando-se em conta que ela reflete valores plurais;

            e)princípio da máxima efetividade: a Constituição deve ser interpretada como instrumento de emancipação da sociedade gerando efeitos benéficos em prol da coletividade;

            f)princípio da justeza ou conformidade funcional: a interpretação não pode criar intervenção indevida de um Poder sobre o outro, pois os órgãos e suas respectivas funções devem desempenhar as funções para os quais foram criados;

            g)princípio da coordenação prática ou da harmonização: a interpretação constitucional não deve ser ab-rogante;

            h)princípio da força normativa da Constituição: deve-se dar eficácia integral à Constituição, inclusive ao seu preâmbulo;

            i)princípio da intepretação conforme: pressupõe mais que interpretação possível outorgando-se ao intérprete a opção que salva a norma e prestigia o legislador;

            j)princípio da proporcionalidade/roazoabilidade: a decisão deve ser razoável.


9.A República, o Princípio Republicano e a Acessibilidade aos Cargos Públicos

            Destaca-se aqui a concepção atual (constitucional) de que todo o Poder emana do povo. Esse poder encontra ressonância na res pública e, por conseqüência, no princípio republicano, princípio este que segundo Ataliba [35] se constitui no esteio do sistema jurídico e político brasileiro.

            Ataliba o tem em tão alta dimensão porque sendo o povo o dono da res pública, exige-se o dever de respeito com a coisa pública, com sua preservação e onde seu desenvolvimento e aplicação devem ser direcionados para o próprio povo, pois somente o dono pode dispor sobre o destino dessa coisa; somente ele pode dizer como, quando e em que finalidades ela pode ser aplicada.

            Importa destacar que a res publica e o princípio que lhe dá sustentação vem inserto logo no primeiro artigo da Constituição, fato de extrema relevância para o intérprete e aplicador da Constituição, que deve colher seus efeitos irradiantes para toda a Constituição, ou seja, todos os preceitos constitucionais hão de ser interpretados e aplicados levando-se em conta que o Brasil está ancorado em tal princípio, conforme também se pode aferir da leitura do art. 60, § 4º, da Constituição Brasileira.

            A partir do princípio republicano surge a representatividade, o consentimento dos cidadãos, a segurança dos direitos, a exclusão do arbítrio, a legalidade, a relação de administração, a previsibilidade da ação estatal e a lealdade informadora da ação pública.

            Ataliba [36] afirma que o princípio republicano é o "alicerce de toda a estrutura constitucional, pedra de toque ou chave da abóbada do sistema". Assim, arremata, é inaceitável qualquer interpretação que ignore ou anule um princípio.

            Dessa forma, tanto o princípio republicano quanto o federativo são normas jurídicas tão relevantes, princípios tão rígidos, pedras fundamentais do sistema, intocáveis, que recebem da Constituição o título de cláusulas pétreas (art. 60, parágrafo 4º, da Constituição).

            Os aspectos examinados anteriormente forneceram a base para a compreensão da relevância dos princípios constitucionais e de critérios de interpretação que nos auxilia a ter na devida conta que o acesso aos cargos públicos nos Tribunais de Contas deve ser dar através de concurso público.

            Ataliba [37] destaca que República é "o regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas [e judiciárias, acrescemos nós]) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renováveis periciodicamente". A eletividade, a periodicidade e a responsabilidde são as características da república.

            Observa que a compreensão de qualquer instituição de direito público depende a prévia percepção dos direitos fundamentais postos em sua base por seu povo, sendo impossível descurar-se o caráter de sistema do direito [38].

            Ao examinar acuradamente a República e o princípio republicano, observa que tal princípio dá conteúdo e extensão à tripartição do poder, dos mandatos políticos e sua periodicidade, da alternância no poder, da responsabilidade dos agentes públicos, da proteção às liberdades públicas; da prestação de contas, mecanismos de fiscalização e controle do povo sobre o governo [39].


10.O Princípio Constitucional da Moralidade e da Impessoalidade

            Tanto quanto o princípio republicano, os princípios da moralidade e da impessoalidade vêm expressamente previstos no art. 37, da Constituição Federal, impondo aos agentes públicos o dever de boa administração, estando a ele ínsitos o dever de honestidade, boa-fé e vinculação ao interesse público.

            O princípio da impessoalidade se fundamenta no princípio da isonomia e exige tratamento igualitário entre todos os indivíduos.

            Da análise desses dois princípios é possível concluir a vedação de favorecimento pessoal no acesso a cargos públicos, celebração de contratos, exigindo-se a regra geral do concurso público ou da licitação, respectivamente.


11.A Inconstitucionalidade da Atual Forma de Acesso aos Tribunais de Contas

            Na ADC citada Barroso observa que a lei formal deixou de ser a única fonte de atos normativos ou a única intermediária entre a Constituição e os atos concretos de execução, exigindo da administração e do administrador o vínculo a um bloco mais amplo de juridicidade, sobretudo à Constituição.

            A Constituição, assim, passa a dirigir comandos diretos aos agentes públicos exigindo deles que atuem de forma legal e legítima, não se conformando com tal legitimidade atos que violem o princípio da moralidade e da impessoalidade.

            Cabe destacar ainda que o art. 11, da Lei nº 8.429/92 identifica e pune como ato de improbidade ações e omissões que violem os princípios da administração pública.

            Outro aspecto relevante a destacar é que não há direitos absolutos [40], havendo limites imanentes aos direitos, podendo dois direitos virem a conflitar-se e exigir que se utilize das técnicas de interpretação constitucional, sopesando os princípios diante do caso concreto para decidir que princípio deve ceder para determinado direito seja assegurado.

            Se a forma de ingresso na Magistratura e no Ministério Público é o concurso público e as normas jurídicas aplicáveis aos Tribunais de Contas seguem as mesma estrutura das aplicáveis ao Judiciário, resta incompatível com uma interpretação ‘conforme’ e sistemática do ordenamento jurídico (Bobbio) que se ora se aproveite normas favoráveis e se afaste as desfavoráveis. Assim, impõe-se também no âmbito dos Tribunais de Contas o concurso público.

            Tal qual na Ação Direta de Constitucionalidade do nepotismo (ADC 12/2006), proposta pela Associação Nacional dos Magistrados, onde se reconheceu a constitucionalidade da decisão do Conselho Nacional de Justiça que vedou o nepotismo no âmbito do Judiciário, a forma atual de ingresso de Conselheiros traduz-se em nepotismo onde Executivo ou o Legislativo indicam seus amigos e protegidos, pessoas que ingressam no serviço público pela porta dos fundos e passam a deter cargos vitalícios, muitas vezes sem qualquer preparo técnico para o desempenho da função, ignorando-se que a sociedade tem nos Tribunais de Contas instituição relevantíssima com vistas à apuração da boa gestão dos recursos públicos.

            Conforme explorado no item V.2 da ADC supra, há vedação constitucional ao nepotismo e a atual forma de ingresso dos conselheiros e ministros nos Tribunais de Contas ofende princípios elementares do direito constitucional brasileiro, como os princípios da moralidade e da impessoalidade, conforme anteriormente observado.

            O nepotismo vigente no âmbito dos Tribunais de Contas ofende, assim, ao sistema jurídico brasileiro incluindo, por óbvio, a ofensa à Constituição.

            Importante destacar que constitui princípio comezinho de hermenêutica jurídica que as normas não são interpretadas isoladamente, mas sistematicamente, ou seja, levando-se em conta todo o ordenamento jurídico, conforme nos ensina Norberto Bobbio em sua Teoria do Ordenamento Jurídico.

            Não bastasse a inconstitucionalidade apontada por ofensa aos princípios republicano, da moralidade, da isonomia e da impessoalidade, há que aduzir-se que o termo constitucional ‘escolhido’ não significa ‘indicado’, ou o poder de indicar diretamente, donde se conclui que tanto o Legislativo quanto o Executivo não podem indicar diretamente os Conselheiros, pois do contrário a garantia de acessibilidade a qualquer cidadão estaria sendo violada, já que ao invés da universalidade do acesso estar-se-ia dando aplicação a regras de privilégio, violadora de princípio constitucional da isonomia e do próprio art. 37, CF.

            Se qualquer brasileiro pode ser Conselheiro e a regra de acessibilidade ao serviço público é o concurso público (art. 37, CF), a interpretação elementar a extrair-se é que as vagas só poderiam ser preenchidas mediante tal concurso.

            Mas a exigência de concurso público poderia sugerir a alguns que estaríamos diante de possíveis antinomias constitucionais, ou seja, da possibilidade da existência de normas inconstitucionais dentro da própria Constituição, teoria defendida por Otto Bachoff e também por Jorge Miranda, conforme já se observou.

            Assim, o caminho a seguir é fazer uso dos métodos de solução de conflitos de normas, no caso de solução de normas constitucionais, seja através do princípio da ‘intepretação conforme’ seja pela declaração de ‘nulidade parcial sem redução de texto’ ou ainda através da aplicação do princípio da proporcionalidade ponderando-se princípios constitucionais que venham a conflitar-se, critério este defendido por inúmeros juristas como Luis Roberto Barroso, Ronald Dworkin, J. J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Gustavo Zagrebelski, dentre outros.

            Aplicando-se aos Tribunais de Contas normas supletivas do Poder Judiciário, há ainda que analisar-se o disposto no art. 94, da Constituição Federal e art. 95, da Constituição do Estado do Paraná, que reservam 1/5 dos lugares dos Tribunais para membros do Ministério Público, com mais de 10 anos de carreira e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de 10 anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. Dessa lista, o Tribunal formará lista tríplice, enviando ao Executivo que escolherá um de seus integrantes para nomeação dentro do prazo de 20 dias.

            Dessa forma, há um aparente conflito entre as normas que versam sobre o quinto constitucional e a forma de ingresso nos Tribunais de Contas, previstos nas Constituições Federal e Estadual, solucionável pelo critério da norma especial. Tal critério nos orienta que havendo norma especial regulando determinada situação, tal critério deve ser aplicado.

            Assim, como compatibilizar a regra geral de acessibilidade ao serviço público (art. 37, CF), com o principio da isonomia, com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito, com o art. 94 e art. 95, da Constituição Estadual e art. 77, § 2º, da Constituição do Paraná?.

            Pela correta aplicação do art. 37, da Constituição Federal, especialmente a observância dos princípios republicano, da isonomia, da moralidade e da impessoalidade, normas jurídicas imperativas e vinculantes; pela correta aplicação da natureza jurídica desses cargos (servidores públicos), pelo critério da ‘interpretação conforme’ e da ‘nulidade parcial sem redução de texto’, conforme examinado por Lenio Luiz Streck (Jurisdição Constitucional), donde se extrai a conclusão de que impõe-se a aplicação da regra do concurso público, dando ampla aplicação à possibilidade de acessibilidade aos cargos públicos, rechaçando-se quaisquer espécies de privilégios e garantias de vagas.

            Em assim não se entendendo, deve-se abrir publicamente as vagas a quaisquer interessados a integrar o Tribunal de Contas que preencha os requisitos constitucionais, cabendo ao Executivo e ao Legislativo apenas escolher dentre os mais capacitados.


12.Conclusão

            Do exposto, conclui-se que quaisquer atos praticados com violação do princípio republicano, da isonomia, da impessoalidade e da moralidade administrativa são inconstitucionais, donde resulta inconstitucional a atual forma de ingresso dos Ministros e Conselheiros aos Tribunais de Contas, já que a forma nada mais representa que forma de apadrinhamento realizado pelo Executivo e pelo Legislativo, não se justificando regra de exceção de ingresso ao serviço público para o desempenho de cargos tão relevantes e vitalícios sem a observância da regra do concurso público.

            Tais cargos deveriam ser desempenhados em forma de rodízio, por um período de 03 ou 04 anos, pelos próprios servidores dos Tribunais de Contas, concursados, que possuírem os requisitos técnicos e jurídicos exigidos pela Constituição da República, escolhidos em eleição democrática da qual participará todos os servidores do Tribunal que os indicará.

            As listas triplas e sêxtuplas e o que elas representam – burla ao princípio da separação dos poderes – também não se mostra compatível com o princípio da imparcialidade e com a isenção de ânimo que os membros de cada Poder devem possuir para o bom desempenho de suas respectivas missões Institucionais.


Notas

            01 Não se tem notícia de uma única prestação de contas de Governador de Estado desaprovada nos últimos anos.

            02 BARROSO, Luis Roberto. Ação Direta de Constitucionalidade nº 12 (ADC 12), cuja petição inicial está disponível no site www.stf.gov.br.

            03 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 20. ed. Malheiros Editores : 2002, p. 226 a 237.

            04 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo : Saraiva, 2005, p. 566.

            05 Ibidem, p. 569.

            06 Ibidem, p. 578.

            07 Ibidem, p. 580.

            08 Idem, p. 570.

            09 Ibidem, p. 575.

            10 MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra : Coimbra Editora, 1996, p. 31.

            11 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Coimbra. Almedina, 1994, p. 40.

            12 Ibidem, p. 3.

            13 Ibidem, p. 11.

            14 Ibidem, p. 11.

            15 STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional : Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2002, p. 479.

            16 Idem, p. 477.

            17 Idem, p. 478.

            18 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra. Coimbra Editora, 2000, p. 257-258.

            19 Ibidem, p. 258.

            20 Ibidem, p. 258.

            21 Ibidem, p. 259.

            22 CANARIS, Claus – Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

            23 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

            24 Ibidem, p. 479 e seguintes.

            25 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luis Afonso Heck. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 70-76.

            26 Op. cit. p. 267.

            27 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional – Construindo uma Nova Dogmática Jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 137.

            28 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. 2. São Paulo : Malheiros, 2005, p. 771.

            29 Ataliba, op. cit. p. 13.

            30 Ibidem, p. 34.

            31 GORDILLO, Agustín. Introducción al Derecho Administrativo. 2. ed. Abeledo Perrot, 1966, p. 176-177.

            32 Ibidem, p. 35.

            33 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteúdo jurídico do principio da igualdade. 3. ed. 10ª tiragem. São Paulo : Malheiros, 2002, p. 71.

            34 Ibidem, p. 71.

            35 ATALIBA, op. cit. p. 180.

            36 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. 2. tiragem. São Paulo : Malheiros, 2001, p. 38.

            37 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. 2. tiragem. São Paulo : Malheiros, 2001, p. 13.

            38 Idem, p. 15.

            39 Ibidem, p. 27.

            40 NOVAIS, Jorge Reis. ....



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HIGINO NETO, Vicente. A inconstitucionalidade da atual forma de ingresso de ministros e conselheiros aos Tribunais de Contas. A infração ao princípio da separação dos poderes decorrentes das listas triplas e sêxtuplas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1051, 18 maio 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8422. Acesso em: 25 abr. 2024.