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iFamily, a virtualização das relações familiares

iFamily, a virtualização das relações familiares

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O conceito de iFamily foi apresentado por Conrado Paulino a fim de identificar as relações de afeto que ocorrem no mundo virtual, superando distâncias físicas.

Todas as evoluções tecnológicas pelas quais a sociedade moderna tem passado vêm mudando a forma como o relacionamento interpessoal se dá, em várias esferas.

Vivemos na chamada “sociedade da informação”, na qual a velocidade e o fluxo de dados crescem de forma exponencial, sem qualquer controle, seja de quantidade ou qualidade. A reboque, estes avanços tecnológicos trouxeram, também, novos modos de relacionamento humano, principalmente pelo caráter instantâneo e a praticidade oferecidos pela internet, como meio de contato e acesso.

Os avanços dos meios de comunicação virtual afetaram nossa atuação profissional, possibilitando a prática do home office, como meio alternativo de trabalho, nestes tempos de pandemia e distanciamento social. Contudo, embora fisicamente distante, a internet possibilitou a aproximação das pessoas, ainda que de modo virtualizado.

Naturalmente, estes meios virtuais de contato e convívio chegaram ao seio familiar, com reflexos na Doutrina e na Jurisprudência, afeta ao Direito de Família.

Atento a todos estes avanços, o jurista contemporâneo, Conrado Paulino, apresentou um novo modelo de família no ano de 2013, em seu livro “iFamily: Um novo conceito de família?”, a partir de uma analogia ao nome de dispositivos eletrônicos de uma grande empresa norte-americana de tecnologia.

A criação deste termo não foi por mero acaso. De fato, buscou-se identificar as relações de afeto havidas, cada vez mais, em ambientes virtuais, como um atalho às distâncias físicas impostas, seja pela mera geografia, seja pelas atuais regras de distanciamento social, de cunho sanitário. Com isso, mantém-se o contato, o cuidado e a atenção, tão necessários à manutenção dos vínculos afetivos.

Vemos, através da história, uma mudança gradativa na referência familiar, com uma diminuição da importância do espaço físico como ponto de contato e relacionamento à priori. Se, na Roma Antiga, havia o fogo sagrado dos lares, ou seja dos espíritos dos antepassados daquela família, como ponto focal de sua residência, passamos para a prática das conversas ao redor da mesa, às refeições, para, hoje, temos a internet, na criação abstrata de um espaço inexistente, um contato virtualizado, sem prejuízo, a princípio, dos laços afetivos havidos entre os entes familiares.

Há, atualmente, uma maior fluidez das relações familiares, por conta da possibilidade que a virtualização da convivência (grupos de conversas, vídeochamadas, etc.) tem proporcionado. Se por um lado, garante-se uma maior possibilidade de contato entre pais e filhos, entre cônjuges e companheiros, deve-se perceber, por outro lado, que o mau uso da tecnologia pode acarretar ao esgarçamento dos laços afetivos.

A cibercultura veio também transformar o papel que cada pessoa ocupa na sociedade e, consequentemente, no seio familiar. As distâncias físicas não são mais um impeditivo para o contato contínuo, contudo a falta de convivência física transforma o relacionamento em algo distante, retirando-lhe o calor humano do toque, produzindo, em muitos casos, um esfriamento das relações, mudando-lhes sua característica mais marcante, de cunho emocional.

Embora tenha passado por diversas transformações, nos últimos anos, a família, como célula de convivência, ainda carece do afeto, como argamassa a solidificar suas fundações, inclusive, por via de previsão constitucional.

A normatização do afeto como elemento fundamental da relação familiar visa a proteger a existência desta instituição, como medida preventiva face aos deletérios efeitos que a virtualização das relações pode acarretar. Todavia, é absurda a ideia de obrigar-se alguém a uma atitude afetiva positiva, através de dispositivo legal. De fato, tal medida visa a, apenas, aferir a responsabilidade do abandono afetivo promovido no seio familiar.

Mas, independentemente de impor-se obrigações legais quanto ao afeto, aos entes familiares, o fato é que, a bem das relações havidas entre eles, deve-se lançar mão de todos os meios possíveis de contato. A virtualização do convívio, seja por períodos curtos ou longos, singulares ou regulares, é forma legítima de relacionamento, cuidado e atenção. Embora a fluidez dos relacionamentos seja uma característica da modernidade, tem-se o uso da tecnologia como um meio de preservação da família, dos laços que unem os seus membros e do carinho, tão necessários à vida nos dias atuais.

A título ilustrativo, temo, no entendimento de Conrado Paulino, que as iFamilies podem se dar de forma provisória, na qual, por alguma razão temporária, um dos integrantes da família precisa afastar-se do convívio habitual por um objetivo específico, seja por compromissos profissionais, acadêmicos ou até de saúde. E a permanente, na qual os integrantes decidem desde a sua formação pela não convivência sob o mesmo teto, ainda que se considerem e se classifiquem como ente familiar, o que pode ocorrer, por exemplo, com os casais que moram em residências separadas.

No acompanhamento do fenômeno tecnológico, o Direito de Família vem consolidando cada dia mais a dimensão socioafetiva como base do conceito atual de família, a fim de absorver e o impacto das mídias digitais e redes sociais na reconfiguração destas relações.

Assim, por força das novas formas de contato e convivência, temos a família virtual, a iFamily, como uma realidade nos tempos modernos, pautada na realização pessoal da afetividade e da dignidade da pessoa humana, buscando um ambiente de convivência e solidariedade como exercício da função elementar da família.

Temos, ainda, como exemplo do avanço da compreensão deste fenômeno, uma decisão inovadora proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a qual garantiu a um pai residente nos Estados Unidos da América, o direito de convivência com seu filho através do contato virtual, por três vezes semanais. Nesta decisão aquela Corte entendeu que a despeito da idade da criança, o convívio com o pai, ainda que de modo virtual, é fator essencial para o seu desenvolvimento pleno, na preservação do melhor interesse da criança.

A real possibilidade da constituição de uma família, chamada de virtual, uma iFamily, em caráter permanente, pode ser caracterizada pela lógica da família eudemonista, pautada na felicidade, na autonomia do indivíduo e em sua realização afetiva.

Temos, sob esta ótica, a caracterização da família e do casamento como um instrumental garantidor do desenvolvimento pessoal do ente familiar, através da realização dos seus interesses afetivos e existenciais, em vista de sua formação e estabilidade emocionais, para a vida em sociedade.

Assim, temos a iFamily, como a conceitualização das novas tendências de convívio, havidas em meio eletrônico-virtual, como sinal de adaptação das relações de ordem fundamental, em prol do afeto, da atenção e do cuidado devido no seio da família, como base da existência e do desenvolvimento da pessoa humana.


Autor

  • Claudia Neves

    Advogada. Pós-graduada em Direito das Mulheres e em Direito de Família e Sucessões, com atuação na área cível com ênfase na área de família, com seus reflexos patrimoniais e assessoria em contratos civis e comerciais, seja na celebração de negócios seja na defesa de interesses. Coordenadora Adjunta da Comissão da Mulher Advogada e membro da Comissão de Prerrogativas da OAB Santo Amaro (2019-2021). Instagram: @claudianeves.adv

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NEVES, Claudia. iFamily, a virtualização das relações familiares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6316, 16 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86048. Acesso em: 19 abr. 2024.