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A eficácia da decisão do STF em ADI por omissão e a mora do poder público na realização da revisão geral anual dos servidores

A eficácia da decisão do STF em ADI por omissão e a mora do poder público na realização da revisão geral anual dos servidores

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O texto discute a eficácia das decisões do STF em ação direta de inconstitucionalidade por omissão, examinando o caso concreto da omissão do poder público em realizar a revisão geral e anual das remunerações dos servidores.

Resumo

            O presente estudo discute a eficácia das decisões do STF em ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ADI por omissão, examinando o caso concreto da omissão do poder público em realizar a revisão geral e anual das remunerações dos servidores, segundo comanda o art. 37, X, da Constituição Federal, com as alterações introduzidas pela EC nº 19/98. Mostra-se que, nesse caso concreto, a mora já foi reconhecida pelo STF, restando discutir-se que efeitos jurídicos deverão ser extraídos dessa decisão, para conciliar-se o dever de preservação do princípio constitucional da separação dos poderes, com o dever de conferir eficácia à prestação jurisdicional.


I. Introdução

            Adotamos um sistema misto de controle da constitucionalidade, isso porque, temos a coexistência dos métodos difuso e concentrado de controle, inclusive, segundo José Afonso da Silva (2006, p. 538), há clara tendência, em nossa justiça constitucional, de ampliação do método concentrado de controle.

            Pelo método difuso, qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, no caso concreto, a pedido de qualquer interessado. Esse sistema é também chamado de exceção ou defesa, uma vez que por ele se permite, a quem quer que se sinta prejudicado, manejar a alegação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, para solução de seu caso concreto.

            Já pelo método concentrado, o exame da compatibilidade da lei ou ato normativo com a constituição se dá in abstracto, com fito de expurgar qualquer lei ou ato normativo acoimado do vício da inconstitucionalidade do sistema jurídico. Tal ação tem legitimidade ativa atribuída constitucionalmente a um numero reduzido de legitimados, art. 103, incisos I a IX da CF, e competência para julgamento concentrada no órgão de cúpula do judiciário pátrio, pelo menos no tocante à legislação federal.

            Nesse contexto, a ADI por omissão é modalidade de ação direta de inconstitucionalidade, portanto, instrumento de controle da constitucionalidade pelo método concentrado.

            Porém, a despeito da importância dessa ação, esbarramos no sério confronto entre princípios quando da atribuição dos efeitos às decisões de procedência das ADI por omissão: Deve o judiciário fazer cessar a omissão, pelo estabelecimento de regra direta, colmatando a lacuna deixada pelo legislador, porém, substituindo-lhe, em certa medida, no seu mister precípuo; ou deve, em respeito à separação dos poderes do Estado, que devem ser independentes e harmônicos entre si, quedar-se inerte, diante de omissão declaradamente inconstitucional, limitando-se proclamar tal ocorrência e comunicá-la ao legislador, para que seja sanada a omissão, porém, sem qualquer fixação de prazo ou atribuição de conseqüência?

            Nossa Suprema Corte tem se inclinado para a segunda solução, sufragando entendimento preconizado pelo linha não concretista. Porém, apesar de tal posição, ou seja, a despeito de entender não ser possível ao judiciário o estabelecimento de prazo para o legislador legislar, ou a elaboração de norma, em lugar deste, para sanar a omissão, o STF tem proclamado que a omissão legislativa, especialmente após formalmente reconhecida pelo judiciário, pode efetivamente causar danos, e que tais danos são indenizáveis.

            Nessa perspectiva, o caso da mora do poder público na realização da revisão geral anual das remunerações dos servidores, mora já reconhecida pelo STF na ADI 2.061/DF, deve ser examinado, com vistas ao estabelecimento, para o poder público, do dever de indenizar os prejuízos suportados pelos servidores em decorrência da aludida mora.


II. O direito à indenização dos prejuízos decorrentes de mora legislativa

            O professor Canotilho (1998, p. 920) faz referência ao dever e direito à legislação, e sustentando a necessidade de concretização dos dispositivos constitucionais, se não pela atividade legislativa, ao menos pela institucionalização de formas democráticas tendentes a um maior reforço da proteção jurídica contra omissões inconstitucionais:

            A inconstitucionalidade por omissão é um instituto que reflete as insuficiências resultantes da redução do Estado de direito democrático "aos processos" e instrumentos típicos dos ordenamentos liberais. Com efeito, a generalidade da doutrina não reconhece um direito subjetivo dos cidadãos à atividade legislativa. Embora haja um dever jurídico-constitucional do legislador no sentido de este adotar as medidas legislativas necessárias para tornar exeqüíveis as normas da Constituição, a esse dever não corresponde automaticamente um direito fundamental à legislação. Daí a insistência na necessidade de institucionalização de formas democráticas tendentes a um maior reforço da proteção jurídica contra omissões inconstitucionais ações populares, direito de iniciativa legislativa popular, petições coletivas e, em geral, formas de acentuação da democracia participativa.

            [...] Na hipótese de omissões derivadas do não cumprimento de imposições constitucionais, os "momentos" decisivos para a verificação da existência da inconstitucionalidade são mais a importância e indispensabilidade da mediação legislativa para dar operatividade prática às normas constitucionais do que a fixação de eventuais limites ad quem.

            No tocante à omissão da elaboração de lei, a despeito do estabelecimento da prerrogativa constitucional, pertinente ainda a lição do mesmo CANOTILHO, no seu comentário "Tomemos a sério o silêncio dos poderes públicos - o direito à emanação de normas jurídicas e a proteção judicial contra as omissões normativas" (apud TEIXEIRA, 1993, p. 351) onde invoca a irreverente letra do também genial Chico Buarque de Holanda, parodiando a interrogação bíblica:

            \´´Deus dará, Deus dará e se Deus não der?\´´

            "Destarte, se o onipotente legislador ordinário não atender aos desígnios do mais onipotente ainda legislador constituinte, cabe ao Poder Judiciário, como Poder de Estado, dar eficácia ao comando constitucional, sob pena de se permitir que o não fazer do entre criado (legislatura ordinária) valha mais do que o já feito pelo ente criador (legislador constituinte)."

            Ou seja, para esse ilustre constitucionalista português, a Constituição deve ser respeitada, inclusive com a concretização de seus comandos eventualmente esvaziados pela omissão dos poderes constituídos.

            Nosso Supremo Tribunal Federal tem debatido, notadamente em sede mandado de injunção, a possibilidade de realizar a concretização de comando constitucional inviabilizado pela omissão legislativa (teoria concretista), parecendo-nos especialmente apropriada a adoção de tal atitude após a comunicação do reconhecimento da omissão legislativa, em permanecendo, ainda, omisso o legislador (teoria concretista na modalidade indireta), porém, como já enunciamos, prevalece na Suprema Corte a teoria não concretista. Por esta, pode o judiciário, tão somente, declarar a inconstitucionalidade decorrente da omissão legislativa e comunicar ao legislador para que adote providências, "torcendo" para essas sejam realmente adotadas. Tal entendimento esvazia a eficácia do mandado de injunção, bem assim da ADI por omissão.

            Apesar disso, o próprio STF já vislumbrou a possibilidade de determinar-se indenização pela omissão legislativa, o que seria um mínimo efeito a extrair-se da inércia inconstitucional:

            "MANDADO DE INJUNÇÃO. ARTIGO 8º, § 3º DO ADCT. DIREITO À REPARAÇÃO ECONÔMICA AOS CIDADÃOS ALCANÇADOS PELAS PORTARIAS RESERVADAS DO MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA. MORA LEGISLATIVA DO CONGRESSO NACIONAL.

            1 - Na marcha do delineamento pretoriano do instituto do Mandado de Injunção, assentou este Supremo Tribunal que "a mera superação dos prazos constitucionalmente assinalados é bastante para qualificar, como omissão juridicamente relevante, a inércia estatal, apta a ensejar, como ordinário efeito conseqüencial, o reconhecimento, "hic et nunc", de uma situação de inatividade inconstitucional." (MI 543, voto do Ministro Celso de Mello, in DJ 24.05.2002). Logo, desnecessária a renovação de notificação ao órgão legislativo que, no caso, não apenas incidiu objetivamente na omissão do dever de legislar, passados quase quatorze anos da promulgação da regra que lhe criava tal obrigação, mas que, também, já foi anteriormente cientificado por esta Corte, como resultado da decisão de outros mandados de injunção.

            2 - Neste mesmo precedente, acolheu esta Corte proposição do eminente Ministro Nelson Jobim, e assegurou "aos impetrantes o imediato exercício do direito a esta indenização, nos termos do direito comum e assegurado pelo § 3º do art. 8º do ADCT, mediante ação de liquidação, independentemente de sentença de condenação, para a fixação do valor da indenização.

            3 - Reconhecimento da mora legislativa do Congresso Nacional em editar a norma prevista no parágrafo 3º do art. 8º do ADCT, assegurando-se, aos impetrantes, o exercício da ação de reparação patrimonial, nos termos do direito comum ou ordinário, sem prejuízo de que se venham, no futuro, a beneficiar de tudo quanto, na lei a ser editada, lhes possa ser mais favorável que o disposto na decisão judicial. O pleito deverá ser veiculado diretamente mediante ação de liquidação, dando-se como certos os fatos constitutivos do direito, limitada, portanto, a atividade judicial à fixação do "quantum" devido.

            4 - Mandado de injunção deferido em parte." (grifo nosso)

            (STF. Tribunal Pleno. MI nº 562/RS. Rel. para acórdão Min. Ellen Gracie. DJU de 20.06.2003).

            Ou seja, não podendo legislar, nem "obrigar" o legislador a fazê-lo, mesmo diante de omissão que torne inoperante dispositivo constitucional, resta ao judiciário determinar que sejam os eventuais prejuízos, decorrentes de eventual mora, devidamente indenizados, evitando-se que a carta Maior seja feita letra morta pelos poderes constituídos.


III. O art. 37, X da CF

            Nessa linha de raciocínio, examinemos o art. 37, X, da Constituição Federal, com as alterações introduzidas pela EC nº 19/98:

            Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

            ................

            X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privada em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (destacamos).

            Como facilmente se vê, tal dispositivo determina uma revisão geral da remuneração e subsídio dos servidores públicos, a ser realizada anualmente, sempre na mesma data e sem distinção de índices.

            Tal mandamento já fora introduzido em nosso texto constitucional por força da EC 18/98, portanto, no mínimo, deveria ter ocorreu uma revisão geral nas remunerações dos servidores a cada ano, a partir dos primeiros doze meses de vigência da redação ali contida.

            Não foi que ocorreu. A despeito da clareza do comando, o Chefe do Executivo, a quem compete a iniciativa da lei, que promoveria a referida revisão geral das remunerações, permaneceu omisso em seu dever de constitucional de deflagrá-la, e por diversos anos. A primeira lei dando aplicabilidade ao dispositivo foi a Lei nº 10.331, de 18.12.2001, que estabeleceu os critérios de revisão anual geral previsto no art. 37, X da CF/88, estabelecendo, em seu artigo 5º, o índice de 3,5% (três vírgula cinco por cento) na revisão geral das remunerações e subsídios dos servidores públicos federais, para o exercício de 2002.

            Portanto, no que se refere ao período de junho de 1999 (doze meses após a edição da EC nº 19/98) a dezembro de 2001 (edição da Lei nº 10.331/01), período em que não houve a revisão anual prevista no dispositivo constitucional, percebemos que do descumprimento da obrigação constitucional de revisar as remunerações, anualmente, advieram prejuízos materiais evidentes aos destinatários da proteção constitucional em questão.


IV. O reconhecimento, pelo STF, da mora em realizar a revisão geral das remunerações, constitucionalmente ordenada

            O Supremo Tribunal Federal, inclusive, foi instado a se pronunciar sobre a questão, tendo, no julgamento da ADIn 2.061/DF, reconhecido a mora do Poder Executivo em cumprir sua obrigação constitucional de promover a aludida revisão.

            Para tal conclusão, a Suprema Corte partiu do reconhecimento da omissão do Executivo em desencadear o processo legislativo para elaboração da lei, entendo incidir a responsabilidade prevista no art. 37, § 6º da CF/88, a partir do reconhecimento da mora do Poder Público, que, por força do princípio da razoabilidade para efeito temporal, foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal após um ano do advento do inciso X, do art. 37 da CF. Vejamos a ementa do julgamento:

            AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO. ART. 37, X, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (REDAÇÃO DA EC Nº 19, DE 4 DE JUNHO DE 1998).

            Norma constitucional que impõe ao Presidente da República o dever de desencadear o processo de elaboração da lei anual de revisão geral da remuneração dos servidores da União, prevista no dispositivo constitucional em destaque, na qualidade de titular exclusivo da competência para iniciativa da espécie, na forma prevista no art. 61, § 1º, II, a, da CF.

            Mora que, no caso, se tem por verificada, quanto à observância do preceito constitucional, desde junho/1999, quando transcorridos os primeiros doze meses da data da edição da referida EC nº 19/98.

            Não se compreende, a providência, nas atribuições de natureza administrativa do Chefe do Poder Executivo, não havendo cogitar, por isso, da aplicação, no caso, da norma do art. 103, § 2º, in fine, que prevê a fixação de prazo para o mister.

            Procedência parcial da ação." (STF, ADIn nº 2.061-7/DF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Ilmar Galvão, decisão 25-4-01, DJ 29-6-01, unânime).

            Para exame ainda mais detalhado, vejamos trechos de alguns dos votos dos Srs Ministros do Supremo, no aludido julgamento.

            Consignou Relator do processo, Ministro Ilmar Galvão:

            (...) fica evidente que o texto constitucional, em sua nova redação, explicitou o que este Relator teve por subentendido no texto original, ou seja, a obrigatoriedade de revisão geral anual da remuneração dos servidores da União, providência que implica a edição de lei específica, de iniciativa privativa do Presidente da República, como previsto no art. 61, § 1º, II, a, do texto constitucional.

            Tornou-se extreme de dúvida, portanto, incumbir ao Chefe do Poder Executivo o cumprimento do imperativo constitucional, enviando, a cada ano, ao Congresso Nacional, projeto de lei que disponha sobre a matéria.

            Ocorre, entretanto, como destacado na inicial, que até o presente momento, embora quase três anos tenham decorrido desde a edição da EC 19/98 e, conseqüentemente, da categórica norma do art. 37, X – e não obstante o fenômeno da inflação se tenha feito sentir, ininterruptamente, durante todo o período -, não se registrou o necessário desfecho, de parte do Palácio do Planalto, de nenhum processo legislativo destinado a tornar efetiva a indispensável revisão geral dos vencimentos dos servidores da União.

            Patente assim, a alegada mora legislativa, de responsabilidade do Presidente da República, que justificou o ajuizamento da presente ação direta de inconstitucionalidade por omissão..."

            Na mesma linha, o Ministro Marco Aurélio, em seu voto, ensina:

            (...) Tem-se a revelação, em bom vernáculo, de que o princípio da irredutibilidade não se situa no plano simplesmente formal, mas efetivo, tendo como finalidade a reposição do poder aquisitivo dos vencimentos.

            A omissão, a meu ver, está escancarada, e já consideraria

            configurada desde janeiro de 1996. Com maior razão o faço

            relativamente ao mês que se seguiu ao aniversário de ano da própria Emenda Constitucional nº 19. (....) A iniciativa, no caso do projeto, não é de uma autoridade simplesmente administrativa, como referida no artigo 103, § 2º, da Constituição Federal; a mora no encaminhamento do projeto é do Chefe do Poder Executivo.

            O Constituinte de 1988, conforme ressaltado por José Afonso da Silva, mostrou-se tímido na regência da matéria, porque corremos o risco, principalmente em terra brasileira, de vir à balha uma decisão do Supremo Tribunal Federal sem eficácia maior, bastando, para tanto, que persista o Chefe do Poder Executivo na omissão, ora certificada pela Corte. Espero, porque confio no perfil democrático de Sua Excelência, que o Presidente da República, Professor Fernando Henrique Cardoso, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, do Órgão de cúpula do Poder Judiciário, certificando de forma clara, precisa, o ato omissivo, encaminhe o projeto, objetivando a revisão da remuneração dos servidores públicos. Com isso, as instituições demonstrarão à sociedade brasileira que estão funcionando, como é próprio no Estado Democrático de Direito...

            E no mesmo sentido sucederam-se os votos, todos reconhecendo a mora e a inconstitucionalidade por omissão. Poderíamos citar todos os outros, pois o julgamento foi unânime.

            De outra banda, preocupado, desde logo, com assegurar o mínimo de efeitos à decisão da corte, o Ministro Maurício Correia pondera: "(...) Nesse caso, o que se espera é apenas que não seja uma mera ficção, mas que realmente haja resultado positivo do deferimento do pedido. "

            Assim, patentes à inconstitucionalidade por omissão e a mora do poder público. E adotando o posicionamento do Pretório Excelso, resta examinarmos reconhecimento do direito de indenização aos servidores e agentes políticos, pelas perdas do poder aquisitivo das remunerações e subsídios percebidos, devendo ser recomposto, de forma retroativa, o dano salarial sofrido para cada um dos períodos não regulamentados pela Lei nº 10.331/01, a partir de junho de 1998, data da alteração trazida pela EC 19/98.


V. Os efeitos do reconhecimento, pelo STF, da mora em realizar a revisão geral das remunerações e o direito à indenização pelos prejuízos

            Ora, se o STF não pode ordenar ao Executivo, em respeito à separação e autonomia dos poderes, o imediato cumprimento do mandamento constitucional, ao menos, o reconhecimento formal da mora deve ter algum efeito jurídico, como ocorre quando o judiciário (por qualquer de seus membros que seja) reconhece em alguém o estado de mora no cumprimento de alguma obrigação.

            Há conseqüências jurídicas mínimas a serem extraídas dessa mora, quais sejam, a de gerar para os prejudicados por esta o direito à reparação de todo e qualquer dano dela decorrente e a incidência dos juros moratórios.

            Ainda que se argumente, utilizando a clássica classificação de Silva (1998), ser o supracitado dispositivo constitucional norma de eficácia limitada, na medida em assegurou a revisão geral anual da remuneração aos servidores públicos, através de lei específica de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, quer dizer, o dispositivo consagra o princípio da periodicidade, mas é norma de eficácia limitada, pois depende de normatização infraconstitucional para gerar todos os seus efeitos,

            entendemos que a obrigação de dar início ao processo legislativo, deflagrando as medidas tendentes à concretização da revisão, está nítida e indiscutivelmente traçada.

            A Constituição pode não ter estabelecido os índices para a revisão, ou os critérios a serem utilizados para alcançá-los, remetendo tais questões à legislação infra-constitucional, cuja iniciativa atribuiu ao Chefe do Executivo, porém, deixou inequívoca a obrigação de realizar, anualmente, a revisão.

            Aliás, entendemos que andou bem, nesse aspecto, o Constituinte Derivado, pois a EC 19/98 não deveria realmente ter corrido o risco de estabelecer índices sem parâmetro objetivo, pró-futuro, ou mesmo de engessar critérios que poderiam se revelar inadequados diante da conjuntura econômico-social que se desenharia, a cada ano. O legislador, por impossibilidade fática, não pode ser obrigado a prever todas as possibilidades e desdobramentos sociológicos das situações que está, genericamente, normatizando. É papel do aplicador adequar e bem seguir os comando, atendendo, inclusive, a seu conteúdo teleológico.

            Ora, se a finalidade dessa norma foi preservar o valor real das remunerações e subsídios, o que deve ser feito, por óbvio, examinando as oscilações inflacionárias em cada período a ser recomposto, revisado, cabe ao Chefe do Executivo adotar as providencias para bem cumprir o mandamento constitucional.

            Nesse sentido, ou se reconhece eficácia ao dispositivo constitucional, através do Judiciário, ou se terá uma situação em que a omissão do legislador ordinário (poder constituído), ou pior do Chefe do Executivo, como no caso em tela, vale mais do que a afirmação clara do poder constituinte; permitindo a espoliação do poder de compra e da qualidade de vida dos servidores, com todos os nocivos efeitos sócio-econômicos.

            Segundo Eros Grau (2000, p. 172), a interpretação normativa é um processo dialético de compreensão e não deixa de ser um ato político e ideológico, pois o intérprete é condicionado pela sua cultura jurídica, seus credos filosóficos, políticos e religiosos, suas condições sócio-econômicas e psico-sociais.

            Bem, o fato é que não há justificativa plausível para a omissão em que se manteve o então presidente FHC, desde 1999, doze meses após a EC 19/98, que foi de 04 de junho de 1998, até janeiro de 2002, quando, pela lei 10.331/2001, procedeu-se a primeira revisão geral.

            Parece-nos evidente que, em decorrência de sua omissão, o poder público deu causa à perda do poder aquisitivo das remunerações e subsídios percebidos pelos servidores públicos e agentes políticos, causando-lhes prejuízos econômicos – danos materiais evidentes. Há, inclusive, clara configuração do ato omissivo, pela direta interpretação da norma em questão, bem como pelo julgamento do STF; clara configuração do dano, pela perda do valor das remunerações e subsídios, a cada anos, e claríssimo nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o advento dos prejuízos.

            Portanto, surge a obrigação de indenizar, como decorrência direta e inafastável do reconhecimento da mora. Ou seja, os índices inflacionários medidos nos períodos de doze meses, contados de junho de 1998 a junho de 1999, junho de 1999 a junho de 2000, junho de 2000 a junho de 2001, e o período de seis meses entre junho de 2001 a dezembro de 2001, data de inicio da vigência da Lei 10.331/01, trouxeram claros danos materiais, que devem ser recompostos aos titulares do direito às revisões anuais que inocorreram.


VI. A não incidência da Súmula 339 – STF

            Não é obstáculo ao reconhecimento do direito à indenização dos prejuízos, em favor de que os suportou, a circunstância de ter o Pretório Excelso Sumulado o verbete 339, segundo o qual não cabe ao judiciário promover reajuste de vencimentos, pois, no caso, não se estará determinando reajuste vencimental, mas, reconhecendo direito a indenização pelos danos materiais decorrentes de mora legislativa, que causou prejuízos materiais, mês a mês, aos titulares do direito à revisão. Resta aquilatar os danos, e determinar sua recomposição por quem os causou, por conduta ativa ou omissiva.

            O INPC parece ser o índice adequado para sanar tal defasagem, por ser o indexador que melhor reflete a inflação, a perda do poder aquisitivo da moeda para a classe prejudicada pela omissão em questão. Isso porque, além de elaborado por instituição reconhecidamente seria e independente, é calculado, basicamente, medindo variação de preços de produtos direcionados à classe média. O importante é que se precisa estabelecer algum parâmetro, seja o INPC, seja o IPC, o IPC-r, a variação do salário mínimo, as remunerações da poupança, o que não se admite é que o judiciário deixe de apreciar lesão a direito, e condenar o responsável a uma reparação, assentindo com verdadeiro enriquecimento sem causa.

            Repita-se, a aplicação do referido índice visa exclusivamente à indenização dos prejuízos efetivamente sofridos pela parte autora, não se confundindo com concessão de reajuste de qualquer espécie, situação que importaria na atuação do Poder Judiciário como legislador positivo, o que por certo também afrontaria o princípio constitucional da separação dos Poderes consagrado no art. 2º da Constituição da República.

            Em sentido contrário, os frágeis argumentos alinhavados pela União, que procura subverter e deslocar o cerne da controvérsia, focando a discussão sob o prisma da iniciativa da lei de concessão de reajuste, bem como sob o suposto ferimento ao principio da separação dos poderes e até a suposta impossibilidade de atribuir um índice que espelhe os prejuízos (danos materiais) suportados pelos servidores, com o que estaria o judiciário substituindo a função do executivo.

            Ou seja, quando questionada em juízo, a União tem alegado sempre, em síntese, que: a) a regulamentação da revisão geral só pode ser feita por lei específica, estando a matéria submetida ao princípio da reserva legal absoluta; b) é vedado ao Judiciário conceder aumento de vencimentais aos servidores públicos, sob pena de ofensa ao Princípio da independência dos poderes; c) incabível a adoção do INPC como índices inflacionários e as correspondentes metodologias de cálculo, bem como releva-se o mesmo incompatível com a política de estabilização econômica e redução inflacionária adotada a partir do Plano Real.Mas não aponta nenhum índice como adequado (ou seja, não pode ser o INPC, portanto, que os servidores fiquem com seu prejuízo!)...

            Não se pode aceitar que pedir indenização por omissão que entendem ilícita, e já declarada pelo STF como inconstitucional, caracterize-se como pretensão de substituir a iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, para enviar ao Congresso Nacional Anteprojeto de Lei fixando reajuste para funcionalismo, não se está pedindo uma legislação, mas, sim, alcançar indenização devida, pelos prejuízos decorrentes da mora, já reconhecidamente inconstitucional do poder público. Assim, reforce-se, não tem aplicação a Súmula 339 do STF.

            Basta lembrarmos o art. 37, § 6º, da própria Constituição da República, onde está clara a responsabilidade da união pelos danos causados por seus agentes:

            Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

            § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."

            É exatamente o caso. Estamos diante de conduta omissiva do Chefe do Executivo, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional. Mora configurada. Dessa omissão decorreram danos materiais diretos, com nexo de causalidade evidente, como negar-se, nesse quadro, o direito dos prejudicados à indenização?

            Esse procedimento implicaria, além de negativa de vigência a dispositivo da Constituição Federal, esvaziamento completo da eficácia da decisão do STF em ADI por omissão, desconsideração dos efeitos da mora em que permaneceu o poder público, e ainda, desrespeito ao princípio que veda o enriquecimento sem causa do Estado, que decorreria do pagamento de remuneração com poder aquisitivo completamente defasado, corroído pela inflação e ausência de correção. Pertinente, nesse particular, a lição de Orlando Gomes (1985, p. 306):

            "Há empobrecimento ilícito quando alguém, a expensas de outrem, obtém vantagem patrimonial sem causa, isto é, sem que tal vantagem se funda em dispositivo de lei ou em negócio jurídico anterior. São necessários os seguintes elementos: a) o enriquecimento de alguém; b) o empobrecimento de outrem; c) o nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento; d) a falta de causa ou a causa injusta".

            Como ensina Bandeira de Mello (1981, p. 236):

            A Constituição não é simples ideário. Não é apenas expressão de anseios, de aspirações, de propósitos. É a transformação de um ideário, e a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas. Em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e cidadãos.

            Aliás, o dever de indenizar os danos está assentado em premissas basilares de nosso direito privado, ex vi do art. 186 do novo código civil, CC/2002, antigo art. 169 do CC/1916, com ligeiras alterações.


III. Conclusão

            De todo o exposto, percebe-se que, quanto á atribuição de efeitos às decisões de procedência nas ADI por omissão, nossa Suprema Corte tem sufragado entendimento preconizado pela linha não concretista.

            Porém, apesar de tal posição, ou seja, a despeito de entender não ser possível ao judiciário o estabelecimento de prazo para o legislador legislar, ou a elaboração de norma, em lugar deste, para sanar a omissão, o STF já tem proclamado que a omissão legislativa, especialmente após formalmente reconhecida pelo judiciário, pode efetivamente causar danos, e que tais danos são indenizáveis.

            Por outro lado, vimos que a norma constitucional estatuída no art. 37, inc. X, com as alterações introduzidas pela EC 19/98, foi desrespeitada pela mora do poder público em dar cumprimento a seu comando normativo, especialmente o Chefe do Executivo, a quem compete a iniciativa da lei que realizaria o comando constitucional. Tal mora, de tão inequívoca, inclusive, já foi reconhecida pela mais alta Corte do país, em votação unânime entre os ministros do Pretório Excelso.

            Nesse diapasão, fácil notarmos a grande corrosão nos valores das remunerações dos servidores públicos, pela ausência da revisão geral anual, por longo lapso temporal, a despeito permanência do fenômeno inflacionário (se mais mitigado que no passado, ainda assim não pode ser desconsiderado, quando temos em conta um período de mais de três anos).Pode-se mesmo perceber que a necessidade da realização de uma revisão geral da remuneração, estabelecida, com periodicidade anual, pela constituição, é um mecanismo de concretização da irredutibilidade remuneratória e, de resto, de preservação da dignidade da pessoa humana por trás de cada servidor e agente político destinatário da proteção constitucional em questão.

            Assim, uma vez reconhecida a mora, e percebidos os danos materiais aqui identificados (o que se pode realizar tomando por base qualquer dos índices oficiais de inflação em cada período, notadamente o INPC, que mede variação dos custos de produtos de consumo típicos de classe média) estabelecido está o nexo de causalidade entre a omissão, juridicamente relevante, e os danos que dela decorreram. Portanto, surge, inexoravelmente, para o poder público, o dever de indenizar todos os que suportaram os prejuízos.


Referências

            CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra : Livraria Almedina, 1998.

            GOMES, Orlando. Obrigações. 5. ed. Rio : Forense, 1985.

            GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

            HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Fabris, 1981.

            LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. 3. ed. Rio: Liber Juris, 1995.

            MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público, n. 57/58, jan./jul. 1981.

            SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

            ————.Comentário contextual à constituição. 2. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 2006.

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            TEIXEIRA, Sávio de Figueiredo e outros. As garantias do cidadão na Justiça. São Paulo : Saraiva, 1993.


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ALENCAR, Martsung F.C.R.. A eficácia da decisão do STF em ADI por omissão e a mora do poder público na realização da revisão geral anual dos servidores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1121, 27 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8629. Acesso em: 18 abr. 2024.