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Conflito de coisas julgadas: qual sentença deve prevalecer quando há duas manifestações de mérito sobre um mesmo objeto?

Conflito de coisas julgadas: qual sentença deve prevalecer quando há duas manifestações de mérito sobre um mesmo objeto?

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O presente trabalho busca explorar o recente julgado dos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 600.811/SP que firmou o entendimento quanto a prevalência da segunda "coisa julgada" formada quando houver conflito de decisões.

Resumo: O presente artigo científico visa discutir qual decisão de mérito deve prevalecer quando estas versam sobre um mesmo objeto, restando entre elas o apenas diferencial de teor decisório e lapso temporal da prolação, apresentando reflexões acerca das divergências doutrinárias que dissonam quanto a validade de um segundo julgado ante a possível e controversa formação de coisa julgada, levando-se em consideração a possibilidade de, por um lado favorecer a interpretação seca da Lei, e de outro, assegurar o direito garantido, em observância constitucional, que integrou o patrimônio de um dos polos. Partindo-se, assim, de uma pesquisa pautada no uso da metodologia bibliográfica, além da análise jurisprudencial e apontamentos acerca da legislação nacional vinculada ao tema proposto. Tudo isso com a finalidade de concluir qual o posicionamento mais adequado aplicável ao caso que atenda acertadamente às demandas envolvidas e que respeite o ordenamento jurídico assegurando a adequada prestação jurisdicional.

Palavras-chave: Coisa Julgada. Validade. Direito garantido.

Sumário: Introdução. 1. Análise doutrinária sobre coisa julgada e conflito de decisões. 2. Análise jurisprudencial sobre conflito de coisas julgadas. 3. Conclusão


INTRODUÇÃO

O presente artigo busca discutir o possível conflito de coisas julgadas distintas, se buscando responder sobre qual sentença deve haver a prevalência quando observado a existência de mais de uma manifestação de mérito sobre um mesmo objeto em questão.

O tema foi escolhido a partir de reflexões a partir de leituras sobre divergências doutrinárias, somadas as decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça quando instado a responder acerca de tais prevalências de coisas julgadas, e seus múltiplos resultados quando analisados entendimentos dos órgãos fracionários desse Tribunal, o que potencialmente pode acarretar em uma generalizada insegurança jurídica no meio.

Desta feita, em um primeiro momento, enuncia-se conceitos necessários para a melhor compreensão da temática aqui tratada, tais como requisitos de Condição da Ação, Pressupostos Processuais, Coisa Julgada e seus desmembramentos, para assim ser possível analisar a maneira como a doutrina se manifesta sobre a possibilidade de coexistência de mais de uma decisão de mérito sobre um mesmo objeto, destacando se as decisões posteriores à formação da primeira teriam o condão de firmar ou não nova coisa julgada apta a desconstituir o que, primeiramente, fora firmado.

Após, é realizada uma análise jurisprudencial sobre a temática, vez que o Poder Judiciário tem enfrentado diversas questões que, por algum descuido dos tribunais ou inércia das partes, promovem a existência de mais de uma sentença versando sobre uma mesma coisa julgada. Assim, se enunciará julgamentos emblemáticos e suas teses que importaram na fixação de uma vertente a ser seguida, em que pese a grande divergência.

E ao final, responde-se o questionamento: segundo o entendimento dos autores, e observadas as normas constitucionais e processuais aplicáveis ao caso, qual o entendimento que mais adequadamente deve prevalecer para ser possível assegurar a regular observância do princípio da segurança jurídica e assegurar a adequada prestação jurisdicional.


1. ANÁLISE DOUTRINÁRIA SOBRE COISA JULGADA E CONFLITO DE DECISÕES

A análise das teorias doutrinárias acerca da prevalência da coisa de julgada quando existentes mais de uma sentença acerca do mesmo objeto perpassa a necessidade de, anteriormente, enunciar conceitos necessários para compreender a temática abordada no presente trabalho, qual seja conceitos sobre as Condições da Ação, Pressupostos Processuais e Coisa julgada, para assim ser possível evoluir para a divergência de posições sobre o tema.

Assim, o primeiro elemento importante a se enunciar, a título de introdução, são as chamadas Condições da Ação. Tais requisitos foram previstos no Código de Processo Civil em seu Art. 17, que definem que “Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”, assim, para que se configure o Direito de Ação, apto a mover uma lide no Judiciário, é necessário o postulante ter interesse processual e legitimidade.

A legitimidade é capacidade figurativa nos polos ativo e passivo, devendo as partes serem passíveis de litigar, um frente ao outro. Já o interesse processual está atrelado a necessidade, utilidade e adequação1 da via escolhida para os fins almejados. Segundo Didier2, a necessidade se fundamenta na premissa de a jurisdição ser a única via para solução de um determinado conflito. Já a utilidade, se verifica na aptidão para a via eleita propiciar ao demandante o resultado pretendido. Por fim, a adequação é o procedimento indicado pelo autor que vise satisfazer seu pleito.

Nesse sentido, como requisitos cumulativos de observância obrigatória, uma vez que definidos pelo Código de Processo Civil, e sua ausência, deverá acarretar na extinção do processo sem resolução do mérito, tal como enuncia o Art. 485, VI do CPC, por carência de ação. Por se tratar de um requisito necessário para a configuração da Ação, não há o que se falar em preclusão da alegação de falsa de preenchimento das Condições, o que poderá ser reconhecido pelo magistrado a qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não transitado em julgado, tal qual se verifica no disposto do Art. 485, §3º do CPC.

O autor Fredie Didier Jr. observa esses requisitos de Condição da Ação como componentes do Pressuposto Processual da Validade3, vez que se não identificados pelo magistrado, o processo terá existido, porém, a sua instauração não fora válida, não devendo o seu pedido ser examinado.

Para tanto, a fim de melhor elucidar o ponto trazido pelo doutrinador, é necessário abordar o conceito de Pressuposto Processual e quais são os requisitos por ele definidos a fim de que componham uma lide. Assim, em primeiro lugar, os pressupostos processuais se fazem como um requisito, num âmbito logico-jurídico, para que um determinado processo exista concretamente no mundo dos fatos4. Para tanto, existem pressupostos de Existência e pressupostos de Validade.

Os pressupostos processuais de Existência são requisitos a fim de que a relação processual se forme adequadamente. Dentre os requisitos de existência encontram-se pressupostos subjetivos e pressupostos objetivos. Os pressupostos subjetivos dizem respeito às partes componentes da relação processual, aqueles que formarão a triangulação processual, sendo de um lado as partes, autor e réu, e de outro o Estado-Juiz, investido na figura do magistrado. De outro lado, existem os pressupostos objetivos, que é entre as partes a existência de uma lide, que deverá por meio do judiciário ser sanada.

Já os pressupostos processuais de Validade são aqueles que devem integrar-se ao sistema vigente para estarem aptos a inteiramente produzir os resultados desejados pelo demandante, assim formando uma relação jurídica válida. Da mesma forma que o plano da existência, o arcabouço da Validade também possui subdivisões em pressupostos objetivos e pressupostos subjetivos.

No que tange os pressupostos subjetivos de validade, aqueles referentes aos componentes da relação jurídica, verifica-se que quanto as partes devem ser observados os seguintes requisitos5: a capacidade de ser parte, capacidade para estar em juízo e capacidade postulatória. De outro lado, quanto ao juiz, deve esse ser investido na jurisdição, ou seja, possuir competência de juiz, e revestido de imparcialidade, de modo que não recaia em situações de impedimento ou suspeição.

Já os pressupostos objetivos da validade, que se tratam da demanda processual existente, devem observar os requisitos de ausência de litispendência, ou seja, não haver discussão sobre aquele mesmo objeto em outra ação, e ausência de coisa julgada, que será oportunamente analisada com mais detalhamento.

Impende ressaltar que assim como as Condições da Ação, os Pressupostos Processuais quando da sua ausência, também acarretarão na extinção do processo sem resolução do mérito, tal como enuncia o Art. 485, IV do CPC. E da mesma forma, tal vício poderá ser reconhecido pelo magistrado a qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não transitado em julgado, tal qual se verifica no disposto do Art. 485, §3º do CPC.

Portanto, uma vez verificado a existência de litispendência ou coisa julgada que verse sobre determinado objeto que uma vez já esteja ou fora tratado em outro processo, impende ao juiz extinguir o processo sem resolução do mérito, vez que trata de hipótese em que não se procedera um desenvolvimento válido da demanda. Ocorre que o estudo aqui proposto perpassa a existência de mais de uma lide sobre o mesmo objeto que foram regularmente processadas e julgadas, e geraram ambas, reitera-se, sobre um mesmo objeto, coisas julgadas distintas. Nesse sentido, para desenvolver tal aprofundamento, necessário, antes, definir alguns conceitos sobre a Coisa Julgada.

A Coisa Julgada encontra-se prevista e definida em diversas legislações do ordenamento pátrio brasileiro, o que por vezes gera diversas problemáticas sobre sua conceituação e o que, ao fundo, efetivamente significa. Em um primeiro plano, existe a definição disposta na Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, que em seu Art. 6º, §3º define da seguinte maneira: “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.

No entanto, a doutrina entende que a Coisa julgada possui duas ramificações, sendo essas a Coisa Julgada formal e a coisa julgada material. Nesse sentido, o conceito trazido genericamente pelo Art. 6º, §3º da LINDB, contempla apenas o significado da Coisa Julgada Material, desconsiderando o âmbito formal.

Já no Código de Processo Civil, por ser mais recente, teve o cuidado de, em seu Art. 502, esclarecer que a impossibilidade de nova sujeição a recurso trata-se de caso de Coisa Julgada material. Tal artigo dispõe da seguinte maneira “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.

A coisa julgada ainda encontra proteção no sistema normativo pátrio na Constituição da República, na qual em seu notório Art. 5º que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, prevê em seu inciso XXXVI o seguinte texto “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Assim, retomando os conceitos doutrinários, a Coisa julgada se dá em dois aspectos diferentes, a coisa julgada material e a coisa julgada formal, que possuem natureza distinta. A coisa julgada material, como já fora visto pelo conceito trazido pelo CPC em seu Art. 502, se faz quando a parte dispositiva de determinada decisão judicial se faz imutável, razão pela qual não se torna mais sujeita a interposição de recurso. De outro lado existe a coisa julgada formal, que significa que numa determinada lide houve uma última decisão meritória, sob a qual colocou-se um fim no processo.

O autor Cândido Dinamarco6 dispõe em sua obra que a imutabilidade causada pela Coisa Julgada, denotadamente a coisa julgada material, tem por consequência o impedimento à propositura de nova demanda com mesmo objeto (função negativa da coisa julgada) e a vinculação de magistrados de, em processos futuros, observar a questão jurídica já decidida e transitada em julgado, sempre que seu objeto figurar com questão prejudicial (função positiva da coisa julgada).

Da mesma forma entende Eduardo Arruda Alvim7 que dispõe que a coisa julgada material representa o encerramento da prestação jurisdicional, que encerrou o entendimento sobre aquele determinado objeto, não mais se podendo redecidir sobre a mesma pretensão, impondo as partes o seu resultado, não se podendo ajuizar novamente a mesma e idêntica ação entre as partes.

Esses conceitos abordados foram de suma importância para edificar os alicerces do presente estudo, que à luz das divergências doutrinárias e dos recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça, visa analisar as teorias e entendimentos firmados nos casos em que coexistam mais de uma Coisa Julgada sobre um mesmo objeto, e, nessa fatídica e teratológica situação, qual deverá prevalecer, à luz do ordenamento e visando tutelar a segurança jurídica.

Os autores em suas obras enunciam a possibilidade de coexistência de mais de uma coisa julgada que verse sobre um mesmo objeto, o que não deve, mas pode ocorrer por alguns fatores, tais como, por exemplo, má-fé da parte sucumbente, que move nova ação no judiciário com o mesmo objeto visando embaraçar a questão de direito para conseguir a prestação desejada, ou também, por descuido dos Tribunais que possam autuar um mesmo processo duas vezes, entre outros casos.

Da na análise então do caso, verifica-se que um mesmo objeto terá duas decisões de mérito, e aqui, enuncia-se que tais decisões devam ter conteúdo meritório distinto, resultando em resultados finalísticos diversos para as partes. Nesse caso, vez que o Judiciário deve assegurar a regular prestação jurisdicional aos litigantes, somente uma das “coisas julgadas” deve prevalecer. Assim, formam-se duas correntes doutrinárias distintas de prevalência da Coisa Julgada formada sobre o objeto nos distintos processos.

A primeira corrente sustenta que no caso de conflitos entre coisas julgadas que detenham em si o mesmo objeto sendo discutido, deve prevalecer a primeira coisa julgada formada. Isso porque, com o regular trâmite processual, a formação de coisa julgada sobre determinado objeto, impediria, aos moldes dos já explorados Pressupostos Processuais objetivos de Validade, a propositura de nova ação, e assim, se porventura o objeto viesse a ser discutido em nova demanda, seria inválido seu processamento, uma vez que o magistrado deveria julgar extinto o feito sem resolução do mérito por força do disposto no Art. 485, IV do CPC.

Outro aspecto apontado por essa corrente, trata-se da verificação de que uma eventual segunda demanda sobre um mesmo objeto careceria dos requisitos entabulados nas Condições da Ação, qual seja a ausência de interesse de agir. Segundo esse entendimento, uma vez faltante um dos requisitos de condição da ação, essa não poderia tramitar em regular procedimento, não devendo sequer a questão ser apreciada pelo juiz, razão pela qual, uma vez identificada, ser julgado extinto o feito sem resolução do mérito, por ser o comando normativo presente no texto do Código de Processo Civil em seu Art. 485, IV.

Na análise da correntes aqui apresentadas, é importante ressaltar o importante papel que possui a Ação Rescisória, pois tal ação seria o limiar a se definir qual seria a coisa julgada que prevaleceria. A Ação Rescisória se constitui como o remédio das partes para desconstituir eventual decisão de mérito que ofender a coisa julgada já constituída em outro processo, o que, inclusive, encontra-se disposto no Art. 966, IV do Código de Processo Civil. No entanto, existe na mesma norma processual a fixação do prazo decadencial de dois anos do direito à rescisão da decisão de mérito transitada em julgado, conforme enuncia o Art. 975 do CPC.

O autor Eduardo Arruda Alvim8 entende que para ser considerada válida a sentença deve conter elementos essenciais, e que, caso venham ulteriormente verificadas a sua inexistência, quando deveriam ter existido, tal sentença padecerá de uma invalidade, a depender do caso, ou de um vício de inexistência. Nesse sentido, tal ausência de validade macularia a sentença, que não poderia gerar coisa julgada, vez que sequer possuiria os elementos mínimos na sua constituição enquanto sentença.

Por fim, o último argumento trazido tange na hipótese em que, caso seja admitida a segunda coisa julgada, nada impediria a formação de uma terceira, e assim por diante, o que estaria por ferir os princípios da segurança jurídica e estabilidade das decisões judiciais. Isso se deve porque a primeira coisa julgada foi processada e eivada de boa-fé, de modo que uma eventual segunda coisa julgada formada em outro processo, traria máculas de inconstitucionalidade, por violar o comando do Art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e estaria revestida de má-fé, vez que tal entendimento daria azo a repropositura de ações maliciosamente, a fim de burlar a prestação jurisdicional do poder judiciário.

Segundo entende o autor Eduardo Arruda Alvim9, uma vez ultrapassado o referido prazo decadencial do direito à rescisão da decisão de mérito que formara a segunda coisa julgada, prevalecer-se-ia, ainda, a primeira delas, vez que a segunda durante toda a sua existência chegou sequer a formar-se devidamente, por vício de validade, estando maculada, também, pela inconstitucionalidade, por afrontar o disposto no Art. 5º, XXXVI da CF. Nesse mesmo sentido, se manifestam também os autores Tereza Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Jr10.

De outro lado, a segunda corrente entende de maneira distinta, que no caso de conflitos entre coisas julgadas que detenham em si o mesmo objeto sendo discutido, deve prevalecer aquela que por último se tenha formado, veja-se, contrariamente ao disposto na primeira, vez que essa se deu posteriormente, e assim, possuiria o condão de suspender os efeitos da primeira decisão.

Nessa corrente papel que assume a Ação Rescisória, é de mais importância ainda, vez que segundo arguem os doutrinadores defensores dessa corrente, a previsão expressa no referido Art. 966, IV, do CPC é exatamente o caso de solucionar incoerências quando há mais de uma decisão meritória sobre um mesmo objeto. Vez que prevê a norma processual o cabimento de ação rescisória para desconstituir decisão de mérito transita em julgado quando essa ofender coisa julgada.

Desta feita, uma vez transcorrido o prazo decadencial do direito de rescindir, a decisão que estaria, em tese, viciada por analisar novamente objeto já assegurado pelo escopo da coisa julgada, tornar-se-ia hígida, sendo essa, por ordem lógico-temporal a última decisão sobre tal tema. Nesse sentido, qualquer vício que eivara o processo estaria convalidado tacitamente pela inércia da parte interessada em ajudar a ação rescisória, não devendo o outra parte sofrer as consequências de tal ausência do interessado.

Assim, tal corrente verifica que a segunda coisa julgada formada, por ser a última decisão meritória sobre aquele determinado objeto, e que, após transcorrido o prazo decadencial de dois anos previstos para o ajuizamento de Ação Rescisória, a última decisão, seria a mais adequada a permanecer válida no ordenamento, vez que após o decaimento do direito de rescisão, tal decisão seria irrescindível.

Esse é o posicionamento sustentado por Barbosa Moreira11, que verifica que a segunda coisa julgada é a que deve prevalecer, quando decorrido o prazo de direito a rescisão, vez que a sua irrescindibilidade deixou de existir, sendo convalidado o vício que antes a decisão poderia estar eivada. Dessa maneira, não se poderia mais opor-se a produção de efeitos da segunda coisa julgada, por seu caráter de higidez e estabilidade adquiridos. Nesse mesmo sentido, se manifestam também os autores Pontes de Miranda, Candido Rangel Dinamarco12 e Humberto Theodoro Junior13.

Esse é o panorama doutrinário que perpassa a análise do conflito de coisas julgadas, e qual delas deverá ser considerada a válida no julgamento de um determinado objeto, que, seja pela primeira corrente, que prevalece a decisão primitiva, seja a segunda corrente, que prevalece a que por último se firmou, tal assunto encontra-se ainda sem clara definição, o que também tem se manifestado em divergências jurisprudenciais, como a seguir será enunciado.


2. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL SOBRE CONFLITO DE COISAS JULGADAS

Da mesma forma como ocorre na doutrina, a jurisprudência acerca do tema também é bastante dividida. Analisando a jurisprudência do STJ, verifica-se dois entendimentos antagônicos adotados por duas turmas diferentes.

De um lado, há o entendimento da segunda turma, a qual tem decidido no sentido de que, havendo duas coisas julgadas, prevalecerá a última, enquanto não desconstituída por ação rescisória.

A exemplo, veja-se os seguintes julgados:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. COISA JULGADA. AÇÃO ANULATÓRIA E EMBARGOS À EXECUÇÃO. SENTENÇAS CONTRADITÓRIAS SOBRE O MESMO OBJETO. PREVALÊNCIA DAQUELA QUE POR ÚLTIMO TRANSITOU EM JULGADO. PRECEDENTES.

1. No conflito entre sentenças, prevalece aquela que por último transitou em julgado, enquanto não desconstituída mediante Ação Rescisória.

2. No caso sob exame, a executada propôs ação anulatória para contestar o débito; paralelamente, interpôs Embargos à Execução sobre a mesma questão. Na anulatória, sua pretensão foi parcialmente acolhida para excluir parcela do crédito exeqüendo. Por seu turno, os Embargos foram julgados totalmente improcedentes.

3. Prepondera a decisão proferida na Execução Fiscal, que rejeitou os Embargos de devedor, por ter sido formada por último. Precedentes do STJ.

4. Recurso Especial provido.

(REsp 598.148/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/08/2009, DJe 31/08/2009)

PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO DE DECISÕES TRANSITADAS EM JULGADO.

PREVALÊNCIA DA SEGUNDA. NECESSIDADE DE AÇÃO RESCISÓRIA. SÚMULA 182/STJ.

1. Não há como se conhecer de agravo que não combate todos os fundamentos da decisão que inadmitiu o recurso especial, nos termos da Súmula 182/STJ.

2. "No conflito entre sentenças, prevalece aquela que por último transitou em julgado, enquanto não desconstituída mediante Ação Rescisória" (REsp 598148/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/8/2009, DJe 31/8/2009)

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no AREsp 200.454/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/10/2013, DJe 24/10/2013)

PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA.

SENTENÇAS CONTRADITÓRIAS. DECISÃO NÃO DESCONSTITUÍDA POR AÇÃO RESCISÓRIA. PREVALÊNCIA DAQUELA QUE POR ÚLTIMO TRANSITOU EM JULGADO.

1. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.

2. O STJ entende que, havendo conflito entre duas coisas julgadas, prevalecerá a que se formou por último, enquanto não desconstituída mediante Ação Rescisória.

3. Recurso Especial não provido.

(REsp 1524123/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/05/2015, DJe 30/06/2015)

Tal entendimento da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça surgiu em 2009 com o julgamento do REsp 598.148/SP, de relatoria do Ministro Herman Benjamin14, o qual sustentou seu posicionamento com o argumento de que a sentença proferida em lide na qual já se formou trânsito em julgado é nula, porém existente. Assim, se tratando de sentença existente e nula, a nulidade seria convertida em rescindibilidade, razão pela qual a sentença se revestiria do efeito da coisa julgada e produziria efeitos até ser desconstituída por ação rescisória e, caso não fosse, produziria efeitos de forma permanente conforme regra geral de que o ato posterior prevalece sobre o anterior.

Apesar de se tratar de um entendimento concentrado na Segunda Turma, encontra-se algumas decisões similares em outras turmas, inclusive com decisões anteriores a do Ministro Herman Benjamin. Vejamos:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SERVIDORES PÚBLICOS. EMBARGOS À EXECUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE ALEGAÇÃO DE COISA JULGADA. 26,05%. LIMITAÇÃO TEMPORAL DO REAJUSTE. IMPOSSIBILIDADE.

OFENSA À COISA JULGADA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO.

1. A Constituição Federal estabelece no art. 5º, XXXVI, a intangibilidade da coisa julgada pelo legislador como uma das garantias fundamentais, tendo em vista o respeito ao princípio da segurança jurídica.

2. A segunda sentença proferida em afronta a uma primeira coisa julgada, contra a qual não foi ajuizada ação rescisória, é juridicamente existente, constituindo um novo comando jurisdicional.

A adoção desse entendimento, outrossim, não resultará no recebimento em dobro das diferenças pleiteadas pela recorrida, na medida em que a satisfação da obrigação judicialmente reconhecida implicará sua extinção, nos termos do art. 741, VI, do CPC.

3. Se a sentença que embasa o título exeqüendo não determina a limitação temporal do reajuste de 26,05% a dezembro/1989, não pode tal restrição ser discutida em execução de sentença, sob pena de ofensa à coisa julgada. Precedentes.

4. Recurso especial conhecido e improvido.

(REsp 604.880/SE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 22/05/2007, DJ 11/06/2007, p. 347)

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DECISÕES CONFLITANTES. TRÂNSITO EM JULGADO. CANCELAMENTO DE PRECATÓRIO. DECISÃO NÃO DESCONSTITUÍDA POR AÇÃO RESCISÓRIA. PREVALÊNCIA DAQUELA QUE POR ÚLTIMO TRANSITOU EM JULGADO.

1. Verificada a existência de decisões conflitantes versando sobre o mesmo bem jurídico e ambas trânsitas em julgado, prevalece aquela que por último transitou em julgado.

2. Somente se admite a desconstituição de sentença trânsita em julgado através da ação rescisória.

3. Recurso a que se nega provimento.

(REsp 400.104/CE, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 13/05/2003, DJ 09/06/2003, p. 313)

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇAS CONTRADITÓRIAS.

DECISÃO NÃO DESCONSTITUÍDA POR AÇÃO RESCISÓRIA. PREVALÊNCIA DAQUELA QUE POR ÚLTIMO TRANSITOU EM JULGADO.

1- Quanto ao tema, os precedentes desta Corte são no sentido de que havendo conflito entre duas coisas julgadas, prevalecerá a que se formou por último, enquanto não se der sua rescisão para restabelecer a primeira. A exceção de pré-executividade não serviria no caso para substituir a ação rescisória.

2- Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no REsp 643.998/PE, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 01/02/2010)

Por outro lado, há o entendimento consagrado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça de que, havendo duas sentenças produzindo coisa julgada acerca da mesma lide, prevalecerá a primeira.

Vejamos:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. COISA JULGADA DÚPLICE. CONFLITO ENTRE DUAS SENTENÇAS TRANSITADAS EM JULGADO. CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR NA SEGUNDA DEMANDA. INEXISTÊNCIA DA SEGUNDA SENTENÇA. ALEGAÇÃO EM EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. CABIMENTO.

1. Hipótese em que o autor da demanda, sucumbente na Justiça do Trabalho, repetiu o mesmo pedido perante a Justiça Estadual, obtendo êxito e gerando conflito frontal entre os comandos das duas sentenças, identificado apenas na fase de execução.

2. Controvérsia doutrinária acerca da existência da segunda sentença ou, caso existente, da natureza rescisória ou transrescisória do vício da coisa julgada.

3. Inexistência de interesse jurídico no ajuizamento da segunda demanda. Doutrina sobre o tema.

4. Inexistência de direito de ação e, por conseguinte, da sentença assim proferida. Doutrina sobre o tema.

5. Analogia com precedente específico desta Corte, em que se reconheceu a inexistência de sentença por falta de interesse jurídico, mesmo após o transcurso do prazo da ação rescisória (REsp 710.599/SP).

6. Cabimento da alegação de inexistência da segunda sentença na via da exceção de pré-executividade.

7. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.

(REsp 1354225/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/02/2015, DJe 05/03/2015)

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO CPC/73.

OMISSÃO. OCORRÊNCIA. EFEITOS INFRINGENTES. POSSIBILIDADE. CONFLITO DE COISA JULGADA - DUPLICIDADE. PREVALÊNCIA DA PRIMEIRA.

ACLARATÓRIOS RECEBIDOS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS.

1. Inaplicáveis as disposições do NCPC a este julgamento ante os termos do Enunciado Administrativo nº 2 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

2. É possível a concessão de efeitos infringentes aos aclaratórios no caso em que seu suprimento acarrete, inevitavelmente, a modificação do julgado recorrido.

3. No conflito entre duas coisa julgadas deve prevalecer a que se formou em primeiro lugar.

4. Embargos de declaração acolhidos com efeitos infringentes.

(EDcl no AgRg no AREsp 531.918/DF, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/12/2016, DJe 12/12/2016)

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONFLITO ENTRE COISAS JULGADAS. PREVALÊNCIA DA PRIMEIRA SENTENÇA. PRECEDENTE DA TERCEIRA TURMA.

1. Controvérsia doutrinária acerca da existência da segunda sentença ou, caso existente, da natureza rescisória ou transrescisória do vício da coisa julgada. Sendo assim, demonstra-se a inexistência de interesse jurídico no ajuizamento da segunda demanda.

2. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

(AgInt no AREsp 600.811/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 13/10/2016)

O entendimento da Terceira Turma surgiu com o REsp 1354225/RS, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino15. O ministro Sanseverino fundamenta sua posição com o argumento de que a segunda sentença sequer existe, uma vez que havia falta de interesse jurídico na ação e a presença de um pressuposto processual negativo (coisa julgada).

Da mesma forma, encontra-se entendimentos similares fora do âmbito da terceira turma, a exemplo dos julgados a seguir:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVOS EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO POPULAR. INSTITUTO CANDANGO DE SOLIDARIEDADE. CONTRATO DE GESTÃO No.

001/1999-DMTU/DF. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE LICITAÇÃO E DE DESVIO DE FINALIDADE DA CONTRATAÇÃO. EXISTÊNCIA DE DEMANDAS ANTERIORES: AÇÃO POPULAR E AÇÃO CIVIL PÚBLICAS JÁ JULGADAS, EM DECISÕES PASSADAS EM JULGADO QUE RECONHECERAM A INEXISTÊNCIA DE TAIS VÍCIOS E A LEGALIDADE DA CONTRATAÇÃO: RESP 952.899/DF, REL. MIN. JOSÉ DELGADO, DJE 23.6.2008 E RESP 1.200.620/DF, REL. MIN. BENEDITO GONÇALVES, DJE 11.12.2012. APLICAÇÃO DO ART. 18 DA LEI DA AÇÃO POPULAR. COISA JULGADA OPONÍVEL ERGA OMNES. PREVALÊNCIA DA SEGURANÇA JURÍDICA.

AGRAVOS EM RECURSO ESPECIAL CONHECIDOS PARA DAR PROVIMENTO AO APELO RARO DO DISTRITO FEDERAL E AO DO DFTRANS, RECONHECENDO-SE A OCORRÊNCIA DA COISA JULGADA ERGA OMNES NOS TERMOS DO ART. 18 DA LEI 4.717/1965. PREJUDICADO O APELO RARO DA PARTICULAR, TENDO-SE POR SUPERADA A SUA ALEGAÇÃO DE SER PARTE ILEGÍTIMA.

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5. Ainda que assim não fosse, a condenação decretada pelo acórdão recorrido não poderia prevalecer, porquanto no confronto entre duas coisas julgadas, predomina aquela que primeiro transitou em julgado.

Precedentes: EDcl no AgRg no AREsp. 531.918/DF, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, DJe 12.12.2016 e REsp. 1.354.225/RS, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 5.3.2015, dentre outros.

6. Agravos em Recurso Especial conhecidos para dar provimento ao Apelo Raro do DISTRITO FEDERAL e do DFTRANS, reconhecendo-se a ocorrência da coisa julgada erga omnes nos termos do art. 18 da Lei 4.717/1965. Prejudicado o Apelo Raro do Particular.

(AREsp 42.204/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 11/12/2018)

AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DUPLICIDADE DE COISA JULGADA. PRESSUPOSTO PROCESSUAL NEGATIVO. PREJUDICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO COM O OBJETIVO DE TUTELAR DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. RECONHECIMENTO DO DIREITO AO RESÍDUO DE 3,17%. URV.

SINDICATO DOS AUDITORES FISCAIS. PRECLUSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA QUE NÃO SE SUJEITA A PRECLUSÃO. EXTINÇÃO DE UMA DAS EXECUÇÕES. IMPOSIÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.

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4. A comparação entre os Mandados de Segurança n. 3.901/DF e 6.209/DF demonstra que eles eram idênticos, embora impetrados em períodos distintos. Em ambos, o sindicato objetivou o reconhecimento do direito à percepção do resíduo de 3,17%, correspondente à variação acumulada do IPC-r entre o mês da primeira emissão do Real - implementado em janeiro de 1995 - e dezembro de 1994. A única diferença entre eles se restringiu ao início dos efeitos patrimoniais decorrentes da concessão da segurança, cuja natureza mandamental executiva não se compatibiliza com o rito inerente a uma ação de cobrança.

5. A coisa julgada decorre de opção política entre dois valores: segurança, representada pela imutabilidade do pronunciamento, e justiça, sempre passível de ser buscada enquanto se permita o reexame do ato judicial. Assim, nos casos em que há formação de duas coisas julgadas, oriundas de demandas idênticas, deve ser prestigiada, em execução ou cumprimento de sentença, a manutenção daquela que primeiro transitou em julgado.

6. Agravo regimental provido para determinar a extinção da execução referente ao título judicial constituído pelo trânsito em julgado da decisão proferida no MS n. 3.901/DF.

(AgRg nos EmbExeMS 3.901/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/11/2018, DJe 21/11/2018)

Diante de tamanha divergência dentro do próprio STJ, também refletida nos Tribunais de Justiça, em dezembro de 2019 a Corte Especial julgou os Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 600.811/SP16, com o objetivo de unificar o entendimento acerca do assunto.

O relator da ação, Ministro Og Fernades, votou no sentido de prevalecer a segunda coisa julgada, até que essa seja rescindida. Para fundamentar seu voto, o Ministro relator replicou os já citados argumentos do Ministro Herman Benjamin no REsp 598.148/SP, além de trazer o posicionamento de alguns doutrinadores, em especial o de Pontes de Miranda.

O ministro João Otavio de Noronha abriu o voto de divergência, votando pela prevalência da primeira sentença. Entretanto, ao contrário do entendimento firmado pelo ministro Sanseverino e reforçado por alguns doutrinadores, o ministro Noronha acredita que não se trata de inexistência de sentença. Na visão do ministro, a falta de interesse de agir não acarreta na inexistência de uma sentença, mas apenas em uma sentença viciada por inconstitucionalidade. Assim, sustenta que, existindo uma sentença não viciada e outra viciada, deve-se dar preferência a primeira.

Ao fim do julgamento, por 8 votos a 7, prevaleceu o voto do ministro relator Og Fernandes, no sentido da prevalência da segunda coisa julgada. No entanto, engana-se quem acha que uma decisão da Corte Especial irá pacificar o assunto. O placar de maioria mínima na corte indica que a divergência ainda é muito grande dentro do tribunal e que o assunto pode voltar a ser discutido futuramente.

Assim, resta demonstrado uma grande divergência dentro do STJ acerca do assunto, a qual foi refletida no julgamento pela Corte Especial. Apesar de não ser abordado nesse artigo, também há grande divergência de entendimentos nos Tribunais de Justiça, o que, somado com a divisão que também existe entre os doutrinadores, demonstra a relevância do tema abordado.


3. CONCLUSÃO

Por fim, após exposta uma breve abordagem quanto os aspectos doutrinários e jurisprudenciais no que tange o conflito sobre coisas julgadas na linha das duas vertentes, entende-se que a vertente apresentada quanto à prevalência da primeira decisão de mérito firmada sobre o objeto em questão é a orientação mais coerente e plausível segundo o ordenamento jurídico brasileiro.

Em primeiro lugar, cabe se debruçar sobre a discussão se a preexistência de coisa julgada acarretaria em vício de existência ou validade sobre uma nova decisão com o mesmo objeto discutido. Conforme já mencionado pelo professor José Eduardo Carreira Alvim17 a ausência de coisa julgada constitui-se como pressuposto negativo de validade.

Da mesma forma, se entende que o interesse de agir se faz como pressuposto positivo de validade, eis que se configura como um dos requisitos da ação, necessários para a constituição e trâmite de um processo validamente.

Portanto, se conclui, a despeito do que argumenta o Min. Paulo de Tarso Sanseverino no julgamento do Recurso Especial nº 1.354.225/RS, entende-se que a preexistência de coisa julgada gera um vício que afeta a validade da nova sentença e não o plano da existência. Entretanto, tal entendimento não nos impede de chegar à mesma conclusão firmada pelo Magistrado, assim como fez o Min. João Otavio de Noronha no julgado dos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 600.811/SP e a maioria dos doutrinadores que seguem essa vertente.

Uma vez vencido a questão da dicotomia entre existência e validade, passa-se a apontar os motivos pelo qual entendemos se aplicar o entendimento da validade da primeira coisa julgada firmada sobre o objeto em questão.

Primeiramente, há de se ressaltar que a garantia da não violação da coisa julgada encontra respaldo na Constituição Federal, em seu Art. 5º, XXXVI, razão pela qual admitir que uma segunda sentença produza efeitos sobre matéria já decidida e, portanto, coberta da coisa julgada, seria aceitar que uma decisão totalmente eivada de inconstitucionalidade se sobreponha frente a uma sentença totalmente válida e revestida de boa-fé.

Outro ponto a se argumentar na sustentação de nossa posição diz respeito à própria definição de coisa julgada. Conforme definição trazida pelo próprio Código de Processo Civil, em seu Art. 502 “denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. Tal imutabilidade, conforme já visto, tem por consequência o impedimento à propositura de nova demanda com mesmo objeto.

Assim, o nascimento de uma eventual segunda coisa julgada sobre o mesmo objeto iria de encontro com a própria definição de coisa julgada, uma vez que não há como modificar aquele que já se tornara hígida, imutável. Seria paradoxal atribuir a proteção constitucional da coisa julgada à decisão que ao mesmo tempo viola tal proteção, por não observar julgado já proferido com o mesmo objeto. Ainda, flexibilizar essa proteção constitucional abriria azo a não apenas uma segunda coisa julgada, como também a uma terceira, quarta e assim por diante.

Entender de tal maneira seria afrontar o princípio constitucional da segurança jurídica, uma vez que abriria precedentes às partes, quando sucumbentes de sua prestação jurisdicional desejada, propor novas demandas com o mesmo objeto, se utilizando da má-fé, visando nova decisão meritória a seu favor. Visando assim, se aproveitar se um possível erro ou desatenção do Poder Judiciário, ou de inércia da outra parte em não observar a já existência de coisa julgada.

Apesar de a possibilidade de a já existência de coisa julgada passar desapercebida pelo judiciário e não ser alegada pela parte contrária parecer hipótese idealizada apenas em discussões teóricas, muito presente já se encontra em nossa realidade, haja vista a quantidade de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça nessa temática. Assim, se faz necessário extirpar esse teratológico e inconstitucional fato jurídico para inibir hipóteses onde os sucumbentes em uma determinada ação se utilizem da má-fé para atingir sua prestação jurisdicional desejada, além de garantir a segurança jurídica para aquele de boa-fé participaram da demanda.

Portanto, presente trabalho se propôs a explorar justamente os argumentos trazidos pelas duas vertentes e, em que pese a relevante argumentação trazida pelos doutrinadores e magistrados que entendem pela prevalência da última decisão de mérito, em especial acerca do esvaziamento do dispositivo normativo que lista o rol taxativo de cabimento de ação rescisória, os autores optam por reconhecer mais adequada a primeira vertente, da qual entende que a primeira coisa julgada deve subsistir, por prezar pelos princípios e normas constitucionais que acabam por se sobrepondo a qualquer outra interpretação simples da Lei.


REFERÊNCIAS

ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

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BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial Nº 600.811 /SP, embargante: MANUEL DA SILVA MOREIRA; embargados: JOÃO ANTÔNIO MOTA, VALDECI BERNARDO CASTEGLIONI, CONSTRUDESC CONSTRUTORA DESCALVADO LTDA – Rel. Min. Og Fernandes. Brasília, julgado em 04 dez. 2019.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 598.148/SP, recorrente: FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO; recorrido: EPICO DECORACOES LTDA – Rel. Min. Herman Benjamin. Brasília, julgado em 24 ago. 2009.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.354.225/RS, recorrente: ARNO PROPP DA SILVA; recorrido: FUNDAÇÃO BANRISUL DE SEGURIDADE SOCIAL – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, julgado em 24 fev. 2015.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19 ed. – Salvador: Jus Podivm, 2017.

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol. I. 56. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.


Notas

1 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 299

2 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19 ed. – Salvador: Jus Podivm, 2017. P. 403/409

3 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19 ed. – Salvador: Jus Podivm, 2017. P. 402

4 ALVIM, J. E. Carreira. Teoria geral do processo. 21 ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. P. 230.

5 ALVIM, J. E. Carreira. Teoria geral do processo. 21 ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. P. 234.

6 DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do novo processo civil. 2. ed. - São Paulo: Malheiros, 2017. P. 202

7 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 338/342.

8 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 354/355.

9 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 1420/1422.

10 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 1421

11 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 1421/1422

12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do novo processo civil. 2. ed. - São Paulo: Malheiros, 2017. P. 222

13 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol. I. 56. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015. P. 1084/1086

14 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 598.148/SP, recorrente: FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO; recorrido: EPICO DECORACOES LTDA – Rel. Min. Herman Benjamin. Brasília, julgado em 24 ago. 2009.

15 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.354.225/RS, recorrente: ARNO PROPP DA SILVA; recorrido: FUNDAÇÃO BANRISUL DE SEGURIDADE SOCIAL – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, julgado em 24 fev. 2015.

16 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial Nº 600.811 /SP, embargante: MANUEL DA SILVA MOREIRA; embargados: JOÃO ANTÔNIO MOTA, VALDECI BERNARDO CASTEGLIONI, CONSTRUDESC CONSTRUTORA DESCALVADO LTDA – Rel. Min. Og Fernandes. Brasília, julgado em 04 dez. 2019.

17 ALVIM, J. E. Carreira. Teoria geral do processo. 21 ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. P. 230.


Autor

  • Leonardo Augusto de Morais Soares

    Advogado. Pós-graduado em Processo nos Tribunais Superiores na Instituição UniCEUB. Pós-graduado em Direito e Processo Tributário na Faculdade CERS. Graduado em Direito na Instituição UniCEUB. Possuo grande atuação e experiência junto aos Tribunais Superiores, com destaque para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Entusiasta dos mais diversos campos do Direito Público como Direito Eleitoral e Direito Tributário. Atuação destacada também com Direito Civil, com ênfase para as subáreas Contratual/Obrigacional.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Leonardo Augusto de Morais. Conflito de coisas julgadas: qual sentença deve prevalecer quando há duas manifestações de mérito sobre um mesmo objeto?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6337, 6 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86566. Acesso em: 4 maio 2024.