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O caseiro e a cara de prontuário.

O risco de identificar bandidos pelo estereótipo da aparência

O caseiro e a cara de prontuário. O risco de identificar bandidos pelo estereótipo da aparência

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O caseiro que desmentiu o ministro da Fazenda passou a ser investigado e constrangido. O fato escancara o preconceito oficial contra os pobres.

"O argentino Eugénio Raúl Zaffaroni criou a expressão ‘cara de prontuário’. Ou seja, há pessoas que, escolhidas pelo sistema, são, de pronto, identificadas como bandidos."

"O caseiro que reconheceu Palocci na mansão dos interesses espúrios passou a ser investigado por lavagem de dinheiro. Segundo o advogado dele, o fato pode ser procedente. A mãe é lavadeira e deve ter lavado, por engano, algum dinheiro esquecido no bolso de uma calça."


O episódio da quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa serve de pano de fundo para uma reflexão sobre o fenômeno do preconceito em relação aos pobres. O presidente da República, escoimando a própria origem humilde, pôs em dúvida as declarações do operário que desmentiu o ministro da Fazenda Antônio Palocci. Para o presidente, não mereceriam crédito as afirmações de "um simples caseiro".

Depois de ter o sigilo bancário quebrado de forma descarada e arbitrária, Francenildo, de testemunha, passou a investigado, sendo submetido a enormes constrangimentos. Sem outros motivos que pudessem ensejar a pressão da polícia, o Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) pediu que o caseiro fosse investigado por uma suspeita inusitada: lavagem de dinheiro, em razão de estranha movimentação de R$ 25 mil na conta poupança. Não bastaram as explicações da origem do crédito, confirmadas pelo depositante. Era preciso espremer, dar chá de cadeira, ver reações, ir a fundo...

O fato levou ao advogado Wlício Chaveiro a dizer, com ironia, que a acusação de lavagem de dinheiro pode ser procedente. Afinal, a mãe do seu cliente é lavadeira e poderia ter lavado, por engano, algum dinheiro que estivesse no bolso da calça do patrão. Por conta disso, Francenildo, num só dia, ficou três horas e meia dando explicações na Polícia Federal. Até aquele momento, a Polícia não tinha ouvido nenhuma pessoa da Caixa Econômica Federal (centro real do escândalo) e nenhuma pessoa supostamente interessada em encobrir a prática de um crime maior. A própria CPI dos Bingos adiou depoimento de altos funcionários da Caixa, a pedido da instituição, porque as testemunhas não foram intimadas com antecedência mínima de 48h. O escolhido foi o caseiro. Para esse, nenhuma regra. Nessa escolha, pesou a aparência. Foi fundamental, a "cara de prontuário".


A ELEIÇÃO DE CRIMINOSOS

O incidente com o caseiro de Brasília nos permite retomar a discussão sobre um fenômeno que já foi objeto de estudo por juristas da Argentina, de Portugal e do Brasil: a escolha de bandidos pelo critério da aparência, partindo de valores surrados de uma sociedade preconceituosa. Nos Estados Unidos da América o fato também é corriqueiro.

Entenda-se, então, que a autoridade policial, que, em regra é o primeiro ponto de contato oficial com o crime, é quem, na prática, faz uma eleição daquilo que considera efetivamente importante. Nos balcões das delegacias, a importância atribuída ao fato pode ser substancialmente reduzida. O valor conferido à ocorrência depende muito da cara de quem noticia e da cara de quem pode ser visto como suspeito.

Cláudia Cruz Santos [1] chama a atenção para essa realidade, que leva a polícia a fazer uma escolha do que, efetivamente, merecerá ser investigado. Para autora, a complexidade das infrações, os custos da investigação e, sobretudo, a valoração feita pela própria autoridade quanto à menor gravidade da conduta são desincentivadoras de uma intervenção efetiva.

"E é neste momento que funcionam os próprios preconceitos dos policiais: numa conjuntura de insuficiência dos recursos face ao número de casos a investigar, há que fazer escolhas; as representações dominantes sobre os crimes mais perniciosos para a comunidade e sobre os agentes mais perigosos levarão, na maioria dos casos, a um centrar das atenções nos crimes comuns que têm maior visibilidade".

Nesse contexto, o que chega ao Ministério Público, para denúncia, e à autoridade judiciária, na forma de ação penal, nem sempre reflete o quadro real das ações criminosas. O Judiciário será delimitado pela "discricionariedade" da atuação policial.

Jorge Figueiredo Dias [2], grande mestre do Direito Penal português, a propósito, assim se manifesta:

"Embora os estudiosos, os políticos, os juristas e os cidadãos em geral se envolvam em intérminos debates filosóficos sobre as formas que a justiça deve adoptar, o facto de a sociedade ter confiado a maior parte das suas funções de controlo social à polícia significa que é ela e mais ninguém que toma a maior parte das decisões políticas".

Augusto Thompson [3], por sua vez, salienta que "submetendo o universo dos delitos ao crivo da visibilidade da infração, da influência do estereótipo do criminoso, das conseqüências da corrupção e da prevaricação, do emprego da violência, consegue a polícia separar com enorme eficácia, do ponto de vista do sistema, os delinqüentes a serem esmagados nas engrenagens da justiça".

Em síntese, é a polícia quem controla e comanda a atividade do Judiciário, pois este só trabalha com o material que é colhido, avaliado e encaminhado pelas autoridades policiais.


CARA DE PRONTUÁRIO

Sabe-se, assim, que o sistema penal faz uma seleção de criminosos. Ou seja, elege aqueles que, por um estereótipo, ajustam-se ao perfil dos criminosos idealizados pelo mundo capitalista.

Figueiredo Dias [4] diz que:

"o respeito diferencial da privacidade condiciona igualmente o labor da polícia na recolha da prova e no esclarecimento do crime. Esta disponibilidade da polícia para respeitar diferencialmente a privacidade dos cidadãos - escreve Box - é uma das mais importantes fontes de bias na construção dos registros oficiais da criminalidade. Ela significa que a suspeita da polícia recai preferencialmente sobre uma pequena secção da população total, uma secção que - não é por acaso, nem incidentalmente - acontece ser a menos poderosa, e residir em áreas oficialmente designadas como de desorganização social. "

O jurista argentino Eugénio Raúl Zaffaroni criou a expressão "cara de prontuário". Ou seja, há pessoas que, escolhidas pelo sistema, são, de pronto, identificadas como os responsáveis pelas condutas marginais que afetam a ordem social. Isso não é difícil de constatar. Basta tomar como exemplo as operações policiais conhecidas como blitzen, que se concentram nas áreas geralmente freqüentadas por indivíduos que formam as populações mais pobres ou menos assistidas. Ali, realiza-se um verdadeiro espetáculo, onde o abuso não é raro; onde as garantias individuais são jogadas no lixo; onde a dignidade humana recebe a afronta dos agentes do Estado.

Sem mandado judicial e detendo pessoas para submetê-las a corriqueira "averiguação dos seus antecedentes", sem qualquer fundamentação que não seja a "cara de prontuário" estampada na face, são realizadas essas operações que não teriam o mesmo sucesso se fossem direcionadas para as classes média e alta, como observa o Delegado da Polícia Federal em São Paulo Rodrigo Strini Franco em comentários sobre o tema.

A sabedoria popular ensina, por sua vez, que "quem vê cara não vê coração". Com efeito, a identificação do marginal pela "cara de prontuário" é um risco extremo. Nos gabinetes muito bem situados, em palácios reluzentes, o crime também circula, desfilando sem constrangimento por tapetes vermelhos e desfrutando da comodidade do ar condicionado. O crime não habita necessariamente o morro e não tem os seus mentores obrigatoriamente ocultos em casebres, cortiços ou palafitas. A investigação, verdadeiramente científica, e a visão que tenha por rumo o efetivo interesse público, deve estar, portanto, acima dessas balizas criadas pelo costume e pelo preconceito.

Em relação ao caseiro Francenildo, o que se espera é que, por conta da "cara de prontuário", não venha a ser esmagado nas engrenagens da justiça, enquanto interesses escusos ficam incólumes, protegidos por veludos e cetins.


Notas

[1] Santos, Cláudia Cruz. O crime de colarinho branco (da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da Justiça penal), p. 243, Faculdade de Direito de Coimbra, 1999.

[2] Dias, Jorge Figueiredo / Andrade, Manuel da Costa, Criminologia, O Homem Delinqüente e a sociedade Criminógena, p. 459-460, Coimbra, Coimbra Editora, 1984.

[3] Thompson, Augusto. Quem são os criminosos? Crime e criminosos: entes políticos, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998.

[4] Obra citada.


Autor

  • Léo da Silva Alves

    Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo da Silva. O caseiro e a cara de prontuário. O risco de identificar bandidos pelo estereótipo da aparência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1159, 3 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8800. Acesso em: 20 abr. 2024.