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Alexis de Tocqueville.

Liberdade e igualdade na democracia da América

Alexis de Tocqueville. Liberdade e igualdade na democracia da América

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Observamos o caráter inovador de Tocqueville enquanto estudioso dos fatos políticos que se faziam presentes na América e no mundo quase dois séculos atrás.

Resumo: No presente texto, que se baseia, principalmente, nas obras de Alexis de Tocqueville e no contexto histórico no qual o autor se insere, buscamos identificar a essência de seu pensamento, transportando-o para o tema mais importante de sua visão teórica: a democracia. Tema esse que o autor estuda de forma prática nos Estados Unidos, realizando comparações com seu país: a França, e outros como a Inglaterra e os da América do Sul. Diante desse difícil tema, conseguimos identificar, no entanto, dentro do pensamento político filosófico do autor, o que parece ser a causa fundamental do problema democrático, qual seja, a conciliação entre a igualdade e a liberdade, uma vez que a forma como uma solução se aplica a uma, instaura, posteriormente, na base da outra, buscando, assim, manter um equilíbrio. Desse modo, examinamos o tema e procuramos, pelo enorme leque de conteúdo que o autor nos dá, a resposta para como a igualdade e a liberdade podem ser exploradas no contexto democrático, levando em consideração seus vícios e suas virtudes.

Palavras-chave: Alexis de Tocqueville. Democracia. Igualdade. Liberdade.


INTRODUÇÃO

Alexis de Tocqueville nasce em 29 de julho de 1805, em Paris, na França, onde, também, conquista sua licenciatura em direito no ano de 1826. Nesse sentido, o filósofo político se situa em um período pouco posterior ao fim da Revolução Francesa, período esse, aliás, fortemente marcado pela vontade acentuada de mudança na estrutura política e social do povo. Um povo, ademais, que, guiado pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, ainda veio a sofrer para de fato concretizar esses valores na política do país, pois, mesmo depois da revolução, ainda teve como líder o imperador Napoleão Bonaparte, e depois, acreditando ter superado a monarquia de vez, e instalado a república, recebeu um golpe do sobrinho de Napoleão: Luís Napoleão Bonaparte.

Apesar de a França não possuir resultado imediato em relação a instalação da democracia em sua plena forma ou pelo menos de modo estável, ela conseguiu inspirar diversos outros países com seus ideais contrários à monarquia, à nobreza e à interferência canônica na política. Dentre eles, o mais promissor foi alvo de interesse de Tocqueville, que via os resultados do vento da revolução soprando nos países esclarecidos e insatisfeitos com o absolutismo: Os Estados Unidos da América. Esse país, ou melhor, esse conjunto de Estados autônomos que, após a conquista de sua independência na Batalha de Yorktown, recebe da Inglaterra o reconhecimento de sua força.

Com o subterfúgio de ir até os Estados Unidos para estudar seu sistema prisional, no ano de 1831, Tocqueville faz a viagem que lhe dá material mais do que suficiente para produzir a sua maior obra e uma das maiores obras político-filosóficas do mundo: A Democracia na América, transformando seu objetivo inicial em um acessório de sua viagem.

Dessa forma, em sua estadia de 9 meses nos Estados Unidos, Tocqueville conseguiu visitar a maior parte dos Estados que ali se formavam e adquirir um conhecimento histórico formidável do povo americano, como também, de suas políticas internas, na verificação de suas leis; e de sua cultura, na observação das tendências comportamentais dos cidadãos. Para isso, o autor realiza, também, comparações entre as sociedades democráticas que se formavam nos Estados Unidos a de outros países, como na Inglaterra e na França, buscando, por conseguinte, instruir de forma articulada, a influência positiva ou negativa que algumas civilizações trouxeram para com as características que hoje se dão na então intitulada democracia americana.

Desde a sua chegada, Tocqueville se impressionou com o modo como a população americana era engajada na política, o que lhe fez identificar uma certa soberania popular no país. Ao contrário do que ocorria em sua nação (França), a política, nos EUA, era mais prática do que teórica. No entanto, por influência do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, e também das constatações históricas, Tocqueville identificou que essa soberania poderia conter vícios, ou vir a formá-los. O que lhe motivou a procurar criticar a democracia, como ele bem diz em sua obra: não por odiá-la, mas por respeitá-la, pois, se não he é contrária, deve lhe ser sincera e identificar suas falhas, tendo em mente a fortificação de suas bases, uma vez que, solucionadas consideravelmente todas as mazelas e todos os seus vícios, vivenciaria, assim, por elementos que só os americanos conseguiram instaurar notoriamente, a real aplicação da democracia.

Com isso, a respeito da igualdade, Tocqueville, a considerando o grande objetivo da democracia, fez grandes estudos sobre a sua influência e consequências na vida democrática, trazendo, desse modo, de forma estrutural, características que propiciam o império despótico de poucos, que governam muitos igualmente desgraçados, ou tirânico, da maioria contra minorias, o primeiro, como consequência da igualdade, se manifesta pela desconsideração de direitos políticos sociais; o segundo, como consequência natural da democracia, se forma quando as minorias não possuem garantias sobre seus direitos políticos.

E se, de certa forma, foram necessárias diversas revoluções ao longo dos séculos na busca dessa igualdade, veremos que, do mesmo modo, ela tende a brotar novamente nos Estados Unidos, mas dessa vez com os outros povos que habitam o local, senão o povo europeu: os negros e os índios. Ou seja, Tocqueville demonstra que a busca pela igualdade sempre afetará quem está por baixo, e essa luta pode levar a consequências catastróficas, mas esperadas.

Além disso, na ideia de liberdade, o autor demonstra certa prudência ao considerar a pretensão de liberdade dos antigos diferente da pretensão de liberdade dos modernos, pois, além de épocas distantes, seus contextos são extremamente diferentes, em imediato plano, pelo fato de a democracia dos antigos ser passível de participação conjunta, onde todos possuem ampla participação na vida política, e portanto, seus desejos se confundem com os sociais, por estarem mais próximos em objetivos e meios. Já a liberdade moderna traz consigo uma gama de preceitos individualistas, pois, diante de sociedades cada vez maiores, encontrar homogeneidade se torna uma tarefa imensamente difícil. Desse modo, o autor considera a questão dos direitos como fundamentais na formação de uma noção de liberdade subjetiva. O que, de certa forma, se torna, também, uma garantia contra o abuso de poder.

E, desse modo, uma de suas maiores preocupações em relação a democracia, se volta para a questão da conciliação entre a igualdade e a liberdade, pretendendo evitar, por assim, um retrocesso aos modelos monárquicos e aristocráticos que possuíam base e ainda um pouco de força em seu país de origem, onde a igualdade se dividia em hierarquia e a liberdade se limitava a poucos. E, por consequência, o autor procura uma nova aplicação, mais segura, tendo o conhecimento de seus vícios, da igualdade e da liberdade dentro da democracia. Realizando, para isso, comparações históricas entre o que foi, como se sucedeu e o que pode vir a ser na sociedade.


DEMOCRACIA

Na França, antes de sua mais importante revolução, o modelo social que predominava era a aristocracia, composta pelos entes do topo da pirâmide francesa, conjuntamente com o clero, parte da igreja que, decerto, contribuiu na formação de um corpo social mais restrito, com pouca ou nenhuma liberdade social. Logo, para exemplificar, temos duas das camadas mais distantes hierarquicamente: os nobreza e servos. É possível analisar que se evidenciava ali um corpo social minoritário mais abastado e uma maioria serva e carente de recursos.

Num sistema absolutista, as nuances e dificuldades do povo ou quaisquer que sejam as propostas que enfoque na aplicação da igualdade, são completamente desrespeitadas e encobertas pela falsa proposta de melhoria, propostas essas que, na realidade, estão seguindo eminentes caminhos de escravidão e desigualdades. Logo, a historicidade faz parte da mais relevante construção intelectual, haja vista ser necessário analisar parâmetros anteriores e realizar comparativos para que, com isso, falhas sejam corrigidas e os acertos reiterados. Nesse contexto, Tocqueville, no debate acerca da melhoria do sistema de convívio supracitado, buscou indagar, quais seriam e quais poderiam ser os meios e as regiões que, de forma parcial ou total, melhor aplicariam o sentido mais concreto de democracia.

É imediato considerar que, com a revolução francesa, o mundo viveu um certo abalo nas bases monárquicas e aristocráticas que vinham predominando na forma de governo e sociedade nos mais diversos países. Esses que, passaram, por sua vez, a enxergar uma nova oportunidade de busca da tão sonhada igualdade e liberdade na vida prática. Não diferente, os Estados Unidos, munidos pela força transformadora e inspiradora da revolução, desejam a liberdade, e pela diferença que sentiam de seu povo em relação aos ingleses, lutam pela conquista de sua independência, o que se torna um motor para a fomentação da democracia.

Nos Estados Unidos, não houve reinado e nem aristocracia, pois era colônia e não possuía escassez de terras. O que se torna um fator crucial para a formação dos modelos democráticos idealizados na França. Além disso, o grande diferencial dos norte-americanos para os outros países se deve a sua cultura religiosa puritana, bem como ao catolicismo e ao imenso esclarecimento da população, principalmente as situadas na Nova Inglaterra.

Por ter conquistado sua independência por suas próprias forças, ademais, os americanos conseguiram criar a noção de responsabilidade civil na imensa maioria dos cidadãos dos Estados, pois, acreditavam que o que estava se formando derivava de seus esforços e trabalhos. Essa responsabilidade se tornou de suma importância para a construção de novas leis e para a atribuição de direitos de modo igual, além da criação de uma enorme vontade política, pois os rumos do Estado, bem como sua independência, dependiam e decorreram da ação de todos.

A democracia nasce, dessa forma, nos Estados Unidos, por meio de uma ampla contribuição popular na sua formação e na sua estrutura. Não dependendo de líderes supremos, pois não concordavam que depois de se tornarem livres deveriam se sujeitar ao ímpeto de um líder soberano, tendo conhecimento de suas consequências negativas na Europa. E não dependendo de líderes religiosos no poder, pois sabiam limitar seu campo de atuação para a moral. Ou seja, de um povo esclarecido, uma democracia esclarecida e resistente aos vícios se inicia na América.

Da soberania do povo e a sua participação na política

Uma das mais importantes características da sociedade norte americana reside no seu poder. Ao se deparar com o país, Tocqueville, de início, nos chamou a atenção para como o povo era ativo na vida política, e com essa atividade, por conseguinte, identificamos no povo americano a razão de ser de toda a lei existente no país.

Se manifestam avidamente, também, se utilizando do aparato do voto universal, que, segundo Tocqueville, todos os Estados haviam aderido para elegeram seus representantes e reivindicarem suas necessidades mais importantes. No entanto, pode-se dizer que o voto é um meio pontual, dentre as mais diversas maneiras de manutenção do poder democrático, e que consegue, por si, expressar a vontade social. Como bem ressalta o autor:

Na América, o povo nomeia aquele que faz a lei e aquele que a executa; ele mesmo constitui o júri que pune as infrações à lei. Não apenas as instituições são democráticas em seu princípio, mas também em todos os seus desdobramentos. Assim, o povo nomeia diretamente seus representantes e os escolhe em geral todos os anos, a fim de mantê-los mais ou menos em sua dependência. É, pois, realmente o povo que dirige e, muito embora a forma do governo seja representativa, é evidente que as opiniões, os preconceitos, os interesses, até as paixões do povo não podem encontrar obstáculos duradouros que os impeçam de produzir-se na direção cotidiana da sociedade. (Tocqueville, 2005, p.197)

Como bem ressalta o autor, por mais que a população americana não detivesse, em sua totalidade, aparatos científicos sobre o Direito ou sobre uma política legislativa, nada a impedia de participar na criação das leis que iriam guiar o seu país, como também, não encontram limites para a sua manifestação de vontade perante seus representantes, sendo esses, desse modo, aplicadores da vontade social, e não apenas seus líderes. Todas as decisões que fossem contrárias ao interesse do povo, irão, por consequência, carecer de legitimidade e potencialmente a própria sociedade iria derrubar o representante de seu cargo.

Nos Estados Unidos, como em todos os países em que o povo reina, é a maioria que governa em nome do povo. Essa maioria se compõe principalmente dos cidadãos pacatos que, seja por gosto, seja por interesse, desejam sinceramente o bem do país. Em tomo deles agitam-se sem cessar os partidos, que procuram atraí-los em seu seio e fazer deles um apoio. (Tocqueville, 2005, p.197)

Assim, para Tocqueville, os partidos políticos possuem grande influência na soberania popular, não ficando a população à mercê de seus interesses, mas simpatizando com suas causas mais universais. Como é o caso da grande dicotomia entre o partido Republicano e o partido Democrata, que até hoje se fazem notórios. Inicialmente, nos lembra o autor: a causa dos partidos se mostravam diante da questão de limitar o poder do povo ou aumentá-lo.

No entanto, nos indica, existem duas classes, em qualquer nação, que possuem pretensões de meios contrárias: a rica e a pobre. Verifica-se que, diante de um líder representante da população pobre, e ele mesmo pobre, seu interesse será de gastar as finanças públicas sem medo que isso lhe afete, pois enxerga nisso um ato de utilidade. Já uma pessoa rica, ao chegar no poder, trabalha com cautela, pondera os seus ganhos e as suas perdas e toma decisões com medo de que seus bens sejam atingidos.

Associa, desse modo, Tocqueville, o rico ao aristocrata, que aparenta não se gabar de suas riquezas, mas que, em um momento de crise, logo se mostrará contrário a massa pobre. O autor não nos diz que sempre, nos partidos, encontraremos tendências ou objetivos democráticos ou aristocráticos, nos diz, do contrário, que sem que se perceba, o próprio partido pode estar carregando traços da aristocracia, o que se torna um perigo se não bem limitado.

Todavia, para Tocqueville, não existiam, em sua época, partidos que ameaçassem a democracia norte americana, pois a opinião pública se encontrava fracionada e o interesse dos partidos possuíam apenas base material, como a disputa perene entre o sul cultivador e o norte manufatureiro a respeito da liberdade de comércio.

Desse modo, o partido político não representa uma contrariedade aos interesses sociais democráticos, mas sim a causas materiais, que podem variar com as circunstâncias. E, por conseguinte, nos é verificado, novamente, a importância da população no exercício habitual de sua soberania nos Estados Unidos e na própria eleição dos partidos e a sua livre criação. Pois, como diz Tocqueville, na América o povo é deus do seu próprio destino.

Do Espírito público nos Estados Unidos

Para Tocqueville, os homens possuem um amor instintivo pela pátria em que nasce, um amor que não possui razões lógicas, mas que, com o tempo, acaba por se identificar com as características do país, sua história, seu povo e suas conquistas e crises. Para ele, desse modo, esse amor seria como uma religião, onde não existe razão, apenas crença e sentimento. Sendo possível que esse amor à pátria se identifique, depois, com uma conquista de um líder, confundindo o patriotismo com um ato de poder que, no entanto, após sua conquista, rapidamente desaparece.

Não obstante, ele enxerga um outro tipo de amor, dessa vez um amor racional à pátria, no entanto, mais duradouro. Esse patriotismo racional decorreria, por assim, da relação entre o cidadão e a lei, na interação entre vontades e direitos que se confundem e que, desse modo, acontece quando o cidadão está em acordo com o interesse do país e está satisfeito com suas leis, pois elas contribuem para o seu bem estar. Essa pessoa, acreditando ser bom desejar, desse modo, a prosperidade do país, realiza suas funções políticas com responsabilidade e amor, supondo, posteriormente, que a prosperidade do país será seu fruto, bem como seu bem estar.

De onde vem então o amor à pátria dos americanos? Para Tocqueville, o patriotismo estadunidense decorre da participação política dos cidadãos, haja vista que muitos não nasceram no território, nem constituíram um apego histórico, pois se situavam em uma nova terra.O americano, pois, se coloca no lugar de criador de seu próprio país, de modo que, a medida em que se aprofunda nas suas participações, se enxerga cada vez mais como contribuinte para a prosperidade de todos. Isso se torna tão evidente, que, Tocqueville, nos diz:

A América é, pois, um país de liberdade, em que, para não magoar ninguém, o estrangeiro não deve falar livremente nem dos particulares, nem do Estado, nem dos governados, nem dos governantes, nem dos empreendimentos públicos, nem dos empreendimentos privados; de nada enfim que lá existe, a não ser talvez do clima e do solo. Ainda assim encontramos americanos prestes a defender um e outro, como se tivessem contribuído para formá-los. (Tocqueville, 2005, p.277)


DEMOCRACIA E IGUALDADE DE CONDIÇÕES

A ideia de igualdade, para Tocqueville, se mostra como um fato na democracia. Ou seja, é insofismável que a igualdade seja um aspecto estrutural de uma sociedade democrática, pois, caso contrário, não encontraríamos no povo uma plena liberdade para pretenderem ao que lhe fossem de interesse, bem como não veríamos mudanças na estrutura social.

Entre os novos objetos que me chamaram a atenção durante minha permanência nos Estados Unidos nenhum me impressionou mais do que a igualdade das condições. Descobri sem custo a influência prodigiosa que exerce esse primeiro fato sobre o andamento da sociedade; ele proporciona ao espírito público certa direção, certo aspecto às leis; aos governantes, novas máximas e hábitos particulares aos governados. (Tocqueville, 2005, p.7)

No entanto, apesar de um fato para a democracia americana, a igualdade, segundo ele, sempre fez parte do desejo humano. Evidenciando, assim, que mesmo em épocas aristocratas francesas, em que a igualdade era setorizada, a humanidade buscava novos aparatos para sua elevação social, para a sua tentativa de se igualar aos mais poderosos.

Isso é perceptível, claramente, com a classe burguesa, essa que, inicialmente se instalara nas mais baixas camadas sociais, logo percebeu sua importância para a economia do país e reivindicou o seu reconhecimento com todas as suas forças através de diversas revoluções.

Não diferente, a nobreza, que, ao se notarem como uma classe de poucos homens, que detinham a maior parcela de terras e, desse modo, o monopólio das extrações de matérias primas, não tardaram em mostrar sua força e a exigir um lugar ao lado das mais altas classes do Estado.

Ademais, Tocqueville nos diz que, inicialmente, igualdade se instala, no governo pré-revolução francesa, por meio da igreja. Que também se mostrara forte e influente no meio social e, portanto, merecedora de poderes mais elevados, e logo toma seu lugar ao lado da nobreza. Desse modo, a população pobre, aproveitando a elevação social da igreja e a falta de exigências materiais do clero para se tornarem papas ou padres, consegue se elevar aos patamares sociais de um nobre.

Desse modo, percebe-se que os meios para se alcançarem o poder vão se multiplicando, na medida em que a ideia de nascimento, e de herança, perpetuada pela nobreza, se enfraquece de modo substancial. Pois, no momento em que vemos pessoas de classes consideradas inferiores no poder, toda a construção de superioridade nobre se esvazia.

Mas de onde decorre a vontade de igualdade? Para Tocqueville, que era cristão, a vontade de igualdade é colocada no ser humano pelo seu criador: Deus. Ou seja, a vontade que o ser humano sente para se colocar diante do seu semelhante na mesma posição decorre de uma influência inteligível e, portanto, providencial, e, desse modo, não depende da vontade humana. O ser humano, se situa, por consequência, como um objeto da vontade divina de igualar a todos os seus filhos.

O desenvolvimento gradual da igualdade das condições é um fato providencial. Possui suas principais características: é universal, é duradouro, escapa cada dia ao poder humano; todos os acontecimentos, bem como todos os homens, contribuem para ele. (Tocqueville, 2005, p.11)

O que se entende, por conseguinte, da igualdade para Tocqueville? Bem como a conceituação de democracia, ou a sua definição, o autor não nos coloca diante de uma resposta conceitual para a igualdade. No entanto, podemos perceber que ela se mostra diante de características imprescindíveis para a sua conjectura. Essas características, a saber, se mostram na capacidade, ou possibilidade de cada pessoa poder se situar onde quiser em relação ao corpo social construído, onde aquele que é pobre, não precisa ser sempre pobre, e não transmite sua pobreza para seus filhos, bem como, aquele que é rico poderá vir a ser pobre. Dessa maneira, a igualdade recebe importantes contribuições dos direitos individuais para evitar a estagnação social.

Da importância dos direitos

Para Tocqueville, a ideia de direitos aos povos nasce não de uma obrigação imposta violentamente, mas de uma sucessão de meios dos quais eles se identifiquem e utilizem os mesmos como princípios de manutenção e de reivindicação. O direito político, exemplificando, tornar-se-á um dos mais importantes, uma vez que o exercício do mesmo contribui não só na construção da sociedade, como também na relação social que existirá dentro dessas mediações.

Esses direitos contribuem, de forma acentuada, na elaboração de um senso de virtude aos cidadãos, uma vez que ao estabelecer um ponto de ligação entre seus semelhantes, se é possível delimitar em uma sociedade os conceitos de direitos, sendo, na ausência deles, a inexistência de uma verdadeira sociedade, nem tampouco, democrática. Esclarece, Tocqueville, que na américa, é notoriamente possível analisar que esse desejo e essa busca eventual ao exercício da cidadania, se dá não só pelo objetivo que existe entrelaçado materialmente, como sendo, também, uma construção intelectual que faz os cidadãos buscarem respeitar e determinar limites uns aos outros sobre seus direitos, na busca de preservá-los. Para exemplificar tal afirmativa, expõe Tocqueville:

Vemos como isso funciona com as crianças, que são homens, ressalvadas a força e a experiência. Quando a criança começa a se mexer no meio dos objetos externos, o instinto leva-a naturalmente a dispor de tudo o que encontra à sua mão; ela não tem a ideia da propriedade dos outros, nem mesmo a da existência; porém, à medida que aprende o valor das coisas e que descobre que, por sua vez, pode ser despojada das suas, toma-se mais circunspecta e acaba respeitando em seus semelhantes o que deseja que respeitem nela. (Tocqueville, 2005, p.278)

Na América, o direito a propriedade é, acima de tudo, um dos divisores sobre a transparência da real distinção da América com outros países, não por existir a falta da propriedade, mas pela propriedade aqui possuir um caráter pessoal e emancipacionista, onde ela é discutida e respeitada. Diferentemente de outras regiões onde ela é debruçada em inquietudes e queixas sobre seu real pudor, caracterizada, nessas regiões, como um meio que prende e cria o proletariado.

O direito político atrelado à propriedade faz nascer nos indivíduos, um caráter de pertencimento ao todo, buscando, assim, realizar coletivamente, aquilo que o mesmo desejaria para si. Contudo, esse sentimento de coletivismo, quando atingidos a um patamar de igualdade de condições, e, portanto, de direitos, passa a produzir nos indivíduos, uma inversão copernicana de objetos, onde seus olhares não mais se voltam para o coletivo, mas para si mesmo, pois possui tantos direitos já consolidados que seus interesses se pautam, agora, na consolidação de seu bem-estar.

Do individualismo como consequência da igualdade

A grande preocupação de Tocqueville, nesse tópico, se volta para a consequência negativa que surgia da igualdade. Pois, após a sua conquista, o futuro de cada pessoa se torna incerto, não existe mais estagnação social e não existe riqueza hereditária. E, desse modo, a preocupação social se volta para a consolidação do seu bem-estar.

A Igualdade de condições, dessa maneira, torna a todos igualmente independentes entre si. O que torna, por sua vez, a luta pelos direitos políticos, ou a sua execução, uma vontade secundária nos indivíduos, que, por vezes, se confunde com um contratempo à sua busca perene da prosperidade individual.

Dessa forma, os indivíduos que se mantêm afastados da política de seu país, assumem consequências negativas como ficarem desinformados quanto às decisões que são tomadas por aqueles que os representam e, desse modo, todos os direitos políticos que não são aproveitados pela sociedade, ficam sendo utilizados por poucos.

O exercício de seus deveres políticos lhes parece um contratempo incômodo que os distrai de sua indústria. Se se trata de escolher seus representantes, de dar mão forte à autoridade, de cuidar em comum da coisa comum, falta-lhes tempo: não seriam capazes de dissipar esse tempo tão precioso em trabalhos inúteis; são brincadeiras de gente ociosa que não convém a homens graves e ocupados nos interesses sérios da vida. Essa gente crê seguir a doutrina do interesse, mas só têm dela uma ideia grosseira e, para zelar melhor pelo que chamam seus negócios, negligenciam o principal, que é permanecer donos de si mesmos. (Tocqueville, 2005, p.172)

Como cegos satisfeitos com o seu bem-estar, ou preocupados apenas em construí-lo, a população democrática entrega nas mãos de líderes unitários todos os poderes políticos que lhe cabem. Desse modo, observa Tocqueville, cria-se na democracia, uma tendência de centralização governamental e administrativa.

A centralização governamental seria a responsabilidade política entregue a união de fomentar leis gerais, ou principiológicas para a estruturação das administrações citadinas, que por sua vez, cuidaria de criar leis específicas. O perigo de ter a população distante dessa ação política se torna evidente, pois, sem a expressão dos interesses da sociedade, o representante fica livre para impor os seus.

E, apesar de a necessidade uma união forte, para se manter um país unido, mais necessária se torna a comuna, ou seja, a organização das cidades, pois, a união se coloca distante do povo, e a cidade é o mais acessível para a participação política, é onde de fato o indivíduo constrói seu senso cívico, no entanto, quando essa administração está igualmente centralizada, por vontade dos próprios governados, suas decisões, como as da união, podem tomar caráter arbitrário.

A grande diferença dos Estados Unidos para o resto do mundo é que, em nenhuma das federações, existe centralização administrativa, ou seja, as cidades se encontram livres para tomarem suas decisões e guiarem o governo local com base nas suas necessidades mais sensíveis, com o grande apoio da população local, que, em pequeno número, sempre se mostra mais ativa do que as grandes massas.

Todavia, em frente a esse desinteresse consequencial que parece tomar a população que conquista os ideais de igualdade condições, as aspirações ou ameaças despóticas tendem a se instalar aos poucos no seio da política democrática.

Do individualismo como fonte do Despotismo

Chegado ao ápice dessa liberdade atômica oriunda do maior nível de igualdade, Tocqueville diz que, os cidadãos passam a não mais se importar uns com os outros, e a não se interessarem pelo futuro de seus comuns, de forma que, se tocam, mas não se sentem. Passam, destarte, a se satisfazerem com as condições favoráveis para o seu bem-estar, sem se preocupar com os rumos que seu país toma.

Desse jeito, Tocqueville acredita que, a medida em que os cidadãos estão apenas preocupados com sua prosperidade, o Estado apenas lhe serve como um pai serve ao filho, e, nessa forma patriarcal, guia os indivíduos aos seus bens lhes dando suporte. No entanto, tal qual Aristóteles já mencionava, o governo patriarcal se baseia em uma soberania de seu líder, que enxerga nos cidadãos massas que sempre estará submetida aos seus cuidados.

Assim, a medida em que os cidadãos se conformam com o auxílio do Estado, nada mais lhes interessa. Conquanto, o líder, com o papel de serviçal da sociedade em seus interesses egoístas, naturalmente, acaba por limitar a necessidade de liberdade da sociedade em troca de segurança e tranquilidade pública.

Dessarte, os cidadãos da democracia se submetem a uma servidão não aparente, pois, mesmo não exercendo seus poderes e direitos políticos, ainda acreditam que estão submetidos a sua própria vontade pois o líder é eleito por eles. A soberania popular, dessa forma, passa a limitar-se a uma máscara utilizada por um governo despótico para guiar os rumos do Estado conforme lhe convém enquanto apreciar o bem estar da população.

Das barreiras ao individualismo

Para Tocqueville, o único jeito de retirar os indivíduos da frente do espelho, ou seja, da frente de assuntos pessoais, é dando-lhes meios para que possam se unir em grupos e, desse modo, exercerem a solidariedade. Dessa forma, grupos políticos como a comuna ou grupos morais como a igreja exercem grande influência nessa questão.

Uma das cidades norte americanas que mais lhe chamaram a atenção foi a Nova Inglaterra, segundo Tocqueville, nela as pessoas estão tão próximas dos assuntos públicos que elas mesmas se sentem parte dos rumos da cidade e reconhecem a importância de suas opiniões para a fomentação dos avanços públicos.

O habitante da Nova Inglaterra prende-se à sua comuna, porque ela é forte e independente; interessa-se por ela, porque colabora para dirigi-la; ama-a, porque não tem de queixar-se de sua sorte; deposita nela sua ambição e seu futuro; envolve-se em cada incidente da vida comunal. (Tocqueville, 2005, p. 80)

A comuna, portanto, se torna um importante aliado do cidadão para a formação de sua virtude cívica, tanto pela sua proximidade quanto pela sua atração por possuir força independente. Assim, a comuna é para o cidadão como sua casa, nela reforça sua importância em frente aos assuntos públicos bem como reconhece as vontades de outras pessoas, atuando de modo que reforça a sua soberania e constrói sua solidariedade.

Outra barreira forte para o individualismo consiste na religião. Tocqueville a enxerga, ademais, como um fator fundamental para a formação do povo americano. Desse modo, percebemos que o povo americano carrega traços que foram motivos de sua fuga da Inglaterra, baseados em uma religião cristã puritana, na população do norte, tendem a desejar a prosperidade econômica bem como seguirem preceitos e regras cristãs de convivência social.

Dessa forma, é comum encontrar na américa certa uniformidade moral decorrente da religião, o que inculta na sociedade, por consequência, uma maior noção de coletividade, pois, seguindo os dogmas da igreja, como o amor ao próximo e a solidariedade para com os menos favorecidos, o povo americano encontra motivos para considerar os fatores conjuntos da população e se absterem de uma prática egoísta.

No sul do país, por outro lado, predomina a religião católica, mas não menos diferente, ela incute as mesmas pretensões que na religião cristã puritana, ressalvadas as pretensões materiais de acúmulo de riquezas, e longe do que se temia na Europa, que a igreja católica incorresse em risco para a democracia, na américa, ela consegue se manter cuidadosamente distante do poder político, exercendo sua influência apenas sobre a moral social.

Para notarmos melhor essa relação entre o catolicismo e o senso de coletividade, e, portanto, mostrar que não há o que temer por sua influência, Tocqueville nos traz uma breve fala de um padre:

"Deus todo-poderoso! Deus dos exércitos! Tu, que mantiveste o coração e conduziste o braço de nossos pais, quando eles defendiam os direitos sagrados de sua independência nacional; tu, que os fizeste triunfar sobre uma odiosa opressão e que concedeste a nosso povo os benefícios da paz e da liberdade, ó Senhor! volta um olhar favorável para o outro hemisfério; olha com piedade um povo heróico que luta hoje como lutamos outrora e pela defesa dos mesmos direitos! Senhor, que criaste todos os homens segundo o mesmo modelo, não permitas que o despotismo venha deformar tua obra e manter a desigualdade na terra. Deus todo-poderoso! zela pelos destinos dos poloneses, toma-os dignos de ser livres! Que tua sabedoria reine em seus conselhos, que tua força seja em seus braços; espalha o terror entre seus inimigos, divide as potências que tramam sua ruína e não permitas que a injustiça de que o mundo foi testemunha há cinquenta anos se consome hoje. Senhor, que tens em tua mão poderosa o coração dos povos e o dos homens, suscita aliados para a causa sagrada do bom direito; faz que a nação francesa se erga enfim e, saindo do repouso em que seus líderes a retêm, venha combater mais uma vez pela liberdade do mundo. "Ó Senhor! não desvies jamais de nós tua face; permite que sejamos sempre o povo mais religioso, assim como o mais livre. "Deus todo-poderoso, ouve hoje nossa prece, salva os poloneses. Pedimos-te isso em nome de teu filho amado, Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu na cruz para a salvação de todos os homens. Amém." (Tocqueville. 2005, p.341)

Assim, seja a religião cristã puritana, ou a religião católica, ambas exercem, igualmente, um importante senso de coletividade nos Estados Unidos, e limitam a possibilidade do despotismo, pois limitam, por sua vez, a possibilidade do individualismo atômico.


DEMOCRACIA E LIBERDADE

Diferente da igualdade, o tema da liberdade toma proporções mais tangíveis ao ser humano, pois suas consequências ou aparições não são fatalistas ou providenciais. No entanto, antes de falarmos sobre o pensamento de Tocqueville a respeito do tema, vejo como imprescindível a consideração da diferença entre a liberdade pretendida pelos modernos e a liberdade pretendida pelos antigos.

Essa diferenciação se faz surgir com Benjamin Constant, em 1818, quando professava seu discurso em Paris. Para ele, o objetivo dos antigos, perante a democracia, era a distribuição do poder político entre todos os cidadãos de uma mesma pátria; já o objetivo dos modernos, se daria na "segurança nas fruições privadas" (Bobbio, 2000, p.8).

Tocqueville, todavia, enxerga um ponto a mais nessa relação, que é o ponto dos direitos políticos. Para ele, a liberdade privada não reside apenas na segurança de suas propriedades materiais, mas também de suas propriedades políticas. Pois, exercendo e possuindo apenas as primeiras, como já vimos, o cidadão se fecha para o mundo político em seu país, passando-se a ser, de soberano em sua nação, a servo em suas ideias de bem-estar.

Da importância das comunas para a liberdade

Tocqueville, dando a elevada importância para a liberdade política, percebe que o meio mais apropriado para a sua construção se desenvolve nas comunas. Ou seja, nas cidades, onde a proximidade com os cidadãos é maior do que para com a união. Desse modo, diz Tocqueville: "Ora, tirem a força e a independência da comuna, e nunca encontrarão nela mais do que administrados, e não cidadãos" (Tocqueville, 2005, p.78).

Pensa-se, assim, que a possibilidade de construção de uma virtude cívica, e por consequência, de uma maior proximidade do cidadão para com os seus direitos políticos se deve a uma maior liberdade para a administração citadina. Pois, o indivíduo passa a se enxergar como verdadeiramente um membro de algo socialmente poderoso, e dessa forma, contribui para a fortificação de suas liberdades políticas e para o respeito à igual liberdade de seu próximo como se verifica em sua fala:

As instituições comunais estão para a liberdade assim como as escolas primárias estão para a ciência: elas a colocam ao alcance do povo, fazem-no provar seu uso tranquilo e habituam-no a empregá-la. Sem instituições comunais uma nação pode se dotar de um governo livre, mas não possui o espírito da liberdade. Paixões passageiras, interesses de um momento, o acaso 84 das circunstâncias podem lhe dar as formas externas da independência; mas o despotismo reprimido no interior do corpo social cedo ou tarde volta à tona. (Tocqueville, 2005, p. 71)

Da tirania da maioria

Apesar de a liberdade política se fazer necessária na democracia, Tocqueville teme, que, diante de um desrespeito da maior parte da população em frente a menor, suas decisões acabem por se tornar tirânicas. Para o filósofo, aliás, essa é uma tendência natural da democracia, que, sem limites ao poder do povo, aumenta o poder da maioria enquanto reprime o poder das minorias.

O filósofo, diante dessa questão, chega, até mesmo, a considerar se não estaria entrando em contradição consigo mesmo ao perceber que a maioria não poderia ter o direito de tudo fazer, mas que dela, se originam todos os poderes.

Considero ímpia e detestável a máxima de que, em matéria de governo, a maioria do povo tem o direito de fazer tudo; apesar disso situo na vontade da maioria a origem de todos os poderes. Estarei em contradição comigo mesmo? (Tocqueville, 2005, p. 294)

Apesar de tal dúvida, posteriormente, Tocqueville, aprofundando melhor sua ideia, se mostra totalmente contrário à possibilidade de uma maioria que detenha o poder de ordem e decisão última. Pois, em suas palavras: "Ora, se você admitir que um homem investido da onipotência pode abusar dela contra seus adversários, por que não admite a mesma coisa para uma maioria?" (Tocqueville, 2005, p. 294-295)

Maioria essa que desconsidera as indagações e opiniões das minorias que tentam se posicionar frente às suas decisões. Dessa forma, o filósofo se coloca em oposição ao francês Rousseau, que considerava possível a existência de um líder soberano, que, com o consentimento de todos, guiasse a sociedade sem necessidades de limites ao seu poder:

Há pessoas que não temeram dizer que um povo, nos objetos que só interessavam a ele mesmo, não podia sair inteiramente dos limites da justiça e da razão e que, assim, não se devia temer dar todo o poder à maioria que o representa. Mas é, esta, uma linguagem de escravos. (Tocqueville, 2005, p.294)

Considera ainda que, aquele que se coloca contra a vontade da maioria, que tudo pode, fica sujeito à violência, mas não a violência física, e sim o pior tipo de pena que se poderia dar a um cidadão: que é ignorá-lo, ridicularizá-lo, e o manter afastado de todos, como se um mal para a sociedade fosse.

Essa maioria, portanto, diz Tocqueville, estaria na posse de uma força material, na produção de leis, e moral, na violência psiquica empregada contra as minorias. Essa realidade, desse modo, leva as minorias a uma situação análoga escravidão social, na qual se encontram obrigados a participarem de opiniões contrárias as suas sem direito à mudança. Caso não participem, assim, perdem seus direitos políticos e sociais, e nada mais é para a maioria, do que um mero animal.

Por conseguinte, aquele que pertence à minoria, nada consegue fazer, pois encontra diante de si todo um sistema construído com base na vontade da maioria, e desse modo, se torna um estranho em seu próprio país. Não consegue, dessa maneira, se queixar às autoridades judiciárias pois são frutos da maioria, não consegue ser ouvido, pois não tem quem lhe dê atenção.

Quando um homem ou um partido sofrem uma injustiça nos Estados Unidos, a quem você quer que ele se dirija? À opinião pública? É ela que constitui a maioria. Ao corpo legislativo? Ele representa a maioria e obedece-lhe cegamente. Ao poder executivo? Ele é nomeado pela maioria e lhe serve de instrumento passivo. À força pública? A força pública não passa da maioria sob as armas. Ao júri? O júri é a maioria investida do direito de pronunciar sentenças, os próprios juízes, em certos Estados, são eleitos pela maioria. Por mais iníqua e insensata que seja a medida a atingi-lo, você tem de se submeter a ela. (Tocqueville, 2005, p.296)

Da importância da liberdade de associação

Um dos principais direitos, para Tocqueville, que reprime ou mitiga a tirania da maioria consiste na liberdade de associação. Que se distingue, por sua vez, em duas: a associação política e a associação civil. A primeira, segundo o pensador, consiste na capacidade de os cidadãos se uniram para modificarem algo que é contra o seu direito ou criarem novas garantias jurídicas para as suas pretensões.

Reconhecendo a fraqueza humana em sua individualidade, Tocqueville considera a associação política como uma barreira a tirania da maioria, pois, com ela, aqueles que estavam aos recantos da sociedade, quase como invisíveis, ganham força por se juntarem à outras pessoas e assim trilharem juntos um caminho de reivindicações de seus direitos políticos e sociais.

A associação civil, por sua vez, se relaciona com a capacidade de os indivíduos se unirem para a realização de ações que sozinhos não conseguiriam, tal qual a construção de uma obra ou a realização de um grupo de assistências sociais.

Nos Estados Unidos, nos mostra Tocqueville, a quantidade de associações se mostra cada vez maior e mais forte. Se situando desde o campo político até o campo moral, as pessoas se unem e com isso, garantem, além de seus direitos, com convívio social, uma maior qualidade de solidariedade.

Dessa forma, a união de uma coletividade frente ao estabelecimento de uma doutrina gera um sentimento de pertencimento, esse sentimento, em comunhão, proporciona um ardor fervoroso pela liberdade e pela expressão comunicativa que, diante de uma injustiça, não tarda a mostrar sua força em suas mais diversas formas de manifestações, podendo essas manifestações ocorrerem, por exemplo, por meio da imprensa. Assim, acerca das associações nos Estados Unidos, expõe Tocqueville:

O habitante dos Estados Unidos aprende desde o nascimento que deve contar consigo mesmo para lutar contra os males e os embaraços da vida; ele lança a autoridade social um olhar desconfiado e inquieto, e só apela para o seu poder quando não pode dispensá-lo. Isso começa a se perceber desde a escola, onde as crianças se submetem, até mesmo nos jogos, a regras que elas mesmas estabelecem e punem entre si os delitos que elas mesmas definem. (Tocqueville, 2005, p. 219)

Da importância da religião e da cultura norte americana

Já mencionamos o papel fundamental que possui a religião do povo americano para a construção de sua identidade como cidadão e a sua importância para a manutenção de um vínculo de solidariedade entre eles. Agora, vamos tratar da religião pela sua importância como barreira fundamental à tirania da maioria.

Tocqueville, verificando as origens do povo americano, constata que, a religião americana, depois de ter se afastada da autoridade do papa, não mais se curvará a autoridade nenhuma. E, dessa maneira, levaram aos Estados Unidos um cristianismo que ele chama de democrático e republicano. acreditando, assim, que a política e a religião sempre estiveram de acordo.

A religião católica, pensa Tocqueville, é uma das mais favoráveis à igualdade de condições. Pois, como ele diz: "O padre se eleva sozinho acima dos fiéis; abaixo dele tudo é igual." (Tocqueville, 2005, p.339). Assim, colocando o rico e o pobre, o doente e o saudável, a mulher e o homem, todos em uma mesma posição de igualdade, a igreja católica se mostra mais igualitária que igreja protestante, que tende a causas individuais, levando mais os homens a independência.

Para o filósofo, por consequência, a igreja católica é um fator importante que incide sobre a política dos Estados Unidos de modo favorável a manutenção da democracia, criando em seus seguidores, um respeito supramaterial às bases organizacionais da sociedade americana.

Deixem o espírito humano seguir sua tendência, e ele ajustará de maneira uniforme a sociedade política e a cidade divina; ele procurará, se ouso dizê-lo, harmonizar a terra com o céu. (Tocqueville, 2005, p. 338)

Outro fator crucial para a manutenção das bases democráticas nos Estados Unidos se verifica pela ação cultural da sociedade. Sabemos que na américa, o povo se habituou a prática da política, e a tornou objeto de sua rotina. Essa cultura, que se intensifica nas cidades, tem o grande apoio da descentralização administrativa existente, pois, exercem seus direitos políticos diretamente em relação com sua cidade.

Desse modo, a cultura política americana, aliada a fragmentariedade dos poderes comunais, formam uma das mais importantes barreiras à tirania da maioria, pois mantém as pessoas fortemente ligadas aos seus direitos e não tendem a unificar dogmas políticos em uma única visão no país.

Das duas classes que estão submetidas a tirania nos Estados Unidos

Para Tocqueville, nos Estados Unidos, existem três povos diferentes e até rivais: os brancos, os indígenas e os negros. No entanto, o homem branco, nessa relação, se situa em uma posição de soberania, enquanto as duas outras raças se igualam em desgraças e inferioridade. Inferioridade essa, que, desde a chegada do europeu no novo mundo, se sustenta por uma série de medidas opressivas. No entanto, apesar da igualdade em relação às suas desgraças, o índio e o negro possuem importantes diferenças:

Essas duas raças infortunadas não têm em comum nem o nascimento, nem a aparência, nem a língua, nem os costumes; somente suas desgraças se parecem. Todas as duas ocupam uma posição igualmente inferior no país que habitam; todas as duas sentem os efeitos da tirania; e, se suas misérias são diferentes, podem lhes ser atribuídos os mesmos autores. (Tocqueville, 2005, p. 374)

O índio, percebe Tocqueville, possui cultura, história e laços familiares em seu próprio país, todavia, com a chegada do homem branco, se vê obrigado a recuar até os desertos dos Estados Unidos, e, na medida em que o europeu aumenta sua população e sua indústria, diminui a possibilidade de vida do povo indígena, pois retira dele sua comida e sua terra.

Dessa forma, o índio se encontra diante de duas opções: ou aceitar a imposição cultural do homem branco, ou lutar por sua honra. Assim, Tocqueville nos diz que existe uma maior probabilidade de luta, e por consequência, de morte do indígena, pois, além de estarem em menor número, não possuem poderes o suficiente, e, por conseguinte, a luta se torna, aparentemente, um modo de exercer a sua cultura heroica e selvagem, considerando que sua liberdade reside em se manter o mais distante possível da cultura americana.

No entanto, os que se submetem a ela logo enxergam as dificuldades que lhe são incutidas pela forma de construção do cidadão: O índio, possuindo uma cultura que valoriza a caça e a pesca, bem como uma vida amena, despreza a noção de um trabalho forçoso para seu sustento e sua evolução social, para ele, tudo deveria provir da natureza, de onde, para o ser humano, bastaria pegar o que lhe fosse necessário. Logo, o indígena, não se encaixando no meio social, tanto pelo preconceito que enfrenta, quanto pela sua natureza, se encontra nos limites mais extremos da liberdade humana, vivendo de mendigagem e trabalhos insalubres, tendo, como único direito, o de continuar vivo em meio aos que usufruem de sua terra.

E, para se confirmar a objetificação dos outros povos para os americanos, em uma tentativa de se livrar do indígena, que não servia para a sociedade industrial americana, a união sustentou o transporte de algumas tribos para o Arkansas, um local cercado por terras inexploradas e rios cristalinos, com isso, o governo norte americano prometia aos indígenas não interferirem em sua cultura ou na sua nova terra. No entanto, não garantiam a segurança do local, que constantemente se encontrava invadido pelo europeu, que, na disputa pela terra, ou pelos bens daquela terra, levava a melhor sobre o desordenado povo indígena.

Tocqueville, com o intuito de nos verificar esse fato, nos apresenta uma fala do povo indígena:

"Quando vossos ancestrais chegaram a nossas terras, o homem vermelho era forte e, embora fosse ignorante e selvagem, recebeu-os com bondade e permitiu-lhes repousar seus pés entorpecidos na terra seca. Nossos pais e os vossos apertaram-se a mão em sinal de amizade e viveram em paz. "Tudo o que o homem branco pediu para satisfazer suas necessidades, o índio apressou-se a lhe dar. O índio era então o senhor, e o homem branco o suplicante. Hoje, a cena está mudada: a força do homem vermelho tomou-se fraca. À medida que seus vizinhos cresciam em número, seu poder diminuía cada vez mais; e, agora, de tantas tribos poderosas que cobriam a superfície do que chamais Estados Unidos, mal restam algumas, que o desastre universal poupou. As tribos do Norte, tão renomadas outrora entre nós por seu poderio, já quase desapareceram. Foi esse o destino do homem vermelho na América. "Eis-nos, últimos de nossa raça: também deveremos morrer?". (Tocqueville, 2005, p.391-392)

Para Tocqueville, essa fala não poderia ser mais premonitória, pois, acredita ele que o futuro do povo indígena nos Estados Unidos, infelizmente, é o de morrer de forma isolada, tal qual na sua formação.

O homem negro, por sua vez, está submetido a escravidão desde de seu nascimento, e até antes dele. Não possui nenhum privilégio de humanidade, se encontra sem família, sem saber de onde veio e sem saber o que é liberdade, enxerga no seu amo todas as virtudes que se encontram em vantagens às suas, se considera inferior pois é chamado de inferior desde o seu nascimento. Para o homem negro, que sente o mais alto peso da tirania sobre seus ombros, seu corpo é propriedade de outra pessoa. O que que, nas palavras de Tocqueville, se torna evidente:

Ao ver o que sucede no mundo, não diríamos que o europeu está para os homens das outras raças assim como o próprio homem está para os animais? Ele os faz servir a seu uso e, quando não os pode dobrar, os destrói. (Tocqueville, 2005, p. 374)

Nos Estados Unidos, desse modo, a solidariedade não existe fora das relações intereuropeias, o que existe, pelo contrário, é uma cultura do senhor e do escravo, onde os dois se situam em planos de existenciais e biológicos distintos, o homem negro, assim, carrega os traços semelhantes aos dos animais, sua força é sua única característica útil, e mesmo ela, é colocada como inferior à do homem branco.

Isso posto, já prevendo a abolição da escravidão nos Estados Unidos, Tocqueville nos coloca diante de uma grande questão: será apenas necessária a mudança na lei para que a população negra possa viver em igualdade com o povo americano? Para responder a essa questão, o filósofo nos leva até a democracia da antiga Atenas de Pérciles, onde a escravidão não possuía uma relação de raças diferentes, mas o escravo poderia ser da mesma raça desde que tivesse perdido uma batalha.

Nessa situação, retirar a escravidão das leis se torna mais difícil que retirar da cultura. Pois, antigamente, o escravo poderia passar a ser livre sem que fosse possível, posteriormente verificar seu passado, pois, visualmente era igual aos outros da cidade. Nos Estados Unidos, no entanto, identificar uma pessoa que já foi escrava, e que, dessa forma, já foi vista como inferior, é imensamente mais fácil.

E, desse modo, com a seleção imediata das pessoas diferentes, o americano limita a possibilidade de participação social do negro. Ele agora é livre pela lei, mas se encontra preso pela sociedade, não podendo frequentar mesmas as escolas, casas, calçadas, e, portanto, não podendo partilhar os mesmos direitos que o branco. Dá-se, assim, a liberdade a alguém que nunca a viveu e que se encontra perdido em sua busca.

Assim o negro é livre, mas não pode compartilhar nem os direitos, nem os prazeres, nem os trabalhos, nem as dores, nem mesmo o túmulo daquele de quem foi declarado igual; em nenhum lugar poderia encontrar-se com este, nem na vida nem na morte. (TOCQUEVILLE, 2005, p. 398)

Destarte, reconhecendo a influência dessa cultura escravista nos Estados Unidos, Tocqueville não acredita que a igualdade entre o povo branco e o negro vá acontecer algum dia, pelo contrário, acredita que o racismo apenas tende a aumentar, e assim, fomentar a disputa entre esses dois povos, podendo ocasionar diversas consequências negativas.

Fazendo um rápido paralelo com o hodierno, reconhecemos acertada a ideia de Tocqueville pelas diversas tragédias ocorridas nos Estados Unidos e no Brasil no ano de 2020, entendemos e confirmamos que essas disputas estão longe de terminarem, pois, a cultura escravista se fortalece a cada dia.

Desse modo, na democracia onde a liberdade e a igualdade se mostravam fatores cruciais para a construção da solidariedade americana entre seus iguais, evidencia, por outro lado, um dos seus vícios mais obscuros que se manifesta através da escravização e inferiorização de outros povos. Assim, a solidariedade americana se apresenta como restrita ao grupo de europeus que, por possuírem aspectos físicos e culturais diferentes, se enxergam como detentores do destino dos seus inferiores. Enxergamos, dessa forma, que a maior dificuldade encontramos, agora, em superar as diferenças e conseguir unir o senso de humanidade a uma só raça.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscando uma nova forma de estudo para um novo mundo que estava nascendo, Tocqueville, tal qual um cientista político, estuda, através de fatores relevantes de seu tempo e do passado, um novo tipo de poder que se iniciava nos Estados Unidos, que era o poder pleno da maioria. Diante disso ele consegue nos mostrar uma diversidade de características que constituem os fundamentos da soberania do povo norte americano, se utilizando, de forma crucial e inteligentíssima, de previsões a respeito dessa sociedade e de suas relações internas.

Percebemos, através desse estudo, que Tocqueville não se confunde com um simples pensador, pois sua contribuição a respeito da igualdade e da liberdade nos sistemas democráticos se faz tão presente quanto em sua época. Suas ideias e previsões nunca foram tão bem correspondidas quanto hodiernamente, em que, nos utilizando de todas as suas obras, tanto para compreendermos o passado e o presente, quanto para imaginarmos o futuro.

Com o desejo, pouco antes de morrer, de deixar sua marca na história através de suas obras, presumimos que seu objetivo de vida se encontra concluído. E percebemos que sua contribuição nos foi fundamental através de seus estudos sobre as instituições que se formavam na américa, por exemplo, conseguimos verificar a importância da independência dos sistemas comunais para a manutenção da democracia na américa, e como sua relevância se fazia diante da maior participação social na política do país, contribuindo para que se evitasse um despotismo ou uma tirania da maioria.

Do mesmo modo, vimos como o costume de um povo pode ser um fator crucial para a sua identidade política, ademais, percebemos como esses costumes se exteriorizam em uma sociedade de modo que se tornam barreiras às imposições contrárias. Diante disso, Tocqueville, brilhantemente, nos apresentou uma das mais louváveis características da cultura americana, que é sua habitual participação política.

No entanto, acreditamos que a maior contribuição de Tocqueville, no estudo da democracia, tenha sido sobre possibilidade de conciliação entre igualdade e liberdade. Findo as exposições, e baseados no pensamento de Tocqueville, conseguimos verificar que essa relação, além de possível, é absolutamente necessária para a manutenção da democracia, haja vista que, não existe democracia sem igualdade e liberdade, no entanto, sendo apenas necessário o bom uso de cada uma, e isso, como verificamos, se faz possível através de uma série de fatores externos ao ser humano.

Desse modo, uma democracia apenas igualitária, como vimos, terminaria por se tornar despótica, mas sem ela, teríamos uma aristocracia. E de outro modo, não é possível a liberdade sem a igualdade, mas, uma vez alcançada a liberdade civil, devemos entender a necessidade de não excluirmos da vida social a liberdade política. Para isso, desse modo, vimos, com Tocqueville, os fatores fundamentais para que uma sociedade não abandone seus direitos políticos, e dentre eles, temos os fatores culturais e materiais, como o hábito político e a maior liberdade e autonomia administrativa.

Além disso, temos a sua importante contribuição na observação cirúrgica que ele faz dos outros povos existentes na américa senão o povo europeu. Isso mostra sua preocupação com a real aplicação do ideal de igualdade para todos os que se percebem seres humanos, e não apenas para pessoas isoladas em determinados grupos. Verifica-se ainda a importância dada para a construção da liberdade do povo negro nos Estados Unidos, que, apesar de prevista na lei, não se observa na sociedade.

Dessa forma, recebemos uma contribuição de Tocqueville para os pensamentos políticos, sociais, filosóficos e humanistas do mundo, e assim, verificamos seu caráter inovador enquanto estudioso dos fatos políticos que se faziam presentes na América e no mundo. Esses pensamentos ainda se fazem importantes quase dois séculos após sua morte.


Referências

TOCQUEVILLE, Alexis. A Democracia na América. Livro I Leis e Costumes. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2005

BOBBIO, Noberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Editora Brasiliense S.A. 2000.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Evanilson Kleverson da Silva; CORREIA, Manoel Max da Silva. Alexis de Tocqueville. Liberdade e igualdade na democracia da América. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7098, 7 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88094. Acesso em: 2 maio 2024.