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Da possibilidade de alienação cautelar de bens apreendidos em decorrência de crime de lavagem de dinheiro

Da possibilidade de alienação cautelar de bens apreendidos em decorrência de crime de lavagem de dinheiro

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            Recentemente o Governo Federal concluiu projeto de lei que tem como um de seus principais pontos a inclusão, no corpo da Lei nº 9.613/98, da alienação cautelar dos bens apreendidos (ou seqüestrados) em decorrência de crime de lavagem de ativos ilicitamente adquiridos.

            Sem embargo dos esforços envidados pelo Executivo da União em cumprir o estabelecido na Convenção de Palermo, que trata do crime organizado transnacional e foi promulgada, após aprovação do Congresso Nacional, pelo Decreto nº 5015 [01], de 12 de março de 2004, entendemos que, na hipótese em que o crime antecedente é o tráfico ilícito de drogas, a alienação cautelar dos bens sob constrição patrimonial seja possível, desde que operacionalizada através da interpretação sistemática dos diplomas já em vigor [02].

            Inicialmente, devem ser trazidos a lume alguns caracteres do delito de lavagem ou ocultação de bens direitos e valores provenientes de crimes ditos antecedentes. Os primeiros diplomas legais que tratavam do assunto foram sancionados após a Convenção de Viena [03], sendo que apenas o crime de tráfico ilícito de entorpecentes constava como crime antecedente. Dada sua natureza primordial, foi classificada, por óbvio, como legislação de primeira geração. Com a inclusão de outros delitos no rol de crimes antecedentes, as novas legislações passaram a ser denominadas de segunda geração. Caracterizando a terceira geração de leis que tipificam a lavagem de ativos, temos a ausência de fixação de crime antecedente em rol taxativo, configurando a reciclagem de dinheiro a ocultação de bens obtidos após o cometimento de qualquer delito anterior. Com essa exposição, fica claro o entendimento de que a Lei nº 9.613/98 pertence à segunda geração de diplomas legais que tratam da lavagem de bens, direitos e valores.

            Nesse diapasão, travestir com aparência lícita os bens auferidos através de crimes apontados no artigo 1º da Lei de Lavagem ou ocultá-los da visão dos agentes do Estado propicia a subsunção dessas condutas à norma que o legislador infraconstitucional previu como proibida.

            Como providências elencadas no artigo 4º da Lei de Regência, a apreensão e o seqüestro de bens, direitos e valores do acusado pelos crimes elencados na referida lei podem ser decretados pelo Juiz, de ofício, por requerimento do Ministério Público ou, ainda, por representação da autoridade policial, desde que existentes indícios suficientes da ocorrência do crime.

            A alienação cautelar, por sua vez, é medida de constrição ao patrimônio do réu, prevista no §4º do artigo 46 da Lei nº 10.409/2002 [04], que recai sobre os bens apreendidos utilizados na prática de tráfico ilícito de entorpecentes. Analisando o mencionado artigo, verificamos a forma procedimental a ser empregada na alienação cautelar de bens utilizados no tráfico de drogas: após a apreensão, o Ministério Público, por meio de requerimento ao Juízo, solicitará a medida cautelar -- que, deferida, terá prosseguimento com a avaliação e hasta pública. O valor apurado será depositado em conta judicial, devendo a União ser intimada para oferecer caução, de valor equivalente ao alcançado no leilão, em certificados de emissão do Tesouro Nacional, restando à Secretaria Nacional de Entorpecentes (SENAD) solicitar à Secretaria do Tesouro Nacional a referida emissão dos certificados. Caucionados, os valores serão transferidos à União, passando a integrar o Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD). Sendo decidido o perdimento dos valores em favor da União, a Secretaria do Tesouro Nacional providenciará o cancelamento dos certificados utilizados para caucionar o montante apurado no leilão (§3º do artigo 48 [05]).

            A respeito do FUNAD devem ser tecidos alguns comentários sobre o itinerário percorrido desde a entrada em vigor da legislação que o criou até os dias atuais. Denominado inicialmente de Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate ao Abuso de Drogas (FUNCAB) pela Lei nº 7.560/86 e sendo constituído por todo e qualquer bem apreendido em decorrência do tráfico de drogas, conforme caput do artigo 4º [06], o fundo teve sua fonte de recursos ampliada pela Lei nº 9.804/99, que acrescentou o inciso VI ao artigo 2º [07] da lei precursora do FUNCAB, possibilitando que os recursos oriundos do perdimento em processo criminal de lavagem de dinheiro cujo delito antecedente é o tráfico ilícito de entorpecentes integrassem o referido fundo.

            A mesma lei alteradora acrescentou os incisos VII [08], VIII [09] e IX [10] ao artigo 5º, que trata da destinação dos recursos do FUNAD. Estes, de acordo com a adição daqueles ao referido artigo, são empregados: a) para custear as despesas decorrentes do cumprimento das atribuições da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD); b) no pagamento do resgate dos certificados de emissão do Tesouro Nacional que caucionaram recursos transferidos para a conta do FUNAD; c) no custeio das despesas relativas ao cumprimento das atribuições e às ações do Conselho de Atividades Financeiras (COAF) no combate aos crimes de lavagem, até o limite da disponibilidade da receita decorrente do inciso VI do artigo 2º (Lei nº 7.560/86).

            Assim, infere-se que os recursos que passaram a constituir o FUNAD, e é o caso do previsto no inciso VI do artigo 2º citado, podem servir ao resgate dos certificados que caucionarem os valores obtidos com a alienação cautelar dos bens apreendidos sob suspeita de haverem sido adquiridos com recursos oriundos do tráfico ilícito de entorpecentes, como bem acentuado pelo incisos VIII e IX do artigo 5º referido.

            Dessa forma, integrando as normas mencionadas com o escopo de interpretá-las sistematicamente, é forçoso concluir pela efetivação da alienação cautelar na lavagem, já que o FUNAD caucionaria, igualmente, os valores obtidos com a venda antecipada dos bens adquiridos com os "haveres reciclados" decorrentes do crime antecedente de tráfico de substâncias estupefacientes, possibilitando, por conseguinte, que as instituições voltadas para o combate ao crime e à aplicação da lei contem com mais recursos a serem utilizados na respectiva atividade-fim, destinação incrustada no parágrafo único do artigo 243 da Carta Magna vigente [11] (norma basilar à possibilidade aventada no presente artigo). E não só a vantagem financeira adviria com a destinação dos bens apreendidos, mas, também, a disponibilização do espaço físico utilizado para guardar os objetos apreendidos (há notícia de pátios abarrotados de veículos) e a possibilidade de venda destes pelo justo valor (de mercado), ou seja, pela avaliação realizada no momento em que foram retirados da posse do investigado.

            De outro vértice, parece razoável considerarmos a alienação cautelar como instituto de natureza garantista, já que apresenta utilidade bipolar por ser favorável também ao acusado pela prática de crime de lavagem de dinheiro que teve seus bens apreendidos (ou seqüestrados) durante a investigação a que foi submetido, não sendo, portanto, conveniente apenas ao Estado-Leviatã. Imaginemos a seguinte situação: o investigado é proprietário de vários bens móveis, de elevado valor e de depreciação contínua, tais como automóveis de luxo, aeronaves, motocicletas, barcos etc. Possivelmente, no caso em tela, nem todos os bens apreendidos serão usados na prevenção e repressão ao crime (conforme § 4º do artigo 46 da Lei Antitóxicos de 2002), considerando que seja concedida autorização judicial para sua utilização. Mesmo após todas as ações de extremo cuidado desenvolvidas pelo administrador dos bens nomeado pelo Juízo (artigo 5º da Lei nº 9.613/98 [12]), não é possível manter em perfeito estado de conservação os ativos sob custódia, redundando, assim, na desvalorização dos artigos de luxo apartados do acusado pela prática de crime de lavagem.

            Ainda que a Constituição Federal de 1998 nos brinde com uma série de direitos e defesas processuais [13] e a própria Lei de Regência prelecione sobre a liberação dos bens quando comprovada a licitude da respectiva origem [14], apresenta-se mais salutar ao investigado, acaso dificultosa a prova da legalidade da aquisição efetuada, a possibilidade de que os bens sejam vendidos nesse momento (logo após a apreensão) e que os respectivos valores sejam caucionados por certificados do Tesouro Nacional, que seriam restituídos após eventual sentença absolutória ou, na hipótese de condenação, pela casual não abrangência do perdimento sobre alguns desses bens em razão da inexistência de relação destes com o crime objeto da ação criminal. Acaso vislumbre prejuízo com a efetivação da alienação cautelar, o investigado poderá recorrer ao Judiciário a fim de buscar a indenização que considerar satisfatória.

            Pelas considerações expostas, entendemos ser possível, através da interpretação sistemática dos dispositivos legais atualmente em vigor, a alienação cautelar (garantida pelo FUNAD) dos bens apreendidos em decorrência da prática de delito de reciclagem de ativos quando o crime antecedente for o tráfico ilícito de drogas.


Notas

            01 Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5015.htm

            02 Leis nº 7.560/86, nº 9.613/98 e nº 10.409/2002.

            03 A "Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas", aprovada em Viena, Áustria, no ano de 1988, no âmbito das Nações Unidas, denominada de "Convenção de Viena", teve como propósito promover a cooperação internacional no trato das questões ligadas ao tráfico ilícito de entorpecentes e crimes correlatos, dentre eles a lavagem de dinheiro. Trata-se do primeiro instrumento jurídico internacional a definir como crime a operação de lavagem de dinheiro. O Brasil ratificou a Convenção de Viena em junho de 1991.

            04 § 4º O Ministério Público, mediante petição autônoma, requererá ao juízo competente que, em caráter cautelar, proceda à alienação dos bens apreendidos, excetuados aqueles que a União, por intermédio da Secretaria Nacional Antidrogas - Senad, indicar para serem colocados sob uso e custódia da autoridade policial, de órgãos de inteligência ou militares, envolvidos nas operações de prevenção e repressão ao tráfico e uso indevidos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.

            05 § 3º No caso de perdimento, em favor da União, dos bens e valores mencionados no art. 46, a Secretaria do Tesouro Nacional providenciará o cancelamento dos certificados emitidos para caucioná-los.

            06 Art. 4º Todo e qualquer bem de valor econômico, apreendido em decorrência do tráfico de drogas de abuso ou utilizado de qualquer forma em atividades ilícitas de produção ou comercialização de drogas abusivas, ou ainda, que haja sido adquirido com recursos provenientes do referido tráfico, e perdido em favor da União constituirá recurso do FUNCAB, ressalvados os direitos do lesado ou de terceiros de boa-fé e após decisão judicial ou administrativa tomada em caráter definitivo.

            07 VI - recursos oriundos do perdimento em favor da União dos bens, direitos e valores objeto do crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins, previsto no inciso I do art. 1o da Lei no 9.613, de 3 de março de 1998.

            08 VII - aos custos de sua própria gestão e para o custeio de despesas decorrentes do cumprimento de atribuições da SENAD;

            09 VIII - ao pagamento do resgate dos certificados de emissão do Tesouro Nacional que caucionaram recursos transferidos para a conta do FUNAD;

            10 IX - ao custeio das despesas relativas ao cumprimento das atribuições e às ações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, no combate aos crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores, previstos na Lei no 9.613, de 1998, até o limite da disponibilidade da receita decorrente do inciso VI do art. 2o.

            11 Art. 243

            Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.

            12 Art. 5º. Quando as circunstâncias o aconselharem, o juiz, ouvido o Ministério Público, nomeará pessoa qualificada para a administração dos bens, direitos ou valores apreendidos ou seqüestrados, mediante termo de compromisso.

            13 Conforme art. 5º, incisos XXII, XXXIV, XXXV, XXXVI, XLV, XLVI, LIII, LIV, LV, LVII, LXIX, LXXV.

            14 Art. 4º:

            § 2º O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou seqüestrados quando comprovada a licitude de sua origem.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARREIROS, Vanderlei Gomes. Da possibilidade de alienação cautelar de bens apreendidos em decorrência de crime de lavagem de dinheiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1158, 2 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8883. Acesso em: 30 abr. 2024.