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Os fundamentos do "semidireito internacional".

Uma crítica política ao sistema jurídico internacional

Os fundamentos do "semidireito internacional". Uma crítica política ao sistema jurídico internacional

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A materialização do conjunto normativo do Direito Internacional, também em sua vertente pública, depende muito do trinômio força-poder-interesse de um grupo de países caracterizados como "potências".

I. ENTRE UFANISTAS E NEGADORES DO DIREITO INTERNACIONAL: PARA ALÉM DAS DUAS GRANDES CORRENTES

O amplo tema suscitado neste artigo se fundamenta na forma de um primeiro esboço de proposta acerca da dicotomia efetividade-eficácia do conjunto normativo jurídico internacional. Levou-se em consideração, no processo de sua feitura, os recorrentes problemas estruturais de parcialidade hegemônica, de pouca força coercitiva e de seletividade hermenêutica interessada das normas jurídicas internacionais ou do Direito Internacional (DI), [01] especialmente, quando aplicados ao atual contexto político macrossistêmico unipolar.

Muitos dos debates atuais sobre efetividade e eficácia do Direito Internacional após a intervenção no Iraque a partir de março de 2003 sob a égide inter alia do Artigo 51 da Carta da ONU ("autodefesa antecipatória" da Doutrina Bush), [02] tendem a esbarrar em uma fática e notória comprovação: a materialização do conjunto normativo do Direito Internacional, também em sua vertente pública, depende muito do trinômio força-poder-interesse de um grupo de países caracterizados como potências.

Não há consensualização na literatura sobre a matéria, particularmente, quando predominam elementos ideológicos subjacentes à sua análise. Os excessos dos vieses ideológicos muitas vezes deturpam o pensamento crítico-científico nos debates neste campo. Os ideologismos, cumpre ressaltar, que muitas vezes se confundem com sentimentos anti-americanistas ou anti-hegemônicos em um sistema internacional unipolar, não avançam nesta necessária discussão. Dessa forma, buscou-se retirar, ao máximo, os recortes ideológicos do debate objetivo sobre a jurisdicidade – ou mais precisamente, da efetividade e da eficácia – do Direito Internacional.

Há duas grandes correntes sobre a efetividade e a eficácia do Direito Internacional. [03] Tais correntes se bifurcam no reconhecimento da plena efetividade e da eficácia do DI com leve tonalidade de ufanismo e na sua quase total rejeição. Uma breve análise sobre o espectro das duas grandes correntes mostra-se essencial para melhor fundamentar a raison d’étre da necessidade de uma nova perspectiva aqui denominada de "Semidireito Internacional", eqüidistante aos dois pólos das principais correntes.

A primeira corrente que, de forma ufanista e idealista, admite não somente sua completa efetividade e eficácia, como também desvia, à guisa de justificativa, o foco das reconhecidas deficiências do DI para a irresponsabilidade dos países centrais. Se o DI porventura é falho é em decorrência não de sua jurisdicidade e sim por conta da racionalidade maquiavélica de boa parte dos Estados e de seus policymakers na luta pelo poder e na defesa de sua agenda doméstica e externa. [04] Isto é, as falhas e as precariedades do DIP são exógenas ao sistema jurídico, havendo, assim, uma ênfase no caráter deôntico ("dever ser") do DI que prima pela necessidade de seu cumprimento com a existência de uma "comunidade internacional" legalmente estabelecida e ordenada. [05] O sistema jurídico internacional é perfeito em suas atribuições, é coeso e representa a forma de regulação dos Estados na esfera internacional. A superação das arbitrariedades, da truculência e do ímpeto belicista unilateral do(s) país(es) hegemônico(s) ocorreria unicamente pela limitação da autonomia da vontade desses Estados com a predominância e o reconhecimento universal da jurisdicidade do DI. Essa corrente também assevera que, de forma idílica, a ética, a moralidade, o multilateralismo e o espírito cooperativo dos povos sob a égide do Direito Internacional devem prevalecer sobre as ambições armamentistas alimentadas pela sede hegemônica de países centrais – casus belli para várias instabilidades, guerras, revoluções e conflitos armados no cenário internacional.

A segunda corrente nega a efetividade e a eficácia (jurisdicidade) do Direito Internacional como também rejeita a existência de uma "comunidade internacional". De cunho realista, essa corrente desconhece a jurisdicidade traduzida em termos de reduzida efetividade e eficácia do DI. A moldura do paradigma realista influencia essa corrente por meio da crença de existência de uma anarquia internacional onde o Direito Internacional não exerce força reguladora significativa, como salienta Hobbes, ao descrever o "estado da natureza": [06] "The notions of right and wrong, justice and injustice, have there no place. Where there is no common power, there is no law; where no law, no injustice. Force and fraud are in war two cardinal values". Defende também que as sanções com seus dúbios qualificadores de licitude e ilicitude são problemáticas pelo fato de estarem atreladas à politização no âmbito inter-estatal. Não há objetividade, imparcialidade e isonomia do DI por conta da heteronomia do cenário internacional com suas forças estatais e não-estatais subjacentes – não nos esqueçamos da expressiva capacidade de influência das GCTs (Grandes Corporações Transnancionais). A expressão emblemática dessa corrente afirma que o DI não é, nem se materializa em "Direito" e muito menos "internacional" pelas características de dependência do soberano processo legislativo interno e também pela cogência parcial e assimétrica do sistema jurídico internacional. [07] A parcialidade da cogência da norma jurídica a que me refiro diz respeito à observação de que tanto o artigo 53 quanto o 64 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (CVDT) de 1969 não especificarem quais parâmetros devem ser utilizados para a aceitação da coercibilidade (caráter peremptório) de uma norma de Direito Internacional. A vagueza de tal dispositivo apenas reforça a debilidade na determinação universal pela comunidade internacional (sic) da imperatividade e da cogência das normas do Direito Internacional. Em outras palavras, essa corrente não reconhece a capacidade do DI em estabelecer a governança internacional, em decorrência do que denominamos de "fenda de aderência" [08], do voluntarismo na adesão e denúncia bem como do problema concernente às sanções dos vários instrumentos legais. [09]

Ambas as correntes possuem nuances de verdade e alguns excessos; ambas estão, parcialmente, corretas em suas proposituras axiomáticas. Como conciliar, pois, tais verdades parcializadas das duas grandes correntes paradigmáticas, construindo um modelo para explicar a eficácia e a eficiência do Direito Internacional no cenário internacional contemporâneo unipolar pós-11 de setembro? Como estipular as premissas e os parâmetros desse novo modelo conciliatório em meio a preeminência da Doutrina Bush de "autodefesa antecipatória" de quase rejeição do Direito Internacional na condução da guerra contra o terrorismo? Qual o papel e a jurisdicidade do DI quando este vem a contradizer aos interesses hegemônicos contra o "eixo do mal"? Qual a relação e o nexo causal entre hegemonia política, interesses estatais e jurisdicidade do Direito Internacional?

Uma alternativa seria propor uma corrente para além da dicotomia tradicional (defensores idealistas do DI versus negadores realistas do DI), consolidando a tendência a tricotomização. [10] Em tal perspectiva de síntese das duas principais correntes, salientar-se-ia que o DI é eficaz e eficiente em momentos específicos, politicamente determinados, no cenário internacional estratificado na lógica de poder. Os momentos específicos de eficácia ou não do DI são determinados pelo(s) país(es) que amoldam e determinam a ordem mundial de acordo com sua agenda externa, calcada no trinômio força-poder-interesse. Dessa forma, preferiu-se adotar a terminologia "Semidireito Internacional" revelando sua jurisdicização parcial, descentralizada com reduzida efetividade e eficácia para os Estados. Tal neologismo terminológico Semidireito Internacional melhor define, a nosso ver, o sistema jurídico inter-estatal como produto do trinômio força-poder-interesse de uma determinada ordem mundial, estratificado em alta (assuntos que versam sobre segurança internacional, defesa interna e geopolítica estratégica militar) e baixa densidades (cooperação em assuntos não-geoestratégicos incluindo relações diplomáticas e consulares bilaterais).

É necessário ir além dos meros discursos vazios sobre, exclusivamente, a ineficácia do sistema jurídico internacional sem apresentar razões plausíveis para tal observação fática. Esse é um tema que não se esgota, naturalmente, nesse breve artigo. De qualquer maneira, um dos propósitos centrais deste artigo é contribuir, de forma crítica e ativa, ao debate revelando o weltanschauung do sistema jurídico em meio à politicidade acirrada e inerente às Relações Internacionais contemporâneas (sistema westphaliano).

Com isso, objetiva-se contribuir, utilizando como referência epistemológica a política internacional, para o debate sobre a eficácia e efetividade do Direito Internacional e defender que, por conta de suas fendas de incompletude e assimetria, há elementos de um "Semidireito Internacional". O prefixo "semi" é indicativo de sua natureza parcial, revelando a dependência do Direito das Gentes com a esfera política internacional. O "semi" se refere ao caráter de relativização da eficácia e da eficiência do DI em momentos ou instâncias pontuais, como em processos de justificativa de intervenções militares ou ataques cirúrgicos, em que o elemento jurídico-regulador objetivo da conduta internacional seria esquecido em prol de interesses estatais.


II. HISTORICIDADE, ESTATOCENTRISMO E DIREITO INTERNACIONAL

Independentemente das duas principais correntes, o tema da eficácia e da efetividade do DI é controverso e antigo. Os contornos de tal debate têm como pressuposto o conceito político de "Estado". [11] O Estado moderno surge a partir de longo processo como uma síntese histórica que remonta ao século XVI com a Paz de Augusburgo (1555). No entanto, foi com a Paz de Westphalia (1648) que a estatalidade foi uniformizada, reconhecida e formalizada. Vale salientar que o Tratado de Paz de Westphalia foi um conjunto de 11 tratados assinados em Osnabrück e Munster. [12] Desde o Tratado de Paz de Westphalia (1648) que pôs fim à sangrenta Guerra dos Trinta Anos, com quase 1/5 da população européia morta (4 milhões aproximadamente), entre católicos e os príncipes germânicos protestantes, a soberania estatal foi reconhecida e atrelada à integridade territorial não admitindo influência de quaisquer outras forças políticas ou eclesiásticas alheias ao próprio Estado. [13] O citado tratado consagra também o primado da "razão de Estado" como engrenagem central das Relações Internacionais. As reflexões e conseqüências deste momento histórico para o DI contemporâneo são o de reforçar sua debilidade diante de interesses políticos de alta densidade de acordo com uma lógica de hipertrofia do poder, não de isonomia jurídica. O estatocentrismo do Sistema de Westphalia acabara com os últimos resquícios da obediência múltipla e simultânea dos indivíduos ao monarca, ao senhor feudal, ao Papa e a toda classe nobiliárquica. A partir do estatocentrismo do tratado, a obediência dos indivíduos seria, politicamente, ordenada em um corpus jurídico nacional com liberdade religiosa.

Nesse contexto, importante também citar o papel da Revolução Industrial Inglesa a partir de meados do século XVIII e das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) para consolidar a forma e o regime de Estado e de Governo. As duas últimas tiveram força importante também nos ideais democrático-burgueses com o enterramento, na França, do Antigo Regime. Essas revoluções foram instrumentais também para separar a esfera público-estatal da esfera religiosa, criando os princípios do Estado nacional laico e soberano com a primazia do sistema jurídico interno autônomo. O Estado é meio e fim da vida internacional e, como tal, pode utilizar sua soberania e seu sistema normativo como autojustificativa de sua vontade interna e externa. É claro que há constrangimentos ("constraints") a esse exercício de soberania, porém, manifestadamente, o constrangimento ou impedimento jurídico inter-estatal nem sempre é o principal elemento normatizador. O Estado nacional ainda centraliza, portanto, as articulações e o processo decisório político-jurídico e exerce ainda o exclusivismo de titularidade na esfera internacional. [14]

A trajetória do estatocentrismo acompanha as modificações do Direito Internacional que também vai ter seu florescimento a partir do contexto histórico após Westphalia (1648). Em um primeiro momento, a gênese do DI vai focalizar nos aspectos na condução da beligerância. O jusfilósofo internacionalista holandês Hugo Grócio, autor da célebre obra Das Leis da Guerra e da Paz (De Jure Belli ac Pacis), vai ser um dos pioneiros para os estudos do Direito Internacional, primeiramente, como direito da guerra e na guerra na sua tradicional dicotomoia jus ad bellum e jus in bello e, posteriormente, como defensor do princípio da liberdade de navegação dos mares (mare liberum). [15] Em um segundo momento, já no século XX, o Direito Internacional vai ir além da regulação das atividades bélicas sendo também ente de regulação parcial e descentralizada no campo dos direitos humanos, comércio exterior, imigração e relações diplomáticas e consulares. [16] Não se pode esquecer os primeiros organismos internacionais temáticos, criados na segunda metade do século XIX, bem como as Conferências de Haia (1899 e 1907) como contribuições relativas para o aumento do processo de jurisdicização do DI na esfera global.

Com o reflexo do aumento da complexidade na interação entre os vários atores estatais e atores não-estatais (empresas transnacionais e organizações não-governamentais) no cenário internacional, houve algum incremento no processo de jurisdicização e codificação sistêmica da esfera legal que teve respaldo e contou com a participação de Organismos Internacionais no interbellum, com a Liga das Nações (1920-1945) e, no pós-guerra, com a ONU (a partir de 1945). [17] Os organismos internacionais e agências especializadas da ONU vão também exercer papel na codificação e sistematização do DI a partir da segunda metade do século XX e já no início do século XXI. O processo de codificação e sistematização do DI, também no âmbito da ONU com a Comissão de Direito Internacional e mesmo extra-ONU, embora represente esforço relevante, ainda mostra-se ineficaz na conscientização público-social do jus gentium.

Ao invés de servir de fator do necessário amadurecimento civilizatório dos povos, como desejava, idealmente, Dante (De Monarchia), Grócio (Mare Liberum), Abade de Saint-Pierre (Projet de Paix Perpétuelle) ou mesmo em Kant (Da Paz Perpétua), o Direito Internacional acaba sendo um elemento de manipulação por parte dos hegemonismos existentes. Nesse processo, vários organismos internacionais do próprio Sistema da ONU também se tornam peças da autotutela e da autocomposição dos Estados centrais. [18]


III. SOBRE A CORRELAÇÃO DE FORÇAS DA POLÍTICA E O IDEALISMO DO DIREITO INTERNACIONAL: ALGUMAS ANÁLISES

Quando é trabalhado sob o ponto de vista da Ciência Política e das Relações Internacionais (ciência autônoma derivando da amplitude metodológica e analítica das ciências sociais), o Direito Internacional é concebido como de coercibilidade baixa e é dependente do jogo de forças e da correlação de poder dos Estados.

Os quadros abaixo (figura 1) mostram os troncos epistemológicos das duas ciências autônomas, suas correlações e distanciamentos como forma de explicar a realidade internacional. Também serve como fundamento crítico para ressaltar os principais pontos da existência de um semidireito internacional, com suas vaguezas, inépcias e assimetrias. Com foco na norma positivada (ciência jurídica) e com centralidade no fenômeno social e humano (Ciência Política e Relações Internacionais), a figura 1 traz reflexões explicativas sobre a corrente do "semidireito internacional". [19]

Figura 1- Relações gerais epistemológicas entre Política (Relações Internacionais) e Direito Internacional: eixos, aproximações e divergências

Ciências Humanas

Ciências Sociais

Ciências Políticas

(Objeto: as relações de poder entre os vários atores sociais e políticos tendo o "favor" e o "interesse" como moeda de troca.)

Ciência das Relações Internacionais

(Objeto: Inexistência de "comunidade internacional". Relações desiguais de força-poder-interesse e existência de entropia entre atores estatais, não estatais e individuais. Existência de ordem mundial hegemônica estruturada em polaridade-lateralidade e capilarizada em high e low politics.)

Ciências Sociais Aplicadas

Ciências Jurídicas

(Objeto: controle social e ordem pública em um sistema coativo por meio da norma jurídica positivada pelo Estado.)

Direito Internacional

(Objeto: Regulação da conduta dos Estados e dos OIs pela isonomia e pelo idealismo-principismo com várias fontes jurídicas formais e materiais existentes no objetivo de manter a estabilidade, a paz, a harmonia e demais valores de uma "comunidade internacional"

Como sugerem os quadros acima, o DI não é um sistema normativo inter-estatal (corpus juris) pleno, completo, integralizado quando analisado sob a ótica realista das Relações Internacionais. A eficácia e a efetividade do "Direito Internacional" – conjunto de instrumentos jurídicos propostos pelos Estados, com o exercício exclusivo da summa potestas, e pelos Organismos Internacionais com o objetivo ideal de regular a conduta coletiva – é dependente de fatores extra-normativos que lhe conferem grau reduzido, relativamente, de jurisdicização. [20]

A praxeologia dos conceitos de Direito, tanto na sua vertente objetiva (letra legal) quanto na subjetiva (imputação da norma jurídica no meio social), tende a externar os diversos recortes de controle social no binômio tempo-espaço de uma sociedade. [21] As manifestações da vida social demandam limitações da esfera pública para que o pacto político e o contrato social possam ser efetivos dando forma à convivência pacífica e harmoniosa. [22] No plano internacional, não há, claramente, estipulado um pacto político e um contrato social onde os indivíduos possam delegar parcela de sua liberdade individual e coletiva para o "Soberano". Isto é, a cessão necessária de parcela da soberania pessoal para formação do "governo civil", no liberalismo de Locke e Rousseau, destina-se ao Estado e não a uma estrutura governamental surpaestatal.

Sem embargo, poder-se-ia também ir além defendendo que o sistema normativo internacional seria uma forma pré-jurídica pela carência dos elementos intrínsecos ao Direito material (coação, coercitividade, poder fiscalizatório, segurança normativa, controle social). Acerca deste contexto, Bobbio ressaltando as assimetrias do sistema jurídico internacional, chegou a afimar: "Estados em suas relações externas ainda vivem num estado não-jurídico." [23] O ideário de uma forma pré-jurídica associada ao DI não se mostra válida pelos excessos hermenêuticos de esquecer, residualmente, que o DI exerce, em contextos específicos, algum fator de normatização e regulação da vida político-estatal internacional.


IV. OS FUNDAMENTOS DO SEMIDIREITO INTERNACIONAL: LINHAS E PROPOSTAS GERAIS

Se analisado de forma epistemologicamente isolada, o Direito Internacional acaba por se tornar disforme, não atendendo aos seus reclames, objetos e pressupostos fundamentais. O Direito Internacional, em seu sentido formalista, não foi, ao longo dos séculos, criado em um vácuo. Pelo contrário, é produto, como já asseverado, das forças políticas inseridas em uma moldura mais ampla da ordem mundial. Não se deve investigar a eficácia do Direito Internacional sem levar em devida consideração as forças políticas subjacentes. São essas forças e correlações de poder que precisam ser contempladas para explicar a complexa e entrópica realidade político-jurídica internacional. Advoga-se que o Semidireito Internacional, como corrente intermediária e conciliatória, não seja avaliado de forma dogmática somente como ordem deôntica do Sollen ("dever ser") em seu sentido material, e sim seja vislumbrado mais ampla e criticamente em parceria com a perspectiva das Relações Internacionais, cuja premissa maior é o Sein ("ser").

O estudo mais aprofundado do Semidireito Internacional com ênfase no processo de internalização dos atos internacionais no sistema normativo coativo dos países revela suas cinco fendas de incompletude e assimetria. Os cinco pontos abaixo representam os fundamentos do modelo que defendemos com a existência do "Semidireito internacional" como parte da crítica de cunho político ao sistema jurídico internacional.

1. Como não há a tão desejada tripartição montesquiana do poder público-estatal no plano internacional, pois existe a hipertrofia do Executivo no plano externo no processo de negociação, assinatura bem como de promulgação, publicação e registro dos atos internacionais, há concentração do poder com reduzida legitimação da volonté géneral (Rousseau). Assim, o Semidireito Internacional, como nascente da vontade desse Executivo hipertrofiado, ainda se mostra excessivamente estatocêntrico e antidemocrático pelo fato de não corporificar uma das principais premissas na formação do Direito objetivo: o processo legislativo pleno emanado democraticamente do povo, pelo povo e para o povo; [24]

2. O Semidireito Internacional evidencia o caráter voluntarista tanto no processo de assinatura ou de adesão dos atos jurídicos internacionais como também na denúncia dos respectivos atos pelos Estados nacionais;

3. A inexistência de um legislador inclusivo e democrático e de um judiciário dito "universais" com capacidade de imposição, fiscalização e coercitividade erga omnes revela as precariedades legais como meio regulador imparcial, objetivo e plenamente aceito pelos sujeitos internacionais (Estados, por competência originária, os Organismos Internacionais, por competência derivada, e, mais recentemente, os indivíduos, por competência extrapolativa ou também denominada, a nosso ver, de competência sistêmica); [25]

4. O Semidireito Internacional representa um conjunto normativo parcialmente deôntico, primitivo, [26] descentralizado atrelado ao trinômio força-poder-interesse, e é, como tal, estratificado em alta densidade (high politics) com quase nenhuma efetividade e eficácia e em baixa densidade (low politics) com alguma efetividade e eficácia assim determinado pela(s) superpotência(s) que amolda(m) e define(m) a "ordem mundial"; [27]

5. E, por fim, nem toda práxis externa dos Estados tem potencial jurígeno, conseqüentemente, nem toda jurisidicidade (mesmo que parcial, incompleta e assimétrica) resulta em regulação normativa da conduta internacional; ou seja, como se comprova a existência de hierarquia entre os Estados, ocorre uma subornização de interesses e não uma coordenação isonômica dos Estados. [28]

Alguns dos pontos explanados acima possuem um caráter de conhecimento amplo nos meios extra-acadêmicos. De qualquer forma, optou-se por realizar uma listagem dos cinco principais elementos (premissas norteadoras) que fundamentam o neologismo do Semidireito Internacional aqui defendido neste artigo.


V. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Diante das recorrentes transformações do cenário internacional marcado pela entropia, pelo hobbesianismo e pela desigualdade das relações de "força-poder-interesse" dos Estados é que o neologismo "Semidireito Internacional" foi aqui proposto. O esboço temático e teórico reforça a antinomia existente entre os atores internacional. O cenário internacional não é isonômico nem tampouco espelha os princípios idealistas de uma "comunidade internacional" justa, equilibrada e regida plenamente pelo DI. O cenário internacional é hierárquico de acordo com o poder relativo dos Estados. Também assim funciona o Semidireito Internacional, pautado nos interesses escalonados de acordo com o poder relativo dos Estados, classificados por meio de uma moldura de mensuração deste poder estatal.

Assim, importante mencionar a classificação das potências, à guisa de ilustração da engenharia de funcionamento do Semidireito Internacional, de acordo a ordem mundial vigente: superpotência (hegemonia plena com o exercício único, atualmente, dos EUA em escala global); potência (hegemonia parcial ou residual com vários centros descentralizados de poder regional como a UE, República Popular da China e Federação Russa); potência regional ou potência média (exercício de prepondência e influência não-hegemônica em escala regional ou sub-regional como com o Brasil na América do Sul, a África do Sul na África Subsahariana, a Índia no subcontinente indiano, e Japão em parte do leste e sudeste Asiático), potência regional ou média secundária (exercício de equilíbrio da influência na balança de poder regional ou sub-regional com o ideário de rivalidade com as potências regionais ou médias, como no caso da Argentina na América do Sul, do Paquistão no subcontinente indiano, Nigéria na África Subsahariana e Egito no eixo Oriente Próximo-África Sahariana), os Estados dependentes – também chamados de "Estados satélites" de uma esfera de influência – e os micro-estados com pouca ou quase nenhuma projeção de poder relativo.

Nesse sentido, o caso clássico julgado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) em 1986 intitulado Atividades Militares e Paramilitares Internas contra a Nicarágua – Nicarágua versus EUA – mostra que, mesmo tendo dado ganho de causa à Nicarágua, ainda hoje não obteve a necessário reparação aos atos cometidos pelos EUA. O caso da mais alta Corte do Sistema da ONU materializa os institutos do modelo do Semidireito Internacional aqui defendido. Revela também as fendas de incompletude e assimetria do sistema jurídico internacional, onde o trinômio força-poder-interesse prepondera sob a isonomia e a pretensa justeza da Carta da ONU e demais instrumentos internacionais. [29]

As sucessivas intervenções, durante os quarenta e cinco anos de Guerra Fria com características de rivalidade bipolar com seu macrocomportamento de "soma zero", da URSS no Afeganistão em dezembro de 1979 ou dos EUA em Granada, em 1983, no Panamá, em 1989, ou no Iraque, a partir de março de 2002, ocorreram a revelia dos principais instrumentos legais, hierarquizados sistemicamente pela Carta da ONU. Em tais casos, o imperativo hegemônico se sobrepôs ao sistema jurídico vigente, sob os auspícios de organismos multilaterais. O trinômio força-poder-interesse das superpotências relativizam o poder do Direito Internacional, transformando-o em mais um instrumento na lógica de dominação global. O atrelamento do sentido pleno de justeza inter-estatal tem-se afastado, portanto, do necessário critério objetivo que a norma jurídica deveria ter. A imagem simbólica da deusa romana (iustitia) da justiça [30] com os olhos vendados, a balança e os olhos vendados ("equal justice under law") [31] não se aplica à esfera internacional.

A crítica política ao sistema jurídico internacional hodierno revela a necessidade cada vez mais patente de buscar uma corrente intermediária e conciliatória, corporificada no Semidireito Internacional. As cinco premissas do modelo do Semidireito Internacional asseveram as razões explicativas da complexa realidade jurídica internacional que ainda se fundamenta no estatocentrismo (Paradigma de Westphalia). As recorrentes transformações no cenário internacional devem ser contempladas de forma crítica e ampla para descrever e explicar a semijurisdicidade internacional em meio às ordem mundial cravejada pela desigualdade, pela disparidade Norte e Sul e também pela arrogância na preservação conservadora do status quo da ordem mundial.


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Notas

01 Adotou-se aqui o posicionamento de alguns doutrinadores do mundo anglo-saxão common law, que, embora reconheçam a dicotomia público-privado internacional também do sistema ítalo-germânico civilista, preferem considerar o DI de forma de ampla e integrada, sem enveredar pelos particularismos da esfera pública e privada. O DI aqui é assim referendado.

02 Refiro-me aqui à contestada resolução do Conselho de Segurança da ONU S/RES 1441 aprovada em 8 de novembro de 2002 pela votação unânime de 15x00x00. A S/RES 1441 possui a dúbia cláusula operativa onde o Iraque sofreria "graves conseqüências" caso não cumprisse o prazo exigido pela mesma para abertura e inspeção irrestrita de suas usinas, armazéns e depósitos. A doutrina de "autodefesa antecipatória" dos EUA posiciona os interesses hegemônicos norte-americanos acima dos institutos jurídicos e do multilateralismo, daí as muitas controvérsias surgidas sobre a eficácia e a efetividade do Direito Internacional. Cf. CASTRO, Thales. O Conselho de Segurança da ONU e a ordem mundial. Curitiba, Juruá Editora, 2006. p. 32-44.

03 Kelsen define Direito Internacional como "um complexo de normas que regulam a conduta recíproca dos Estados que são os sujeitos específicos do Direito Internacional." Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 1994. p. 355.

04 Os princípios da pacta sunt servanda e do consuetudo est servanda respaldam o ideário de defesa da plenitude do Direito Internacional. Cf. AUGUST, Ray. Public International Law: text, cases and readings. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1995. p. 160-171.

05 De acordo com o jurísta internacionalista Dinstein, há uma diferença entre o jus cogens com imperatividade e coercibilidade reconhecidas, que denomina de norma peremptória, e o jus dispositivum com caráter de norma ordinária de Direito Internacional com reduzida coercibilidade. Cf. DINSTEIN, Yoram. Guerra, Agressão e Legítima Defesa. 3ª. ed. Barueri, Manole, 2004. p. 141-142.

06 Duas máximas latinas importantes na filosofia moral e política de Hobbes sintetizam o caráter realista de sua obra Leviatã. São elas: "homo lupus hominis" e "bellum omnium contra omnes". Ambas descrevem a natureza anárquica do cenário internacional bem como a voracidade do desejo de conflito armado em um estado de natureza onde todos são contra todos. Cf. HOBBES, Thomas. Leviathan: the matter, form and power of a commonwealth ecclesiastical and civil. Indianápolis, Liberal Arts Press, Inc., 1958. p. 65-66; 108.

07 O significado do jus cogens está contigo no artigo 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados – a CVDT – de 1969. O referido artigo é citado in verbis: "Tratado é nulo se, no momento de sua conclusão, entrar em conflito com o norma peremptória do Direito Internacional geral. Para fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como uma norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que se pode ser modificada por uma norma de Direito Internacional geral da mesma natureza". Consultar o Artigo 71 da CVDT sobre os efeitos da nulidade de um instrumento legal internacional. Cf. MAZZUOLI, Valério. Coletânea de Direito Internacional. 2a. ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 198.

08 Fenda de aderência é aqui definida como um distanciamento coercitivo entre a norma jurídica e os fatos internacionais. Esse distanciamento revela as carências e as assimetrias do DI que serão detalhadas adiante.

09 O Artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça discplina sobre as seis principais fontes (formal plena e material) do Direito Internacional. São elas assim estipuladas: convenções internacionais, costume internacional, princípios gerais do Direito, doutrina, jurisprudência, eqüidade ("ex aequo et bono"). Cf. A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS E O ESTATUTO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Op. ct. p. 84.

10 O processo de superar as antigas dictomizações rígidas ocorre também nas ciências políticas. Zaverucha, a exemplo deste fato, defende uma tricotomização, superando a tradicional dicotomia "democracia" versus "regime autoritário" para classificar o Brasil como uma "semidemocracia" tendo como fundamento analítico inter alia as obras de Przeworski e Mainwaring. Em sua opinião, a "semidemocracia" e tutelada pelas Forças Armadas. Cf. ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o autoritarismo e a democracia, 1999-2002. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005. p. 25-32.

11 É verdade que o termo "Estado" já estava presente em Maquiavel (O Príncipe) e, posteriormente, com a Paz de Augusburgo de 1555 com o princípio de protoautonomia estatal de cujus regio ejus religio. Cf. RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: a prática de intervenção humanitária no pós-guerra fria. Rio de Janeiro, Renovar, 2000. p. 20.

12 A importância do Tratado de Paz de Westphalia para o DI e para as Relações Internacionais é patente não somente pelo fato de ter formalizado e reconhecido a independência das Províncias Unidas dos Países Baixos, mas também por ter redefinindo a ordem mundial pós-Guerra por meio do primado da soberania do Estado nacional baseada no interesse, enterreando os últimos resquícios de medievalismo e religiosidade teocêntrica política. Também Westphalia acarreta o declínio da Espanha como potência hegemônica Européia e testemunha a emergência da França católica e da Holanda, país com grande dinamismo comercial e marítimo internacional, como grandes potências sucessoras. Cf. CARNEIRO, Henrique. Guerra dos Trinta Anos. In MAGNOLI, Demétrio. História das Guerras. São Paulo, Editora Contexto, 2006. p. 165-180.

13 Como ilustração dos princpíos realistas da "razão de Estado", a França – o maior país católico à época – do Cardeal Richilieu, chanceler do Rei Luís XIII entre 1624 e 1642, apoiou os príncipes germânicos especialmente da Boêmia e Palatinado juntamente com a Suécia, Dinarmarca e Países Baixos contra a Casa de Habsburgos (também católica) da Áustria, Espanha e do declinante Sacro Império Romano. Ou seja, os fins políticos se justificariam diante dos interesses nacionais franceses, mesmo à revelia da ética religiosa e moralidade espiritual. Cf. CARNEIRO, Henrique. Guerra dos Trinta Anos. In MAGNOLI, Demétrio. História das Guerras. Op. cit. p. 184-186.

14 Várias diplomas legais onusianos confirmam o estatocentrismo de Westphalia. O Artigo 4 da Carta da ONU bem como o Artigo 34 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça reafirmam que somente os Estados podem ter voz, voto, presença e processo decisório nos Organismos Internacionais do Sistema da ONU. Tendo em vista também o Artigo 103 da Carta da ONU, que estabelece uma hierarquia das normas jurídicas internacionais, pode-se enfatizar que esses dois artigos servem como inspiração e harmonização sistêmica dos vários atos legais internacionais. Cf. A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS E O ESTATUTO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Nova Iorque, Departamento de Informações Públicas, 1993. p. 10; p. 30; p. 80.

15 Até mesmo o citado jurista holandês Grócio ao publicar suas obras clássicas vai também utilizar o DI à época de forma interessada. Ao defender o princípio de liberdade de navegação e comércio internacional (mare liberum), estava defendendo, indiretamente, os interesses estratégicos marítimos e comerciais da Compania das Índias Orientais – empresa holandesa – com grande fluxos de investimentos nos vários continentes. Ou seja, é mais um exemplo da carga de interesse, manifestada pela força e pelo poder de grupos de Estados, com o uso seletivo dos instrumentos legais internacionais.

16 Vale salientar que, grande parte da codificação do Direito Internacional, ocorreu no século XX especialmente com o Liga das Nações e com a Conferência de Havana (1928) e, mais precisamente depois da Segunda Guerra Mundial. Cf. BUERGENTHAL, Thomas; MURPHY, Sean. Public International Law. 3ª. ed. St Paul, West Publishing Group, 2002. p. 27.

17 O Artigo 102 da Carta da ONU (Capítulo XVI – Disposições Diversas) dispõe sobre o registro no Secretariado dos tratados e demais instrumentos legais em que os atuais 191 Estados-membros da ONU sejam partes dos mesmos. Esse artigo visa a abolir a nociva prática da DIlomacia secreta que tanto durante a Liga das Nações (1920-1945) ou até mesmo antes durante o século XIX da balança de poder na Europa com o Sistema de Metternich fora causa de rivalidades e grandes guerras inter-estatais.

18 A violência institucionalizada na forma de beligerância (de fato ou de jure) como ultima ratio dos Estados se torna uma forma de legitimação no exercício de sua própria soberania, revelando as fragilidades dos atos jurídicos regulatórios inter-estatais.

19 Tanto a Ciência das Relações Internacionais quanto o Direito Internacional possuem autonomia em seu sentido amplo como ciências enraizadas em seus respectivos troncos epistemológicos.

20 Há debates sobre a própria nomenclatura do DI (sic) como sendo mais adequado "inter-estatal" que "internacional" já que o Estado é o cerne das Relações Internacionais. Decidiu-se manter o uso mais comum e recorrente de Direito Internacional, embora a nação tenha reduzida participação na esfera externa. Ou seja, o cenário externo é estatocêntro (desde a Paz de Westphalia de 1648) e permite pouca abertura, efetividade e eficácia decisórias às nações não-organizadas jurídica e politicamente.

21 Cf. TORRÉ, Abelardo. Introducción al Derecho. Buenos Aires, Perrot, 1957. p. 45-49. O Capítulo IV ("El derecho subjectivo y el deber jurídico") foi utilizado em TORRÉ para fundamentar o parágrafo acima.

22 Diferentemente da "regra", a "norma" é portadora de sanções interpretadas e aplicadas ao caso concreto por parte das autoridades público-estatais competentes; tais autoridades podem ser aqui denominadas também por "instituições coercitivas" (Judiciário, Ministério Público Polícia Civil e Militar) que aplicam a força coativa do Direito.

23 Cf. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 3ª. ed. Brasília, UnB, 1995.

24 As muitas escolas de pensamento sobre teoria do Direito com Kelsen com seu dogmatismo gnoseológico da norma positiva ("Grundnorm") com sua teoria pura do Direito versus o jusnaturalismo de Rousseau, Kant entre outros ilustram que a norma jurídica é portadora de sanções e, como tal, exerce poder de regulação, harmonização e controle da vida social.

25 Nossa interpretação de cunho realista do sistema onusiano mostra que há uma espécie de legislador universal com imputação normativa plena e efetiva que é o Conselho de Segurança da ONU (Artigos 24 e 25 da Carta), embora o CSNU somente cria a prolata resoluções em um determinado ramo da vida internacional: a preservação do status quo da ordem mundial; há, naturalmente, um série de tribunais internacionais (CIJ, ICTFY, ICTR, TPI etc...) embora os mesmos dependem ainda da aceitação de sua juris dire na forma de ratificação legislativa e da aprovação Executiva. O CSNU não é um órgão democrático e amplamente aceito como tal.

26 Kelsen defende a objetividade e o purismo dogmático bem como o monismo na relação entre o DI e as normas jurídicas internas. A natureza primitiva do DI – Semidireito Internacional em nossa visão – é também defendida por Kelsen em diversas passagens das suas obras, como por exemplo: Capítulo VII de seu livro Teoria Pura do Direito e o Capítulo VI da sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado. Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op cit. p. 358-360. Cf. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 321-376.

27 Por "ordem mundial" se concebe uma função diretamente atrelada à estrutura cratológica e axiológica das Relações Internacionais de um determinado momento histórico (t), onde a cada momento histórico corresponde uma determinada ordem mundial. Por axiologia se entende o estudo do conjunto dos valores sociais, morais, intelectuais e filosóficos de um determinado grupo hegemônico e por cratologia (C) se entende a estrutura e a forma de poder internacional (político-diplomático, econômico-financeiro, cultural, militar e geodemográfico) em sua alta e baixa densidades. Cf. CASTRO, Thales. Elementos de política internacional: redefinições e perspectivas. Curitiba, Editora Juruá, 2005. p. 53-60.

28 Tipicamente de cunho idealista-legalista, a Carta da ONU, em seus artigos 1 e 2, assevera que um dos fundamentos centrais da Organização, criada na Conferência de São Francisco, é a igualdade soberana de todos seus Estados-Membros. Ora, há uma contradição fática nessa leitura ao visualizar que há Estados mais influentes, preponderantes e com maior projeção de poder que outros especialmente no Conselho de Segurança da ONU. Cf. LEECH, Noyes; OLIVER, Covey, SWEENEY, Joseph. The International Legal System: cases and materials – documentary supplement. Nova Iorque, The Foundation Press, 1973. p. 17-23.

29 Cf. LEECH, Noyes; OLIVER, Covey, SWEENEY, Joseph. The International Legal System: cases and materials – documentary supplement. Op. cit. p. 25.

30 Cf. FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, dominação, decisão. São Paulo, Atlas, 1993. p. 34-35.

31 O lema do direito anglo-americano do common law "justiça igualitária sob a égide da Lei" com seus elementos intrínsecos de lex tradita e lex scripta, no topo do palácio da Suprema Corte dos EUA em Washington traz questionementos e refelxões necessários das carências do DI, reforçando os pontos defendidos pelo modelo do Semidireito Internacional.


Autor

  • Thales Cavalacanti Castro

    Thales Cavalacanti Castro

    professor adjunto da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Faculdade Integrada do Recife (FIR), doutor em Ciência Política pela UFPE, doutorando em Direito (JD) pela Texas Tech University School of Law (EUA), mestre em Ciência Política (Public Affairs) pela Indiana University of Pennsylvania (EUA), bacharel em Relações Internacionais pela Indiana University of Pennsylvania (EUA)

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Thales Cavalacanti. Os fundamentos do "semidireito internacional". Uma crítica política ao sistema jurídico internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1159, 3 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8890. Acesso em: 23 abr. 2024.