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A taxa judiciária no Estado de São Paulo

A taxa judiciária no Estado de São Paulo

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1. Introdução

Foi notável a alteração trazida pela Lei Estadual 11.608, de 29 de dezembro de 2003, ao dispor sobre a taxa judiciária incidente sobre serviços públicos de natureza forense. É que, no Estado de São Paulo, vigoravam até então normas que isentavam o Ministério Público, o querelante e o réu condenado do pagamento de qualquer custa oriunda de uma decisão criminal - isso por força das leis 4.476, de 20 de dezembro de 1984, e 4.952, de 27 de dezembro de 1985.

Agora, com o advento da lei, à exceção das ações penais de competência do Juizado Especial Criminal, passou-se a exigir o pagamento da chamada taxa judiciária, a ser imposta ao condenado nas ações penais públicas e, nas ações penais privadas, ao querelante quando da distribuição da queixa ou ao recorrente "no momento da interposição do recurso cabível", tudo nos termos do art. 4º., III, § 9º, a e b, do diploma novel.

A respeito de tais alterações, dedicaremos breves linhas.


2. Competência do Estado para legislar sobre o tema

É indiscutível a competência que o Estado possui para legislar a respeito do tributo em tela. Com efeito, a Constituição Federal, em seu art. 24, inc. IV, dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, dentre outros assuntos, a respeito de "custas de serviços forenses". É a chamada competência concorrente ou suplementar, que se traduz na possibilidade jurídica de várias pessoas políticas poderem legislar sobre determinada matéria (1). Ora, por legislar se entende tanto a possibilidade de instituir o tributo, como fez a nova legislação, como de isentar do pagamento do tributo, que ocorria na legislação anterior que cuidava da matéria, agora expressamente revogada.


3. Conceito de taxa, taxa judiciária e custas

A taxa é uma espécie de tributo. Este, na lição de Ruy Barbosa Nogueira, é a receita derivada "que o Estado recolhe do patrimônio dos indivíduos" (2). A taxa, portanto, é um tributo que tem por fato gerador o exercício do poder de polícia pelo Estado ou a prestação de serviço efetivo ou potencialmente colocado à disposição do contribuinte, na definição tomada do art. 77 do Código Tributário Nacional.

Mais especificamente, a taxa judiciária deriva da prestação de um serviço público de natureza forense, como, aliás, indica o art. 1º da lei em estudo.

Já as custas, que compreendem o pagamento da taxa judiciária, "são as despesas do processo ou os encargos decorrentes dele, desde que fixados ou tarifados em lei", na precisa definição de De Plácido e Silva (3).


4. Aplicação da Lei aos crimes cometidos antes de sua vigência.

Tormentosa questão que, fatalmente, será levada à apreciação dos Tribunais, consiste em se definir se a taxa judiciária pode ser imposta aos crimes cometidos antes da entrada em vigor da lei ou, ao revés, deve ser guardada apenas para as infrações penais perpetradas posteriormente à vigência do novo diploma legal. Assim, por exemplo, para um delito cometido no dia 30 de setembro de 2003, poderá o Magistrado, ao proferir a sentença em março de 2004, impor o pagamento do aludido tributo.

Em um primeiro momento, a resposta se inclina no sentido positivo, máxime quando a análise do problema ocorrer sob a luz da legislação processual. Explico: o art. 2º do Código de Processo Penal, determina a aplicação imediata da lei processual, em homenagem ao princípio tempus regit actum, pelo que as normas processuais têm incidência imediata sobre os processos em curso, preservando-se, é claro, os atos realizados na vigência da lei anterior.

De se ver, no entanto, que a nova lei criou, induvidosamente, uma situação mais gravosa ao réu, na medida em que, ao tempo que cometeu o delito não vigorava a exigência de pagamento da taxa e, portanto, se condenado, nada pagaria. Já na época em que proferida a decisão (em qualquer grau de jurisdição), o tributo será devido pelo condenado. Tal situação se assemelha aquilo que a doutrina denomina de normas mistas (4), assim consideradas as que, embora produzidas em um contexto processual, abrigam normas de caráter penal e processual penal. Exemplo sempre lembrado é o da nova disciplina da citação por edital trazida pela Lei 9.271/96, que modificou o art. 366 do CPP. Essa lei possui, inegavelmente, um caráter misto: é de natureza processual quando determina a suspensão do processo nas hipóteses que aponta. Mas é, também, de índole penal ao impor a suspensão do prazo prescricional. Ora, quando a lei tem essa característica, não incide o art. 2º do CPP, mas os princípios que regem a aplicação da lei penal no tempo e que proíbem a irretroatividade da lei mais severa. Já que a lei trouxe uma situação mais gravosa ao réu citado por edital, porquanto ela determina a suspensão do prazo prescricional, conseqüentemente não deve retroagir aos delitos cometidos antes de sua entrada em vigor, conforme entendimento que, após certa divergência, hoje é pacífico inclusive no STF (RT 762/493, 750/562).

Raciocínio idêntico parece que pode ser adotado para solução do problema acima colocado. Por óbvio que a nova lei não tem um caráter penal, senão tributário e processual. Não se enquadra exatamente, por isso, no conceito de norma mista. Mas de qualquer forma – repita-se – traz uma situação mais severa ao réu, ao tempo da prática do crime isento do pagamento do tributo e, depois, obrigado a recolhê-lo por força da sentença.

Também a legislação tributária parece socorrer tal entendimento. Desta sorte, embora o art. 105 do CTN determine a imediata aplicação da lei tributária, o art. 106 do mesmo diploma legal prevê a retroatividade da lei mais benigna, em redação muito próxima da utilizada no art. 2º do Código Penal. Ora, o fato gerador, assim entendido, na lição de Amílcar de Araújo Falcão, "o conjunto de fatos ou o estado de fato a que o legislador vincula o nascimento da obrigação jurídica de pagar tributo determinado" (5), surge no início do processo, quando o réu ou o querelante, se utilizaram do serviço público que justifica a cobrança da taxa - e não no momento em que proferida a sentença que, nesse tópico, tem a única função de apontar o eventual responsável por seu pagamento.


5. Aplicação de ofício pelos Tribunais aos crimes cometidos antes da entrada em vigor da lei

Quando um Tribunal apreciar recurso que verse sobre fato cometido anteriormente à vigência da lei, pelos mesmos motivos acima expostos, não poderá impor, de ofício, ao réu condenado, o pagamento da taxa judiciária.

Aos argumentos expostos, soma-se mais um. A regra do tantum devolutum quantum appellatum impede que o Tribunal conheça de matéria não questionada pelo recorrente. Ora, se o recurso foi, por exemplo, interposto pelo Ministério Público antes da entrada em vigor da lei, por óbvio dele não consta qualquer pedido de condenação ao pagamento do tributo pelo réu eventualmente condenado, na hipótese de sucesso do apelo. De outra parte, se o recurso é exclusivo do réu, seu improvimento com a imposição do tributo violaria a regra que proíbe a chamada reformatio in pejus. Com efeito, embora certo que o art. 617 do CPP se refira, apenas, à proibição da majoração da pena em recurso exclusivo do réu, se tem entendido, de forma pacífica, que tal vedação se estende a todo e qualquer gravame, como, por exemplo, imposição de regime de cumprimento de pena mais severo (6), de medida de segurança não cogitada pelo juízo a quo (7), de qualificadora não pleiteada pela acusação quando do julgamento de recurso contra a pronúncia (8).

Em suma, no julgamento de recursos pela prática de infrações penais cometidas antes da entrada em vigor da lei, não pode o Tribunal impor de ofício o pagamento do tributo.


6. Aplicação de ofício pelos Tribunais aos crimes cometidos depois da entrada em vigor da lei

Também depois da entrada em vigor da lei, entendo que aos Tribunais somente se autoriza a imposição ao pagamento da taxa se a matéria tiver sido expressamente ventilada no recurso.

Sendo o recurso da acusação contra, v.g., uma sentença absolutória, deve ser expressamente pleiteada, pelo recorrente, a imposição da taxa judiciária na eventualidade de acolhimento do apelo. Não se vislumbra, portanto, a possibilidade do Tribunal, sem qualquer provocação a respeito, impor tal gravame, em orientação que parece vigorar, também, na esfera cível (9).

Aliás, se nem mesmo matéria cognoscível de ofício, como a nulidade absoluta, pode ser reconhecida em recurso exclusivo da acusação, que sobre ela não se manifestou (v. Súmula 160 do STF), que dizer da imposição do pagamento de um tributo que não foi objeto do recurso.

O mesmo se verifica na hipótese de recurso exclusivo da defesa, em sentença na qual o juízo a quo não impôs o pagamento do tributo. Não pode o Tribunal, negando provimento ao recurso, condenar o réu ao pagamento da taxa, sob pena de afronta ao princípio que veda a reforma para pior, acima aludido. Cumpriria à acusação a interposição de recurso com o fim específico de se exigir do condenado o pagamento do tributo.

Seria o caso, portanto, de oposição de embargos de declaração da sentença de 1º grau (art. 382 do CPP), a fim de que, suprida a omissão, constasse do dispositivo também a condenação ao pagamento da taxa judiciária. Negado provimento ao recurso, aí sim restaria a via da apelação para obtenção da condenação almejada. Também em 2º grau de jurisdição, sendo omisso o Tribunal na matéria que foi expressamente objeto do apelo da acusação pública, deve o Procurador de Justiça buscar a integração através dos embargos declaratórios (art. 619 do CPP) - nem que seja com o objetivo de prequestionar a matéria para efeito de interposição de recurso especial ou extraordinário (Súmulas 282 e 356 do STF).


7. Legitimidade para execução da taxa judiciária

É conhecida a controvérsia reinante sobre a legitimidade para cobrança da pena de multa imposta em uma condenação criminal, a partir do advento da Lei nº 9.268/96, que alterou a redação do art. 51 do Código Penal.

Parte da jurisprudência se inclina no sentido de que o Ministério Público detém a legitimidade para a propositura da ação de execução (10). Outros, no entanto, indicam a Fazenda do Estado como legitimada para manejar a cobrança (11).

Tratando-se, porém, de taxa judiciária, parece não persistir qualquer dúvida de que a legitimidade para a execução é mesmo da Fazenda Estadual. É que, embora como decorrência de uma condenação, a imposição de pagamento do tributo não possui nenhum caráter penal, senão de natureza obviamente fiscal. Conforme analisado no início do trabalho, cuida-se de uma espécie de tributo e, por isso mesmo, deve a taxa ser cobrada em execução judicial regida pela Lei nº 6.830/80. Competente para conhecer do pedido, portanto, será a Vara das Execuções Fiscais, nas comarcas que, segundo as normas de organização judiciária, contarem com tal especialização. Nas demais, a execução deverá ser proposta perante uma das Varas Cíveis locais, mediante livre distribuição.


8. Conclusões

1. A taxa judiciária encontra respaldo constitucional para sua criação (art. 14, IV, da CF), tendo a Lei 11.608/03 observado, inclusive, o princípio da anterioridade previsto no art. 104 do CTN.

2. O tributo não incide sobre as infrações penais cometidas antes de 1º de janeiro de 2004, data apontada na lei a partir de quando ela produzirá seus efeitos (art. 12). Aplicá-la aos fatos cometidos antes dessa data importaria em violação ao princípio que impede que a lei retroaja em prejuízo do réu. Tal proibição se aplica aos juízes de 1º grau e aos tribunais superiores.

3. A exigência do tributo não pode ser fixada de ofício pelos tribunais para os fatos cometidos após a vigência da lei, a menos que haja pedido expresso nesse sentido.

4. Embora oriunda de uma sentença criminal, a legitimidade para execução da multa é da Fazenda do Estado, dado ao seu caráter nitidamente fiscal, devendo ser manejado o pedido perante uma Vara das Execuções Fiscais, onde houver tal especialização ou junto a uma Vara Cível.


Notas e Bibliografia

1. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição de 1988. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 1775.

2. NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 9ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 159.

3. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, vol. I, p. 595.

4. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 8ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 80; NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 56.

5. FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 2ª. ed. São Paulo: RT, 1971, p. 26.

6. RT 749/593, 710/366.

7. JSTF 234/329.

8. JSTF 234/369.

9. "Omissa a sentença com relação à condenação em custas, é defeso, na liquidação, discutir de novo a lide ou modificar a sentença. Não se pode afirmar que tal condenação é implícita e decorre da sucumbência" (STJ-1ª. Turma, REsp 39.678-6-SP, rel. Min. Garcia Vieira, j. 29.11.93, deram provimento, v.u., DJU 7.2.94, p. 1.146).

10. RJTACrimSP 34/53, 35/46, 35/71, 37/82, 39/44, 39/46, 41/47, 42/49, 46/28.

11. RT 757/519, 763/564, 763/602, 759/585 (STJ); RJTACrimSP 34/52, 35/63, 39/50.


Autor

  • Ronaldo Batista Pinto

    Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista. Professor Universitário. Autor do livro “Violência Doméstica – “Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo”. São Paulo: Editora RT, 3ª. ed., 2011 (em co-autoria com Rogério Sanches Cunha). Autor do livro “Crime Organizado – Comentários à Lei n° 12.850/2013”, editora “Juspodivm” (em co-autoria com Rogério Sanches Cunha).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Ronaldo Batista. A taxa judiciária no Estado de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1175, 19 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8930. Acesso em: 23 abr. 2024.