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A inconstitucionalidade do artigo 37, § 2º, do Estatuto da Advocacia e da OAB

A inconstitucionalidade do artigo 37, § 2º, do Estatuto da Advocacia e da OAB

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1. Introdução

Grande parte do volume de processos dos acervos dos Tribunais de Ética e Disciplina da OAB é composta de representações ex officio por infração ao artigo 34, inciso XXIII, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB) – não-pagamento de contribuições obrigatórias – cuja sanção é a suspensão do exercício profissional, por tempo indeterminado, até que o débito seja quitado.

A discutível constitucionalidade de reprimenda tão contundente não passou despercebida pelas comissões encarregadas de discutir o anteprojeto do Estatuto, conforme nos dá notícia Paulo Luiz Neto Lôbo, incondicional defensor da constitucionalidade do dispositivo:

"Dir-se-á que é punição disciplinar discutível, porque seria forma compulsiva de cobrança, atingindo a liberdade de exercício da profissão. Esta discussão abriu-se durante a elaboração do anteprojeto do Estatuto, mas prevaleceu a tese de sua absoluta compatibilidade com a Constituição, que teria recepcionado regra semelhante da legislação anterior.

Com efeito, esta regra guarda similitude com a hipótese do inciso XVI, mas é muito mais grave, porque a OAB não é entidade qualquer de associação voluntária. É a corporação dos advogados que recebeu delegação legal para selecioná-los e fiscalizá-los, no interesse coletivo. Se ela é mantida com as contribuições obrigatórias de seus inscritos, a falta de pagamento pode inviabilizar o cumprimento de suas finalidade legais.

A cobrança far-se-á mediante execução regular, mas a falta recobre-se de nítida infração ético-disciplinar, porque atinge o interesse público e toda a classe" (Comentários ao Novo Estatuto da Advocacia e da OAB, 1994, Brasília, Brasília Jurídica – Conselho Federal da OAB, p. 137).

Sem adentrar a questão, que estaria longe de ser pacífica, acerca do próprio conteúdo ético da disposição, em contraste com o seu caráter nitidamente patrimonialista, e sem ignorar que, na prática, o índice de inadimplência dos integrantes da classe para com a Ordem dos Advogados do Brasil já vinha sendo alto o suficiente para explicar a razão de sua inserção entre as faltas profissionais, propomo-nos a questionar a validade da sanção que lhe é cominada: a suspensão do advogado por tempo indeterminado, ou até que efetue os pagamentos exigidos.


2. Será conveniente a medida?

Antes de analisar a constitucionalidade da medida, cabe cotejá-la com algum vagar, questionando a sua própria conveniência.

Dispõe o artigo 34, XXIII, da Lei nº 8.906/94 que constitui infração disciplinar "deixar de pagar as contribuições, multas e preços de serviços devidos à OAB, depois de regularmente notificado a fazê-lo".

A sanção prevista para esta infração é a suspensão (artigo 37, I), dispondo o parágrafo segundo do artigo 37 que:

"§2º. Nas hipóteses dos incisos XXI e XXIII do art. 34, a suspensão perdura até que satisfaça integralmente a dívida, inclusive com a correção monetária."

Vale dizer: o advogado que não mantém em dia suas anuidades tem o seu exercício profissional suspenso até que quite suas dívidas para com a Ordem.

Se o advogado abandonar uma causa, violar sigilo profissional, deturpar o teor da lei ou mesmo prejudicar, por culpa grave, interesse confiado a seu patrocínio, sofrerá apenas uma censura.

Mas se deixar de recolher uma só anuidade, será impedido de exercer sua profissão até quitar o débito!

Surge daí uma questão interessante: como vai amealhar fundos para quitar suas dívidas, se não pode trabalhar?

Pois uma de duas: se estiver de boa fé, o profissional ficará à míngua, sem recursos sequer para sua subsistência, menos ainda para quitar seus débitos; se estiver de má fé, passará suas petições para um colega de escritório que as assine e ignorará a cobrança administrativa.

Em ambas as hipóteses a Ordem sai perdendo. Será, portanto, conveniente a medida? Cremos que não.


3. A inconstitucionalidade da suspensão por tempo indeterminado

A inconstitucionalidade da sanção em tela reside na violação do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, abarcado pela garantia constitucional do due process of law, inscrito na Constituição da República em seu artigo 5º, inciso LIV.

A outra conclusão não se pode chegar a partir do cotejo entre a situação posta e os critérios norteadores da razoabilidade, quais sejam: a adequação dos meios aos fins, a exigibilidade ou necessidade da medida e a proporcionalidade em sentido estrito (relação custo-benefício da medida).

Com relação a estes dois últimos critérios, geralmente menos explorados nos meios acadêmicos e mesmo no cotidiano forense, é oportuno trazer à colação a percuciente análise do professor Luís Roberto Barroso:

"Verifica-se na decisão do Tribunal alemão a presença de um outro requisito qualificador da razoabilidade-proporcionalidade, que é o da exigibilidade ou necessidade (Erforderlichkeit) da medida. Conhecido, também, como ‘principio da menor ingerência possível’, consiste ele no imperativo de que os meios utilizados para atingimento dos fins visados sejam menos onerosos para o cidadão. É a chamada proibição do excesso. Uma lei será inconstitucional, por infringência ao princípio da proporcionalidade, ‘se se puder constatar, inequivocamente, a existência de outras medidas menos lesivas’.

Há, ainda, um terceiro requisito, igualmente desenvolvido na doutrina alemã, identificado como proporcionalidade em sentido estrito. Cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Em palavras de Canotilho, trata-se ‘de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim’" (Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, 2ª edição, São Paulo, Saraiva, 1998, pp. 208 e 209 – grifei).

Senão vejamos: é evidente que a ratio da Lei nº 8.906/94, ao impor ao advogado inadimplente a sanção de suspensão, até o pagamento da quantia devida à OAB, tem o propósito de compeli-lo a cumprir a obrigação não honrada.

Por outro lado, a própria Lei nº 8.906/94, em seu artigo 46, dispõe que:

"Art. 46. Compete à OAB fixar e cobrar, de seus inscritos, contribuições, preços de serviços e multas.

Parágrafo único – Constitui título executivo extrajudicial a certidão passada pela diretoria do Conselho competente, relativa a crédito previsto neste artigo."

Ora, se a Ordem dos Advogados do Brasil já dispõe de título executivo extrajudicial, que lhe permite buscar em Juízo uma constrição direta sobre o patrimônio do advogado, por que asfixiá-lo, impedindo-lhe de exercer a profissão?

No rol de sanções previstas pelo Estatuto da Advocacia e da OAB, não seria mais razoável aplicar a pena de multa (art. 35, IV)? Ou, ainda que se aplicasse a suspensão, não seria proporcional à infração aplicá-la pelo período de trinta dias a doze meses, o que, aliás, é a regra (art. 37, § 1º)?

O que não se pode conceber é que o advogado, que já sofrerá a excussão judicial, ainda tenha coartada – pela raiz – o que, no mais das vezes, é sua única fonte de renda: o fruto de seu trabalho.

A se pensar o contrário, se fará letra morta da tão propalada Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que em seu artigo XXIII consagra que:

"Artigo XXIII

1º - Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego."

A adotar-se raciocínio idêntico pela União, Estados e Municípios, o não-pagamento de um tributo deveria ser punido como crime contra a soberania nacional...

Um passo adiante, por que não consagrarmos a prisão civil por dívida, revogando o inciso LXVII e o § 2º do artigo 5º da Constituição da República?

E, por amor à argumentação, se invocássemos a aplicação analógica do Direito Penal, não escaparíamos ao que Assis Toledo chama de "princípio da ponderação de bens e interesses" em seu clássico "Princípios Básicos de Direito Penal’".

Aliás, especificamente com relação aos princípios norteadores da aplicação da pena, o insuperável penalista, após destacar a igualdade perante a lei e a culpabilidade, põe em relevo o princípio da pena necessária:

"O terceiro princípio tem a ver com o caráter preventivo da pena. Na lição de Jescheck, a fixação judicial da pena deve ajustar-se à sua função retributiva, para que sirva de uma justa retribuição do injusto e da culpabilidade, mas deve também, a um só tempo, ajustar-se ao fim de prevenção especial, contribuindo para a reinserção social do delinqüente e procurando não agravar a sua situação social além do estritamente necessário." (Francisco de Assis Toledo, Princípios que regem a aplicação da pena, in www.cjf.gov.br/revista/numero7/artigo1.htm)

Portanto, por qualquer ângulo por que se enfrente a questão da inadimplência do advogado, é de se questionar: será a sanção menos gravosa para o profissional (decerto que não, pois por meio dela sequer pode exercer seu ofício) e será que esta sanção é necessária, por produzir um bem maior à OAB do que o mal causado ao infrator (decerto que não, pois, a OAB já dispõe de título executivo extrajudicial, podendo constranger o próprio patrimônio do advogado, não lhe aproveitando em nada que o profissional tenha suspenso o seu registro profissional)?


4. Conclusão

Finalizando, uma reflexão deve se apresentar: não estaremos usando o Tribunal de Ética e Disciplina como mero Cobrador de Contribuições?

E, se o estamos fazendo e com isso compactuamos, pondo de lado o problema ético e defendendo apenas interesses corporativos, por mais nobres que sejam, será que este é o meio de constrição mais eficiente e rentável? É o que submeto à consideração dos doutos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Samir José Caetano. A inconstitucionalidade do artigo 37, § 2º, do Estatuto da Advocacia e da OAB. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1225, 8 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9149. Acesso em: 19 abr. 2024.