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Questões pacíficas e temas controvertidos sobre o controle concentrado de constitucionalidade

Questões pacíficas e temas controvertidos sobre o controle concentrado de constitucionalidade

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O texto está dividido em duas partes: uma sobre questões pacíficas jurisprudencialmente, sem severas contradições doutrinárias, e outra sobre temas em que ainda persiste divergência jurisprudencial ou que não tiveram seus contornos bem definidos.

1. Considerações introdutórias

            O presente texto tem como objeto a análise do controle concentrado de constitucionalidade, mediante a abordagem de questões já definidas perante o Supremo Tribunal Federal, bem como de temas ainda controvertidos na jurisprudência brasileira.

            O texto está dividido em duas partes, uma sobre questões pacíficas, entendidas estas como aquelas já constantes de reiteradas decisões das Cortes brasileiras, sem severas contradições doutrinárias, e outra sobre temas controvertidos, consistentes em pontos em que ainda persiste divergência jurisprudencial, ou que, embora prevalecentes na orientação pretoriana, ainda não tiveram seus contornos bem definidos.

            Para fins didáticos, em ambas as partes, cada uma das questões examinadas é destacada em título em negrito, seguida de uma breve síntese da orientação predominante em itálico, e, após, de uma abordagem explicativa para amparar eventuais estudos mais aprofundados. Todavia, como na primeira parte são abordados assuntos pacificados, é suficiente apenas explicitar os entendimentos e indicar os acórdãos respectivos, mas, na segunda parcela do texto, onde são abrangidos temas polêmicos, são transcritas manifestações jurisprudenciais esclarecedoras, para dirimir eventuais dúvidas.

            Antes de ingressar na proposta propriamente dita, cabe apenas lembrar que o conteúdo deste estudo decorreu de pesquisas do autor, durante o período em que trabalhou como Assessor no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, realizando pesquisas para subsidiar a tomada de decisão do Desembargador Marco Aurélio Gastaldi Buzzi nos processos de competência do Colegiado Pleno daquela egrégia Corte. Após ter deixado a assessoria no Poder Judiciário Catarinense, o autor realizou uma compilação de alguns aspectos relevantes da jurisprudência, oriundos de estudos efetuados naquela época, procurando abordar matérias de interesse prático sobre a fiscalização abstrata de constitucionalidade, de modo a montar um quadro sintético sobre tal temática, o qual eventualmente poderá ser complementado em artigos posteriores.

            Espera-se que este sintético trabalho revele-se útil aos juristas que laboram nesta área, da mesma forma como sua elaboração demonstrou-se compensadora para seu autor.


2. Questões pacíficas sobre o controle concentrado de constitucionalidade

            2.1. Ato normativo anterior à CFRB de 1988 (instituto da recepção)

            As ações diretas de controle de constitucionalidade objetivam analisar a compatibilidade formal e material dos atos normativos editados após a entrada em vigor da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), de modo que os diplomas pretéritos não são suscetíveis de fiscalização direta, devendo ser apreciados pela via difusa em seu aspecto material (e não formal) pelo instituto da recepção, para verificar se foram ou não revogados pelo atual regime constitucional.

            Com efeito, o Supremo Tribunal Federal (STF) adotou o instituto da recepção, segundo o qual os preceitos anteriores à CRFB/88 serão válidos se não a contrariarem materialmente. Assim, dispositivos precedentes à atual Carta Magna que contrariem o seu conteúdo não foram recepcionadas por ela, ou seja, foram diretamente revogados com a sua entrada em vigor, sendo inviável se cogitar de sua análise concentrada. Isso porque, perante o instituto da recepção, não há interesse processual para fins de controle direto de constitucionalidade de normas anteriores à ordem constitucional vigente, porquanto se forem incompatíveis com o Texto Maior já encontram-se simplesmente revogados.

            Importante frisar que a recepção observa tão-somente a substância da norma, ou seja, se existe contradição de conteúdo (material) entre as normas anteriores ao novo regime constitucional e aquelas que compõem a Carta Política. Logo, as disposições anteriores não são avaliadas no seu aspecto formal, bastando que tenham observado o devido processo legislativo existente na época de sua edição, sendo desnecessário que haja congruência com o procedimento para elaboração de leis atualmente vigente. É exatamente por isto que decretos-lei são recepcionados pela CRFB/88 no patamar de leis ordinárias, bem como Decreto n° 70.235/72 foi recepcionado como lei ordinária. Em ambos os casos, o processo legislativo viola as regras formais da CRFB/88 (atualmente não existem decretos-lei e o decreto supracitado viola os limites regulamentares do chefe do executivo), apesar de estarem de acordo com as constituições anteriores. Porém ambos foram recepcionados, porquanto o instituto da recepção se restringe ao aspecto material das normas e prescinde da análise formal.

            Portanto, conclui-se que é inviável o manuseio de ações de controle direto de constitucionalidade com relação à normas anteriores à CRFB/88, porque estas somente são apreciados pela via do instituto da recepção, consoante decidido na Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) 718-1.

            Por derradeiro, cabe apenas mencionar que a lei que instituiu a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), Lei 9.882/1999, vai contra este sistema e, portanto, é considerada inconstitucional por alguns doutrinadores, embora o Pretório Excelso venha apreciando tais argüições, inexistindo ainda, todavia, contornos bem definidos sobre o tema, o qual imprescinde de análise em obra específica.

            2.2. Ato normativo municipal

            O Supremo Tribunal Federal não possui competência para apreciar e julgar ação direta de controle de constitucionalidade de atos normativos municipais em face da Constituição da República, razão pela qual tais diplomas devem ser fiscalizados abstratamente perante as Constituições Estaduais, pela via da representação de inconstitucionalidade formulada aos Tribunais de Justiça, cujas decisões podem eventualmente ser reapreciadas pelo Pretório Excelso mediante recurso.

            Notadamente, inexiste previsão constitucional de competência para o STF examinar diploma municipal em face da Lex Fundamentalis, consoante decidido na ADI 1.803-0/SP). Assim, somente as Cortes Estaduais podem examinar a compatibilidade de ato normativo municipal, e apenas em face de preceitos de suas respectivas constituições, nos termos do art. 125, § 2º, da CRFB.

            Todavia, o STF pode apreciar recurso extraordinário contra decisão de representação de constitucionalidade da competência do TJ, na qual se contesta a congruência de lei estadual ou municipal perante a CE, mas somente quanto à interpretação de preceito central da Constituição da República de reprodução obrigatória nas Cartas Estaduais, conforme restou assentado no Recurso Extraordinário (RE) 353350, o qual foi reproduzido no Informativo 375 da Jurisprudência do STF.

            Contudo, novamente ressalta-se que a lei que instituiu a ADPF, de constitucionalidade duvidosa para alguns doutrinadores, prevê que o STF pode examinar a congruência entre ato normativo municipal em face da CFRB, em se tratando de descumprimento de preceitos fundamentais.

            2.3. Pertinência temática

            O Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento de que alguns dos legitimados para as ações de controle direto de constitucionalidade devem demonstrar o seu interesse jurídico em pleitear a fiscalização abstrata de determinado ato normativo, ou seja, a sua pertinência temática ao objeto da demanda, como pressuposto de legitimidade ativa.

            Objetivando evitar que o sistema de apreciação concentrada de constitucionalidade fosse utilizado indiscriminadamente por seus legitimados ativos, o Pretório Excelso adotou o entendimento de que a Mesa das Assembléias Legislativas, o Governador do Estado e os sindicatos ou entidades de classe de âmbito nacional devem manifestar a pertinência entre a matéria que veiculam em ações diretas e as suas finalidades precípuas, consoante decidido nas ADIs 1.151, 1.519 e 2.027-7.

            Tal pertinência temática visa coibir que, por exemplo, o Governador de Santa Catarina ingresse com ação direta contra ato normativo do Estado do Maranhão, sem que tal diploma lhe diga respeito.

            Todavia, os demais legitimados ativos (Presidente da República, as Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos com representação no Congresso Nacional) não estão sujeitos à pertinência temática, porquanto pressupõe-se que, por suas características e funções dentro do Estado Democrático de Direito, possuem amplo interesse na fiscalização da constitucionalidade das normas em todos território nacional, sendo vedado lhes negar o acesso à jurisdição concentrada com base no instituto jurídico sob foco.

            2.4. A reserva de plenário (art. 97 da CFRB)

            A reserva de plenário significa que, somente por maioria absoluta de seus membros ou pela dos membros do respectivo órgão especial, poderá um tribunal declarar a inconstitucionalidade de ato normativo em sede de controle difuso ou concentrado de constitucionalidade.

            Outrossim, se for o caso de reconhecer a inconstitucionalidade de determinado preceito normativo, cabe ao órgão fracionário (câmara, seção ou turma) submeter tal questão ao respectivo colegiado pleno ou órgão especial.

            Entretanto, tal providência é dispensável quanto já houver manifestação do STF pela inconstitucionalidade do ato normativo, nos termos do art. 481, parágrafo único do Código de Processo Civil (CPC).

            Por fim, destaca-se que a reserva de plenário não se aplica às Turmas Recursais dos Juizados Especiais, porquanto estas não se enquadram no conceito de tribunal, conforme já foi definido no RE 453.744, reproduzido no Informativo 431 do STF.

            2.5. A intervenção nas ações diretas

            Nas ações de controle direto de constitucionalidade, o Procurador-Geral da República (ou o Procurador-Geral de Justiça) deve opinar na qualidade de custos legis e o Advogado-Geral da União (ou Procurador-Geral do Estado) deve defender o ato questionado, sendo possível a admissão de terceiros interessados para ampliar o esclarecimento da Corte sobre o tema debatido, na condição de amicus curiae.

            O Chefe do Ministério Público respectivo (Procurador-Geral da República ou de Justiça) deve sempre se manifestar nas ações diretas como custos legis, podendo concluir pela procedência ou improcedência do pedido formulado (art. 103, § 1°, CFRB).

            O Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral do Estado deve sempre defender o ato impugnado, seja ele federal ou estadual, em sede de ação de controle de constitucionalidade (art. 103, § 3°, CFRB). Somente lhe é permitido se abster da defesa no caso de precedente pacífico do STF no sentido da inconstitucionalidade de atos com o mesmo conteúdo, conforme já decidiu o Pretório Excelso na ADI 1.616-4.

            Por fim, o amicus curiae (art. 7°, § 2°, da Lei n° 9.868/99) consiste em entidades que podem ser admitidas no processo das demandas de fiscalização abstrata com o fim de ampliar o debate de cunho constitucional sobre questões relevantes. Trata-se de exceção à regra de que não se admite a intervenção de terceiros nesta modalidade de ações. Existe ainda a previsão de admissão de tal espécie interventiva também no caso do controle difuso, nos termos do art. 482, § 3°, do CPC.

            2.6. Modulação temporal na concessão de medidas cautelares

            Os Tribunais podem ser legalmente autorizados a concederem medidas cautelares nas ações de controle abstrato de constitucionalidade, franqueando-se a possibilidade de modulação dos efeitos temporais da decisão, ou seja, com efeitos retroativos (ex tunc) ou não (ex nunc), a depender de fundamentação lastrada em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

            No caso específico do Supremo Tribunal Federal, é possível a concessão de medida cautelar nas ADIs (arts. 10 a 12 da Lei 9.868/99) e ADCs (art. 21 da Lei n° 9.868/99) ou de liminar nas ADPFs (art. 5° da Lei 9.882/99), com efeitos ex nunc ou, excepcionalmente, ex tunc (arts. 27 da Lei 9.868/99).

            Com efeito, nos caso de julgamento definitivo, a regra é a concessão de efeitos retroativos (ex tunc), enquanto na fase de concessão de liminares, a carga não deve atingir fatos pretéritos (ex nunc). Todavia, em ambas as hipóteses (julgamento sumário ou exauriente), é possível que a Corte Suprema defina, por dois terços de votos, que a declaração de inconstitucionalidade tenha eficácia somente a partir da prolação da decisão, ou então de outro momento posterior a ser fundamentada fixado.

            Importa asseverar ainda que há orientação pretoriana no sentido de se admitir o poder geral de cautela nas demandas de controle direto.

            Ademais, embora seja, por via de regra, necessária a oitiva, no prazo de três dias, do Procurador-Geral da República (ou de Justiça) e do Advogado-Geral da União (ou do Estado), previamente à decisão liminar, tal providência pode ser dispensada, em casos de urgência.

            2.7. Controle difuso em sede de Ação Civil Pública (ACP)

            É admissível o controle difuso de constitucionalidade em sede de Ação Civil Pública, entretanto, tal via processual não se presta para fiscalização concentrada, restando inviável a formulação de pedido expresso de reconhecimento de inconstitucionalidade como objetivo precípuo da demanda, pois isto implicaria usurpação da competência originária dos Tribunais de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.

            O controle concentrado em sede de ACP acarreta flagrante usurpação da competência das Cortes Constitucionais (TJs e STF), porquanto o juiz singular estaria declarando a inconstitucionalidade com efeitos erga omnes, o que somente os Tribunais têm competência para fazer. Por isto, o Pretório Excelso tem reiteradamente repelido a utilização da Ação Civil Pública como sucedâneo das demandas diretas de inconstitucionalidade.

            Assim, diante de ação civil pública versando questão de inconstitucionalidade, importa verificar qual seu escopo: a) se o pedido envolver a declaração de inconstitucionalidade de ato normativo, a demanda pública naturalmente excedeu aos seus fins, por não ser a via adequada para declarar a inconstitucionalidade com efeitos erga omnes, o que só pode ser feito em sede de ADI ajuizada perante o STF ou de representação perante os Tribunais Estaduais; entretanto, b) se o pedido for relativo à apreciação de ato ou fato concreto, ainda que acidentalmente o juízo tenha que apreciar questão de inconstitucionalidade em sede difusa, a ACP resta viável, porquanto inexiste usurpação de competência.

            Concluí-se, então, que a Ação Civil Pública pode veicular matéria relativa à inconstitucionalidade de ato normativo, a ser apreciada via controle difuso, desde que seu objeto precípuo não seja obter a declaração de inconstitucionalidade deste ato. Notadamente, em sede de ACP, a apreciação de compatibilidade constitucional deve ser apenas incidental (incluída na fundamentação), jamais foco central da demanda (constar do dispositivo). Ou seja, inconstitucionalidade do ato deve ser apreciada como mera matéria prejudicial com relação ao julgamento do mérito da demanda.

            2.8. Emendas Constitucionais como alvo do controle de constitucionalidade

            É admissível a fiscalização concentrada de emendas constitucionais, para aferição da compatibilidade dos seus termos ao conteúdo originário da Constituição da República, de modo a evitar que o legislador derivado ultrapasse os limites que lhe foram conferidos pelo constituinte primitivo.

            Segundo a teoria exposta pelo jurista alemão Otto Bachoff, há a possibilidade de que sejam declaradas inconstitucionais determinadas normas da constituição que contrariem os seus princípios fundamentais (in Normas constitucionais inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994).

            Tal doutrina é aceita pelo Supremo Tribunal com ressalvas, no sentido de somente admitir o controle abstrato de normas constitucionais derivadas (emendas constitucionais), sendo proscrito à Corte Constitucional apreciar o conteúdo originário da Carta Magna.

            Isso porque, segundo o Pretório Excelso, deve se levar em consideração que o poder constituinte originário é ilimitado, de modo que apenas as normas acrescidas à constituição pelo legislador derivado (via emendas constitucionais) é que podem ser declaradas inconstitucionais, acaso contrastem com princípios basilares do texto original.

            Tal orientação jurisprudencial encontra-se expressa na ADI 939, na qual julgou-se inconstitucional a cobrança do IPMF, instituído pela Emenda Constitucional 3/93, por ofensa ao princípio constitucional da anterioridade tributária. Ou seja, naquele aresto, o dispositivo constante de Emenda Constitucional (legislação constitucional derivada) foi declarado inconstitucional por violar preceito basilar adotado pelo constituinte originário.

            2.9. Legitimidade de partidos políticos

            O Supremo Tribunal Federal, revendo posicionamento anterior, passou a entender que a circunstância de o partido político, após o ajuizamento da ação direta, deixar de ter representantes no Congresso Nacional, não implica perda superveniente de legitimidade ativa.

            A controvérsia diz respeito à exegese do art. 103, VIII, da Carta Magna, que confere legitimidade ativa para ajuizamento das demandas de fiscalização abstrata aos partidos políticos "com representação no Congresso Nacional". Inicialmente, o Pretório Excelso entendeu que a perda superveniente de representação no parlamento implicaria a extinção da demanda anteriormente proposta, por ausência posterior de condição da ação.

            Todavia, a Corte Suprema alterou seu posicionamento, firmando que o partido político não perde supervenientemente a legitimidade ativa se, após ajuizada a demanda direta, deixar de ter representação no Congresso Nacional, porquanto o exame desta condição da ação deve ser realizada no ato de propositura. Sobre o tema, veja-se a ADI 2.159, relatada pelo Ministro Gilmar Mendes, a qual encontra-se reproduzida no Informativo 356 do STF.

            2.10. Medidas provisórias e controle concentrado

            As medidas provisórias podem ser questionadas em ações diretas, porém, acaso percam sua eficácia por decurso de prazo, a demanda será extinta por perda do objeto, e, na hipótese de serem convertidas em lei na pendência do processo, o autor deverá aditar a petição inicial para incluir o diploma de conversão.

            As medidas provisórias podem ser objeto de demandas de controle concentrado, porque são atos normativos com força de lei. Todavia, a provisoriedade que lhes é inerente pode implicar duas situações processuais: a) no caso de perderem a eficácia por decurso do prazo, o processo deverá ser extinto sem resolução do mérito, haja vista que sucumbe seu objeto de análise (ADI-MC 1758); e, b) acaso a medida provisória seja convertida em lei durante a pendência da lide, o autor deverá ser intimado para aditar a inicial, de modo a incluir o ato de conversão no pedido de declaração de inconstitucionalidade, também sob pena de extinção abrupta (veja-se, mutatis mutandis, a ADI 1849).

            2.11. Atos normativos de efeitos concretos

            As demandas de controle concentrado não abrangem os atos normativos de efeitos concretos, porquanto a fiscalização abstrata não objetiva o amparo de situações definidas no plano fático, voltando-se para a apreciação de disposições de conteúdo impessoal e abstrato.

            Consoante o entendimento do Supremo Tribunal Federal, não se admite a proposição de ação direta de inconstitucionalidade em face de normas de efeitos concretos, pois estas tratam de questões concretas, sendo desprovidas de caráter impessoal.

            Sobre o tema, cabe verificar a orientação jurisprudencial fixada na ADI-MC 2484, no sentido de que as leis orçamentárias anuais, por possuírem efeitos concretos no exercício fiscal correlato, carecem de generalidade e abstração suficientes para serem objeto de fiscalização concentrada.


3. Temas controvertidos sobre o controle concentrado de constitucionalidade

            3.1. Transcendência dos motivos determinantes do controle abstrato

            Há decisão monocrática recente do Supremo Tribunal Federal admitindo que, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, a eficácia vinculante das deliberações não cinge-se somente à parte dispositiva do julgado, mas abrange também os próprios fundamentos determinantes da decisão.

            Segundo a processualística tradicional, somente a parte dispositiva das decisões interlocutórias, das sentenças e das deliberações colegiadas é que são abrangidas pela eficácia preclusiva da coisa julgada, possuindo força vinculante sobre os litigantes e, eventualmente, sobre terceiros, no caso de previsão normativa de efeitos contra todos (erga omnes), a exemplo das sentenças proferidas em ações civis públicas.

            Entretanto, em recente decisum singular (Medida Cautelar em Reclamação 2986, de Sergipe, apreciada em 11.03.2005), o Ministro Celso de Mello abriu uma exceção ao entendimento processual acima referido, ao conferir efeitos vinculantes inclusive para os fundamentos determinantes das deliberações da Corte Suprema, em se tratando de demandas de fiscalização abstrata.

            A decisão monocrática indicada possui a seguinte ementa:

            FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE. RECONHECIMENTO, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DA VALIDADE CONSTITUCIONAL DA LEGISLAÇÃO DO ESTADO DO PIAUÍ QUE DEFINIU, PARA OS FINS DO ART. 100, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO, O SIGNIFICADO DE OBRIGAÇÃO DE PEQUENO VALOR. DECISÃO JUDICIAL, DE QUE ORA SE RECLAMA, QUE ENTENDEU INCONSTITUCIONAL LEGISLAÇÃO, DE IDÊNTICO CONTEÚDO, EDITADA PELO ESTADO DE SERGIPE. ALEGADO DESRESPEITO AO JULGAMENTO, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DA ADI 2.868 (PIAUÍ). EXAME DA QUESTÃO RELATIVA AO EFEITO TRANSCENDENTE DOS MOTIVOS DETERMINANTES QUE DÃO SUPORTE AO JULGAMENTO, "IN ABSTRACTO", DE CONSTITUCIONALIDADE OU DE INCONSTITUCIONALIDADE. DOUTRINA. PRECEDENTES. ADMISSIBILIDADE DA RECLAMAÇÃO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

            Segundo o mencionado magistrado:

            Cabe registrar, neste ponto, por relevante, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no exame final da Rcl 1.987/DF, Rel. Min. MAURÍCIO CORREA, expressamente admitiu a possibilidade de reconhecer-se, em nosso sistema jurídico, a existência do fenômeno da "transcendência dos motivos que embasaram a decisão" proferida por esta Corte, em processo de fiscalização normativa abstrata, em ordem a proclamar que o efeito vinculante refere-se, também, à própria "ratio decidendi", projetando-se, em conseqüência, para além da parte dispositiva do julgamento, "in abstracto", de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade.

            Após expor o tema, no mesmo julgado, o Ministro expõe os motivos de sua decisão, com base na doutrina especializada:

            Na realidade, essa preocupação, realçada pelo magistério doutrinário, tem em perspectiva um dado de insuperável relevo político-jurídico, consistente na necessidade de preservar-se, em sua integralidade, a força normativa da Constituição, que resulta da indiscutível supremacia, formal e material, de que se revestem as normas constitucionais, cuja integridade, eficácia e aplicabilidade, por isso mesmo, hão de ser valorizadas, em face de sua precedência, autoridade e grau hierárquico, como enfatiza o magistério doutrinário.

            Analisando as razões acima transcritas, verifica-se que a teoria da força vinculante dos motivos determinantes, em sede de controle de constitucionalidade, objetiva exatamente conferir eficácia e utilidade à fiscalização concentrada, conferindo força aos pronunciamentos das Cortes Constitucionais.

            Tome-se por exemplo decisão, em sede de ação direta, que julga determinado ato normativo inconstitucional, sob o fundamento de que ele fere determinado preceito fundamental. A eficácia do dispositivo desta deliberação impediria que outros juízos aplicassem tal diploma legal reconhecido como assimétrico com a Carta Magna, por força do disposto no art. 102, § 2º, da CRFB. Todavia, segundo a processualística tradicional, nada impediria que algum magistrado aplicasse outra norma, igualmente lesiva ao preceito fundamental defendido pelo Tribunal Constitucional, porquanto este outro dispositivo não estaria abrangido pela força vinculante da decisão da Corte, uma vez que não expressamente previsto no dispositivo do acórdão versando sobre o mesmo tema.

            Exatamente para superar essa problemática, é que o Supremo Tribunal Federal resolveu, embora ainda não tenha firmado orientação firme do Colegiado Pleno sobre a matéria, que os fundamentos de suas decisões, em sede de controle abstrato, possuem igualmente eficácia vinculante perante os demais órgãos dos Poderes Judiciário e Executivo.

            Adotando-se tal entendimento, no exemplo acima mencionado, o magistrado não poderia aplicar a outra norma que, da mesma forma que a já declarada inconstitucional pela Suprema Corte, ofende igualmente ao preceito fundamental tutelado, devendo abster-se de contrariar as balizas decisórias do Pretório Excelso, porquanto também abrangidas pela eficácia erga omnes prevista no art. 102, § 2º, da CRFB, sob pena de autorizar o manejo da respectiva reclamação, via processual prevista nos arts. 13 a 18 da Lei 8.038/1990 ("Art. 13. Para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade das suas decisões, caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público").

            Portanto, embora ainda persista controvérsia sobre a transcendência dos motivos determinantes, é possível concluir que trata-se de instituto que procura assegurar a força normativa da Carta Magna, nos termos em que interpretada e aplicada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de fiscalização abstrata, porquanto veda a violação do conteúdo essencial das decisões em demandas de controle concentrado proferidas por aquela Corte.

            3.2. Cognição Aberta e Arrastamento

            Em sede de controle concentrado de constitucionalidade, as Cortes Constitucionais não estão vinculadas aos fundamentos da postulação (causa de pedir), mas tão-somente ao pedido (preceitos normativos questionados), de modo que podem reconhecer a assimetria dos dispositivos impugnados por outros fundamentos daqueles expressos na petição inicial. Todavia, ainda que adstrito ao pedido, o Tribunal pode abranger, em sua decisão, disposições não expressamente indicadas pela parte, desde que estas estejam subordinadas aos preceitos legais impugnados.

            Chama-se de cognição aberta a possibilidade de a Corte Constitucional, em sede de fiscalização abstrata, poder deliberar sobre o pedido de declaração de (in)constitucionalidade com base em fundamentos distintos daqueles apresentados como causa de pedir pelo autor.

            Assim, tendo em conta tal entendimento, a Corte não está adstrita aos argumentos suscitados pelas partes para declaração da (in)constitucionalidade dos dispositivos impugnados, podendo se valer de outras razões para tanto.

            Sobre o tema, transcreve-se o seguinte trecho da ementa da Medida Cautelar na ADI 2396, do Mato Grosso do Sul, relatada pela Ministra Ellen Gracie, em 26.09.2001:

            [...] 4. ADIN. Cognição aberta. O Tribunal não está adstrito aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expendidos na inicial. [...]

            Logo, a causa de pedir é irrelevante na via de fiscalização abstrata, em detrimento do princípio processual da correlação.

            Todavia, a Corte Constitucional continua vinculada aos limites da postulação formulado pelo autor da ação, incidindo plenamente o princípio do pedido, de sorte que apenas poderão ser examinados os artigos de lei efetivamente questionados na petição inicial.

            Outrossim, embora seja possível que a jurisdição adote fundamentos diversos daqueles expostos na peça exordial, mesmo que ausentes na causa de pedir invocada, ainda estará adstrito ao pedido deduzido pelo autor da ação direta.

            Todavia, há uma ressalva à esta vinculação ao pedido da parte, consistente na possibilidade de apreciação dos preceitos subordinados àqueles arrolados pelo demandando, segundo a técnica da inconstitucionalidade seqüencial, também conhecida de análise por arrastamento ou por atração.

            Segundo tal método, é possível que a declaração de inconstitucionalidade abranja preceitos não expressamente questionados pelo autor, mas tão-somente quando tais dispositivos lhe forem subordinados, por estrita relação de dependência. Assim, quando o conteúdo de determinado artigo normativo restar esvaziado com a declaração de inconstitucionalidade de outro, tal prescrição também deverá ser abrangida pela decisão judicial. Por isto se diz que o preceito secundário é declarado inconstitucional pela via seqüencial, arrastado pelo reconhecimento da assimetria das disposições questionadas na inicial.

            Exemplificativamente, suponha-se a existência de uma lei, de origem parlamentar, cujo artigo primeiro institua o cargo de assessor do Prefeito e o segundo disponha que a remuneração da função indicada no preceito anterior será de mil reais. Acaso o Ministério Público impugne apenas o artigo primeiro de tal diploma pela via concentrada, em face de flagrante vício de iniciativa, sem sequer mencionar o segundo, mesmo assim ambos poderão ser reconhecidos inconstitucionais, o primeiro diretamente e o outro por atração, na medida em que é simplesmente insubsistente o preceito que estabelece o vencimento de um cargo público inexistente.

            Sobre o tema, veja-se a fundamentação exposta pela Ministra Ellen Gracie no corpo do acórdão da ADI 3645, in verbis:

            Constatada a ocorrência de vício formal suficiente a fulminar a Lei estadual ora contestada, reconheço a necessidade da declaração de inconstitucionalidade conseqüencial ou por arrastamento de sua respectiva regulamentação, materializada no Decreto 6.253, de 22.03.06. Esta decorrência, citada por CANOTILHO e minudenciada pelo eminente Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 437-QO, DJ 19.02.93, ocorre quando há uma relação de dependência de certos preceitos com os que foram especificamente impugnados, de maneira que as normas declaradas inconstitucionais sirvam de fundamento de validade para aquelas que não pertenciam ao objeto da ação. Trata-se exatamente do caso em discussão, no qual "a eventual declaração de inconstitucionalidade da lei a que refere o decreto executivo (...) implicará o reconhecimento, por derivação necessária e causal, de sua ilegitimidade constitucional" (voto do Min. Celso de Mello na referida ADI 437-QO). No mesmo sentido, quanto à suspensão cautelar da eficácia do ato regulamentador, a ADI 173-MC, rel. Min. Moreira Alves, DJ 27.04.90.

            Todavia, importa ressaltar que a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento não pode ser utilizada para permitir abarcar quaisquer preceitos legais, mas tão-somente aqueles estreitamente dependentes dos dispositivos atacados, sob pena de ferir o princípio da inércia, como bem ressaltou o Desembargador Gastaldi Buzzi, ao apreciar, em julgamento plenário do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a ADI 2004.000630-6:

            No caso sub judice, o postulante sequer relatou a existência da outra norma com conteúdo simétrico, de sorte que deve prevalecer a máxima ne eat judex ultra vel extra petita partium, impedindo que este Sodalício, em sede de controle in abstracto, declare também a sua inconstitucionalidade, sob pena de afrontar o princípio processual da inércia, prolatando decisão absolutamente incongruente.

            Não se desconhece, entretanto, o voto do Min. Gilmar Ferreira Mendes na ADIn n. 2.982, noticiado no Informativo n. 352 do Guardião da Constituição Federal, no sentido de estender a declaração de inconstitucionalidade para abranger, além do preceito viciado, também os que a este estão umbilicalmente ligados, o que se convencionou chamar, na jurisprudência brasileira, de inconstitucionalidade conseqüencial, por arrastamento ou atração.

            Tal entendimento, contudo, não pode ser aplicado na espécie, haja vista a presente situação divergir daquela apreciada pelo STF, pois, na hipótese sub examen, os dispositivos que produzem resultados idênticos encontram-se em diplomas diversos, sendo que apenas um deles consta da exordial e é objeto de requerimento expresso. Ademais, o chamado arrastamento pressupõe a subserviência do dispositivo arrastado ao arrastante, o que inocorre in casu, onde ambos possuem força independentemente, figurando em leis autônomas.

            Do exposto, conclui-se que a Corte Constitucional não está vinculada à causa de pedir em sede de fiscalização abstrata, sendo que, muito embora esteja adstrita ao pedido, é admissível a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento de preceitos legais que, apesar de não expressamente questionados pelo autor, sejam estritamente dependentes dos dispositivos impugnados, sem que isto fira o princípio da inércia.

            3.3. Ajuizamento simultâneo de ADIs perante o STF e um TJ

            É possível o questionamento simultâneo de determinado dispositivo normativo, pela via da fiscalização concentrada de constitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Justiça do Estado respectivo, hipótese em que a demanda aforada no juízo estadual deverá aguardar o pronunciamento do Pretório Excelso.

            Com efeito, no caso de ocorrer o ajuizamento de ações diretas tanto perante o STF quanto no TJ local, questionando os mesmos preceitos da legislação estadual em face de normas contidas nas Cartas do Estado e da República (dispositivos paramétricos da Constituição Estadual impregnados de predominante coeficiente de federalidade), deverá ocorrer a suspensão da representação instaurada na corte inferior, até o deslinde da fiscalização abstrata no tribunal de superposição, em face da prejudicialidade da deliberação de maior hierarquia judiciária.

            Sobre tal temática, veja-se o seguinte precedente da Corte Suprema:

            Ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 102, I, a) e representação por inconstitucionalidade estadual (CF, art. 125, § 2º). A eventual reprodução ou imitação, na Constituição do Estado-membro, de princípio ou regras constitucionais federais não impede a argüição imediata perante o Supremo Tribunal da incompatibilidade direta da lei local com a Constituição da República; ao contrário, a propositura aqui da ação direta é que bloqueia o curso simultâneo no Tribunal de Justiça de representação lastreada no desrespeito, pelo mesmo ato normativo, de normas constitucionais locais. (STF, ADI 3046/SP, Ministro Sepúlveda Pertence, julgada em 15.04.2004).

            Logo, em caso de ajuizamento simultâneo de demandas de fiscalização abstrata perante o STF e os TJs, a ação no foro estadual deverá aguardar a deliberação prejudicial do Pretório Excelso. No mesmo sentido, remete-se ainda à ADI 3482, divulgada no Informativo 319 do STF.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Questões pacíficas e temas controvertidos sobre o controle concentrado de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1238, 21 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9183. Acesso em: 19 abr. 2024.