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Estado liberal

Estado liberal

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RESUMO: o texto trata da formação e da delimitação do que se chama convencionalmente de Estado Liberal. Na parte final, retomando a base do pensamento de Rousseau, relaciona-se liberdade e democracia, em oposição à definição clássica da liberdade negativa do liberalismo.

PALAVRAS-CHAVES: Liberalismo; Estado Liberal; Estado Laico; Liberdade; igualdade formal.


SUMÁRIO: 1. "As Liberdades Burguesas"; 2. Estado de Direito Absenteísta; 3. Estado de Direito Liberal; 4. Individualismo; 5. Estado Laico; 6. A Liberdade ao alcance da Democracia – Rousseau; 7. Bibliografia.


"As Liberdades Burguesas"

            O Estado Liberal – também definido como uma espécie de terceiro desdobramento do Estado Moderno – tem três fases históricas mais ou menos determinadas. A primeira fase remonta à Revolução Gloriosa de 1688, na Inglaterra. Neste primeiro momento, o que se reivindicava mais especialmente eram os direitos individuais. Logo em seguida, com a chegada da Primeira Revolução Industrial, em 1750, o próprio capitalismo conhece um salto – agora em direção à fase industrial. Este desenvolvimento industrial – em sua fase embrionária, limitada à indústria têxtil inglesa - também propiciou ou estimulou tanto a Revolução Americana, de 1776, quanto a famosa Revolução Francesa de 1789 – esta mais burguesa do que a americana.

            A segunda fase se inicia com a Segunda Revolução Industrial, a partir de 1850. Como se sabe, este é o grande salto tecnológico, político e econômico no interior do próprio capitalismo. A partir de então, o capitalismo industrial não conhecerá mais limites jurídicos, geográficos, políticos ou morais. Esta fase perdurou até as primeiras décadas do século XX ou meados do século, por volta dos anos 50-60, quando entra em cena o Estado do Bem-Estar Social –limitado à experiência européia. Já a terceira fase, a mais recente do Estado Liberal é esta em que nos encontramos e que resultou da mistura do neoliberalismo com a globalização. Hoje, em oposição aos modelos anteriores, os Estados nacionais procuram desmantelar a rede de direitos que foi construída ao longo do século XX. Da mesma forma, a soberania construída a duras penas com a formação de uma referência nacional (também diz-se identidade nacional) entra em colapso.

            Mas, enfim, o que trouxe de novo o Estado Liberal?

            Nas fases iniciais, o Estado Liberal tinha como marca a proposta da liberdade, num sentido bem preciso da liberdade, pois a luta pelas liberdades individuais não passava da defesa das liberdades individuais na vigência das ordens econômicas. Isto é, a chamada liberdade negativa (só fazer o que a lei não proíbe) punia veementemente a crítica à estrutura social que nascia com a ordem capitalista [01]. As fases iniciais do Estado Liberal correspondiam ao implemento econômico do capitalismo e os direitos individuais não passavam de incremento desse processo de crescimento econômico. É como se dissesse que não havia liberdade fora da área econômica, por exemplo, não havia liberdade para questionar a propriedade privada.

            Inglaterra

            No sentido jurídico, o Estado Liberal tem suas bases no chamado 2º Bill of Rights (1689), uma declaração de direitos individuais imposta pelo Parlamento à Coroa, na Inglaterra. Na verdade, o processo histórico que constituiu o Estado Liberal tem início em 1215 (este seria o primeiro Bill of Rights), com a Carta de Direitos e as cobranças dirigidas ao Rei João Sem Terra. O que se requeria, já em 1215, era a prevalência do Princípio da Liberdade Individual a fim de que, por exemplo, os cidadãos ingleses protestantes tivessem o direito de portar armas, para defender a si e as garantias constitucionais.

            Desse modo, vê-se que a Monarquia Constitucional seria limitada pelo Parlamento (a burguesia chegava ao Estado), e esta relação política configuraria a soberania popular nos moldes burgueses. Neste momento, são três as Declarações de Direitos (1679 – 1689 – 1701) que assinalam as vitórias burguesas no Parlamento.

            No limiar do século XVIII, está formada a base do princípio da monarquia de direito legal, e instaura-se a Monarquia Constitucional. Os direitos do monarca passam a ser definidos pela ordem legal e, portanto, a soberania será regulada/controlada pela lei. No entanto, vejamos em síntese o que dizia o Bill of Rights:

            a)O Rei não pode, sem consentimento do Parlamento, cobrar impostos, ainda que sob a forma de empréstimos ou contribuições voluntárias.

            b)Ninguém poderá ser perseguido por ter-se recusado a pagar impostos não autorizados pelo Parlamento.

            c)O Rei não poderá instituir jurisdições excepcionais, civis ou militares.

            d)O Rei não poderá alojar militares em casas civis (Poder Civil – Locke).

            e)Todos terão direito a um julgamento imparcial.

            Estados Unidos da América

            Nos EUA, a experiência liberal com imensa participação popular [02], acabou por se afirmar de modo mais característico e, por isso, houve reflexos por todo o mundo nos anos que se seguiram. O documento de maior impacto inicial foi a Declaração da Virgínia (1776), ao que se seguiu a Constituição Federal (1787) e as demais Constituições estaduais. Seus principais dirigentes ou intelectuais passaram para a história com o nome de Os Federalistas: sua principal ideologia, dentro dos limites do próprio liberalismo econômico, era: "liberais pela insurreição". Para se ter uma idéia clara do espírito de liberdade que dirigia a Revolução Americana, também basta reler o preâmbulo da própria Constituição (a mesma que se encontra em vigor hoje).

            Preâmbulo: "os homens foram criados iguais; com direitos inalienáveis – como à vida, liberdade e felicidade; os governos devem defender esses direitos, porque foram formados pelo consentimento dos governados; o povo pode invocar o direito à insurreição, contra toda forma de governo que atente contra tais direitos, garantias e liberdades".

            Está claro o direito à revolução. Um pouco (ou muito) mais radicais do que Os Federalistas, no entanto, eram os abolicionistas do período e no caso de Thoreau, por exemplo, além de abolicionista era ainda defensor da chamada desobediência civil. Trata-se de um projeto liberal radical, especialmente quando se põe a lutar contra as ingerências abusivas do Estado ou como nos diz o próprio Thoureau:

            Nenhum homem sabe ao certo quando é justificado, não há espíritos brilhantes que sobre isso possam lançar luz. O criminoso sabe que o castigo é justo; mas, quando o governo se atreve a arrebatar a vida a um homem sem o consentimento da sua consciência, está dado o primeiro passo para a sua própria dissolução. Não será possível que o indivíduo tenha razão e que o governo esteja errado [03]? Aplicam-se leis pelo simples fato de terem sido feitas? Ou porque um certo número de pessoas as declararam boas, quando não o são de fato? (...) Terão os juizes de interpretar a letra em vez do espírito? (Thoreau, 1987, p.68).

            Contudo, Thoreau também será um severo crítico dessa liberdade passiva que acompanha as próprias definições legais (a liberdade negativa, restritiva) e assim nos dirá que: "É mais fácil obedecer, acatar, aceitar, respeitar. E compensa mais. A liberdade vai doravante requerer maior disciplina e maior reflexão. Num mundo de máquinas obedientes, a recusa e a desobediência vão ser mais difíceis. A aprendizagem da liberdade não se compadece com imitações" (Thoreau, 1987b, p.28). Observe-mos que as máquinas obedientes já são as máquinas e as indústrias capitalistas em pleno vigor.

            França

            Na França, que já vinha nas pegadas da experiência americana, o sentido propriamente burguês da revolução liberal se fez bem intenso, como podemos verificar a partir dos seus principais eixos ou itens de consecução. Vejamos um pouco mais o que propunha a própria Revolução Francesa:

            - Todo governo que não provém da vontade nacional é tirania: usurpação do poder.

            - A luta contra a monarquia se intensifica, seguindo-se do período jacobino.

            - A nação é soberana (una, indivisível, inalienável e imprescritível).

            - O Estado é precário e artificial, um pacto voluntário (deve servir ao homem).

            - Portanto, o Estado é uma ficção jurídica.

            - O Estado Liberal deve praticar o absenteísmo.

            - O pacto social e político se rompe quando uma das partes viola suas cláusulas.

            - A Assembléia Nacional representa a maioria = vontade geral.

            - A legitimidade do governo advém do consentimento popular.

            - O governo não intervirá nas relações privadas.

            - O poder é limitado por uma Constituição escrita.

            -O poder regula-se pela tripartição dos poderes e pelas declarações de direitos humanos.

            -A lei expressa a vontade da maioria – contra injustiças.

            Rousseau foi o pensador de referência desse processo revolucionário (a partir do livro O Contrato Social) e o documento guia da Revolução Francesa foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Logo em seu preâmbulo vê-se esse espírito revolucionário:

            Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis, e sagrados do homem (grifos nossos).

            A Declaração é clara ao se pronunciar em favor dos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem. O alcance universal e a promoção global dos direitos do homem (dos direitos humanos) tornam a Revolução Francesa mais universalista do que a americana. Não foi à toa e nem é um mero detalhe que a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tenha se dado na França, porque este é o espírito jurídico realmente universalista que se encontrava presente na época. Neste sentido, o burguês francês foi mais cosmopolita e de pensamento político mais refinado do que o colono ou o miliciano americano, ainda muito limitado às suas próprias aspirações. Porém, as limitações de base do pensamento liberal estavam presentes e claras:

            -A liberdade negativa será definida no que toca ou alcança ao outro.

            -Liberdade é poder fazer tudo que não seja definido como crime.

            -A liberdade é formal: "Todos são iguais perante a lei".

            -Não há igualdade de fato ou igualdade real - econômica.

            - as diferenças entre plebeus e burgueses são evidentes.

            Porém, sob forte influência igualitária, foram proclamados os direitos de todos, os direitos humanos. Em seu nascimento já grandioso, os direitos humanos eram declarados inatos; inalienáveis; irrenunciáveis; imprescritíveis; anteriores, independentes e superiores ao Estado.

            Já a partir de 1791, com a proclamação da Primeira Constituição Francesa, todos os documentos jurídicos e liberais passaram a consagrar a mesma orientação jurídica, limitada à liberdade negativa, e mais especialmente quando confrontados os interesses individuais e a participação do Estado. Para o Estado liberal, então, o melhor seria adotar a posição de observador, distante, como que presente apenas para coibir os excessos contra a ordem econômica. Portanto, esse distanciamento ajudaria a definir um Estado de Direito Indiferente.


Estado de Direito Absenteísta

            Chamaremos de Estado de Direito Absenteísta aquele Estado Liberal que age apenas em defesa das prerrogativas e garantias do direito de propriedade. Trata-se de um Estado que se abstém quando lhe convém, ou seja, abstém-se quase sempre, agindo prioritariamente quando se torna necessário defender a propriedade e os seus proprietários.

            E em que contexto se colocou este Estado de Direito Absenteísta?

            Nas condições em que se dava a primeira fase do liberalismo clássico, coincidente com as revoluções industriais e com a base jurídica delimitada pelos direitos individuais, ao movimento liberal não cabia outra solução, senão tentar controlar o poder estatal que sobreveio do Estado Moderno: "Convinha rodear-lhe de freios constitucionais a ação invasora, duramente sentida durante as épocas do absolutismo, mitigando-se-lhe assim a força coercitiva. Far-se-ia isso mediante a clássica divisão de poderes (...) aproxima-se o Estado Jurídico [04] de Kant do Estado Constitucional de Montesquieu" (Bonavides, 2003 p. 87). Portanto há um forte apelo por um Estado Absenteísta, que procure distensão, distanciamento ou pouca atividade política:

            De acordo com o sistema da liberdade natural, o poder do Estado fica apenas com três funções para cumprir, aliás três obrigações, de maior importância, mas simples e compreensíveis para o senso comum: em primeiro lugar, a obrigação de proteger a nação contra atos de violência e ataques de outras nações independentes; em segundo lugar, a obrigação de salvaguardar, na medida do possível, todos os membros da própria nação contra agressões ilegais dos seus concidadãos, ou seja, garantir uma jurisdição imparcial; e em terceiro lugar, a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas... (Zippelius, 1997, pp. 377).

            O poder forte do Estado Moderno seria substituído por um poder fraco ou moderado no Estado Liberal. De forma resumida, apenas para iniciar o debate, podemos caracterizar o Estado liberal a partir de três elementos básicos:

            a)individualismo: não se diz que "o indivíduo vive em sociedade", diz-se simplesmente da importância do indivíduo como "célula mater" da sociedade capitalista. (Demonstração clara disso é que, até hoje, o sujeito de direitos é associado ao indivíduo, ao cidadão, à pessoa física, e apenas progressivamente é que se alarga o seu alcance para as associações, os sindicatos, as cooperativas. Veja-se o exemplo constitucional do mandado de segurança coletivo, em que se contemplam as coletividades).

            b)propriedade: como direito natural a salvo da interferência e até mesmo da positivação do Estado, o direito à propriedade é um direito fundamental, incondicionado, ilimitado e irrestrito em seu gozo – "o direito à propriedade é sagrado, condiciona a própria vida e a liberdade do indivíduo proprietário". (Só no ambiente progressista e transformador do Estado Social é que se formulou o princípio da sujeição da propriedade privada, afirmando-se que "estão condicionadas todas as propriedades (urbanas ou rurais) à verificação da função social").

            c)liberdade: o ideal do libertas quae sera tamem (a liberdade mesmo que tardia, à custa de muita luta social e derramamento de sangue: como liberdade propositiva) acaba resumido, limitado à liberdade negativa: não fazer o que a lei proíbe. Também a liberdade mercantil, a liberdade para comerciar, será destacada: a liberdade consagradora dos privilégios jurídicos dos proprietários, pois quem pode comprar (a burguesia) condiciona a liberdade de quem só é capaz de vender (os trabalhadores).

            Desse modo, o que se espera do Estado é que aja pouco, especialmente quanto a regular o direito de propriedade. O apelo mais uma vez será por um tipo de Estado Liberal Absenteísta, acionado somente para defender os privilégios do uso e gozo do direito de propriedade.

            Neste sentido apontava também um tratado de Wilhelm von Humboldt de 1792, com o título sugestivo "Idéias relativas a uma tentativa de determinar os limites da ação do Estado" (...) "O Estado deve abster-se", exigia ele, "de todo o cuidado pela prosperidade positiva dos cidadãos e não deve dar mais passo algum além dos que forem necessários para os proteger contra si próprios e contra inimigos externos; não deve restringir a liberdade deles para outra finalidade qualquer" (Zippelius, 1997, pp. 378).

            Portanto, no contexto do Estado Liberal, devemos entender em primeiro lugar que se trata de uma liberdade que adveio das chamadas revoluções liberais ou burguesas, e que o autor de referência neste caso é o inglês John Locke. Neste contexto se define a liberdade como: "...gozar de uma esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder estatal [...] De fato, denomina-se ‘liberal’ aquele que persegue o fim de ampliar cada vez mais a esfera das ações não-impedidas..." (Bobbio, 2000, p. 101). Neste sentido, fica fácil perceber que ao indivíduo cabia ampliar os limites impostos pela liberdade negativa, restritiva do Estado: "Donde ‘Estado Liberal’ é aquele no qual a ingerência do poder público é o mais restrita possível..." (Bobbio, 2000, p. 101).

            No Estado Liberal, a liberdade é condição da igualdade formal ou legal, já sabemos, mas é preciso relembrar que ambas são componentes fundamentais e elementares da democracia. Sem sujeito de direitos não há liberdade e sem liberdade não há participação – por sua vez, sem envolvimento e participação (auxiliando na formulação e aceitando as próprias regras) não há autorização, expressão tácita, consentimento e, por fim, legitimidade do poder e do comando. Seguindo Miranda, sem esta liberdade inerente ao sujeito de direitos no Estado de Direito, o poder é abusivo, arbitrário, autoritário, autocrático, aristocrático [05]:

            As correntes filosóficas do contratualismo, do individualismo e do iluminismo – de que são expoentes doutrinais Locke (Segundo Tratado sobre o Governo), Monstesquieu (Espírito das Leis), Rousseau (Contrato Social), Kant (além das obras filosóficas fundamentais, Paz Perpétua) – e importantíssimos movimentos econômicos, sociais e políticos conduzem ao Estado constitucional, representativo ou de Direito (...) O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal, assente na idéia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade) (2002, pp. 45-47).

            Ressalte-se ainda que, em virtude desse processo de maturação da idéia de liberdade (agora em seu sentido propositivo, ampliado: minha liberdade vai até onde começa a sua), a história do Estado Liberal deve ser vista como parte de um amplo e longo processo secular transcorrido entre os séculos XVII e XIX, e que se processa só inicialmente com a Revolução Inglesa (1689), Americana (1776) e Francesa (1789).

            No curso do próprio processo político, digamos que vindo de Locke a Rousseau, é possível ver que o pensamento se encaminha da mera liberdade de fazer e deixar passar (de comprar, possuir e vender como e quando se bem entender) à liberdade de conotação especialmente política: a liberdade de associação política para fazer política.

            No Estado Liberal, fazer política é propor uma chegada ao poder (da burguesia), para dirigir o processo de hegemonização (ou homogeneização) do controle e comando do Estado e, sobretudo, da economia. A diferença mais significativa entre o Estado Moderno, de Hobbes, e o Estado Liberal de Locke, a partir da tradição revolucionária, é indicada pela fórmula da conquista e da manutenção do governo do povo (diria Locke).

            No Estado Liberal, pautando-se no princípio da representação, ao avesso do Estado Moderno clássico, a conquista do poder deve estar assegurada pela observância da regra da maioria. A conquista do poder deve dar-se por meio da aplicação da regra matemática da supremacia da vontade popular (primeiro número inteiro, acima da metade dos votos) ou Lex majoris partis. Esta é a regra da maioria simples, mas que passa a ter peso de unanimidade, uma vez que, a lei aprovada pela maioria deve se impor e ser obrigatória para vencedores e perdedores. Porém, é sempre oportuno relembrar que se trata de um Estado que busca a isenção quanto à própria regulação política:

            O Estado abstração, o Estado isento de contingências históricas, na sua conceituação pura e absoluta, o Estado processo especulativo e dado apriorístico, exclusivamente racional, "fora de quaisquer representações finalísticas de caráter empírico, e independente do arbítrio humano (...) era apenas a expressão vitoriosa do individualismo de seu tempo, influindo na mente do filósofo e pedindo-lhe a justificação teórica, por meios racionais, do Estado liberal nascido da Revolução Francesa (Bonavides, 2003 p. 85 – grifos nossos).

            Acrescente-se também outra substancial diferença operada como conquista institucional: a garantia institucional de que a liberdade a partir de então seria assegurada pela Constituição. Com força de lei, com possibilidade de opor-se sanção e coerção a fim de se ter seu cumprimento integral, o direito à liberdade viria protegido pela garantia do habeas corpus [06]. Mas, além da liberdade, também a política seria alvo de regulamentação e, por isso, fala-se de Estado de Direito Liberal.


Estado de Direito Liberal

            Pode-se dizer que o Estado de Direito e o Estado Liberal são tipos distintos? Ou será que historicamente os termos e as realidades que expressam foram-se coadunando, alicerçando-se num único tipo de Estado, numa estrutura uniforme?

            Em geral, os manuais de Ciência Política e a doutrina jurídica (Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional), costumam associar Estado de Direito e Estado Liberal, sem grandes diferenças. Tanto são tidos como sinônimos que há subsunção ou soma na terminologia e na nomenclatura, ou seja, diz-se simplesmente Estado de Direito Liberal - o que, evidentemente, é correto, mas só em parte.

            Afinal, será mesmo que não se encontra nenhuma diferença jurídica e política entre esses dois tipos de Estado?

            Será que a própria qualidade da estrutura democrática que veio se formando nestes séculos não encontrou bases históricas ou ganhos conceituais e institucionais que pudessem diferenciar o liberalismo do Estado de Direito?

            Assim, podemos ver que há alguns aspectos do Estado de Direito que vieram diferenciando-se ou se alargaram no contexto histórico do Estado Liberal. Por exemplo, o Estado Liberal não se contentou em assegurar que vigorasse o governo das leis, e assim foram propostos meios políticos ou garantias constitucionais para que o Estado fosse realmente controlado e se mantivesse distante dos afagos da tirania – em sentido estrito, Montesquieu falará da divisão dos poderes. Já Locke dirá que, fortalecendo o espaço de ação dos indivíduos, conseqüentemente o Estado sofrerá uma limitação em seus avanços institucionais. Não nos esqueçamos de que o objetivo seria controlar o poder supremo que sobreveio do antigo Estado Moderno.

            Ainda referente a este nível de diferenças, mas agora mais restritamente à organização institucional, ao funcionamento e à permanência de cada um dos Estados, talvez se possa acentuar que o Estado Liberal produziu garantias institucionais a fim de que ele próprio não tivesse como se transformar em tirania.

            De forma simples e direta: o Estado Liberal, além do império da lei [07], a regra básica do Estado de Direito, produziu amarras, ataduras, vínculos políticos, jurídicos e institucionais que o impedem de regressar ao estágio da tirania. O caso típico é o da transferência direta de direitos aos cidadãos, a fim de que resista às tentativas da tirania: 1) o direito de resistência, invocado antes da ocorrência do golpe; 2) o direito de revolução, quando se requisita, violentamente, o retorno ao Estado de Direito.

            O Estado liberal, portanto, constituiu regras e fundamentos inamovíveis, direitos e garantias intransponíveis, a fim de que não houvesse "quebra de continuidade institucional" (golpes militares ou constitucionais), e assim também poder salvaguardar o Estado de Direito que melhor interessava ao capitalismo da época. Esse mecanismo de auto-preservação do que há de liberal no Estado pode ser entendido ou exemplificado pelas cláusulas pétreas. Pois, se de um lado as cláusulas de pedra resguardam os direitos civis e individuais (voto livre, secreto e soberano), de outro, impedem que a violação desses direitos venha a ameaçar o próprio Estado de Direito: as cláusulas pétreas proíbem terminantemente que se altere a "forma federativa do Estado".

            Isso ocorre porque o Estado Liberal criou e fortaleceu cláusulas (garantias institucionais e constitucionais) de proteção, respeito e certa aplicabilidade das normas, dos princípios e dos direitos do próprio Estado de Direito. Essas regras de segurança jurídica do Estado de Direito, na verdade, nada mais são do que um desdobramento do Estado Constitucional americano originário (à época da Revolução Americana) e o intrincado mecanismo elaborado em torno do sistema de freios e contrapesos. O Estado cria regras duras para impedir que ele, o próprio Estado, atente contra o Estado de Direito.

            Outra diferença diz respeito às bases históricas que originaram um modelo e outro – enquanto o Estado de Direito é um modelo teórico, o Estado liberal tem fortes laços na Revolução Francesa, uma conotação histórica de marcantes colorações liberais e burguesas. Dessa forma, enquanto o Estado de Direito se aplica a qualquer tipo de Estado (democrático, socialista ou nacional-socialista [08]), o Estado Liberal perdura até a década de 1930, na virada da quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, EUA, na famosa crise de superabundância, ou anos 50-60, com o Welfare State.

            A partir deste momento, o Estado Liberal passa a intervir de maneira mais acirrada na economia. O Estado Liberal é um modelo que se encerrou com o New Deal, pois a partir daí o Estado passou a intervir mais fortemente na economia, gerando o chamado Estado Social. Em suma, o Estado liberal é um Estado absenteísta e o Estado Social mantêm-se pela via do protecionismo. Contudo, deve-se frisar que ambos são representantes típicos do Estado Capitalista, o que se confirma pelo fato de que o Estado Social foi gerado em função da Revolução Russa (1917), como oposição ao socialismo.

            Agora, por fim, é preciso que se pergunte: quando é que todo esse "quadro de defesa e segurança jurídica" se tornará realidade para a maioria? Enfim, quando o Estado de Direito seguirá mais Rousseau e menos Locke, isto é, quando o Estado de Direito poderá refletir a vontade geral – e não apenas a vontade dos liberais, dos capitalistas?

            Essa temática será desenvolvida na parte final do texto, momento em que poderemos relacionar/comparar o individualismo, de Locke, e a democracia de Rousseau.


Individualismo

            Por motivos óbvios, o Estado Liberal também será melhor compreendido se seguirmos aprofundando nosso entendimento sobre o próprio liberalismo. Neste primeiro momento utilizaremos um texto clássico no Brasil, a fim de entendermos o Estado Liberal. Trata-se da obra que Paulo Bonavides dedicou especialmente à análise do Estado Liberal, em confronto com o Estado Social.

            Mas antes disso, relembremos que também o liberalismo será definido com base em alguns princípios:

            a)tripartição do poder (interdependência);

            b)sistema representativo (representação virtual);

            c)intangibilidade dos direitos fundamentais do homem:

            -os direitos fundamentais, principalmente os individuais, são direitos inquestionáveis porque são considerados universais e naturais.

            Com isso podermos investigar melhor os reais propósitos do liberalismo político que historicamente veio administrando o Estado Liberal. Leibholz, citado por Bonavides (2004), define os propósitos do liberalismo, iniciando-se o debate pela questão da liberdade:

            O valor essencial que inspira o liberalismo não se volta para a comunidade, mas para a liberdade criadora do indivíduo dotado de razão. Partindo desse ponto de vista, havia o liberalismo desenvolvido um sistema metafísico completo, fundado na fé de que uma solução racional total podia resultar do livre concurso das opiniões individuais em todos os domínios da vida (Bonavides, 2004, p. 53 – grifos nossos).

            A razão está presente no projeto político liberal porque já se trata do iluminismo, da emancipação da consciência do indivíduo, transformando-o em cidadao responsável por seus atos e atuante na construção dos valores morais (liberais) que deveriam guiar a sociedade. Neste caso, poderíamos pensar em Kant, mas também em Rousseau, como veremos na última parte do texto. Agora, é evidente que será dado destaque ao indivíduo no contexto social, mas é como se este indivíduo tivesse que se fazer por si só. De certa forma, isto ocorre porque a personalidade individual que nos inclina às conquistas individuais precede ao Estado. Ao Estado cabe não atrapalhar esse processo de crescimento individual, da emancipação da razão individual de cada cidadão:

            A importância que tem o indivíduo para o conteúdo do liberalismo clássico manifesta-se, com particular relevo, no fato de que, originariamente, o valor da personalidade era concebido como ilimitado e anterior ao Estado. É sob esse aspecto que se introduz a doutrina liberal nas primeiras Constituições escritas, as Cartas americanas e francesas, sujas teses adquiriram, para a democracia liberal, o valor de uma profissão de fé religiosa e mística. Nos Estados Unidos, essa mentalidade fundada na crença da personalidade soberana e ilimitada do indivíduo, precedendo o Estado, se manteve até o fim do século XIX, graças à atitude conservadora da Suprema Corte (Bonavides, 2004, p. 53 – grifos nossos).

            Depois, Bonavides (2004), interpretando o autor alemão Vierkandt, nos diz que a presença do Estado deve ser suavizada, relativisada e que, de certo modo, quanto mais ausente ou distante, melhor: "Quanto menos palpável a presença do Estado nos atos da vida humana, mais larga e generosa a esfera de liberdade outorgada ao indivíduo. Caberia a este fazer ou deixar de fazer o que lhe aprouvesse" (Bonavides, 2004, p. 60 – grifos nossos).

            Bonavides ainda irá advertir, mais uma vez, para a necessidade da liberdade criadora, no espaço liberal, e certamente desenvolvida sob o espírito capitalista, pois: "Só tem valor a liberdade como condição prévia, como base de um procedimento ativo e criador, mediante o qual o Homem, sem o estorvo de qualquer pressão estranha, e sem o encadeamento de uma baixa paixão, siga as suas próprias aptidões" (Bonavides, 2004, p. 60 – grifos nossos).

            Quanto ao Direito propriamente dito, os clássicos liberais (Locke e Montesquieu) definirão como essencial ao homem (e ao sistema capitalista) o direito à propriedade. A liberdade, no fundo, será uma liberdade suficiente para se requerer e para se usufruir do direito de propriedade: "Desses direitos, o mais típico era o direito de propriedade, que se apresenta no contratualismo lockiano por direito anterior e superior a toda criação jurídica do Homem, depois da passagem do Estado de Natureza ao Estado de Sociedade" (Bonavides, 2004, p. 168 – grifos nossos).

            Novamente, podemos ver esta análise tanto em Locke quanto em Montesquieu: "Em ambos os casos, com Locke ou Montesquieu, a idéia que persiste no fundo do debate é esse princípio invariável do liberalismo – a proteção e tutela do indivíduo, premissa essencial do sistema capitalista" (Bonavides, 2004, p. 168).

            Ao Estado Liberal ou ao liberalismo, de forma mais ampla, seria dada a primazia da defesa da própria liberdade pública, da liberdade política do cidadão, como um freio necessário aos Estados não-liberais ou simplesmente totalitários. Bonavides cita o brasileiro J. P. Galvão de Souza: "É preciso defender a dignidade humana contra as violências do Estado Totalitário, que não existe só nas chamadas democracias populares, mas é gerado nas democracias ocidentais herdeiras do liberalismo, em virtude dos princípios deste mesmo liberalismo" (Bonavides, 2004, p. 60).

            Então, como podemos ver, as relações entre Estado e Indivíduo deveriam ser simples, limitando-se às querelas e proteções jurídicas:

            Qual deveria ser a relação estabelecida, então, entre Estado e indivíduo, já que se espera, no Estado Liberal, que o próprio Estado não mais seja considerado um fim em si mesmo? O Estado Liberal deveria se limitar a manter a ordem jurídica: "E essa ordem será tanto mais completa e adequada quanto mais larga a liberdade de iniciativa que se permitir ao indivíduo num círculo de ampla segurança jurídica" (Bonavides, 2003 p. 87 – grifos nossos).

            Uma outra face desse mesmo Estado Liberal será revelada pelo Estado Laico, que é de ideologia liberal, mas que agora emprega um maior efetivo na defesa intransigente da liberdade religiosa, na separação clara entre Estado e Igreja e na defesa do que o próprio Locke chamará de tolerância religiosa. Portanto, o Estado Liberal clássico ainda produziu o substrato do princípio da tolerância (antes religiosa e depois política).

            Mas, o que é Estado Laico e tolerância religiosa e política?


Estado Laico

            A secularização da política no âmbito do próprio Estado Moderno já antecipava o Estado Liberal. Porém foi somente no Estado Liberal que se (a)firmou o princípio da liberdade religiosa, e que se desdobrou com o tempo no princípio da tolerância religiosa. Assim, gradativamente, continuamente transformou-se no princípio da liberdade e da tolerância política. E por isso abordaremos também este aspecto a seguir.

            O liberalismo erigido à época da formação do chamado Estado Liberal (pelo menos entre a Revolução Inglesa, 1689, e a Francesa, 1789) desenvolveu, articulou e angariou novas dimensões para a própria idéia e prática da liberdade. E assim é que esse longo processo de desenvolvimento e de formação do Estado Liberal viria assegurar teoricamente que: ou todos são livres ou ninguém o é; se um não é livre, nenhum é. O capitalismo necessitava de mão-de-obra livre e, em regra, não poderia conviver com o trabalho escravo. Por isso, essa profunda e radical dimensão liberal da liberdade também estabeleceu uma relação com a igualdade formal [09] – ou seja, só é igual (em direitos) quem é livre (para usufruí-los) [10]. No capitalismo vigente, o cidadão é livre para vender força de trabalho.

            A liberdade que se entendia, tomando por base esse processo histórico, era justamente a liberdade religiosa e certamente a mais complicada de ser tomada, uma vez que o poder absolutista (essa fase de pré-liberação do Estado) foi, acima de tudo, um poder religioso. Em vários momentos anteriores à laicização do Estado (separação do Estado, da política, e da religião), o poder do Papa (papado) era o símbolo maior do poder terreno. A secularização da política demandou a geração e a aceitação da crença de que os homens eram capazes de se organizar socialmente, sob o controle do Estado, para viverem: Deus deve cuidar do céu e os homens e sua política se incumbirão da Terra. Porém, dita há uns 200 anos, essa frase levaria qualquer um à fogueira.

            Como ensina Locke, a liberdade religiosa precedeu qualquer noção ou prática da liberdade, pois a liberdade de credo pressupõe a liberdade de pensamento e só depois a liberdade de expressão, de reunião, de associação, de participação política. O livre arbítrio denota a exteriorização da própria consciência, pois a ação política consciente é decorrente da livre formação do pensamento:

            É que o Estado não pode atribuir nenhum novo direito à igreja como também não, inversamente, a igreja ao Estado. Assim, a igreja, quer o magistrado a ela adira ou a abandone, permanece sempre a mesma que antes, uma sociedade livre e voluntária (...) O poder civil é o mesmo em toda a parte e não pode conferir uma autoridade eclesiástica maior a um príncipe cristão do que a que pode conferir a um príncipe pagão, isto é, não pode conferir nenhuma (...) Ninguém, nenhuma igreja e até nenhum Estado tem, pois, qualquer direito de atentar contra os bens civis de outrem nem, sob pretexto da religião, de o despojar das suas posses terrestres. Quem pensar de outra maneira, gostaria que pensasse no número infinito de processos e de guerras que assim proporciona ao gênero humano; no incitamento à pilhagem, ao assassínio, aos ódios eternos: em nenhum lado a segurança ou a paz e menos ainda a amizade, poderão se estabelecer e conservar entre os homens, se houvesse de prevalecer a opinião de que a soberania se funda na graça e que a religião deve propagar-se pela força e pelas armas (Locke, 1987, pp. 97-99).

            A necessidade de o Estado se tornar laico, portanto, exige tanto destronar o poder quanto assegurar que o Estado não vá regular a religião. O Estado deve ser reprimido para não se arvorar como detentor de uma religião oficial ao mesmo tempo em que desautoriza outras práticas religiosas ou opções ideológicas. O Estado deve ser ateu, independentemente do que o governo ou o próprio governante confesse. O Estado Laico, por fim, deveria encontrar respaldo, reflexo na própria lei que regula o Poder Político em torno do Estado Liberal.

            Ainda é importante frisar que o Estado Laico também concorre para a secularização do Direito:

            A passagem dos comportamentos pelo crivo da inocência e da culpabilidade foi separada da gestão das almas e do policiamento das leis de Deus para ser confiada às instituições de uma justiça humana responsável pelo direito criado por cidadãos para reger suas interações; pode-se qualificar essa passagem de secularização (Assier-Andrieu, 2000, p. 305).

            Fora do contexto liberal e religioso inglês (que ainda se debatia em defesa do protestantismo), sob forte influência de Rousseau, na França, a liberdade política ganharia mais peso e densidade, ao se equiparar liberdade e democracia ou liberdade e participação. Então, em Rousseau, de modo mais contundente, a liberdade virá associada a um projeto político mais radical, mais profundo, uma vez que não bastava a idéia da liberdade vigiada pela lei. Aliás, a esta liberdade negativa, Rousseau irá propor a democracia radical, a democracia de raízes mais profundas.


A Liberdade ao alcance da Democracia - Rousseau

            Em busca de uma liberdade participativa do povo, na sociedade e na definição do Estado, é que se diz que em Rousseau a liberdade aparece associada à democracia. Por isso, em Rousseau, a temática da soberania não aparece isolada, exigindo a legitimidade do poder constituído, ou seja, o Estado passaria gradativamente a ser submetido às regras criadas por ele mesmo. No contexto do Estado Liberal, afirmava-se outra objetividade e racionalidade do Direito, porque no bojo do Estado Liberal, segundo Rousseau, o cidadão é o portador pleno dos direitos públicos subjetivos (garantidor de sua fruição).

            Primeiramente, porque o cidadão deve reunir dois atributos: a) capacidade jurídica: requer-se pleno funcionamento das capacidades mentais, um razoável senso de proporção, uma mínima adequação à realidade a fim de obter o julgamento moral; b) competência política: deve reunir condições de projeção de suas posições e concepções políticas pessoais, além de demonstrar certa liderança capaz de repercutir politicamente no todo, mediante suas ações, e assim resultando na transformação do status quo, em modificações na ordem e na vida política.

            Depois, porque essas garantias dos direitos políticos serão asseguradas pelo Estado (o produtor dessas mesmas regras políticas) e, com isso, o cidadão poderá usufruir, gozar dos mesmos direitos quando julgar interessante, relevante, oportuno. Isto é, dependerá de sua vontade. A fruição dos direitos políticos, portanto, depende da garantia real e formal do Estado, e da iniciativa do cidadão em querer participar ativamente, plenamente, da política, dos negócios públicos. Trata-se da facultas agendi, a faculdade ou a capacidade individual de agir em nome próprio, destacada pelo direito privado, mas que agora será aplicada à vida pública. Veja-se que só neste aspecto Rousseau já é referência para a democracia, além de ser bem mais radical do que Locke.

            Em Rousseau, portanto, pode-se buscar uma liberdade mais radical, mais profunda, em comparação com os clássicos do liberalismo. A liberdade do Estado Liberal é a liberdade do liberalismo e não exatamente o modelo de liberdade preconizada pela democracia. Importa ressaltar a liberdade dos indivíduos e que nem sempre coincide com a vontade geral.

            Entre o liberalismo e a democracia há uma grande distância: "Aquele designa a liberdade do status negativus, ou seja, o espaço de liberdade de atuação individual face ao Estado. Este refere-se à liberdade do status activus, ou seja, à liberdade de participação na formação da vontade comum" (Zippelius, 1997, p. 375).

            É importante ressaltar este aspecto porque a estrita observância da vontade da maioria, sem respeito ou garantia às liberdades e aos direitos individuais, pode facilmente degenerar em tirania da maioria – quando a maioria decide pela supressão dos direitos das minorias. No livro O Contrato Social há uma boa pista do que é este cidadão não limitado pelas negatividades do liberalismo:

            Cidadão é o portador pleno dos direitos públicos-subjetivos (em busca de sua fruição) e como associado, da sociedade e do Estado, recebe a designação de povo, coletividade (livro I, cap. VI).

            Portanto, para os dias atuais, dessa sua contribuição política, tiramos três possíveis níveis de participação e de cidadania:

            -cidadão simples: participa da autoridade soberana do Estado. (É só um indivíduo, sem grandes projeções).

            -Cidadão ativo: recebe determinadas atribuições conferidas pelo próprio Estado.

            -Cidadão participativo: interfere diretamente nas atribuições e na dinâmica da Pólis (política).

            Desta forma saímos do campo liberal para o democrático, para iniciar o debate sob a forma do Estado Constitucional – o próximo capítulo. O Estado Democrático é uma realidade do século XX e por isso deve ser tratado em outro momento.


Referências Bibliográficas

            ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

            BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. (organizado por Michelangelo Bovero). Rio de Janeiro : Campus, 2000.

            BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. (4ª ed.). São Paulo : Malheiros Editores, 2003.

            Do Estado Liberal ao Estado Social. 7ª ed. São Paulo : Malheiros, 2004.

            LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. Lisboa-Portugal : Edições 70, 1987.

            MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro : Forense, 2002.

            ROUSSEAU, J.J.. Do contrato social e discurso sobre a economia política. 7ª ed. São Paulo : Hemus Editora Limitada, s/d.

            THOREAU, H. D. Desobediência Civil. Lisboa-Portugal : Edições Antígona, 1966.

            ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. (3ª ed.). Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.


Notas

            01 Veremos em outro contexto, denominado de Estado Legal, como outras ideologias da época foram abatidas e banidas do cenário jurídico e político.

            02 Basta lembrar a atuação militar das famosas milícias de colonos, lutando contra o todo poderoso exército inglês.

            03 Imagine se Hobbes desenvolveria um raciocínio como este, em que o soberano (o governo que representa o Estado) pudesse estar errado.

            04 Em outro contexto, analisando a função essencial do Poder Judiciário como regulador dos mecanismos de justiça formal e real, demos a esta fundamentação jurídica específica o codinome de Estado Jurídico. Bem diferente, portanto, desse Estado-idéia, distante do mundo político, de que falava Kant.

            05 Não há nenhuma possibilidade do direito (isonomia – princípio da igualdade) se ainda tratamos de senhores e servos – daí que estes devem ser libertos e emancipados. Também é neste sentido que a liberdade precede e condiciona a igualdade. Portanto, a democracia supõe autonomia e autarquia: envolvimento direto na formulação das regras e do poder.

            06 Lembremo-nos de que a Declaração traz direitos e a Constituição os consubstancia, por intermédio (da segurança) das garantias (constitucionais e institucionais), da definição das liberdades (liberdade negativa), do cumprimento dos deveres ou obrigações (individuais, como o voto, ou coletivas, como a preservação do patrimônio público). A Constituição iria implementar as prescrições das Declarações de Direitos, prestadas anteriormente.

            07 De modo simples: a lei existente deve ser cumprida e se for má deve ser revogada. De qualquer forma, a lei é produzida para ser obedecida, uma vez que está em vigor.

            08 Diz-se que: se todo Estado tem leis, então, todo Estado é Estado de Direito.

            09 Veja-se o art. 5º, I, da CF/88: homens e mulheres são iguais perante a lei.

            10 É fácil notar, então, como se erige a conquista dessa liberdade irrestrita: da liberdade decorre a igualdade, uma vez que entre senhores e escravos não pode haver igualdade alguma, pois só os primeiros são livres. Portanto, todos serão iguais em direito apenas quando todos forem livres para usufruí-los.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado liberal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1276, 29 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9335. Acesso em: 18 abr. 2024.