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Impossibilidade de a administração tributária judicante afastar a aplicação lei pretensamente inconstitucional

Impossibilidade de a administração tributária judicante afastar a aplicação lei pretensamente inconstitucional

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Recentemente, o Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, editou a Súmula n.º 2, que enuncia: "O Primeiro Conselho de Contribuintes não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária".

Essa questão é polêmica e há tempos vem inquietando os doutrinadores e a jurisprudência, e consiste em saber se a não aplicação de lei, em tese considerada inconstitucional, compete apenas ao Poder Judiciário ou se as autoridades administrativas, no exercício da função judicante, igualmente detêm essa competência.

Entendemos que a autoridade administrativa não pode deixar de aplicar uma "lei" (não um decreto ou norma complementar) por considerá-la inconstitucional. Vale dizer, os órgãos do Poder Executivo não têm competência para decidir se uma lei é (ou não) inconstitucional.

Tal conclusão é decorrência lógica do princípio da legalidade, previsto expressamente no art. 37, da Constituição de 1988, [01] o qual impõe ao administrador público o dever de sujeitar-se aos mandamentos da lei. É, portanto, prejudicial à democracia que a autoridade administrativa se recuse a aplicar uma lei que foi regularmente votada e aprovada pelos órgãos legislativos competentes e cuja presunção de constitucionalidade ainda não foi atacada pelo Poder Judiciário.

Sob a ótica do princípio da presunção de constitucionalidade de lei, corolário do princípio geral da separação de poderes, o Estado não edita leis inconstitucionais. Tal princípio tem por objeto preservar a estabilidade das relações jurídicas na sociedade e o próprio Estado de Direito. Nesse sentido, doutrina Marco Aurélio Greco:

"Toda lei está revestida de presunção de constitucionalidade. Cabe ao Poder Executivo cumprir não só as leis como a Constituição. Porém, não cabe aos agentes administrativos subordinados deixar de aplicar a lei porque, a seu juízo, há uma inconstitucionalidade" [02]

Ou seja, apesar de a autoridade administrativa possuir competência para julgar e emitir juízos de valor sobre determinado caso concreto e aplicar a lei (norma) que entende aplicável, não possui, todavia, competência para verificar se a lei (norma) está em conformidade com a Constituição, a ponto de negar-lhe a aplicação.

Na Constituição Republicana de 1988, não há qualquer dispositivo atribuindo às autoridades administrativas competência para decidir sobre a inconstitucionalidade de leis.

Para Buzaid, o poder de apreciar a eiva de inconstitucionalidade compete privativamente ao Poder Judiciário, sendo exercido não apenas pelo Supremo Tribunal Federal ou Tribunal de segundo grau, mas também por qualquer juiz. [03] Nas palavras do Ministro:

"O poder de decretar a inconstitucionalidade das leis, no Brasil, compete privativamente ao Judiciário. Não o pode exercer o Legislativo, porque lhe é vedado ser juiz em causa própria; aliás, a sua função consiste em elaborar ou revogar as leis, não em apreciar a sua validade. Também não o pode exercer o Executivo, pois isso o tornaria superior ao Congresso".

Duarte sustenta que

"o Poder Executivo, sendo, por definição, a quem incumbe precipuamente a execução das leis, não pode, sob alegação de inconstitucionalidade, negar-lhes cumprimento. Seria desenganada usurpação de competência, quando esta se situa na esfera privativa do Poder Judiciário". [04]

Ao cuidar da organização dos poderes, na parte concernente ao Poder Judiciário, a Constituição dispôs no art. 97 que "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público".

Referido dispositivo demonstra a preocupação do legislador quanto à segurança jurídica e a presunção de constitucionalidade das leis. O próprio Supremo Tribunal Federal afirmou que a chamada "reserva de plenário da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo" funda-se na presunção de constitucionalidade que protege esses atos, "somado a razões de segurança jurídica". [05]

No art. 102, I, a, a Constituição estabelece que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, seja da esfera federal como estadual, e ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo.

Dessa forma, cabe (exclusivamente) ao Poder Judiciário o controle da constitucionalidade de leis e atos normativos mesma hierarquia de lei. Referido controle se dá sob dois sistemas: o concentrado, exercido por meio da ação direta de inconstitucionalidade e pela ação declaratória de constitucionalidade, dirigidas diretamente ao Supremo Tribunal Federal; e o difuso, exercido por meio da ação declaratória incidental, dirigida às instâncias inferiores do Judiciário. Ou seja, a unidade do ordenamento jurídico é tarefa exclusiva do Poder Judiciário.

Nesse raciocínio, leciona Hugo de Brito Machado:

"É sabido que o princípio da supremacia constitucional tem por fim garantir a unidade do sistema jurídico. É sabido também que ao Supremo Tribunal Federal cabe a tarefa de garantir essa unidade, mediante o controle da constitucionalidade das leis. Não é razoável, portanto, admitir-se que uma autoridade administrativa possa decidir a respeito dessa constitucionalidade, posto que o sistema jurídico não oferece instrumentos para que essa decisão seja submetida à Corte Maior".

Acerca da matéria, são sábias as palavras do Ministro Gonçalves de Oliveira, nos autos do Mandado de Segurança n.º 15.886, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 1966. In verbis:

"A lei é iniciada e votada pelo Congresso Nacional, depois sobe à sanção. Se o Presidente da República, o Governador do Estado ou Prefeito sanciona a lei, parece claro que nem ele nem qualquer funcionário administrativo poderá descumpri-la, sob o fundamento de que é inconstitucional. O momento preciso para repudiar a lei seria o da sanção. O Poder Executivo oporia o veto, então a lei voltaria ao Congresso, às Assembléias ou às Câmaras Municipais, e seria mantida ou não a proposição com o voto qualificado. Este é o nosso regime constitucional. Portanto, em princípio, a regra é que, sancionando o Presidente da República a lei, ele supre quaisquer deficiências de trânsito, nas normas legislativas. Teve o momento que a Constituição lhe consagrou para dizer se a proposição era constitucional ou inconstitucional. Se nesse momento não usou de seu poder, parece claro que dá-se o consenso pelo Executivo de que a norma seja constitucional. Se o Presidente, no entanto, veta a proposição, ela volta, no caso de lei federal, ao Congresso que, por maioria altamente qualificada de dois terços, manterá ou não o veto. Se mantiver, temos uma lei que o Presidente da República é obrigado a observar, nos termos da Constituição. Este é o princípio do nosso direito constitucional. Às vezes, como no caso de que se trata, há uma questão intercorrente. É que o Presidente veta a lei e o seu veto é rejeitado pelo Congresso Nacional. Surge a questão: o Poder Executivo, o Presidente da República pode opor-se ao cumprimento da lei? Entendo que a lei poderia ser levada ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal, através da Procuradoria-Geral da República. Mas reconheço que essa não é a doutrina corrente". [06]

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Medida Cautelar na ADIN n.º 221, [07] declarou que "o controle da constitucionalidade da lei ou dos atos normativos é de competência exclusiva do Poder Judiciário".

Advertimos que a questão praticamente perdeu o interesse com o aumento do espectro de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, conseqüência da modificação introduzida pela Constituição de 1988 (art. 103 [08]), de modo que tanto o Presidente da República quanto o Governador de Estado têm legitimidade ativa para argüir em sede de controle abstrato, a ocorrência de vício de constitucionalidade. Assim, se podem provocar o órgão com competência constitucional para conhecer do vício reclamado não há razão para exercer tal controle. Vale dizer, se entendem que a norma é inconstitucional, basta que provoquem o Supremo Tribunal Federal a fim de obter uma decisão definitiva, de modo a preservar a ordem social sem descuidar da ordem jurídica. A posição do Supremo é decisiva e deve ser provocada antes do descumprimento da lei.

Em decorrência do que foi exposto, ante os princípios da legalidade e da presunção de constitucionalidade das leis, tendo em vista a função exclusiva do Poder Judiciário em manter a unidade do ordenamento jurídico, a autoridade administrativa, no âmbito do procedimento administrativo tributário, não pode deixar de aplicar a lei por considerá-la inconstitucional.


Notas

01 "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)".

02 GRECO, Marco Aurélio. Processo Administrativo Tributário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 708-709.

03 BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958.

04 DUARTE, Clenício da Silva. Inconstitucionalidade de Lei. Revista RDP-2, São Paulo, 1968. p. 150-155.

05 STF – RE 192.212-5/SC – Relator Ministro Sepúlveda Pertence – DJU de 29.08.1997, p. 40.234, RDDT 26/210.

06 STF - MS 15886/DF – Relator: Min. Victor Nunes - Julgamento: 26/05/1966 – Órgão Julgador: Tribunal Pleno - Pub.: DJ 27-06-1967 – Ementa: "Reestruturação de quadros de autarquia do ministério da viação. Matéria constitucional. 1) inconstitucionalidade de lei. Presunção de constitucionalidade. Recusa de aplicação de lei considerada inconstitucional pelo executivo. Conseqüências, a esse respeito, da ec 16/65. Ato, no caso, anterior a essa emenda. Efeito, no tempo, da declaração judicial de inconstitucionalidade. Iniciativa do procurador-geral quanto a representação de inconstitucionalidade"

07 DJ 22.10.1993, Relator Ministro Moreira Alves.

08 "Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional."


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Bernardo Motta. Impossibilidade de a administração tributária judicante afastar a aplicação lei pretensamente inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1343, 6 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9566. Acesso em: 20 abr. 2024.