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O Direito e o juízo de Deus

O Direito e o juízo de Deus

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            Iahweh mantém uma relação de aliança com Israel, defende os seus direitos, agindo mais como vingador do que como juiz.

            Ele é o juiz de toda a Terra: assim é inconcebível que faça outra coisa além do mishpat, isto é, juízo, o que é pronunciado por um juiz (Gn 18, 25). Elyôn faz (Jr 9, 23+) e ama o mishpat (Sl 37, 28; Is 61, 8+). Ele é o espírito de mishpat (Is 28, 6) e pronuncia um juízo justo (Jr 11, 20).

            Em suas disputas, os homens recorrem ao juízo de El Shaddai: Sara contra Abraão (Gn 16, 5), Jefté contra Amon (Jz 11, 27), Davi contra Saul (1Sm 24, 12). Elohîm "julgou" (= libertou) Davi de seus inimigos (2 Sm 18, 31). O Altíssimo é o defensor do mishpat do pobre, do órfão e da viúva (Dt 10, 18; Sl 76, 10; 82, 3; 140, 13; Jó 36, 6). Os salmos pedem a Ele um julgamento, isto é, a defesa e a vingança (7, 7; 9, 5+).

            O juízo de Israel é a defesa de Israel contra as nações estrangeiras ou uma restauração de Israel em um estado anterior; assim, Sião será redimida pelo direito (Is 1, 27). Esse desenvolvimento do termo leva a uma combinação de atributos bastante paradoxal: Israel pode estar certo da benevolência e da misericórdia do Onipotente porque ele é um Deus de mishpat (Is 30, 18), mas, em virtude dos pecados de Israel, o mishpat (libertação) está distante (Is 59, 9). 1Rs 8, 49 recorre ao mishpat de Eloah para que ele perdoe os pecados de Israel: aqui, o termo perdeu toda a relação com o juízo.

            O mishpat de Iahweh em relação a Israel também pode ser a sua punição, ainda que a sua ira opere mais na punição de Israel do que o seu mishpat.

            Ez é sobretudo o livro do juízo punitivo de Elohîm (Ez 5, 7ss; 7, 3ss; 16, 38; 11, 10; 24, 14+; Jr 1, 16; 4, 12; Sf 3, 5).

            Nas relações entre El Shaddai e Israel também se usa a imagem do processo judiciário (Is 1, 2.18ss; Os 2, 4ss; 5, 3; Mq 1, 2.4), mas nesse processo Elyôn aparece mais como querelante ou testemunha do que como juiz. Ele não tem relações de aliança com os outros povos, sendo assim o juiz do mundo, das nações e dos povos (Sl 7, 7; 9, 8s; 96, 13; 110, 6; 1Sm 2, 10; Gn 18, 25).

            Na era messiânica, o Onipotente é juiz entre as nações, pondo um fim às suas guerras (Is 2, 4; Mq 4, 3). Eloah julga as nações que agridem injustamente Israel (Ez 25, 11).

            A idéia de um grande julgamento de todas as nações é mais típica da literatura apocalíptica do que do Antigo Testamento. Tal idéia aparece em Jl 4,9ss, onde os povos são reunidos no vale de Josafá – Iahweh julga –, e em Dt 7, 9-11. Nessas passagens, fala-se de um grande juízo, mas sem as vivas descrições dos escritos apocalípticos.

            O "dia do juízo" é mencionado em Mt 10, 15; 12, 36 e em Lc 11, 22.24.

            Não se deve enfatizar excessivamente o termo "dia", já que as passagens paralelas apresentam apenas o termo "juízo" (Mt 12, 41.42; Lc 10, 14; 13, 31s).

            Em Mt 12, 41s e em Lc 11, 31s, o julgamento de condenação não é proferido por Deus, mas pelos gentios, cuja fé é confrontada com a incredulidade dos judeus; assim, fica evidente que se trata aqui de uma metáfora.

            Metáfora análoga atribui o exercício do julgamento aos doze (Mt 19, 28; Lc 22, 30), a menos que nessas passagens o termo "juiz" tenha sido tomado no sentido hebraico de "governante", sentido que parece mais provável.

            Jesus adverte contra aqueles que se arrogam as funções de juiz, fazendo então do nosso juízo sobre os outros a medida do juízo de que seremos objeto (Mt 7, 1s; Lc 6, 37).

            A cena descrita em Mt 25, 31-46 – geralmente chamada de "grande julgamento" – pouca ou nenhuma semelhança apresenta com uma cena de juízo. Na passagem não existe uma palavra sequer que faça pensar em julgamento.

            Paulo é citado em At 24, 25 a propósito do "juízo futuro", expressão que de fato aparece nas epístolas. Repetindo a advertência contra quem julga os outros, Paulo se pergunta de que modo aquele que julga os outros poderá fugir ao juízo de Deus (Rm 2, 1-3).

            A justiça de Deus terá lugar através de sua ira (Rm 3, 5). Será esse o "dia" em que Deus julgará (Rm 2, 16), no qual ele julgará o mundo (Rm 3, 6) e no qual Jesus Cristo virá julgar os vivos e os mortos (2Tm 4, 1).

            Não fica claro o que entende Paulo quando fala do julgamento do mundo e dos anjos por parte dos santos (1Cor 6, 2s); talvez se trate de um eco de Mt 19, 28; Lc 22, 30. Pelo contexto, fica claro que, neste caso, julgar significa "pronunciar uma sentença judiciária" e não "governar".

            Paulo fala ainda de um julgamento passado, o julgamento com base em um só (Adão) para a condenação de todos (Rm 5, 16.18). Mas aqueles "que estão em Cristo Jesus" escapam a essa condenação universal (Rm 8, 1), porque a condenação do pecado na carne foi destruída pela morte de Jesus na carne (Rm 8, 3). Os judeus representam um caso especial: são julgados segundo a lei (Rm 2, 12).

            Parece ainda haver um sentido no qual o juízo já é presente. Apesar de Rm 8, 1, Paulo prevê em 1Cor 11, 32 a possibilidade de que também os cristãos sejam condenados juntamente com o mundo, só escapando dessa condenação por já terem sido punidos pelo Senhor.

            Aquele que come e bebe sem discernir o Corpo do Senhor come e bebe a própria condenação (1Cor 11, 29).

            Como objetos de condenação são mencionados a calúnia (Rm 3, 8), a violação do voto de virgindade (1Tm 5, 12), os judaizantes que lançaram a confusão entre os gálatas (Gl 5, 12), aqueles que não crêem na verdade (2Ts 2, 12), aqueles que desobedecem à autoridade pública (Rm 13, 2), sendo que o julgamento relativo a esta última passagem é provavelmente o da autoridade.

            Enfim, Paulo tinha consciência de que o juízo de Deus é insondável (Rm 11, 33).

            A teologia do juízo de Deus em João parece constituída por uma série de paradoxos. Deus não enviou seu Filho para condenar o mundo, mas sim para salvá-lo (Jo 3, 17), coisa que é dita pelo próprio Jesus (12, 47). No entanto, o mesmo Jesus diz também que veio a este mundo para julgamento (9, 39).

            Outro paradoxo encontra-se na identificação do juiz. O Pai não julga ninguém (5, 22); entretanto, aquele que procura a glória de Jesus não pode ser outro além do Pai (8, 50).

            Jesus diz que o Pai não julga ninguém porque confiou ao Filho todo o julgamento (5, 22.27), mas também afirma que o Pai julga justamente (5, 30) e verdadeiramente (8, 16). Ademais, é o próprio Jesus que diz que não se deve julgar (8, 11; 12, 47).

            A existência desses paradoxos não significa que não haja uma unidade de pensamento, que se encontra na natureza do juízo, concepção particular a João.

            Em João, o juízo está sempre presente, sendo, por assim dizer, um ato do próprio homem. O crente não é julgado, mas o incrédulo já está julgado por sua própria falta de fé (3, 18; 5, 24). O descrente terá seu julgamento no último dia, tendo por juiz a palavra pronunciada por Jesus (12, 48).

            O espírito não julgará o mundo, mas demonstrará que há um juízo mostrando que o príncipe do mundo, o espírito do mal, já está condenado (16, 11). E o próprio Jesus afirma que o julgamento deste mundo é agora, quando se aproxima a hora crítica de sua rejeição por parte do seu próprio povo (12, 31).

            Aí parece ficar claro que em João o juízo é a rejeição da fé em Jesus Cristo. Quem recusa a fé reviverá para a ressurreição de condenação, contraposta à ressurreição da vida (5, 29). Jesus é juiz no sentido de que se apresenta como objeto de decisão – e é nesse sentido que o Pai não julga ninguém, entregando ao Filho todo o julgamento. Jesus não vem para julgar os ímpios, mas sim para salvar os que crêem.

            A epístola aos hebreus recorda a ressurreição dos mortos e o julgamento eterno (Hb 6, 2). Trata-se provavelmente do julgamento que espera os homens depois da morte (9, 27) e cuja espera infunde temor (10, 27). Os adúlteros e fornicadores são identificados como objeto de julgamento (13, 4). O termo também é usado em um sentido metafórico: por sua fé e obediência, Noé condenou o mundo (11, 7).

            Tiago (Tg 2, 12) ressalta que quem espera ser julgado pela lei da liberdade deve viver segundo essa lei; pois será sem misericórdia o juízo para quem não pratica a misericórdia (2, 13). Os mestres cristãos serão julgados com particular severidade (3, 1).

            Tiago (4, 12) faz eco à advertência de Mt 7, 1; Lc 6, 37: não se deve julgar os outros. Deus julgará os vivos e os mortos (1Pd 4, 5): essa afirmação dá a entender que os mortos ainda não foram julgados.

            O juízo começa pela casa de Deus, a Igreja (1Pd 4, 17). Em 2Pd e em Judas, o juízo tomou uma coloração apocalíptica: é comparado ao julgamento de Sodoma e Gomorra (2Pd 2, 6); os injustos serão reservados para o dia do juízo (2Pd 2, 9) e os céus e a terra estão reservados para o fogo, no dia do juízo (2Pd 3, 7).

            O apocalipse é o livro do juízo apocalíptico. O momento culminante desse juízo é o julgamento da grande prostituta, Babilônia (Roma). Aqui, "julgamento" equivale à derrocada de um poder mundano (Ap 17, 1-19, 2). É uma "hora do juízo" (14, 7). O julgamento é confiado a outros, não identificados, mas que devem ser os santos (20, 4); o cavaleiro sobre o cavalo branco é um instrumento de juízo (19, 11). O ato final do juízo é um tribunal no qual os mortos são julgados (11, 18; 20, 12s).


Autor


Informações sobre o texto

Texto baseado em coletânea de artigos publicados no Jornal da Cidade, de Caxias (MA), entre 10 e 24/12/2006.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. O Direito e o juízo de Deus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1418, 20 maio 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9906. Acesso em: 23 abr. 2024.