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Denúncia genérica nos crimes societários: um retrocesso ao Estado Novo.

Análise sob o ponto de vista da atual ordem constitucional, do direito supralegal e da legislação ordinária

Denúncia genérica nos crimes societários: um retrocesso ao Estado Novo. Análise sob o ponto de vista da atual ordem constitucional, do direito supralegal e da legislação ordinária

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            "Não posso admitir que prevaleça a tese sustentada no acórdão recorrido, no sentido de que a validade da denúncia pode ficar na dependência da prova a ser produzida. Não. A acusação da denúncia-libelo deve ser clara e precisa. O que dependerá de exame das provas é a procedência ou improcedência da ação penal, porque a denúncia não pode ser equiparada a uma promessa de acusação a ser concretizada inopportuna tempore". (STF. Recurso em Habeas Corpus nº 42.303-PR. Relator Ministro Pedro Chaves).


1. INTRODUÇÃO:

            Frente a uma série de casos em que atuei, onde as acusações eram flagrantemente genéricas, precipuamente ligados a crimes societários (1), e tendo em vista a enorme divergência jurisprudencial e doutrinária a respeito do tema, senti-me na obrigação de formular este singelo trabalho, que não tem o escopo de esgotar o tema, e sim trazer a lume que a figura da acusação genérica não se coaduna com o Direito vigente no país.

            Procuraremos, creio que divergindo de grandes estudiosos do Direito Penal e Processo Penal, esclarecer que, com a devida venia, esse monstro denominado denúncia genérica, onde, em síntese, não se promove a descrição dos comportamentos do agente, bem como não se estabelece vínculo entre as condutas atribuídas ao réu e os atos ilícitos supostamente praticados, está na contramão da atual ordem jurídica nacional, infringindo os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, bem como os artigos 8º, item 2, letra "b", da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e 41 do Código de Processo Penal.

            É importante consignar, caro leitor, que, no título do presente estudo, falou-se em "retrocesso" porque era durante o Estado Novo de Vargas (regime autoritário), com amparo no Decreto-Lei nº 88, de 20 de Dezembro de 1937, que se atribuía ao réu a obrigação de provar a sua própria inocência (artigo 2º, inciso 5). Era até compreensível que, sob a égide do mencionado Decreto, se admitisse a elaboração de denúncia genérica. No entanto, agora sob o escudo da atual ordem jurídico-constitucional, o instituto da acusação genérica é inadmissível, posto que totalmente ofensivo aos direitos fundamentais.


2. A DENÚNCIA GENÉRICA NOS CRIMES SOCIETÁRIOS E A ATUAL ORDEM JURÍDICO-CONSTITUCIONAL:

            Nos termos do que entende parte da doutrina (2), com a qual comungamos, pessoas jurídicas não cometem crimes. Portanto, apesar do que estatui a Lei n. 9605/98, vige o princípio do "societas delinquere non potest", sendo a responsabilidade penal pessoal e subjetiva.

            Ora, frente ao modelo de responsabilidade adotado, e tendo em vista os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, bem como os artigos 8º, item 2, letra "b", da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e 41 do Código de Processo Penal, cumpre ao membro do Ministério Público descrever, em qualquer Exordial Acusatória, inclusive quando se tratar de crimes societários, os comportamentos, comissivos ou omissivos, que, atribuídos ao agente, subsumissem nas normas penais que reputou por ele violadas.

            Nem se diga que, ante o fato de se tratar de crime societário, o dever de definir, de modo preciso, a participação individual do agente estaria suavizada, pois, nos precisos ensinamentos do Ministro Celso de Mello, no julgamento do HC n. 86.879/SP, "não tem sentido, sob pena de grave transgressão aos postulados constitucionais, permitir-se que a discriminação da conduta de cada denunciado venha a constituir objeto de prova a ser feita ao longo do procedimento penal".

            "Também não vale o argumento segundo o qual a participação de cada qual, exigida expressamente pelo art. 11 da Lei nº 8.137, será apurada durante a instrução. A imputação, sabemos todos, deve ser prévia. Durante a instrução o que se há de fazer é simplesmente a prova dos fatos imputados aos acusados. Não a própria identificação desses fatos" (Hugo de Brito Machado. Responsabilidade penal no âmbito das empresas. Jus Navigandi. Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002).

            Na quase totalidade dos casos de inicial acusatória em crimes societários não se atribui ao réu agente comportamento criminoso. O que se faz é atribuir a responsabilidade por ostentar a qualidade de sócio-gerante da empresa, e não a prática, no exercício da administração, de algum comportamento que subsume-se a algum tipo legal da Lei nº 8.137/90. Ser sócio-gerente ou até administrador de empresa não é coisa criminosa (3), de modo que de ser descrita, na denúncia, de forma minudente, ações e/ou omissões mediante as quais uma determinada pessoa teria, na condição de sócio-gerente, cometido algum crime societário.

            A denúncia, na quase totalidade de suspeita de crimes societários diz apenas: "assim agindo...". Assim, como?

            Cumpre ao Promotor de Justiça descrever, com todas as circunstâncias, as ações ou omissões que, praticadas, pessoal, consciente e voluntariamente, pelo réu, na qualidade de sócio-gerente da empresa, amoldar-se-iam a algum crime societário. Cumpri à Exordial responder à seguinte questão: o que fez (ação) ou o que deixou de fazer (omissão) o agente?

            É indispensável, neste momento, a lição de Juares Tavares (in Teoria do Injusto Penal. 2ª Edição. Editora Dey Rey. 2002. Pág. 252), para quem "o processo de imputação deve ter como ponto de gravidade a consideração de que só será possível atribuir-se o injusto a alguém quando sua realização possa ser afirmada como obra sua e não de terceiros".

            Nessa mesma esteira são os ensinamentos de Bettiol (in Direito Penal. Vol. I. 1966. Pág. 278): "A responsabilidade penal é apenas responsabilidade pela ação, pelo fato próprio, nunca pelo fato alheio".

            Cumpre ter presente a advertência proveniente do Supremo Tribunal Federal, que, ao insistir na indispensabilidade de descrever, na Inicial Acusatória, com precisão, a participação individual de cada denunciado, observa que "Discriminar a participação de cada co-réu é de todo necessária (...), porque, se, em certos casos, a simples associação pode constituir um delito per se, na maioria deles a natureza da participação de cada um, na produção do evento criminoso, é que determina a sua responsabilidade, porque alguém pode pertencer ao mesmo grupo, sem concorrer para o delito, praticando, por exemplo, atos penalmente irrelevante, ou nenhum. Aliás, a necessidade de se definir a participação de cada um resulta da própria Constituição, porque a responsabilidade criminal é pessoal, não transcende da pessoa do deliqüente (...). É preciso, portanto, que se comprove que alguém concorreu com ato seu para o crime". (RTJ 35/517, 534. Relator Ministro Victor Nunes Leal).

            O Promotor de Justiça não pode deixar de observar as exigências que emanam do artigo 41 do Código de Processo Penal, sob pena de incidir em patente ofensa jurídico-constitucional no momento em que exerce o seu poder-dever de instaurar a "persecutio criminis" contra aqueles que, supostamente, praticaram crimes societários.

            Parte da doutrina, que entendemos mais acertada, tem prestigiado a tese de que, mesmo nos crimes societários, é inadmissível a denúncia genérica: Hugo de Brito Machado (Responsabilidade penal no âmbito das empresas. Jus Navigandi. Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002); Luiz Flávio Gomes (in Acusações genéricas, responsabilidade penal objetiva e culpabilidade nos crimes contra a ordem tributárias, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 1995, v. 11, p. 246/247); José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. 1º. Pág. 336); Andréas Eisele (in IBCCrim n. 78, maio/1999, p. 7-8); Damásio E. de Jesus (Código de Processo Penal Anotado. Saraiva. 22ª edição. 2007. Págs. 56/57); Luiz Vicente Cernichiaro e Paulo José da Costa Jr. (Direito Penal na Constituição. Revista dos Tribunais. 1990. Item n. 8. Pág. 84); Rogério Lauria Tucci (Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, São Paulo : Saraiva, 1993, p. 214); Joaquim Canuto Mendes de Almeida (Processo Penal, Ação e Jurisdição. Revista dos Tribunais. 1975. Pág. 114); Manoel Pedro Pimentel. (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. Revista dos Tribunais. 1987. Pág. 174); Fernando da Costa Tourinho Filho (Manual de Processo Penal. Saraiva. 9ª edição. 2007); Heleno Cláudio Fragoso (apud Fernando de Almeida Pedroso. Processo Penal. O Direito de Defesa. Repercussão, amplitude e Limites. 3ª edição. Revista dos Tribunais. 2001. Pág. 128); Pedrazzi e Costa Júnior (Direito Penal das Sociedades Anônimas. RT. 1973. Pág. 33); Vicente Greco Filho (Manual de Processo Penal. Saraiva. 1991); Alberto Silva Franco (RT 525/372-375); Heráclito Antônio Mossin (Comentários ao Código de Processo Penal à luz da doutrina e da jurisprudência. Editora Manole. 2005. Pág. 103); Renato Martins Prates (Acusação Genérica em Crimes Societários. Editora Del Rey. 2000); Manoel Pedro Pimentel (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. Revista dos Tribunais. 1987); Carlos Frederico Coelho Nogueira (Comentários ao Código de Processo Penal - Arts. 1º ao 91. Vol. 1. 1ª edição. 2002. Págs. 620/622)

            A ausência de individualização do comportamento do agente faz emergir, desse ato processual, séria ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência, bem como infringência aos artigos 8º, item 2, letra "b", da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e 41 do Código de Processo Penal.

            A peça acusatória genérica efetivamente ofende a garantia constitucional do devido processo legal (na acepção processual), previsto no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, do qual o contraditório, a ampla defesa, a publicidade, a motivação e o juiz natural constituem aspectos complementares (José Carlos Barbosa Moreira. "Aspectos Processuais Civis na Nova Constituição", in Revista de Direito da Defensoria Pública, n. 4, p. 102/103).

            Jose Afonso da Silva (in Curso de Direito Constitucional Positivo", Malheiros, 9ª ed., 2º t., 1.993, p. 378) ao tratar das garantias constitucionais individuais à luz da nova Constituição Federal, escreve:"O princípio do devido processo legal entra agora no Direito Constitucional positivo com um enunciado que vem da Magna Carta inglesa: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º LIV). Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude da defesa (art. 5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. Garante-se o processo, e quando se fala em ‘processo’, e não em simples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais, conforme autorizada lição de Frederico Marques".

            Reconhece-se a evolução da garantia, que passou de caráter simplesmente processual, "destinada na origem a assegurar a regularidade do processo penal", para um postulado substantivo (substantive due process), capaz de condicionar, no mérito, a validade das leis e a generalidade das ações do poder público (RAILDA SARAIVA, "A Constituição de 1.988 e o Ordenamento Jurídico-Penal Brasileiro", Rio de Janeiro: Forense, 1.992, pág. 62).

            Mas, na acepção puramente processual, o devido processo legal impõe "obediência estrita das normas processuais, de forma que o processo penal traduza iguais oportunidades das partes no plano processual, a ampla defesa como todos os recursos inerentes, o contraditório, as demais garantias do juiz natural, publicidade e motivação dos atos judiciais" (Luiz Gustavo Grandinetti Castanho Carvalho. "O Processo Penal em face da Constituição", Rio de Janeiro: Forense, 1.992, pág. 49).

            Para garantir o devido processo penal, a ação judiciária deve se realizar, "atrelada ao vigoroso e incindível relacionamento entre as preceituações constitucionais e as normas penais, quer de natureza substancial, quer de caráter instrumental, e de sorte a tornar efetiva a atuação da Justiça Criminal, tanto na inflição e na concretização da pena, ou da medida de segurança, como na afirmação ao ius libertatis" (Rogério Lauria Tucci. "Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro", São Paulo: Saraiva, 1.993, p. 71).

            Nesta linha, vale lembrar que o art. 41 do Código de Processo Penal estabelece, de forma cogente, que "A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".

            A acusação genérica também ofende os postulados constitucionais do contraditório e da ampla defesa, ambos constantes no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal. Ora, desconhecendo o teor da acusação, o defensor não terá como orientar o interrogatório, a defesa prévia e o requerimento de provas (permitindo que a acusação individualize as condutas atribuíveis ao acusado durante a instrução restaria impedida a produção de prova testemunhal, posto que está somente pode ser requerida durante a defesa prévia).

            Como bem ensina Joaquim Canuto Mendes de Almeida ninguém "pode defender-se sem conhecimento dos termos da imputação que lhe é feita. Essa revelação de fatos e de provas ao indiciado, essa acusação do seu crime é, também, uma garantia necessária da defesa que, não obstante, importa, naturalmente, ao menos na forma, uma contrariedade antecipada às alegações e provas do acusado" (Processo penal, ação e jurisdição, apud Rogério Lauria Tucci. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 214).

            Consoante também obtemperou o Ministro Pedro Chaves, quando do julgamento do HC n. 42.303, do Supremo Tribunal Federal, a narração do fato delituoso constitui-se em exigência formal da denúncia, ligada à garantia da defesa do acusado. E acentuou, na ocasião: "Se a denúncia acusatória não for clara, precisa e concludente, não se poderá estabelecer o contraditório em termos positivos, com evidente prejuízo para a defesa, sujeita a vagas acusações".

            A esse respeito vale conferir os precisos ensinamentos do professor Vicente Greco Filho (in Manual de Processo Penal. Saraiva. 1991. Pág. 64): "Outro requisito essencial à ampla defesa é a apresentação clara e completa da acusação, que deve ser formulada de modo que possa o réu contrapor-se a seus termos. É essencial, portanto, a descrição do fato delituoso em todas as suas circunstâncias. Uma descrição incompleta, dúbia, ou que não seja de um fato típico penal gera a inépcia da denúncia e nulidade do processo, com a possibilidade de trancamento através de ‘habeas corpus’, se o juiz não rejeitar desde logo a inicial. Para que alguém possa preparar e realizar sua defesa é preciso que esteja claramente descrito o fato de que deve defender-se".

            A não descrição pormenorizada da conduta acabaria por exigir que o acusado faça prova negativa de que não praticou o crime, assumindo o ônus da prova que é obrigação do Ministério, ferindo, por conseguinte, a garantia constitucional da presunção de inocência (4), consagrada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição federal.

            Nesse sentido foram os ensinamentos do Ministro Celso de Mello, quando do julgamento do HC n. 86879/SP (J 21.02.2006), para quem a ausência de individualização da conduta na inicial acusatória "inverter-se-á, de modo ilegítimo (e inaceitável), no processo penal de condenação, o ônus da prova, com evidente ofensa ao postulado constitucional da não-culpabilidade".

            Nessa linha, noutra oportunidade, foi o magistério jurisprudencial consagrado no âmbito do Supremo Tribunal Federal: RTJ 161/264, 265, Relator Ministro Celso de Mello.

            Quando se formula denúncia genérica, dando, portanto, ensejo à "persecutio in iudicio" injusta, está a se violar, também, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, posto que expõe o indivíduo a ofensas e humilhações decorrentes de uma injusta persecução penal.

            O mencionado princípio veda a "utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana" (HC n. 85.327/SP. Voto Ministro Gilmar Mendes. J. 15.08.2006).

            Não destoa do entendimento acima esposado a mais atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus nº 85.327-7. Segunda Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. J. 15.08.2006); HC nº 89105. Segunda Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. J. 15.08.2006; HC nº 85.948-8. Primeira Turma. Relator Ministro Carlos Ayres Brito. J. 23.05.2006; Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 85.658-6. Primeira Turma. Relator Ministro Cezar Peluso. J. 21.06.2005; HC nº 87.768. Segunda Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. J. 09.05.2006; HC nº 86879. Segunda Turma. Relator Ministro Gilmar Mendes. J. 21.02.2006; HC nº 83.301. Primeira Turma. Relator Ministro Cezar Peluso. J. 16.03.2004; Inq nº 1656. Tribunal Pleno. Relator Ministra Ellen Gracie. J. 18.12.2003; HC n. 83948. Segunda Turma. Relator Ministro Carlos Velloso. J. 20.04.2004; HC n. 80.549. Segunda Turma. Relator Ministro Nelson Jobim. J. 20.03.2001;

            Nessa esteira também tem decidido a mais alta Corte Nacional na interpretação do Direito infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça: RHC nº 19.764/PR. Quinta Turma. Relator Ministro Gilson Dipp. J. 25.09.2006; HC nº 40005/DF. Sexta Turma. Relator Ministro Paulo Gallotti. J. 07.11.2006; HC nº 57.622/SP. Quinta Turma. Relator Ministro Felix Fischer. J. 04.09.2006; HC nº 54.868/DF. Quinta Turma. Relatora Ministra Laurita Vaz. J. 27.02.2007; RHC nº 19.734/RO. Quinta Turma. Relator Ministro Gilson Dipp. J. 23.10.2006; HC nº 58.372/PA. Sexta Turma. Relator Ministro Paulo Medina. J. 07.11.2006; HC nº 23.819/SP. Sexta Turma. Relator Ministro Paulo Gallotti. J. 06.09.2004; HC nº 57.213/SP. Quinta Turma. Relator Ministro Gilson Dipp. J. 14.11.2006; Resp nº 783.292/RJ. Quinta Turma. Relator Ministro Felix Fischer. J. 03.10.2006; Apn nº 404/AC. Corte Especial. Relator Ministro Gilson Dipp. J. 05.10.2005; RHC nº 16.135/AM. Sexta Turma. Relator Ministro Nilson Naves. J. 24.06.2004; HC nº 13.196/MA. Sexta Turma. Relator Ministro Fontes de Alencar. J. 03.10.2002.

            Além de ofender o artigo 41 do CPP, bem como os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da dignidade da pessoa humana e da presuncão de inocência, a ausência, na Exordial Acusatória, de individualização da conduta do agente, também infringi o artigo 8º, item 2, letra b, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (cujo texto foi aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Decreto Legislativo n. 27 de 1992), onde se dispõe que é necessário saber, com antecedência e de forma pormenorizada, a imputação formulada, o que somente será possível se a denúncia descrever a conduta criminosa de maneira clara, precisa e individualizada, não se admitindo utilização de expressão ambígua e/ou muito menos massificação de responsabilidade, por não individualizadas as condutas supostamente ilícitas.

            Não se pode deixar de salientar recente entendimento (5) manifestado pelo ilustre Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento do Recurso Especial n. 466.343-SP, onde se atribui aos tratados internacionais que veiculem direitos humanos o status de norma supralegal. Portanto, se analisarmos por essa ótica, teríamos que a denúncia genérica, além de ofender regra constante do Código de Processo Penal, bem como princípios constitucionais, infringiria regra supralegal.

            A mencionada supralegalidade, nobre leitor, nos termos do entendimento do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, significa que os tratados que veiculem direitos humanos teriam um lugar especial no plano hierárquico do ordenamento jurídico nacional: estariam acima da legislação ordinária (6). Portanto, a legislação ordinária nacional deverá ter uma dupla compatibilidade vertical. Deverá ser compatível à Constituição e aos Tratados e Convenções que veiculem direitos humanos.

            Finalmente, vale considerar que a formulação de acusação genérica, em delitos societários, sem a descrição precisa do comportamento do agente, bem como sem a indicação dos fatos que o vinculassem ao evento delituoso narrado na Exordial, culmina por consagrar uma inaceitável hipótese de responsabilidade penal objetivab (7). A respeito do tema, precisa é a abordagem de Ronaldo Augusto Bretas Marzagão (in Denúncias Genéricas em Crime de Sonegação Fiscal, in Justiça e Democracia. RT. 1996. Vol. 1/207-211, 210-211.):"Se há compromisso da lei com a culpabilidade, não se admite responsabilidade objetiva, decorrente da imputação genérica, que não permite ao acusado conhecer se houve e qual a medida da sua participação no fato para poder se defender. (...). A denúncia genérica, nos crimes de sonegação fiscal, impossibilita a ampla defesa e, por isso, não pode ser admitida".

            No mesmo sentido são os ensinamentos do Ministro Hamilton Carvalhido ao afirmar, no julgamento do Resp nº 175.548, que "atribuir responsabilidade penal à pessoa física que não tenha praticado a ação típica ou concorrido, de qualquer modo, objetiva ou subjetivamente, para a sua prática ou, no caso de ação típica em que o sujeito ativo seja pessoa jurídica, pela só qualidade que nela tenha a pessoa física, independentemente da existência de qualquer vínculo, objetivo ou subjetivo, com a conduta criminosa, e recolher, no mais primitivo, a responsabilidade penal objetiva que transigia até mesmo com o fato de terceiro e que, em qualquer das suas expressões penais, se mostra inconciliável com o Estado de Direito e com o Direito Penal, cujas essências recolhem, como elemento próprio, a democracia".


3. CONCLUSÃO:

            Diante do exposto, outra conclusão não é possível senão a de que toda Denúncia Genérica, mesmo em casos de crimes societários, é flagrantemente ofensiva aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, bem como ofensa aos artigos 8º, item 2, letra "b", da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e 41 do Código de Processo Penal.

            Ora, o simples fato de alguém ser sócio-gerente de uma empresa não autoriza que seja denunciado. Afinal, ser sócio-gerente, pelo menos até o presente momento, não constitui infração penal.

            "Meras conjecturas sequer podem conferir suporte material a qualquer acusação estatal. É que, sem base probatória consistente, dados conjecturais não se revestem, em sede penal, de idoneidade jurídica, quer para efeito de formulação de imputação penal, quer para fins de prolação de juízo condenatório" (Voto do Ministro Celso de Mello no HC n. 86879/SP).

            Uma denúncia penal válida, deve narrar a participação individual do agente (8), bem como estabelecer o liame das suas condutas aos eventos delituosos, evitando, com isso, que a acusação se transforme, como advertia o Ministro Orozimbo Nonato, em pura criação mental do acusador (RF 150/393).

            A imputação (9), como dizia o saudoso José Frederico Marques (in Elementos do Direito Processual Penal. Vol II. 1ª edição. Editora Forense. 1965. Pág. 153), deve ser determinada, e "imprescindível é que nela se fixe, com exatidão, a conduta do acusado descrevendo o acusador, de maneira precisa, certa e bem individualizada".

            O ideal seria que toda a denúncia seguisse a formula traçada por João Mendes de Almeida Júnior (in O Processo Criminal Brasileiro. V. II. Freitas Bastos. 1959. Pág. 183), para o qual a denúncia "é uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nincomaco, 1.III, as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando, assim referidas por Cícero (De Invent. I)). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear, as testemunhas e informantes".

            O prosseguimento de uma ação fulcrada em uma acusação genérica transformará o processo penal num instrumento de pura estigmatização e rotulação, em que se punirá não pela pena, mas sim pelo fato de estar o acusado sendo processado.


4. NOTAS

            1. Crime societário é uma espécie de infração penal praticada "por pessoas físicas em nome de uma sociedade, de uma pessoa jurídica constituída originariamente para fins lícitos". (Leib Soibelman. Enciclopédia do Advogado. 5ª edição. Thex Editora Ltda. Pág. 103).

            2. Nesse sentido: Cezar Peluso; Cezar Roberto Bitencourt; René Ariel Dotti; Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior; Fabio M. de Almeida Delmanto; Carlos Ernani Constantino; Basileu Garcia; Nélson Hungria; Magalhães Noronha; José Frederico Marques; Aníbal Bruno; Heleno Cláudio Fragoso; José Henrique Pierangeli; Julio Fabbrini Mirabete; Fernando da Costa Tourinho Filho; Alberto da Silva Franco; Juarez Tavares; Luiz Regis Prado; Miguel Reale Júnior; Luiz Vicente Cernicchiaro e etc.

            3. Nesse sentido, oportunos são os ensinamentos do professor Hugo de Brito Machado (Ob. cit.): "Admitir-se a denúncia na qual alguém é acusado pelo simples fato de ser gerente, ou diretor, ou até simplesmente sócio ou acionista de uma sociedade, como se tem visto, é admitir não apenas a responsabilidade objetiva, mas a responsabilidade por fato de outrem, o que indiscutivelmente contraria os princípios do Direito Penal de todo o mundo civilizado".

            Nesse diapasão: "Ser acionista ou membro do conselho consultivo da empresa não é crime. Logo, a invocação dessa condição, sem a descrição de condutas específicas que vinculem cada diretor ao evento criminoso, não basta para viabilizar a denúncia" (STF. RT 715/526. Relator Ministro Assis Toledo).

            4. Essa garantia já era prevista no artigo 9º da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 26 de agosto de 1789: "Todo acusado se presume inocente até ser declarado culpado".

            5. Há outras três posições a respeito do status dos Tratados e Convenções que veiculem direitos humanos no ordenamento jurídico: os Tratados e Convenções contariam com status constitucional (Flávia Piovesan e Antônio Augusto Cançado Trindade); contariam com status supraconstitucional (defendida por Celso de Albuquerque Mello); estariam na mesma hierarquia da legislação ordinária (antiga posição do STF).

            6. "Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana" (STF. Recurso Extraordinário nº 466.343-1. Voto Ministro Gilmar Mendes).

            7. É importante consignar que não se admite no Direito Penal brasileiro a responsabilidade objetiva do agente. A regra do artigo 5º, XLV, da CF 88 – a de que a pena não pode passar da pessoa do condenado -, ao consagrar a pessoalidade da pena, também consagrou, indiretamente, a proibição da responsabilidade objetiva.

            8. "a responsabilidade penal pessoal e subjetiva postula denúncia que atribua a autor determinado a prática de atos concretos obras suas, por aderência psicológica (dolosa ou culposa)" (Voto do Ministro Cezar Peluso no julgamento do RHC n. 85.658).

            9. É importante esclarecer que imputação é a atribuição da prática de uma infração penal a uma determinada pessoa. Nos precisos ensinamentos da professora Maria Helena Diniz (in Dicionário Jurídico. 2ª edição. Editora Saraiva. 2005. Pág. 920) imputação é a "acusação de alguém, por meio de denúncia ou queixa-crime, pela prática de um ato delituoso punido pela lei penal".


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QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Denúncia genérica nos crimes societários: um retrocesso ao Estado Novo. Análise sob o ponto de vista da atual ordem constitucional, do direito supralegal e da legislação ordinária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1428, 30 maio 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9949. Acesso em: 24 abr. 2024.