V
No eco de tantas vozes autorizadas, no mundo da biotecnologia, a exigir prudência e segurança no trato de organismos geneticamente modificados (OGM), com vistas a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais, das plantas, dos seres vivos em geral e de todo o meio ambiente, impõe-se a observância rigorosa do princípio da precaução, na espécie.
A apresentação cintificamente fundamentada do Estudo Prévio de Impacto Ambiental, na forma preconizada pelo art. 225, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil, como condição indispensável ao plantio, em escala comercial, da soja round up ready, resulta, em termos vinculativos, dos direitos fundamentais (vida, liberdade, segurança e meio ambiente ecologicamente equilibrado) de primeira e quarta dimensão.
Nessa convicção, escreve Ingo Wolfgang Sarlet: "No que diz com a relação entre os órgãos da administração e os direitos fundamentais, no qual vigora o princípio da constitucionalidade imediata da administração, a vinculação aos direitos fundamentais significa que os órgãos administrativos devem executar apenas as leis que àqueles sejam conformes, bem como executar estas leis de forma constitucional, isto é, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com os direitos fundamentais. A não-observância destes postulados poderá, por outro lado, levar à invalidação judicial dos atos administrativos contrários aos direitos fundamentais, problema que diz com o controle jurisdicional dos atos administrativos (...). "(In "Eficácia dos direitos Fundamentais" - Ed. Livraria do Advogado - Porto Alegre - 1998 - p. 327).
Nesse particular, o princípio da precaução é imperativo constitucional, que não dispensa o Estudo Prévio de Impacto ambiental, para o plantio, em escala comercial, da soja transgênica (round up ready).
Com a máxima vênia, não posso concordar, assim, com o respeitável entendimento do ilustre Juiz Federal Substituto desta Vara, no sentido de que " a questão há de ser equacinada por prova pericial, imprescindível, na espécie", na convicção de que "o direito do consumidor, a meu sentir, está suficientemente resguardado pela liminar deferida às fls. 208. da ação civil pública nº 97.36170-4, determinando a rotulagem de todo e qualquer produto feito à base de soja transgênica, esclarecendo quanto às suas características e riscos para o consumo" (sic - fls. 472).
A simples rotulagem dos produtos transgênicos afigura-se insuficiente ao preenchimento da eficácia do princípio da prevenção, nesse contexto, em que se busca proteger, prioritariamente, a sadia qualidade de vida, para as presentes e futuras gerações, como ordena o comando constitucional.
Como bem observa o Dr. Aurélio Virgílio Veiga Rios, digno e sábio Representante do Ministério Público Federal, " a rotulagem de produtos para consumo humano ou animal é a última etapa de um processo, que se inicia com o plantio da semente de soja, trigo, milho, arroz , e termina com o produto beneficiado pronto, embalado e rotulado nas prateleiras do Supermercado à espera do consumidor". (sic - fls. 792/793).
O Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) atende, de pronto, à eficácia vinculante do princípio da precaução, pois se caracteriza como procedimento imprescindível de prévia avaliação diante da incerteza do dano, como observa o conceituado Paulo Afonso Leme Machado (fls. 508).
O EIA, no caso, não afasta a prova pericial e a rotulagem, antevistas na respeitável decisão, que, ora se repara, por comandar medidas, ainda que necessárias no momento oportuno, não devem suprimir procedimento indispensável, agora, na fase inaugural do plantio da soja transgênica, em solo brasileiro, mormente quando a Constituição ordena "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País", sem prejuízo da fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético (CF, art. 225, II).
A despeito das cautelas determinadas na respeitável decisão judicial de fls. 478/479 destes autos, todas voltadas a uma fase final da comercialização liberada da soja transgênica, no sentido de que a MONSANTO ao vender sementes e mudas da soja transgênica, colha do comprador compromisso de que em todas as etapas (plantio, armazenagem e transporte) o produto seja mantido segregado, de modo a não se misturar aos grãos de soja natural, possibilitando, assim, a rotulagem final e apresentando o relatório a este Juízo, trimestralmente, com especificação da quantidade vendida, os compradores e os locais onde será cultivada a soja transgênica, não se pode olvidar, aqui, da insuficiência dos mecanismos de controles oficiais para se obter a eficácia plena dessa respeitável decisão.
Nos meus quinze anos de magistratura federal e mais de trinta anos de vida forense, posso testemunhar, por onde passei, exercendo jurisdição - Acre, Rondônia e Pará (Santarém - sul do Pará, onde instalei a Justiça Federal) a mais bárbara degradação ambiental de nossos rios, flora e fauna, diante da impotência e irresponsabilidade dos órgãos governamentais. A Amazônia, sem dúvida, é um continente do ecossistema, entregue, lamentavelmente, à ganância do capitalismo selvagem, que só visualiza o lucro e a barbárie da espécie humana, sob a máxima deste final de século, antevista por Tobias Barreto:"Serpens qui serpentem non comederit, non fit Dracon" (a serpente que não devora a serpente não se faz Dragão).
Antes que sejam todos devorados pela insanidade do século, urge adotar-se medidas de precaução.
O Correio Braziliense, na edição de 25 de maio de 1999, p. 13, noticiou que " a revista científica Nature publicou semana passada estudo mostrando que o milho transgênico Bt (bacillus thuringiensis), cultivado experimentalmente no Brasil, contém um pólen que pode matar lagartas e uma espécie de borboleta.
Dados da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) revelam que, do total de 631 liberações de transgênicos no meio ambiente brasileiro, mais de 250 referem-se a milho resistente a insetos, desenvolvidos por empresas como a Monsanto do Brasil, Norvartis Seeds, Pioneer Sementes, Braskalb Agropecuária Brasileira, Cargill Agrícola e Sementes Agroceres.
Os dados também registram experimentos, em pequeno número, com soja e algodão resistentes a insetos. Na avaliação de um dos integrantes da CTNBio, o risco maior é que não está havendo fiscalização das lavouras com transgênicos no país. O temor é comprovado em processo público protocolado na CTNBio em 17 de março, onde técnicos do Ministério da Agricultura pedem a suspensão imediata dos campos demonstrativos e de produção de sementes e a não liberação de novas áreas para experimentos.
De 626 liberações planejadas no meio ambiente até março para as diferentes culturas - algodão, arroz, batata, cana-de-açúcar, eucalipto, fumo, milho e soja -, o número de inspeções, de acordo com o Ministério da Agricultura, chegou a, no máximo, 30. "Isso significa que a nossa capacidade de fiscalização conjunta é de 4,8%, um dado altamente significativo e preocupante", revela o documento protocolado."
O mesmo jornal, internacionalmente premiado, por sua fidelidade à verdade dos fatos noticiados, informou, na edição de 13 de junho de 1999, p. 5, que o Papa João Paulo II, "falando aos fiéis reunidos para uma missa em Zamosc, perto da fronteira com a Ucrânia, João Paulo II afirmou: "Quando os interesses da ciência ou os interesses econômicos prevalecem sobre o bem da pessoa e o bem de sociedades inteiras, as destruições causadas pelo meio ambiente são o sinal de um menosprezo autêntico do homem." Em sua mensagem aos dirigentes do mundo, o papa propôs uma série de iniciativas: "Que sejam preparados programas para a proteção do meio ambiente, procurando sua realização eficaz. Que se formem atitudes voltadas para o bem comum, as leis da natureza e da vida."
É preciso defender a vida, numa civilização que lucra com a morte.
Para se construir uma sociedade livre, justa e solidária, como objetiva, fundamentalmente, a República Federativa do Brasil (CF, art. 3º, I), há de se buscar uma ordem econômica que assegure a todos uma existência digna (CF, art. 170, caput), observando-se, dentre outros, os princípios da soberania nacional, da defesa do consumidor e do meio ambiente (CF, art. 170, incisos I, V e VI).
Com inteira razão, observa a douta constitucionalista Carmen Lúcia Antunes Rocha que "a experiência agressiva da civilização do ter sugere o aparecimento de vozes ponderando pela vivência do ser. Contra a modernidade do ganho (donde vem a ganância) a eternidade do benefício humano (donde vem a solidariedade). E, noutro passo, assevera, no brilho destas letras: "Mas a década de oitenta mostra um processo de mudanças no Estado, desenvolvidas no sentido inverso ao que o constitucionalismo parecia apontar. Se os direitos sociais e mais aqueles denominados de terceira dimensão, tais como o direito ao meio ambiente saudável, o direito ao desenvolvimento equilibrado, o direito à paz, o direito sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação passaram a ser buscados mesmo no plano constitucional, uma proposta ou, o que é mais, uma nova imposição se começou a fazer sentir na ordem econômica: a que forçava a lex mercatoria sem regulamentação e sem a presença do Estado no plano das experiências políticas. A prioridade dos mercados e suas leis a enfatizar a presença de consumidores para a obtenção de mais lucros, de um lado, e a sua inserção na prática política dentro do Estado ou mesmo acima dele, por outro, ensejaram o que se deu a conhecer como a tendência neoliberal do processo de globalização. Note-se que não se cuida, aqui, de renegar o mercado como organização que guarda inequívoca importância na organização da sociedade ocidental e mesmo mundial e na dinâmica da vida econômica. O que se põe em relevo, contudo, é que o mercado há que estar a serviço de metas sociais e não a sociedade a serviço do mercado. Nem a lei do mercado haverá que dominar o homem e conduzir a sua necessidade. Antes ter-se-ia, então, uma lei totalitária e sem fundamento de humanidade ou de humanismo. E, no entanto, é o homem que deve livremente afirmar a sua necessidade para que em sua direção se conduza o mercado. Principalmente, haverá que se elaborar sempre um Estado de Direito e um Direito do Estado no qual o homem não seja a moeda, mas o proprietário dela. Seja o homem o valor maior da vida social e não mero valor de troca de produtos." (In "Constituição, Soberania e Mercosul" - Revista Trimestral de Direito Público - 21/1998 - Malheiros Editores - ps. 14. e 17).
As questões resultantes da engenharia genética não se resolvem, apenas, como as leis de mercado, mas, sobretudo, com a observância rigorosa das leis de proteção à vida, como, assim, preordena nosso ordenamento jurídico - constitucional.
Sem contabilizar exageros, creio que a velocidade irresponsável, que se pretende imprimir nos avanços da engenharia genética, nos dias atuais, guiada pela desregulamentação gananciosa da globalização econômica, poderá gestar, nos albores do novo milênio, uma esquisita civilização de "aliens hospedeiros", com fisionomia peçonhenta, a comprometer, definitivamente, em termos reais, e não ficticios, a sobrevivência das futuras gerações de nosso planeta.
Sob outro ângulo, há de ver-se que a empresa MONSANTO DO BRASIL LTDA. busca instalar, em nosso país, um autêntico monopólio, com a dominação do mercado de sementes de soja transgênica (round up ready), agredindo princípios básicos de nossa ordem econômica e social, tais como da soberania nacional, da livre concorrência, da defesa do consumidor e da defesa do meio ambiente (CF, art. 170, incisos I, IV, V e VI).
A Constituição da República Federativa do Brasil, porém, repudia tais práticas, quando ordena ao Parlamento Nacional que "a lei reprimirá o abuso do poder econômico, que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" (CF, art. 173, § 4º).
VI
Observe-se, ainda, o total desacerto da alegação da União Federal, quando afirma que, por força da norma do inciso XIV do art. 2º do Decreto nº 1.752/95, o estudo de impacto ambiental (EIA/RIMA) é uma faculdade da CTNBio e não um poder-dever, por isso que essa Comissão solicitará o aludido estudo em casos concretos que, a juízo de seus membros, entenda, sob o ponto de vista científico, necessária a obtenção de subsídio para deliberar.
Constata-se, de plano, que o mencionado Decreto nº 1.752/95, em seu art. 2º, inciso XIV, extrapolou os lindes da Lei regulamentada nº 8.974/95, estabelecendo uma discricionariedade administrativa nela não prevista.
A propósito do tema, leciona Guilherme Marinoni, na fala de que "é importante ressaltar que, da dicção do art. 225. da Constituição Federal, ressai, claramente, que não há qualquer discricionariedade para a administração pública, quanto a exigir ou não o estudo de impacto ambiental, na hipótese de pedido de licenciamento de atividade ou obra potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente; sempre que o administrador se encontrar diante de pedido de licença para atividades ou obras com estas características, não haverá espaço para qualquer subjetividade de sua parte quanto a exigir ou não o estudo. Trata-se, portanto, de atividade administrativa de conteúdo vinculado." (grifos nossos) (...)
A Resolução 001/86 do CONAMA enumera, no seu art. 2º, as obras e atividades que são consideradas capazes de causar significativa degradação do meio ambiente. Este rol, segundo a doutrina, é meramente exemplificativo, cabendo ao administrador apreciar in concreto se a atividade ou a obra para a qual se requer o licenciamento apresenta-se como potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente" (grifo nosso). (...)
É fácil concluir, portanto, que há violação de legalidade na hipótese em que o órgão licenciador do meio ambiente dispensa o estudo de impacto ambiental perante obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, esteja a obra ou atividade contida ou não no rol do artigo 2º da Resolução 001/86 do CONAMA. Nesta hipótese, estando, v.g., uma indústria para se instalar, ou mesmo pronta para começar a operar, cabe a tutela inibitória. O mesmo ocorre quando o estudo de impacto ambiental não atende ao preceituado nos arts. 5º e 6º da Resolução nº 001/86 do CONAMA. De acordo com a doutrina, vale para o Brasil, nesse último caso, ? a lúcida orientação da jurisprudência dos tribunais administrativos franceses: um EIA que não contempla todos os pontos mínimos do seu conteúdo, previstos na regulamentação, é um estudo inexistente; e um EIA que não analisa de forma adequada e consistente esses mesmos pontos é um estudo insuficiente . E tanto num caso (inexistência do EIA) quanto no outro (insuficiência do EIA) o vício que essas irregularidades acarretam ao procedimento do licenciamento é de natureza substancial. Conseqüentemente, inexistente ou insuficiente o estudo de impacto, não pode a obra ou a atividade ser licenciada, e, se, por acaso, já tiver havido o licenciamento, este será inválido.’
Se o estudo de impacto ambiental não vincula a administração, pode esse estudo concluir, por exemplo, que um empreendimento não deve ser implantado e a autoridade administrativa ainda assim conceder a licenciamento solicitado. É claro que o administrador terá de justificar muito bem a sua decisão, demonstrando as razões pelas quais não acatou o estudo científico. Se a licença é concedida, e inicia-se a fase de implantação, é óbvio que, em tese, podem ser causados danos ao meio ambiente. Se tais danos forem provocados, responde o empresário objetivamente, pouco importando se obteve a licença ambiental para exercer a sua atividade.
Entretanto, se no plano do direito ambiental deseja-se a prevenção, e não a reparação, não é de grande valia teorizar-se a respeito da responsabilidade do poluidor, sendo muito mais relevante pensar-se na tutela inibitória do ato lesivo ao meio ambiente.
Como lembra Antonio Herman V. Benjamin, 'a tutela do meio ambiente, através de longa evolução, ultrapassou a fase repressivo-reparatória, baseada fundamentalmente em normas de responsabilidade penal e civil, até atingir o estágio atual em que a preocupação maior é com o evitar e não com o reparar ou reprimir’. (Antonio Herman V. Benjamin, A principiologia do estudo prévio de impacto ambiental e o controle da discricionariedade administrativa. Estudo prévio de impacto ambiental. São Paulo: RT, 1993, p. 77).
O estudo de impacto ambiental é um requisito procedimental do ato administrativo de licenciamento ambiental, tendo grande importância para a sua motivação; este estudo contém as razões que devem ser levadas em conta pelo administrador no momento do licenciamento. Como já foi dito, se o administrador diverge da conclusão do estudo de impacto ambiental, ele terá de demonstrar as razões que o levaram a optar por uma solução diversa. É a motivação do ato que, quando em desacordo com a finalidade da norma, abre oportunidade para a impugnação judicial do licenciamento e, destarte, à tutela inibitória.
Se o processo de licenciamento tem como escopo a preservação e a conservação do meio ambiente (ar. 2º, caput, da Lei nº 6.938/81), a atuação dos órgãos administrativos não pode conduzir a um fim dele distinto. Havendo um efetivo descompasso entre a decisão administrativa e a finalidade da norma - que é a preservação e a conservação do meio ambiente - é cabível a tutela inibitória, já que o ato administrativo concessivo da licença está acoimado de vício de desvio de poder." (Marinoni, Luiz Guilherme, in "Tutela Inibitória" (individual e coletiva) - RT/SP - 1998 - págs. 81/86).