Sentença nº__________________
Proc. nº00108074353
15ª Vara Cível - (2º Juizado)
Comarca de Porto Alegre
A.: Maria Isabel Petersen do Amaral
R.: Banco Cacique S.A.
Juiz prolator: Carlos Alberto Etcheverry
Data: 28.12.2001
Vistos.
1. Maria Isabel Petersen do Amaral, já qualificada, ajuizou a presente ação revisional de contrato bancário contra Banco Cacique S.A.
Narrou ter celebrado contrato de mútuo com o réu em 06 de fevereiro de 2001, quando recebeu a importância de R$1.705,00, para pagamento em dez parcelas de R$285,07.
Pago seis parcelas, tornando-se inadimplente no que diz respeito à sétima e oitava, para cujo pagamento a instituição financeira exige o acréscimo de comissão de permanência, o que é inteiramente ilegal.
Inteiramente ilegal é, também a taxa de juros cobrada pelo requerido, a qual, embora não tenha sido expressa no contrato, certamente é superior a 12% ao ano, que é o máximo permitido pelo Decreto nº22.626/33, assim como pelo art. 192, § 3º, da Constituição Federal, além de configurada a prática de anatocismo.
Pleiteia, em razão do exposto, a revisão do contrato bancário, com a declaração da nulidade das cláusulas excessivamente onerosas e condenação do réu à repetição do indébito, após recálculo do valor da dívida.
Foi deferida medida liminar para o efeito de determinar ao demandado que se abstenha de cadastrar a requerente em órgãos negativadores de crédito ou, já tendo sido feito o cadastro, que diligencie em sua exclusão.
Contestando o pedido, o réu alegou que a taxa de juros pactuada é inteiramente legal, uma vez que o limite previsto na Constituição Federal não tem eficácia imediata. Não se aplica ao caso o Decreto nº22.626/33, conforme tem sido decidido reiteradamente pelos tribunais e inclusive sumulado pelo STF, tendo em vista sua revogação, no que tange às instituições financeiras, pela Lei nº4.595/64. A comissão de permanência, por seu turno, foi expressamente permitida pelo Banco Central do Brasil.
Além disso, entende inaplicável o Código de Defesa do Consumidor ao negócio jurídico celebrado pelas partes, uma vez que a autora não é destinatária final do produto fornecido pela instituição financeira.
Após manifestação da demandante sobre a resposta, vieram os autos conclusos.
Passo a decidir diante da desnecessidade de produção de outras provas além das contidas nos autos.
2. Examinando o juiz um contrato de consumo (1), cabe-lhe averiguar se nenhuma de suas cláusulas se enquadra entre aquelas que o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor qualifica como "nulas de pleno direito" e, em caso afirmativo, decretar a nulidade, independentemente de provocação de qualquer das partes.
Tal obrigação decorre das disposições contidas no art. 145, V, combinado com o art. 146, § único, ambos do Código Civil:
"Art. 145. É nulo o ato jurídico:
...................................
"V - Quando a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito.
"Art. 146. (...)
"Parágrafo único. Devem [as nulidades do artigo antecedente] ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do ato ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda a requerimento das partes."
Este é também o entendimento de Ruy Rosado de Aguiar Jr.:
"Com isso, as disposições que cominam a sanção de nulidade, reunidas no microssistema do Código do Consumidor, se inserem dentro do instituto geral das nulidades, assim como estruturado no Código Civil, com as peculiaridades que são próprias às relações de consumo. Não há razão para criar um novo sistema sobre nulidades cada vez que o legislador se defrontar com a necessidade de regulamentar um segmento das relações sociais.
"Portanto, a ´nulidade de pleno direito´ a que se refere o art. 51 do CDC é a ´nulidade´ do nosso Código Civil. Como tal, pode ser decretada de ofício pelo juiz e alegada em ação ou defesa por qualquer interessado, sendo a sanção jurídica prevista para a violação de preceito estabelecido em lei de ordem pública e interesse social (art. 1º)." (g.n.) (2)
Há quem pense que controle judicial do conteúdo dos contratos traz o risco de introduzir o caos na vida em sociedade, pela insegurança jurídica daí resultante. Para quem reza por essa cartilha, não há relevância no fato de que os detentores de poder econômico possam ser os responsáveis pela configuração do conteúdo do contrato e, nessa tarefa, defendam de modo escandalosamente imoderado os próprios interesses.
Poderia até parecer que o confronto, aqui, dá-se entre duas visões de mundo: a exposta acima e a dos que consideram imprescindível o exame dos pactos sob o ponto de vista das pessoas concretamente envolvidas, dos interesses em jogo e considerando o grau de desequilíbrio de poder entre os partes. Mas já não há mais liberdade para nenhuma opção ou síntese dialética. Essa síntese já foi feita e corporificada no direito positivo, com a edição do Código de Defesa do Consumidor. O legislador - e não só no Brasil - já fez sua opção, reconhecendo que a dinâmica própria da economia numa sociedade de massas gerou práticas contratuais extremamente ineqüitativas, colocando os consumidores diante da opção de aderir a condições negociais gerais inegociáveis, em verdadeira caricatura do exercício da autonomia privada, ou não contratar. Assim é que o Código de Defesa do Consumidor dedicou uma seção aos contratos de adesão, no capítulo atinente à proteção contratual, regulando apartadamente as cláusulas consideradas abusivas.
E, tratando-se de nulidade absoluta, não interessa se as manifestações de vontade foram livres, isentas de coação ou qualquer outro vício. Ainda assim, prevalece o interesse público em retirar toda a eficácia do ato jurídico, interesse que se sobrepõe ao da força obrigatória dos contratos. Dito de outra forma: do contrato não podem, evidentemente, irradiar-se efeitos desconsiderando-se vedação legal expressa, pelo simples fato de que as partes assim o convencionaram, pois não é possível querer, eficazmente, o que a lei proíbe.
Não haveria sentido, aliás, em pensar na manutenção de uma ordem jurídica - qualquer ordem jurídica, por mais rudimentar que seja -, se seus destinatários pudessem dispor diversamente do que determina lei de ordem pública. E o juiz é, por certo, a última pessoa que poderia admitir tamanha aberração, por mais apaixonado que esteja pela autonomia privada tal como entendida antigamente. (3) A não ser assim, estará colocando a si próprio diante de um paradoxo: ao afirmar, usando a fórmula clássica, que o contrato é lei entre as partes, não estará, precisamente nesse ato, negando vigência à lei de ordem pública?
Também em nada importa, por conseguinte, o animus da parte ao subscrever pacto fadado a ser total ou parcialmente anulado. Qualquer um dos contratantes pode até ter pensado em tirar proveito da situação que viria a ser criada futuramente, mas o que deve necessariamente prevalecer é o interesse público em reprimir a utilização de cláusulas abusivas. Mesmo porque, do ponto de vista da conveniência de repressão, procurar sobrepor-se à contraparte, privilegiando apenas os próprios interesses e impondo onerosidade excessiva, é o comportamento mais danoso e, conseqüentemente, mais digno de censura.
Poder-se-ia cogitar, aliás, da aplicação analógica da regulamentação feita pelo Código de Defesa do Consumidor no atinente aos contratos de adesão, caso se entenda que os contratos bancários não são contratos de consumo - absurdo que se admite apenas para efeito de argumentação -, assunto de que já tratei em outra ocasião: (4)
"Como se sabe, o fenômeno dos contratos de adesão - ou condições negociais gerais -, ingressou no direito positivo brasileiro há poucos anos, com o advento do Código de Defesa do Consumidor.
"Dedicou-lhe o legislador uma seção, no capítulo atinente à proteção contratual. (art. 54) A par disso, a seção reservada às cláusulas abusivas relaciona cláusulas cuja estatuição só é feita, ordinariamente, nessa modalidade de pacto. Vale recordar, também, que a previsão de invalidade do contrato quando o consumidor não tiver conhecimento do que nele estiver contido só faz sentido quando o conteúdo do mesmo tiver sido predisposto pelo fornecedor.
"Tais disposições, entretanto, tiveram como destinatário apenas as relações de consumo. E existem inúmeros contratos, notadamente entre comerciantes, em que essa técnica contratual é utilizada. Pense-se, por exemplo, no de fornecimento, através do qual uma indústria adquire os componentes para a fabricação de um determinado bem de consumo. Ou, identicamente, no lojista que abastece o seu estabelecimento com as mercadorias que posteriormente serão revendidas aos consumidores.
"Surgindo um litígio em qualquer desses casos, o juiz se encontrará diante de uma lacuna da lei. Não encontrará normas legais aplicáveis especificamente às condições negociais gerais utilizadas fora do âmbito das relações de consumo.
"Ora, é evidente que um negócio jurídico que se completou pela simples adesão de uma das partes não pode receber o mesmo tratamento conferido àqueles que resultam de efetiva discussão e acordo entre as partes. No primeiro, o equilíbrio entre os contratantes esteve desde o início completamente subvertido, pois a formulação do regulamento negocial ficou a cargo apenas do predisponente. É intuitiva a maior probabilidade de que este último tenha procurado preservar, de forma desproporcional, os seus próprios interesses.
"É possível, por exemplo, que haja disposição exonerando o fornecedor de responsabilidade pelos danos que possam ser causados pelos componentes vendidos, o que inviabilizaria posterior denunciação da lide pelo comprador, em eventual ação de indenização contra si promovida pelo consumidor lesado. Outros exemplos seriam os de cláusulas determinando a utilização compulsória de arbitragem ou que autorizem o predisponente a modificar de forma unilateral o conteúdo ou a qualidade do contrato, depois de concluído.
"A aplicação pura e simples a tais casos do princípio da força obrigatória dos contratos - pacta sunt servanda - seria uma solução aterradoramente simplista e conduziria a resultados iníquos. Existindo, por conseguinte, uma lacuna na regulamentação legal, o caminho mais correto para integrá-la está estabelecido no art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina seja o caso decidido ‘de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.’
"O mencionado dispositivo legal estabelece uma hierarquia nos critérios de solução. Recorre-se ao costume ou aos princípios gerais do direito se inexistir regra análoga. No caso sob exame, a integração da lacuna pode e deve ser feita utilizando-se o primeiro dos critérios, pois existe lei - o Código de Defesa do Consumidor - regulamentando os contratos de adesão, embora apenas no que tange às relações de consumo.
"Atende-se, assim procedendo, à exigência de dar tratamento igual a casos semelhantes. Buscou-se, no diploma legal acima referido, restabelecer o equilíbrio entre as partes através da repressão ao abuso de poder na predisposição do conteúdo dos contratos de consumo. A mesma razão justificativa aplica-se às demais convenções, dadas as semelhanças essenciais entre as situações reguladas e as não previstas e a irrelevância dos aspectos em que se diferenciam. Como ensina José de Oliveira Ascensão, ‘O que a analogia supõe é que as semelhanças são mais fortes que as diferenças: há um núcleo fundamental nos dois casos que exige a mesma estatuição. Se esse núcleo fundamental pesar mais que as diversidades, podemos então afirmar que há analogia.’" (5)
Feitas estas observações passo a analisar as cláusulas que, no meu entender, padecem de nulidade insanável.
2.1. A estipulação da taxa de juros
Observo que deixo de apreciar os argumentos referentes à eventual aplicabilidade das disposições contidas no Decreto nº22.626/33 ou na Constituição Federal, por entender que a controvérsia jurídica em tela encontra melhor solução no Código de Defesa do Consumidor. Mais especificamente, aplica-se ao caso regra contida na seção atinente às cláusulas abusivas.
Dispõe o art. 51 do CDC, em seu inciso IV, que são nulas de pleno direito as cláusulas que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade". No contrato sob exame, o campo destinado à taxa efetiva de juros não está preenchido, mas, observado o montante financiado e o que resulta da soma das parcelas, pode-se concluir que em hipótese alguma foram praticadas taxas inferiores a 65% ao ano, que em muito excedem o limite do razoável e sequer chegam perto da remuneração paga aos proprietários dos recursos utilizados por qualquer banco em suas operações de crédito.
Nenhuma atividade econômica e nenhum investimento honesto é capaz de proporcionar essa lucratividade. Pagar uma taxa de juros dessa ordem constitui um sacrifício ruinoso ou quase isto para qualquer um que se dedique a uma atividade lícita e, o que é pior, sem qualquer justificativa sob o aspecto econômico, salvo ajudar a conferir aos bancos, por exemplo, a qualidade de maiores beneficiários do Plano Real: seus lucros cresceram 313% de dezembro de 1994 até dezembro de 2000, fenômeno compreensível quando se sabe que "boa parte dos lucros dos bancos pode ser explicado pela diferença entre o dinheiro que os bancos pegam no mercado e quanto ganham ao emprestar para empresas e pessoas físicas. É o que os analistas chamam de altos spreads. O ganho bruto dos bancos brasileiros com financiamentos para empresas é de 30% e de 63% no caso das pessoas físicas. Em países desenvolvidos, como nos Estados Unidos ou na Inglaterra, por exemplo, esse ganho fica entre 5% ao ano e dificilmente ultrapassa os 10% ao ano." (6)
O exato significado de obrigações "consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade" pode ensejar alguma dúvida, mas não neste caso, ao menos para quem queira ver e seja dotado de um mínimo de sensibilidade.
Causa espécie, diante disso tudo, que esse tipo de violência à economia das famílias, que dela não têm como escapar diante da coincidência de todas as instituições financeiras utilizarem os mesmos patamares de remuneração, a despeito de terem custos variáveis, (7) esteja sendo convalidado pela constrangedora complacência de boa parte dos tribunais, a contrastar com o rigor e severidade dispensados a quem se atreve a retirar dinheiro dos bancos sob a mira de armas.
Trata-se, então, de proceder à integração do contrato, nos termos do disposto no art. 51, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, de forma a estabelecer a taxa de juros que deverá ser utilizada, após o que se tornará possível apurar precisamente, em liquidação de sentença, o montante do que deve ser restituído à autora, se for o caso, já que, reconhecida e declarada a nulidade da estipulação sob exame - cujos efeitos retroagem à data da celebração do contrato -, não é possível, evidentemente, qualificar os pagamentos efetuados como ato jurídico perfeito ou exigir que seja feita a prova de que resultaram de erro.
Tal taxa não poderia, no meu entender, considerando-se a tradição do nosso direito, exceder a 12% (doze por cento) ao ano, excluído o custo efetivo da captação de recursos pela instituição financeira. No caso concreto, considero razoável fixá-la em 9% (nove por cento) ao ano, uma vez que utilizar o percentual máximo implicaria, de certa forma, permitir que o requerido se beneficiasse da própria torpeza: do fato de que procurou obter o máximo benefício possível do negócio jurídico não é admissível concluir que, se permanecesse no terreno da licitude, imporia a taxa de juros máxima permitida. Deve-se conceder ao réu o benefício da dúvida. A taxa referida acima está, aliás, relativamente isenta de arbítrio: constitui a média entre a que presumivelmente a tomadora do financiamento consideraria razoável pagar - 6% ao ano - e a que o requerido apreciaria fosse utilizada.
Ressalto, por outro lado, que nada há a declarar quanto à eventual prática de anatocismo. Tratando-se de pagamento de débito em parcelas, devem as mesmas ser necessariamente acrescidas dos juros remuneratórios, sob pena de completa descaracterização do negócio jurídico pela ausência da onerosidade que faz parte de sua natureza.
2.2. A cláusula que autoriza a cobrança de comissão de permanência (3ª, "b")
A cobrança de comissão de permanência é inteiramente descabida, a começar pelo fato de que não há qualquer diploma legal que a autorize. Em sua origem, correspondeu à necessidade de assegurar às instituições financeiras o recebimento, após a data em que deveriam ter sido satisfeitas as obrigações assumidas por seus clientes, dos créditos atualizados monetariamente e acrescidos de juros. Após a edição da Lei nº6.899/81, que autorizou a correção monetária, a partir do vencimento da obrigação, nas "execuções de títulos de dívida líquida e certa" (§ 1º), perdeu inteiramente sua função.
Continuou sendo cobrada, entretanto, com o beneplácito e consentimento formal do Banco Central do Brasil, sob dois fundamentos alternativos, ambos pressupondo a disponibilidade hipotética do valor do débito, na data aprazada para o cumprimento da obrigação: ora teria o mesmo valor da remuneração recebida pela sua aplicação, ora corresponderia à remuneração paga a tomadores de títulos da credora.
Em qualquer dos casos, teria a comissão de permanência a natureza jurídica de indenização pela mora, inexigível diante dos termos peremptórios do art. 1.061 do Código Civil, ao que se sabe em plena vigência e irrevogável por ato do Banco Central do Brasil ou do Conselho Monetário Nacional, que não possuem competência legislativa: "As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, consistem nos juros da mora e custas, sem prejuízo da pena convencional."
Por outro lado, os índices correspondentes à comissão de permanência não são fixados por organismo oficial, oscilam diariamente e variam de instituição para instituição, ao sabor, entre outros fatores, do volume, necessidade e capacidade de captação ou oferta de recursos a terceiros que cada qual possa ter. Como a necessidade de captação pode ser resultado da má condução dos negócios da instituição financeira, corre o devedor o risco de ver aumentado o valor do débito por ato cuja responsabilidade não lhe pode ser imputada, o que é inadmissível.
Essa circunstância torna ainda mais escancarada a abusividade da convenção ora sob exame, pois permite, de fato, que fique ao exclusivo arbítrio do predisponente a definição do que lhe é devido, enquadrando-se, sob este aspecto, entre as cláusulas que "permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variações do preço de maneira unilateral", às quais é cominada a pena de nulidade (art. 51, X, do Código de Defesa do Consumidor), quando não entre as que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade" (idem, IV), ou que "estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor". (idem, XV)
A indefinição do valor do mencionado encargo teria outra conseqüência, igualmente intolerável: a cada cálculo do débito que se fizesse necessário nos autos da execução, o contador judicial ver-se-ia na contingência de solicitar informação sobre o índice a ser aplicado ao próprio credor. Qualquer controvérsia que surgisse a respeito do índice informado só poderia, nessas circunstâncias, ser elucidada mediante perícia contábil, feita às custas, ainda que provisóriamente, do devedor.
2.3. As cláusulas que estabelecem o conhecimento, pelo consumidor, das condições negociais gerais do contrato
A cláusula 1ª do contrato de fl. 66 estabelece que as condições negociais gerais do contrato de financiamento encontram-se
"(...) devidamente registradas junto ao 7º CARTÓRIO DE REGISTRO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS DE SÃO PAULO sob o nº351.391, em 01/04/1997, passando as mesmas, para todos os fins e efeitos de direito, a fazer parte integrante e inseparável deste como se aqui estivessem integralmente transcritas.
Logo a seguir, estabelece-se que "Cópia das supra mencionadas cláusulas padrão o BANCO coloca, neste ato, à disposição do FINANCIADO" (cláusula 2ª) e que "O FINANCIADO, ao celebrar este contrato com o BANCO, está aderindo aos integrais termos das já referidas cláusulas padrão, declarando expressamente estar de pleno acordo com o teor das mesmas e conhecê-las (...)." (cláusula 3ª)
Trata-se aqui, ao que tudo indica, meramente de uma fórmula ritual, sem qualquer compromisso com a realidade. Tanto é assim que nem a própria ré, aparentemente, dispõe de uma cópia das condições negociais gerais; de outra forma, tê-la-ia juntado com a contestação. Se não dispõe da mesma para seu uso, em momento em que se mostra inteiramente oportuno demonstrar sua existência e teor, como acreditar que disporia de uma cópia para entregar à requerida? E, ademais, não haveria nenhuma boa razão para que a requerida, em vez de referir uma incorporação apenas formal, deixasse de inserir, efetivamente, as cláusulas-padrão no próprio corpo do contrato subscrito pela requerente, ou para procurar reforçar os indícios de que entregou o documento a esta última, mediante, por exemplo, a coleta de sua assinatura em todas as folhas. A cognoscibilidade prévia deve poder ser aferida de plano, ou seja, objetivamente, sem margem para qualquer dúvida.
O resultado da falta de prova de que houve adesão às condições negociais gerais é que das mesmas não resulta nenhuma obrigação para a autora, conforme dispõe o art. 46 do Código de Defesa do Consumidor:
"Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo (...)"
Inafastável, diante do exposto, o acolhimento da pretensão apresentada pela requerente.
Isto posto, julgo procedente o pedido para declarar nulas as cláusulas referidas acima, condenando o réu à restituição do que recebeu indevidamente, com correção monetária e acrescido de juros à taxa de 6% ao ano, contados estes a partir da citacão, e ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em R$400,00.
Registre-se.
Int.-se.
Porto Alegre, 28 de dezembro de 2001.
Carlos Alberto Etcheverry
- E de contrato de consumo se trata: a alegação de que a litigante não se enquadra no conceito de consumidora, posto que não é destinatária final do crédito concedido pelo banco, carece inteiramente de seriedade. O contestante limitou-se a fazer tal afirmação, sem, contudo, esclarecer precisamente que fato permite afirmar que o financiamento foi utilizado de forma a afastar a qualificação da requerente como beneficiária da proteção outorgada pelo CDC.
- "Cláusulas abusivas no Código do Consumidor", in Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1994, pág. 27.
- Para não falar no conforto: é sedutora, por sua comodidade, a opção de considerar lícita, por exemplo, a imposição, pelo predisponente do conteúdo do contrato, de penalidade por inadimplemento apenas em desfavor do aderente, sob o fundamento de que este último era livre para não aceitar o negócio jurídico tal como lhe foi proposto. Conformada a esse modelo, a vida do juiz torna-se muito simples. Quase lhe é possível esquecer que as partes em conflito são seres humanos, tamanha a mecanicidade do seu procedimento.
- Os contratos de adesão no direito comum - aplicação analógica do Código de Defesa do Consumidor - Artigo publicado originalmente no suplemento regional (RS) da Gazeta Mercantil, edição de 05.04.1999.
- ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito - Introdução e Teoria Geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977, p. 399.
- http://jbonline.terra.com.br/papel/economia/2001/11/20/joreco20011120006.html.
- Fato que torna risível o argumento de que o consumidor deveria ter procurado outro banco.