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Incorporação imobiliária:

sentença em ação civil pública contra cláusulas ilegais

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11/11/2005 às 00:00
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2. DOS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À RELAÇÃO DE CONSUMO

Como já dito, vivemos numa sociedade de massa, onde a produção é planejada estratégica e unilateralmente pelo fabricante visando sempre o menor custo e o maior lucro; gasta-se pouco e reproduz-se muito. Esse planejamento é acompanhado de um modelo contratual reproduzido milhares de vezes, com cláusulas aprovadas unilateralmente pelo fornecedor, sem que o consumidor possa negociar seu conteúdo, são os denominados contratos de adesão pelo art. 54 da legislação consumerista*.

Ocorre que em tais contratos o consumidor, diante da extrema necessidade possui uma única alternativa: aderir. Daí a relativização do princípio pacta sunt servanda, porque na realidade não há pacto.

De fato, ante a relação jurídica posta à apreciação, patente a caracterização como de consumo, imperativa a revisão contratual à luz das normas do sistema jurisdicional coletivo para que sejam adequadas, reparadas, sanadas as cláusulas configuradas abusivas do contrato que evidentemente é de adesão.

Antes, porém de enfrentar os pontos controvertidos debatidos pelas partes, cabe ligeira explanação acerca dos princípios norteadores da presente decisão:

A responsabilização das partes decorrentes da contratação é normatizada desde 1700 a.C., exemplificativamente nas regras do Código de Hammurabi:

"Se um construtor edifica uma casa para um comitente e a termina, este deve pagar-lhe uma recompensa de 2 shekel de prata por cada shar (1shekel - – 3grãos de trigo = 9,1 gramas; 1sar = 14,83 m²).Se um construtor edifica uma casa para um comitente sem dar-lhe suficiente resistência, de tal forma que a casa desmorone e ocasione a morte do dono, o construtor será executado.Se o desmoronamento ocasionar a morte de um filho do dono, dever-se-á executar um filho do construtor. Se perecer um escravo do comitente no desmoronamento, o construtor dará em troca um escravo de valor equivalente. Se o desmoronamento destruir parte da propriedade, o construtor deverá refazer o destruído. Se isso ocorreu porque não construiu a casa com suficiente resistência, deverá reconstruir as partes danificadas por conta própria. Se um construtor edifica uma casa sem dar-lhe resistência e desmorona uma parede, o construtor deverá reconstruí-la, reforçada, por conta própria." [01]

Todavia, com o passar do tempo e a evolução dos interesses da sociedade, já não é mais razoável que o construtor pague com a vida por um dano causado a outrem.

Surgiu, então, o princípio da boa-fé objetiva que ao contrário do que pretendem alguns doutrinadores, não é inovação do Código Civil de 2002 e encontra-se atrelado ao princípio do equilíbrio.

Trata-se de princípio que pré-existe ao ordenamento jurídico sistematizado dos dias atuais. Senão vejamos.

O jurisconsulto Ulpiano com fundamento na filosofia estóica [02], define justiça como vontade perpétua e constante de dar a cada um o que é seu. [03]

ASSIS e POZZOLI explanam com brilhantismo:

"Trata-se de ações que não são realizadas tendo em vista um interesse pessoal, mas de maneira desinteressada, a serviço da comunidade humana. Essas idéias estóicas estão presentes no Direito romano. Para o jurisconsulto Paulo, o Direito natural é aquele que é sempre justo e bom e o Direito Civil é aquele que é apenas útil (os deveres).. . justiça significa dar a cada homem aquilo que é justo e bom.Por isso, a convenção (Direito Civil) que persegue as coisas úteis aos homens deve sempre estar em conformidade com o Direito natural." [04]

Jesus Cristo quando indagado acerca dos tributos cobrados do povo ordenou que se desse a César o que fosse de César e a Deus o que fosse de Deus [05], estabelecendo, desde tempos remotos, que nas relações humanas deve ser observado o princípio da boa-fé objetiva, consistente na moral e boa conduta, com a finalidade de alcançar o equilíbrio da relação jurídica, que tem a finalidade de harmonizar interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico.

Como se vê os dois princípios possuem ligação íntima, porquanto visam a concretização do princípio da justiça, com a solução de tratamento equitativo (art. 3º, I, CF)*, de forma a assegurar o princípio da vida digna (art. 1º, III da CF e art. 4º, caput do CDC), outro mandamento que antecede os textos legais, e é falado por Jesus Cristo: "O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância". [06]

Platão em análise da lei como positivação dos princípios e limitação às barbáries, e no mesmo sentido abordando os erros cometidos pelos homens na aplicação das leis, ensinava:

" Se os homens erram ao aplicá-las – como fizeram com Sócrates quando o condenaram – nem por isso elas devem ser quebradas, dando o poder de obediência que têm e sua validez para preservar a diferença entre eles, de tal modo que, na igualdade e na diferença possa transparecer um todo harmônico, logo justo, porque pleno de limites necessários à convivência." [07]

Cícero, considerado maior orador romano, em explanação acerca da distinção entre direito público e privado, especificamente quanto ao direito civil genialmente elaborou:

"Tomemos o direito civil e fixemos os seus limites: seu objeto é manter entre os cidadãos as relações de equidade que repousam sôbre as leis e os costumes. Convém em seguida distinguir os gêneros e fixar o número, tanto quanto possível." [08] (sic)

Veja-se que desde os primórdios da humanidade, não basta garantir o direito à vida, é necessário assegurar a concretização de existência digna, delimitando se for necessário as relações privadas e responsabilizando-se os causadores de danos a repará-los.

Aliás, a dignidade da pessoa humana é bem intangível, defendido pela Constituição Federal no art. 1º, inciso III.*

Ademais o princípio da boa-fé objetiva encontra-se estampado no art. 4º e o do equilíbrio contratual no art. 51, IV e §1º, III, todos do Código de Defesa do Consumidor*.

Também deve ser observado o princípio da transparência (art. 4º da Lei 8078/90), que é oportunização ao consumidor de conhecimento do verdadeiro conteúdo do contrato, sendo complementado pelo princípio da informação (art. 6º, III, CDC)*, do qual decorre o direito do consumidor ser informado e o dever do fornecedor informar adequadamente.

O inovador princípio da vulnerabilidade, expressamente disposto no art. 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor*, estabelece que o consumidor é sempre parte vulnerável, ou seja, em regra, a parte fraca na relação jurídica de consumo em decorrência da falta de conhecimento técnico e menor capacidade econômica em relação ao fornecedor.

Todos os princípios mencionados decorrem do princípio constitucional maior que é o da isonomia, disposto no art. 5º, caput da Constituição Federal e que preceitua tratamento igualitário em todas as situações jurídicas ou de fato.

Por fim, há que se mencionar o princípio da proporcionalidade, decorrente da necessidade de harmonização das normas de grau equânime por meio da ponderação dos interesses apresentados no caso concreto, e como bem define FREDIE DIDIER, "trata-se de princípio que torna possível a justiça do caso concreto, flexibilizando a rigidez das disposições normativas abstratas." [09]

Importante a explanação principiológica, pois segundo ANTONIO AUGUSTO MELLO DE CAMARGO FERRAZ citado por FILOMENO "na verdade, a defesa do consumidor não se faz pela proteção de uma determinada coisa, material ou corpórea, mas de princípios, ou valores, necessários para preservar o equilíbrio nas relações de consumo, compensando-se a situação de inferioridade em que se encontra o consumidor isolado frente às grandes empresas e ao próprio Estado, inferioridade essa que se acentuou dramaticamente com a produção em massa, com a velocidade e intensidade atuais da publicidade, com as práticas de monopólio, com os contratos de adesão." [10] (sem grifo no original)

As normas escritas devem ser analisadas face os princípios como garantia da regra da justiça que consiste em atribuir tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, porque nas palavras de NORBERTO BOBBIO:

"A lei, enquanto norma geral e abstrata, estabelece qual seja a categoria à qual deve ser reservado um determinado tratamento. Cabe ao juiz estabelecer em cada situação quem deve ser incluído na categoria e quem deve ser dela excluído. O preceito da imparcialidade é necessário, porque a aplicação de uma norma ao caso concreto nunca é mecânica e requer uma interpretação na qual intervém, em maior ou menor medida segundo os diferentes tipos de lei, o juízo pessoal do juiz." [11]

O cerne da importância da matéria principiológica abordada é muito bem definida por BANDEIRA DE MELLO:

"(...) violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada." [12]

Ainda no mesmo sentido são as lições de JOSÉ SOUTO MAIOR:

"A violação de um princípio constitucional importa em ruptura da própria Constituição, representando, por isso mesmo, uma inconstitucionalidade muito mais grave do que a violação de uma simples norma, mesmo constitucional." [13]

Após os prolegômenos, passo, então, a enfrentar os pontos controvertidos levantados pelas partes.


1. DA PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA

Primeiramente, rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva suscitada pelos requeridos NOVA CAP – EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA, seus representantes legais Marcos Augusto Netto e Nelson Benedito Netto.

Isto porque, no caso vertente, patente a qualidade de consumidor dos adquirentes dos imóveis, sendo destinatários finais do produto e serviços prestados pela parte ré (art. 2º do CDC). *

Evidente, também, a qualidade de fornecedores dos réus, posto que exerceram na relação jurídica atividade fim, de comercialização de produtos e de prestação de serviços, no momento em que passaram a promover o oferecimento destes, ainda que outrem os produzissem como fornecedor primário; ou seja, os requeridos são fornecedores secundários, na qualidade de empreendedores da venda dos produtos e serviços prestados e fornecidos pela requerida PROGEMIX.

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Imperativo reconhecer, ainda, o instituto contratual da incorporação imobiliária que envolve a relação de consumo apresentada nesta ação.

Quanto ao fornecedor-incorporador as definições são extraídas do art. 3º, do Código de Defesa do Consumidor: "é toda a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços". (sem grifo no original)

Assim como a lei n. 4591/64, define o incorporador no art. 29 como sendo "a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas". (sem grifo no original)

Deste modo, é feita a análise da atividade incorporativa realizada pelos requeridos, sob a ótica das relações de consumo.

Como é cediço, a incorporação imobiliária consiste na promessa de compra e venda de unidades autônomas em construção ou a serem construídas, implicando em direito sobre coisa futura.

A Lei dos Condomínios em Edificações e Incorporações Imobiliárias, n. 4.591/64, no seu art. 28 define a atividade incorporativa como sendo "a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas."

Ocorre no caso vertente existência de deveres principais e deveres anexos entre as partes envolvidas, numa cadeia organizada de fornecedores diretos (NOVA CAP e seus representantes) e indiretos (PROGEMIX e seus representantes), formando relações contratuais interligadas.

Consoante se comprova dos documentos de fls. 204 - 205, consistente em folheto promocional, bem como do instrumento de contrato de fls. 213-219, a requerida NOVA CAP e seus representantes legais Marcos Augusto Netto e Nelson Benedito Netto atuaram como fornecedores no momento em que tornaram-se responsáveis pela colocação de produtos e serviços à disposição do consumidor.

JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO bem leciona sobre fornecedor dizendo que "são considerados todos quantos propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender às necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título, sendo relevante, isto sim, a distinção que se deve fazer entre as várias espécies de fornecedor nos casos de responsabilização por danos causados aos consumidores, ou então para que os próprios fornecedores atuem na via regressiva e em cadeia da mesma responsabilização, visto que vital a solidariedade para a obtenção efetiva de proteção que se visa oferecer aos mesmos consumidores." [14] (sem grifo no original)

Com efeito, os requeridos desempenharam atividade mercantil e de forma habitual, oferecendo no mercado bens produzidos por terceiro e ainda prestando seus próprios serviços, assumindo, portanto, a responsabilização pelo fato do produto.

Trata-se do risco do empreendimento, como consequência da evolução do direito do consumidor, que gera para o fornecedor a responsabilidade objetiva decorrente da má ou inadequada prestação de serviços ou fornecimento de produtos.

É que a responsabilização objetiva do fornecedor visa a prevenção ao exercício de atividades que coloquem em risco os direitos do consumidor, bloqueando eventuais brechas às artimanhas intentadas com o fito de burlar o sistema protetivo encampado pelo Código de Defesa do Consumidor, em contraposição à vencida teoria da aventura, que atribuía ao consumidor os riscos do consumo.

Com propriedade ensina EVERALDO AUGUSTO CAMBLER sobre as características do imóvel objeto do consumo na incorporação imobiliária, "incorpora inúmeros componentes de outros fornecedores, assemelhando-se a uma linha de produção e gerando responsabilidades conjuntas." [15] (sem grifo no original)

Infere-se do pedido de reserva de imóvel acostado aos autos à fl. 55 e verso:

"1) O contrato particular de compromisso de compra e venda será assinado após o pagamento integral do sinal do negócio, 3 (três) parcelas e da taxa de emolumentos, sendo vedada a transferência neste mesmo período se esta não for efetuada no escritório da NOVA CAP EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA sito à Rua Oceano Atlântico, nº 73 – Chácara Cachoeira.

(...)

4) O cheque ou nota promissória para pagamento da entrada inicial deste pedido de reserva do imóvel, deve ser obrigatório em nome da NOVA CAP EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA, que não se responsabiliza por outra forma de pagamento.

(...)" (sem grifo no original)

No mesmo vértice, o contrato de fls. 62-70 traz em seu preâmbulo a requerida NOVA CAP EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS LTDA e seus representantes como procuradores da promitente vendedora PROGEMIX – PROGRAMAS GERAIS DE ENGENHARIA, demonstrando o desempenho das atividades transatoras fundamentais para o termo da incorporação.

Como se vê, não prospera a alegação de ilegitimidade passiva da requerida NOVA CAP e seus representantes legais Marcos Augusto Netto e Nelson Benedito Netto Júnior, quanto mais, ao argumento de que agiram na qualidade de simples mandatários da empresa PROGEMIX, pois verifica-se do contrato firmado entre ambas as requeridas, juntados aos autos às fls. 659-663, que se trata de um misto de contrato de mandato e contrato de representação comercial, com o plus de promoção de vendas e administração de recursos, sendo certo que, in casu, este engloba aquele, pois conjuga a administração de interesses e a colaboração econômica exercida pelo representante em caráter de exclusividade quanto aos produtos de mercancia ofertados pelo representado.

Vejamos algumas das cláusulas do aludido contrato:

"(...)CLAUSULA PRIMEIRA: A CONCEDENTE, na qualidade de incorporadora de um empreendimento imobiliário (...), contrata com exclusividade a CONCESSIONÁRIA para promover a venda e administração do referido empreendimento.

CLAUSULA SEGUNDA: Para promover a venda e administração do empreendimento imobiliário a CONCESSIONÁRIA se compromete a fazer os seguintes serviços: (...)" (sem grifo no original)

Verifica-se num extenso rol de obrigatoriedades a incumbência aos requeridos NOVA CAP e seus representantes, dentre outras atividades, a promoção de publicidade e vendas, administração e cobrança das prestações, repasse das parcelas, enfim, todos os atos de administração com objetivo de êxito na venda dos produtos ofertados pela ré PROGEMIX. Sendo fácil concluir que sem a colaboração empreendedora daquela, não haveria a efetiva distribuição dos bens produzidos por esta.

Como bem observa CAMBLER, "quando não, o incorporador atua mais como prestador de serviços, intermediando as negociações entre os sujeitos incorporativos (dono do terreno, adquirentes, agente financeiro, construtora)." [16]

Desta feita, como é cediço, as normas do Código de Defesa do Consumidor se aplica a todas as espécies de contrato de consumo, e afasta a aplicação das normas que forem incompatíveis com o espírito de proteção ao consumidor e equidade na relação de consumo.

É que as relações de consumo são regidas, primeiramente pelo princípio da vulnerabilidade do consumidor, dentre outros, expressamente previsto no inciso I, art. 4º do Código de Defesa do Consumidor.*

Na presente ação, citado princípio deve ser visto à luz da teoria da aparência, segundo a qual os consumidores-adquirentes dos apartamentos acreditavam estar firmando contrato de compra e venda, principalmente, com a ré NOVA CAP e seus representantes, pois foram estes na qualidade de representante comercial que exerceram função de colocar no mercado os produtos ou negócios da empresa representada. [17]

Translúcida a não atuação da requerida NOVA CAP e representantes como meros intermediadores do negócio, como sói acontecer nos contratos comuns de representação e/ou mandato, pois não agiram tão somente no sentido de aproximar as partes para a efetivação do negócio; ao contrário, elaboraram o próprio contrato, estabelecendo regras aos consumidores, assumindo a administração das vendas e o recebimento das parcelas mensais dos adquirentes durante toda a execução desse contrato, caracterizando a solidariedade entre as empresas rés e o vínculo de ambas com os compradores.

A requerida NOVACAP e representantes exerceram função de promoção da incorporação, embora não tenham titularidade sobre o bem incorporável, agiram como agente incorporativo.

Ressalte-se que o pedido persegue a revisão das cláusulas contratuais abusivas e a devolução dos valores arrecadados ilegalmente, atividades estas, repita-se, exercidas pela requerida NOVA CAP e seus representantes, ainda que eventualmente em proveito igualitário da ré PROGEMIX.

Ainda aplicando-se a regra da compatibilidade das leis, neste caso, haverá a integração das normas, uma vez que, como é sabido, os artigos 421 e 422, ambos do Código Civil atual*, prevêem respectivamente, que os contratos guardem os princípios da probidade e boa-fé, observando-se a função social, de forma expressa, embora no código caduco de 1916 esses princípios também tivessem aplicação porque tratam de regras básicas de ética e moral das relações humanas e com agasalho constitucional.

Por isso é imperativa a responsabilização dos requeridos NOVA CAP e seus representantes Marcos Augusto Netto e Nelson Benedito Netto, com o objetivo de evitar que através de coligação de propósitos duvidosos escapem ao crivo da justiça e continuem a promover lesões aos direitos do consumidor e, em caráter educativo, pedagógico, imprimir-lhes senso de maior cuidado ao firmar parcerias.

Ademais, prestaram serviços aos consumidores, posto que serviços são considerados pela doutrina como as atividades, benefícios ou satisfações oferecidos à venda, ou nos termos do §2º do art. 3º do CDC, "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista."

De fato a NOVA CAP e seus representantes, na qualidade de agentes incorporativo, atuaram além da função de intermediação, coordenado as operações sócio-econômicas de desenvolvimento do processo produtivo, ou na explanação de CAMBLER:

"Para tanto, o incorporador desenvolve uma atividade, isto é, uma série coordenada e unificada de atos reunidos em torno de uma finalidade econômica unitária, motivo pelo qual diversas atividades (de construção, de corretagem, financeira) sujeitam-se à mesma disciplina." [18]

Deste modo, se as ofertas que promoveram e ainda promovem causam danos, cabe aos requeridos comprovarem a isenção de suas responsabilidades que é contratual, segundo se observa dos contratos firmados (fls. 62-70) e pedido de reserva de imóvel de fl. 207-208, sob pena de proteção à insegurança nas relações de consumo.

Como bem observa HÉLIO ZAGHETTO GAMA, "se cabem medidas do fornecedor quanto às preocupações pelas prevenções dos danos, deve ele comprovar que delas cuidou. Se ocorreram danos em razão das ofertas que fez, deve ele comprovar os fatores da isenção das suas responsabilidades. Se alguma afirmação foi feita numa comunicação ou informação publicitária, deve ele provar que disse a verdade; se há um vício de qualidade num produto ofertado, o fornecedor não pode alegar que o desconhecia (arts. 12,14,38 e 23). [19]

A responsabilização civil nas relações de consumo de regra é solidária tanto por vício como por fato do produto e serviço, segundo se observa dos arts.12,13, 18 e 19, todos do Código de Defesa do Consumidor.*

Como é cediço, impera o princípio da prevenção de danos, e como já dito, os requeridos não comprovaram a isenção das responsabilidades, o que somente seria admitido caso fossem verificadas algumas das circunstâncias eximentes dispostas no Código de Defesa do Consumidor, art. 14 § 3º, e incisos ou art. 12 §3º e incisos,* que é elenco numerus clausus; todavia, mantiveram-se na seara das ilações, o que é inútil, uma vez que sua responsabilidade é objetiva e originária da lei.

Acertadamente quanto à matéria abordada em ação civil pública, ensina RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, "em sede de responsabilidade por danos a interesses metaindividuais, aplicam-se as regras da solidariedade: a reparação é exigível de todos e de qualquer um dos responsáveis, inclusive podendo ser oposta àquele que se afigure o mais solvável, o qual ao depois se voltará contra os demais, em via de regresso." [20]

Ressalte-se a função social do contrato, dada a importância de seu objeto, que é a moradia, gerando a expectativa de consumação do sonho de milhares de brasileiros, que é o da casa própria, como meio de libertação do pagamento de alugueres para o resto da vida e, mais ainda, como necessidade pessoal e familiar.

Da exposto conclui-se pela legitimidade passiva da requerida NOVA CAP e seus representantes legais Marcos Augusto Netto e Nelson Benedito Netto, tendo em vista a responsabilidade objetiva disposta pela legislação consumerista, que é indiferente à conduta culposa ou dolosa, e que gera para o consumidor a prerrogativa de lançar mão das medidas cabíveis contra todos os que participarem da cadeia de responsabilidades que propiciou a colocação dos produtos no mercado ou proporcionou a prestação de serviços, nos termos dos artigos 7º, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor*.

Assim, afastada a preliminar de ilegitimidade passiva ventilada pelos requeridos, passo a analisar o mérito da ação.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Dorival Moreira. Incorporação imobiliária:: sentença em ação civil pública contra cláusulas ilegais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 861, 11 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16649. Acesso em: 23 dez. 2024.

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