Processo n.º 1714/99
Ação Civil Pública
Autor: Ministério Público Estadual
Réu: O Estado do Maranhão
Vistos etc,
Trata-se de ação Civil Pública com pedido de obrigação de fazer proposta pelo Ministério Público Estadual em desfavor do Estado do Maranhão.
Com a exordial vieram os documentos de fls. 19 a 244.
O autor reclama da ausência de defensores públicos na Comarca, mesmo existindo, desde 11 de janeiro de 1994, em vigor, a LCE nº 19, que "dispõe sobre a organização e funcionamento da Defensoria Pública do Estado".
Alega, ainda, que a Promotoria dos Direitos Constitucionais do Cidadão, através da Portaria nº 001/99-2ª P.J. instaurou o Inquérito Civil Público nº 001/99-2ª P.J., com o propósito de demonstrar o ferimento ao direito constitucional dos comarcanos necessitados, em ter assegurado, pelo Estado, a assistência jurídica integral e gratuita prevista no art. 134 c/c art. 5º, LXXIV, ambos da Constituição Federal.
O autor juntou aos autos, uma pesquisa entre os presos custodiados na Delegacia Regional de Polícia de Pedreiras, com a conclusão de que a maioria manteve apenas um ou nenhum contato com seu defensor, durante toda a instrução processual, sendo a atuação dos mesmos expressivamente avaliados como de baixa qualidade.
Após regular citação, o Estado contestou a ação (fls. 250/255).
Em contestação, o Estado afirma que as condições precárias da Defensoria estariam cessando pela proximidade de realização de concurso público para Defensor Público nos trinta dias que se seguiriam. Ao final, pede a declaração da perda do objeto da ação.
A contestação também veio acompanhada de documentos (fls. 255/300).
O autor manifestou-se sobre a contestação (fls. 301/302).
Audiência preliminar realizada sem transação e sem necessidade de produção de provas em audiência. Processo saneado e pronto para sentença.
É o relatório. DECIDO.
O dever do Estado de promoção da assistência jurídica aos necessitados
A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, erigida como órgão autônomo da administração da justiça, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (art. 134 e parágrafo único da CF/88), sendo inconcebível que o Estado se exonere dessa obrigação constitucional.
O artigo 5º, LV do da Constituição Federal, dispõe que: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos, a ela inerentes".
Naturalmente, a Constituição de 1988 garante ampla defesa aos réus em processo criminal (artigo 5º, inciso LV, da Carta Magna), e cabe ao Estado esta responsabilidade de prestar-lhes assistência (inciso LXXIV, do mesmo dispositivo legal). Ademais, é causa de nulidade do processo estar o acusado sem defensor (artigo 261, do Código de Processo Penal).
É do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos o comentário de que: "A atual Constituição introduz um avanço substancial, na matéria, na medida em que institucionaliza no âmbito da própria Lei Maior a assistência judiciária. É certo que o dever de prestá-la já vem consagrado desde a Constituição de 1946.. . A assistência do defensor é um direito do acusado, em todos os atos do processo sendo obrigatória, independentemente da vontade dele. Não basta portanto que haja um defensor nem é suficiente que este se limite a participar formalmente do processo. É necessário que da sua atividade se extraia uma defesa substantiva do acusado" (in Comentários à Constituição do Brasil, Ed. Saraiva, 2º vol., pág. 270) (grifos e destaques, não constam do original).
Encarregar os advogados militantes nas diversas comarcas do interior do Estado de promoverem a assistência judiciária não é suficiente para a efetivação do direito dos necessitados à assistência jurídica, nem é justo com os profissionais liberais que, muitas vezes, sequer têm as condições de manter com dignidade seus escritórios de advocacia. Os escritórios dos "medalhões" da advocacia não são alcançados pelas nomeações para a assistência judiciária aos que dela necessitam. São os pequenos escritórios de advocacia, localizados no interior do Estado, que estão suportando o ônus de fazer, precariamente, o papel que é do Estado. Não seria absurdo se se recusassem.
O número sempre crescente dos casos de nomeação de defensor dativo tem gerado sobrecarga insuportável para os advogados, profissionais liberais como quaisquer outros e que necessitam de remuneração pelo trabalho realizado.
Em nota ao artigo 87 da revogada Lei n. 4.215, de 1963, THEOTONIO NEGRÃO afirma que: "O advogado não tem a obrigação de trabalhar rotineiramente como operário intelectual, sem qualquer remuneração, contribuindo com isso para que a omissão do Estado em providenciar, como determina a Constituição, assistência judiciária aos necessitados, seja indefinidamente mantida" (Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, nota 11, ao artigo 87, 13ª ed., pág. 388).
A Defensoria Pública no Maranhão
O primeiro ponto de discussão para emissão de ordem judicial com intuito de impor ao Estado do Maranhão a instalação de Defensoria Pública é incontrovertido. O Estado não nega a sua condição de obrigado a ter em funcionamento Defensoria Pública para assistência jurídica aos que dela necessitam.
Resta, pois, a discussão sobre a prejudicialidade do pleito ministerial, decorrente da iminência de realização de concurso público para o preenchimento dos cargos de defensor público, no momento da apresentação da contestação, e, realizados concursos, se a situação atual da Defensoria Pública resultou no atendimento do preceito constitucional e legal, conforme requerido na inicial.
Depois de contestada a ação, de fato, instalou-se a Defensoria Pública e, é notório (independe de prova), que foi realizado concurso público para preenchimento dos cargos; este fato, isoladamente, passa a impressão de que foram atendidos os pleitos e, naturalmente, prejudicados estariam os pleitos. A verdade, lamentavelmente, é outra.
Apesar de instalada e Defensoria e realizados os concursos, o Estado não cumpre sua obrigação constitucional de prestar assistência jurídica aos que dela necessitam. Os baixos subsídios pagos aos Defensores provocaram uma evasão fabulosa daqueles que obtiveram aprovação nos concursos. Isso tudo, resultou no fato de que hoje são pouco mais de 20 defensores públicos para atender todo o Estado do Maranhão.
A prefalada instalação da Defensoria Pública não passou, em realidade, daquilo que ficou assinalado nas páginas da imprensa; um engodo para os que pleitearam e denunciaram a inexistência dela no Maranhão.
Pior de tudo é que entra governo e sai governo e o discurso é o mesmo; quando o agente político é cobrado, alega, invariavelmente, falta de recursos. Enquanto os sucessivos governos se omitem, o Estado tropeça no cumprimento de suas responsabilidades impostas pela Constituição. Na outra ponta, a corda arrebenta, como de costume, do lado mais fraco e o povo sofre, por impossibilidade de acesso à justiça, pela ausência de defesa qualificada, por falta de orientação jurídica adequada e pelo arbítrio.
O discurso da falta de recursos é e sempre foi falacioso. Nunca faltaram, não faltam e não faltarão recursos para obras faraônicas em que estão envolvidas empreiteiras, empresas de publicidade e outros que se prestam a abastecer o "caixa dois" das campanhas e a patrocinar o enriquecimento ilícito de quem passa pelo governo.
Os mandamentos constitucionais e legais prescritos nos artigos 5º, LXXIV e 134 da CF, Lei nº 1060/50 e Leis específicas da Defensoria não se podem transformar em meras peças decorativas, sem nenhuma utilidade. Para usar uma expressão bem conhecida dos caboclos que necessitam da assistência jurídica poderia se afirmar que o preceito constitucional e legal é só "migué".
Quem está acostumado aos periculum in mora, periculum libertatis, provas in specie, fumus boni iuris, in dubio pro reo, due process of low, in litteris, et coetera não ficará perplexo com o migué dos governantes. A expressão supra que ainda não foi incorporada ao nosso dicionário é a que melhor exprime a situação da assistência aos necessitados maranhenses.
A malversação do patrimônio público, conforme reiteradamente noticiado na imprensa nacional e local é que deveria causar maior perplexidade e indignação. Se não fossem malversados, os recursos seriam suficientes para o atendimento das necessidades fundamentais do povo, inclusive para o adequado funcionamento da Defensoria Pública.
Enquanto não se realizar concurso para que se possa ter defensor público em todas as comarcas do Estado e não forem pagos subsídios condizentes com as elevadas funções exercidas pelos defensores não há que se falar em funcionamento adequado da Defensoria Pública.
De mais a mais, mesmo que o orçamento atual do Estado não comporte o funcionamento de defensoria pública em todas as comarcas do Estado com pagamento de remuneração que diminua consideravelmente a rotatividade dos defensores, o que deve ser reorganizado e redefinido é o orçamento do próximo ano, inclusive com as famosas suplementações, se necessário.
A situação se tornou tão grave (e isso também é fato notório) que os poucos defensores públicos do Maranhão estão em greve por melhores condições de trabalho e remuneração justa. Nada mais justo; melhor que assim procedam, em vez de, simplesmente, abandonarem a carreira por outra que lhes ofereça melhores condições de trabalho e remuneração.
Ressalte-se ainda que se houvesse vontade de solucionar a questão, bastaria que o Governo empossasse os aprovados em concurso e marcasse data para um novo para atender as demais comarcas do Estado. Certamente, não serão os subsídios minguados que se destinam aos defensores públicos que abalarão as finanças do Estado.
O fato é que, atualmente, a situação de caos que se instaurou na instituição é motivo para movimento paredista dos defensores, com amplo apoio social. A hora é de reação de todos, inclusive do Judiciário que não se pode calar diante de tamanha omissão estatal.
A situação penosa da Defensoria Pública maranhense é do conhecimento de todo o Brasil. O Ministério da Justiça publicou estudo diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil no ano de 2004 e, entre outras coisas, classifica os Estados segundo dois critérios; no primeiro, os Estados são classificados segundo a existência de Lei Orgânica, Conselho Superior, Ouvidoria e índice de comarcas atendidas; neste critério o Estado do Maranhão está na honrosa 15ª colocação de um total de um total de 21 Estados; no segundo os Estados são classificados conforme os índices de atendimento pela população total, pela população alvo, de ações pela população alvo, de cargos ocupados, de evolução salarial e classificação final; neste critério o Maranhão está na 22ª colocação de um total de 22 Estados pesquisados. É triste! (Estudo Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, ministério da Justiça, p. 78/79)
A independência dos poderes
Naturalmente, não há que se falar em lesão ao princípio da independência dos Poderes com decisão judicial que imponha ao Estado a destinação de defensores públicos para atendimento aos necessitados de todas as comarcas, na medida em que o que se impõe é o simples cumprimento do mandamento constitucional e legal atinente ao tema.
Assim, demonstrada a inércia do Estado do Maranhão em cumprir sua obrigação de instalar órgão da Defensoria Pública nesta Comarca, caracterizada se encontra sua responsabilidade e o desrespeito ao direito constitucional dos cidadãos ao mais amplo acesso à Justiça.
Nestas condições, acolho o pedido para condenar o Estado do Maranhão a:
1 - nomear todos os Defensores Públicos que foram aprovados em concurso público, no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária R$ 10.000,00 (dez mil reais) a ser depositada em conta à disposição do Juízo da Comarca 1ª Vara da Comarca de Pedreiras para serem liberados para o Poder Executivo somente para destinação específica relacionada ao cumprimento do disposto nesta sentença;
2 - manter permanentemente defensor público na comarca de Pedreiras, sob as mesmas penas do item anterior;
3 – publicar edital de convocação de concurso público, no prazo máximo de 03 (três) meses, para preenchimento de todos os cargos vagos de defensor público do Maranhão, no prazo máximo de 06 (seis) meses, sob as mesmas penas do primeiro item.
Sem custas.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se
Pedreiras, 25 de novembro de 2005
Douglas de Melo Martins
Juiz de Direito